A prática psicanalítica de Wilfred Bion e as questões levantadas pela Teoria da Complexidade
De que maneira as questões levantadas pela complexidade afetam a nossa prática psicanalítica? O quanto as questões levantadas por Wilfred Bion modificam essa prática? E em que contribuem os processos criativos para tudo isso?
A nova prática do saber, derivada dos avanços da ciência, trouxe, e continua trazendo, consequências as quais estamos lentamente absorvendo. O fluxo de novos conhecimentos não pára de acontecer e continuamente nos afeta. Ora, isso se dá de uma tal maneira que o nosso próprio entendimento de o que é o mundo natural, de o que é a sociedade, de quem nós somos, está sempre se transformando, está sempre deslizando, estando forçosamente sujeitos à crítica e à renovação. Além de que, o próprio desenvolvimento da ciência está levando a uma tal aceleração dos fluxos de informação que estamos hoje expostos a uma condensação de acontecimentos que nos obriga a ter que, continuamente, refundar, deslocar as bases pelas quais nós damos um sentido à nossa experiência.
A psicanálise lutou, por muito tempo, tentando conquistar um status de ciência, em uma época em que ciência tinha a ver com “certezas”. Hoje, porém, como nos mostra Ilya Prigogine, a ciência não está mais identificada com a certeza nem a probabilidade significa ignorância. O “princípio da incerteza” de Werner Heisenberg nos fala que nenhuma observação pode se dizer completa e também que se necessita levar em conta a inevitável intervenção do observador sobre o sistema durante o processo do conhecimento. Qualquer produção do conhecimento ocorre pois como co-emergência do fenômeno em questão e do seu observador, tendo o sentido de criação. Assim, a psicanálise atual difere muito da visão que se tinha dela na época em que ela começou. Não se trata mais de um observador psicanalista que neutro, de fora da situação, observa o seu analisando objetivamente. Agora, tal como na Física de Heisenberg, observador e objeto – ou observador e fenômeno observado – não podem mais serem isolados um do outro.
Hoje sabemos que o que vai acontecer na experiência vai depender da nossa ‘maneira de observar’ o sistema e ainda ao fato de ‘o estarmos observando’. Agora, nos damos conta que, enquanto psicanalistas, somos participantes e não meros observadores, já que o sistema observado é, na verdade, um campo que se constitui através da própria interação analista-analisando: é esse campo, do qual somos constituintes, que é o objeto da nossa observação. Ele vai ser constituído dependendo de como irão interagir analista e paciente, e dependendo sobretudo como ressalta Wilfred Bion, do jogo das emoções que nele serão ativados. Portanto, não apenas na física, o conceito de campo é primordial como ainda dentro da própria psicanálise.
Niels Bohr, em seu conceito de complementariedade, diz que ‘partícula’ e ‘onda’ são duas descrições complementares da realidade, sendo cada uma dessas descrições ‘mutuamente exclusivas’, ao mesmo tempo em que são apenas ‘parcialmente verdadeiras’. Então, não só a realidade que observamos depende da pergunta que se faz, ou seja, introduz a questão do vértice de observação, como ainda, implica uma indecidibilidade – partícula ou onda? – introduzindo assim a questão de ter que se conviver com o paradoxo. Ora, isso é verdadeiro também na psicanálise. Não só a visão que o psicanalista tem da sessão é apenas parcialmente verdadeira e depende da pergunta que fazemos como ainda temos que conviver com a paradoxalidade em seus vários aspectos, entre eles, no que concerne a indecidibilidade de não se saber o que é proveniente do analista e o que é proveniente do analisando, no campo analítico.
Na medida em que entendemos tanto a emergência da matéria viva quanto a emergência do próprio pensamento, em termos de crescentes níveis de organização, observamos que a cada novo nível de organização vão emergir propriedades novas, suportadas mas não redutíveis às propriedades do nível anterior. Não se pode pois, desvincular a emergência do pensamento desse desenvolvimento da matéria: da matéria inorgânica à matéria orgânica, da matéria orgânica à matéria pensante. Há uma ‘criação’ a cada vez que os elementos de um determinado nível se conectam formando uma outra estrutura, a qual passa a ter propriedades novas, emergentes. A complexidade está, indissoluvelmente, ligada à idéia de criação: criação desde o nível atômico até no campo da linguagem. Criação implícita na transformação: passagem de um certo nível de organização a um outro, e na experiência compartilhada.
