Jogos da Natureza – Parte I – Capítulos 1 e 2
O dr Luis andava de uns tempos pra cá particularmente ansioso. Ele havia sido mal compreendido quando deixara que fosse publicada a descrição de alguns sonhos atribulados de sua filha Maria Luisa. Naquele livro haviam sido descritas várias situações inusitadas, nada comum mesmo, mas que ocorrem com frequência na natureza. Entretanto, como são difíceis de serem percebidas em nosso cotidiano, elas foram consideradas como ilusórias, de natureza onírica, tratadas até mesmo como falsas! Algumas destas situações ocorrem no interior da matéria, na microfísica, e outras lá no extremo oposto, nos confins mais longínquos e grandiosos do universo e que os físicos e os astrônomos vêm descobrindo nos últimos anos.
Vários comentários haviam aparecido, aqui e ali, que levavam os menos avisados a pensar que algumas leis da natureza descritas nos sonhos de sua filha – que ele se ocupara em descrever de um jeito brincalhão – fossem imaginárias, fantasiosas! Ele havia então decidido que iria consertar isso de alguma maneira. A questão era: como?
Reviu mentalmente as estranhas e inusitadas situações que tinha recentemente participado com sua filha e achou que deveria registrar uma a uma essas ocorrências em que eles apareciam como personagens principais, para não esquecê-las. Assim o fez. Abriu um grande e luxuoso bloco