Além disso, a própria questão da “objetividade” está em jogo, já que, como diz Luiz Alberto Oliveira, “não podemos esquecer que aquilo que estamos acostumados a chamar de ‘mundo objetivo’ seria antes a expressão macroscópica de uma trama de relações microscópicas quânticas que não padecem elas mesmas de ‘objetividade’ “. Não surpreende, portanto, que a própria psicanálise prescinda dessa objetividade.
Embora não possamos desvincular matéria de energia, corpo de movimento, partícula de onda, na ciência atual, o que passa a importar são as transformações, os processos. Essa ênfase naquilo que se transforma, passa a ser também o foco primordial de uma nova forma de pensar psicanaliticamente, como nos mostra Bion.
Oliveira diz que as ciências não podem senão pretender formular verdades transitórias e inacabadas. Bion vai enfatizar isso no que diz respeito à psicanálise.
Embora a psicanálise nos fale de análise, esta, porém, é uma análise que não é reducionista. Isabelle Stengers coloca que análise e reducionismo não são uma mesma coisa. Enquanto o reducionismo se fundamentaria em ‘uma relativa simplicidade dos comportamentos elementares para ‘julgar’ o comportamento do todo’, a análise, por sua vez, poderia levar a uma conclusão bem diferente: ‘de que um tal comportamento não é o único possível, e que, em outras circunstâncias, o sistema estudado é capaz de outras coisas’. Isso significa que, dentro de uma visão não-reducionista, não se sabe do que aquele ser – ou aquele sistema – é capaz. Stengers: “O privilégio insubstituível do espírito analítico parece ser não a sua busca do simples mas a dissolução daquilo que se dá como auto-evidente”. Penso ser este o teor do qual está imbuído o pensar psicanalítico atual. Não se ‘analisa’ para tentar reduzir, simplificar ou julgar o comportamento de alguém, mas para dissolver aquilo que se dá como auto-evidente e, dessa forma, abrir novas possibilidades …
Partindo-se do princípio, de que o todo pode afetar o todo; de que a parte pode afetar o todo; de que a parte pode afetar outra parte; e de que o todo pode afetar a parte, o campo da complexidade vai ser caracterizado pela imagem da ‘dobra’: pôr em contato o que estava separado. Através da mediação do todo, a parte pode se automodificar, dobrar-se sobre si mesma. Também, ao colocar em contato analista e analisando espera-se que o vínculo ali criado possa ser um meio através do qual analista/analisando (um todo: o campo analítico) assim como analisando (parte) e também analista (parte) vão ser afetados (modificados) pelo campo analítico (o todo).
Ora, se tanto a realidade quanto o conhecimento são processos, e se se trata de um jogo sucessivo de necessidade-acaso, determinação-indeterminação, o mesmo se pode dizer da vida e, nela, do processo analítico. O encontro da necessidade (estrada) com o acaso (acontecimento) vai fazer com que as coisas se estruturem de uma determinada maneira, provocando um dobrar e um desdobrar. Neste dobrar/desdobrar-se, o que estava separado é posto em contato: cria-se então um espaço para novas possibilidades de atuação, para que novas estruturas possam aparecer. Distinções que eram apenas potencialidades vão ser explicitadas, levando a um outro teor de organização. A ‘dobra’ é um operador de organização que vai nos permitir entender a passagem – o entre – de um nível de organização a um outro, através dos encontros com o mundo: atualizações. Correspondem à passagem do virtual para o real. Numa análise, analista e analisando são postos em contato, criando-se assim um espaço de interação onde novas possibilidades vão poder aparecer, onde potencialidades vão ter a oportunidade de serem atualizadas.
Essa capacidade de ser afetado é a raiz de uma capacidade essencial dos seres vivos: a capacidade de aprender. Significa que o ser vivo pode modificar a sua própria estrutura para atender às variações do meio, permitindo a adaptabilidade à vida. Como defende Bion, dentro de certas condições, se pode inclusive aprender tanto da experiência do consciente quanto do inconsciente.
Na complexidade, a aprendizagem, está intimamente ligada ao desequilíbrio e ao desenvolvimento de potencialidades. Quanto mais indeterminação, quanto mais possibilidade de desequilibrar-se, isto é, de desorganizar-se, tanto maior a possibilidade de se chegar a um outro estado de equilíbrio, a uma nova organização.
Sem desorganização, seria impossível se chegar a um novo estado de organização, seria inviável uma aprendizagem ou uma evolução.
Os sistemas complexos, como o ser vivo e o homem em particular, são sistemas não–lineares que admitem a ação de fatores de realimentação e de acumulação que geralmente resultam em uma evolução radicalmente diferente, já que pequenas variações nos eventos-causa podem levar a grandes variações nos eventos-efeito. Coveney e Highfield dizem que os ‘fenômenos catastróficos’ são os que sofrem um percurso descontínuo e acidentado até chegar a um ponto crítico de mudança de comportamento. As idéias de fenômeno catastrófico e de mudança catastrófica (conceito muito utilizado por Bion) estão pois ligadas à questão da não-linearidade, estando na base da aprendizagem.
Na “Pirâmide da Complexidade” de Hubert Reeves, na base da pirâmide, as forças são muito intensas e muito coesas enquanto que no topo da pirâmide essas forças são de longo alcance mas menos coesas: mais longas, mas de intensidade menor. Isso significa que, no topo da pirâmide, as formas vão se fazer e refazer muito mais rapidamente. Ou seja, quanto mais complexo o ser, como no caso da pessoa humana, tanto maior será a sua capacidade de se fazer e se refazer com mais rapidez. Além de que, quanto mais alto o nível piramidal, mais frágil e vulnerável é a estrutura. A base da pirâmide é resistente, praticamente imutável. Nos níveis mais altos, as ligações são fracas, as estruturas delicadas, facilmente disruptíveis. Essa fragilidade é fundamental para a própria evolução do sistema. Também na psicanálise, é na fragilidade que está a possibilidade de uma transformação.
Como nos mostra Prigogine, sistemas fora do equilíbrio tanto podem levar à desconstrução da ordem como também à sua construção: a outros níveis de organização. Mais ainda: um outro teor de organização só pode ser alcançado a partir de sistemas fora do equilíbrio. Só por meio das perturbações um sistema consegue escapar para uma ordem mais elevada de complexidade: a chave para o crescimento está, portanto, na própria fragilidade.
Crise na complexidade, corresponderia a um aumento da desordem e da incerteza em um sistema. Essa desordem, embora provocada pela rigidez dos bloqueios organizacionais, no entanto, leva ao desbloqueio de virtualidades que estavam até então inibidas. É nesse sentido que a crise, representa, ao mesmo tempo, ‘desorganização’ e ‘oportunidade’ para uma nova organização. Então, numa crise pode-se ou se refugiar no estado anterior, ou ir em direção a soluções práticas e criativas. Ora, a crise é o que, em geral, leva a pessoa a procurar uma análise. Ainda que uma parte da pessoa busque acabar com a crise refugiando-se em seu estado anterior, acredita-se que exista uma outra parte que a estaria impelindo para o futuro, em direção à realização do seu potencial criativo.
A ordem não é uma forma e sim uma reestruturação contínua: o que ocorre é uma “construção/desconstrução”. Também é essa a idéia da psicanálise em Bion: não se pretende atingir uma forma dada, acabada, pronta, e sim buscar, passando pela desorganização, uma outra organização, um crescimento, uma evolução contínua.
Humberto Maturana Romesín e Francisco Varela García definem os sistemas vivos como sistemas autopoiéticos, ou seja, sistemas homeostáticos que possuem sua própria organização como a variável que é mantida constante. Os sistemas autopoiéticos são aqueles que são capazes de se auto-reproduzir e de se automodificar. Para Heisenberg o tipo de estabilidade do sistema vivo é antes uma estabilidade de reação e de função do que uma estabilidade de forma. Embora mudando constantemente a sua forma, algum equilíbrio, ou seja, uma metaestabilidade, é mantida constante garantindo essa organização autopoiética: é essa organização que vai permitir inclusive o próprio reconhecimento da individualidade daquele ser apesar de suas constantes transformações. Ora, sabemos que uma organização pode permanecer constante sendo estática, ou também mantendo constantes seus componentes, ou ainda mantendo constantes as relações entre componentes que estão em contínuo fluxo. As máquinas autopoiéticas são desse último tipo: se um sistema é vivente, ele é autopoiético. Quando uma máquina autopoiética recebe interferências em seu funcionamento para além do seu campo de compensações, ela se desintegra, i.e., perde sua autopoiese. Há portanto um limite das alterações que o ser vivo pode receber sem a perda da sua autopoiese, isto é, sem que isso o leve à morte. De forma análoga, podemos pensar que existiria um limite para aquilo que o indivíduo pode suportar em termos de dor, inclusive a dor mental, isto é, um limite para além do qual ele se desorganizaria em termos mentais. Essa questão aponta para a relação ‘conteúdo/contido’ da qual nos fala Bion.
Uma outra questão é a de que o indivíduo deixa de ser visto como pronto, acabado, finalizado, e passa a ser visto como se fazendo, sempre em transformação: agora o que se tem é uma multiplicidade inacabada, indefinida, em contínuo processo de individuação. Também o próprio eu deixa de ser visto como um eu uno, unívoco, sem contradições, e passa a ser visto em seus vários aspectos, por vezes contraditórios, paradoxais e, principalmente, como uma transitoriedade em sua multiplicidade de experiências. Essa questão é crucial para a maneira como se vai enfocar o indivíduo: ele deixa se ser finalizado e unívoco. Dessa perspectiva, a psicanálise nos obriga a ter que lidar com nossos aspectos divergentes, contraditórios, paradoxais.
Outro ponto importante é a questão da mediação. O ser vivo, para continuar vivo, necessita de uma constante interação com o ambiente, respirando, nutrindo-se, etc., e para tal precisa ser um sistema aberto; no entanto, sua organização autopoiética o obriga a ser também um sistema fechado, sob pena de perder sua autopoiese e desintegrar-se. Daí a enorme importância que tem a membrana como precisamente o que vai possibilitar que esse sistema esteja aberto e fechado ao mesmo tempo, tendo essa dupla função de separar e de unir. Nesse sentido, ela é uma dobra que une o dentro do vivo com o fora do vivo. Ora, na psicanálise de Bion, tal mediação aparece nos conceitos de barreira de contato, visão binocular, cesura…
No ser vivo, a questão da auto-organização passa a ser crucial, já que ele tem a capacidade de usar o desequilíbrio, i.e. o ruído, ou o acaso, como fonte de uma nova organização. Henri Atlan nos diz que vai depender da estrutura do próprio sistema que o acaso seja fonte ou de destruição ou de criação: ou nos decompomos com a natureza, nos desorganizando, ou nos compomos com a natureza, nos organizando melhor, aprendendo com isso. Atlan fala inclusive de uma “aprendizagem adaptativa não dirigida” – na qual o indivíduo se adapta a uma situação radicalmente nova – como um caso particular de auto-organização; assim, sob o efeito dos fatores ‘aleatórios’ do ambiente que são produtores de ‘erros’ no sistema, o sistema utilizaria isso como fator de organização. Tal aprendizagem não-dirigida, sem a ajuda de um professor, se dá essencialmente a partir da experiência. Bion também vai ressaltar o valor do aprender da experiência no que concerne esse contato com o novo, com o inusitado, com o desconhecido. É evidente que tal aprendizagem não-dirigida, no entanto, embora prescinda de um professor, não prescinde do contato com o meio, no caso da psicanálise, do encontro com um outro.
Ora, essa complexidade organizacional se dá em níveis tanto do desenvolvimento da espécie quanto do indivíduo, incluindo a própria criatividade do indivíduo: tudo isso faz parte de uma auto-organização. Tem-se, pois, que considerar a organização do ser vivo como um processo ininterrupto dessa desorganização/organização e não como um estado, sendo que nesse processo de perturbação, faz-se necessário que a destruição não seja total, mas seja ‘real’. Assim, diz Edgar Morin, tem-se que conviver com a paradoxalidade em termos de vida e morte e em termos de construção e desconstrução tanto individual quanto social. É justamente “a ameaça permanente mantida pela desordem” que confere ao indivíduo e à sociedade o caráter complexo e vivo de reorganização permanente.
Abertura e fechamento são pré-condições necessárias não apenas para a viabilidade do ser vivo, como ainda para a comunicação e a mudança. Gilbert Simondon diz que a ciência atual nos leva a uma concepção de comunicação como um sistema de regiões privadas de contato nas quais um contato é ‘criado’. Assim sendo, a comunicação é que vai constituir os comunicadores: é o “entre” que funda os pólos, e não o contrário. A dispersão prévia é que permitiria e tornaria fecunda a comunicação. Na psicanálise, não haveria assim um código previamente constituído que pudesse fazer sentido, e que seria passado do emissor ao receptor. Este sentido, ao invés de já estar constituído iria se constituir na própria relação, constituindo, simultaneamente, os pólos, analista e analisando. Isto se daria a partir do ruído, e não apesar dele. Oque é aleatório, o que é acaso, é que viria a ser integrado e viria a constituir a própria comunicação. No encontro analítico tal sentido vai ser constituindo dentro do campo, no interjogo ‘entre’ as associações do paciente e a escuta do analista, ‘entre’ as interpretações do analista e as novas associações do paciente.
Para Prigogine e Stengers colocar em contato é vincular. O vínculo representa, a um só tempo, possibilidade e oportunidade, uma vez que participa na construção de uma estrutura integrada e determina, num dado momento, um ‘espectro’ de consequências novas. Os vínculos funcionam como limites e fontes de criação. Assim, o ‘vínculo’, criado a partir desse ‘colocar em contato’, abre a possibilidade e a oportunidade para novos possíveis, sendo essa comunicação que vai possibilitar a emergência de novos fenômenos. Aqui, o essencial seria se poder manter os processos de emergência vivos interceptando e usando as oportunidades imprevistas que eles nos oferecem, estando prontos para nos deixarmos determinar por eles. Só assim é possível usar a emergência para produzir novas emergências. É isso, portanto, o que ocorre no interjogo do trabalho analítico de Bion, no fazer e refazer contínuos onde o ‘fato selecionado’ e o ‘insight’ têm lugar.
Sabemos que quanto mais o ser vivo nasce ‘inacabado’, tendo que ser cuidado pela mãe – ou figura maternal – para poder sobreviver, tanto mais rico ele é em potencialidades e tanto mais capaz de atualizar e modificar suas potencialidades utilizando o ruído para se auto-organizar. É justamente esse inacabamento, essa indeterminação, presente em sistemas ricos em potencialidades, que vai permitir a aprendizagem, a partir dos encontros com o mundo, da comunicação: isso é o que vai possibilitar seu desenvolvimento. Stengers diz que, como a vida, a complexidade opera não com problemas, mas com uma série de problematizações, sem uma solução prévia a ser atingida, mas sim com uma nova solução a ser criada. A vida, portanto, não tem finalidades, produz finalidades. A evolução se dá sem um estado final a ser atingido: é simplesmente evoluir. O que ocorre é uma tessitura: da entremeação dos fios surge um padrão sem um alvo prévio aonde se deveria chegar. A comunicação fala dessa tessitura, dessa problematização, que vai permitir que a transformação ocorra. Se olharmos para a psicanálise de Bion desse ponto de vista, o encontro analítico não tem uma finalidade no sentido de um objetivo a ser atingido: o que se propõe é criar uma oportunidade para simplesmente evoluir, ou evolver.
Varela diz que ainda que pensemos, sintamos, e nos comportemos como se tivéssemos um “eu” a ser protegido e preservado, temos que admitir a ‘fragmentação’, a transitoriedade, a não permanência da idéia de “eu”. Contudo, o “eu” seria aquilo que abriria um espaço para a transformação, para a modificação, para a flexibilidade e para a mudança, um espaço para o conhecimento do conhecimento, nos permitindo pensar como se constrói o universo das nossas experiências. Para Simondon, a individuação é enfocada também enquanto processo, enquanto estabilidade provisória sempre se fazendo e se refazendo, inventando estruturas novas, se introduzindo em novas problemáticas: um princípio de conservação através do devir. O indivíduo é simultaneamente sistema de individuação, sistema individuante, e sistema individuando-se, a individuação sendo um aspecto da ressonância interna do indivíduo. Ainda, a individuação faz aparecer o indivíduo e simultaneamente, a polaridade indivíduo-meio. Simondon: “não podemos, no sentido habitual do termo, conhecer a individuação: podemos apenas individuar, nos individuar e individuar em nós”. Para ele até o próprio o pensamento resultaria dessas operações individuantes. Isso nos leva a Bion: no fato de que a significação vai se dar através da interação com um outro (reverie, função a) que faz aparecer simultaneamente a polaridade indivíduo-meio, e no fato de que não se pode conhecer “O”, apenas efetuar transformações em “O”, só se pode ser “O”.
Edgar Morin diz que o organismo vivo funciona apesar de e com a desordem. O ruído, o erro não são necessariamente ‘degenerativos’, mas podem ser ‘regenerativos’. Um sistema auto-organizador é tanto mais complexo quanto menos estritamente determinado, quanto mais dotadas de autonomia relativa são as partes que o constituem, podendo conviver com concorrências e antagonismos, quer dizer, com um certo ruído. É isso que vai fazer com que esse sistema seja mais passível de efetuar outras ligações. Assim, o desencadeamento, feito pelo ruído, de um processo desorganizador – catastrófico – desencadearia uma nova organização com uma base nova. Desse modo, a transformação seria produto dessa desorganização, que é fonte de complexidade embora tudo o que é vivo esteja ameaçado pela desordem e dela se alimente. A hipercomplexidade seria precisamente essa diminuição das restrições em um sistema que se encontra de fato em um estado de desordem permanente, constituído pelo jogo de associações aleatórias. Essa idéia, que Morin nos transmite, de que um organismo quanto ‘mais complexo’, quanto ‘menos estritamente determinado’, funciona ‘apesar de’ e ‘com’ a desordem, nos leva a pensar que quanto mais flexível, menos rígido, for um organismo, mais capaz ele será de aprender com a experiência. Ele diz ainda que se poderia pensar, que tais restrições existiriam não apenas pelas condições biológicas do sistema vivo – cerebralização – como ainda por suas condições psicológicas – capacidade de efetuar ligações. Então, se o organismo for capaz de tolerar um certo nível de desorganização permanente, ele poderá utilizar a desordem como fator auto-organizador. Essa hipercomplexificação seria um processo ‘em cascata’, que não se tem razão alguma para supor que deva interromper-se’. Assim, o ‘Homo-sapiens’ é considerado tanto do ponto de vista do seu estado atual de hipercomplexidade como de suas ‘reservas de complexidade’: ‘aptidões não-realizadas’. Além de que não seria apenas a existência dos sonhos e das associações imaginárias que caracterizariam essas “aptidões ainda não-atualizadas” – reservas de complexidade – mas também a irrupção disso na cultura, e a maneira como isso é vivenciado nos contextos bio-socio-culturais onde o homem se define. A consciência seria essa confluência das inter-relações, interações e interferências, pressupondo, antes de tudo, uma aptidão reflexiva através da qual ela olha para si própria, se interroga sobre ela mesma, torna-se, ela própria, objeto de conhecimento. Então, na medida em que o sujeito pensante esbarra com problemas, com paradoxos, os quais ele não pode transpor, é aí que ele vai tomar a si próprio como objeto de exame. Tais ‘aptidões não-realizadas’, nos remetem a um pensamento que pode ir se complexificando cada vez mais, à semelhança das pré-concepções, concepções e conceitos, de Bion em termos de conjunções constantes.
Para Morin o homem é ao mesmo tempo louco-sensato: comporta o ‘erro’, e desenvolve aptidões intelectuais tanto para o conhecimento, quanto para a criação, numa relação ‘complexa e contraditória’. Como convivem as dualidades consciente /inconsciente e, parte-psicótica/parte-não-psicótica da personalidade em Bion.
Graças à abertura de Bion para o diálogo com a Complexidade, isso permitiu uma abertura, na análise, para expandir a criatividade no pensar!
Assim, a psicanálise não serviria para dar respostas e sim para abrir todo um novo universo de perguntas, de possibilidades. Ela, da mesma forma que a complexidade, ao invés de lidar com problemas a serem resolvidos, lida com questões a serem problematizadas: não é submissa, mas questionadora. O que a psicanálise faz não é uma simples desobediência, mas um questionamento da norma, que a obriga a ter que se abrir para progredir. A psicanálise vai estar lidando com problematizações sucessivas. Para tal, no entanto, é preciso se ter a coragem e a capacidade de deixar muitas perguntas sem resposta. Isso é respeitar o mistério do ser humano…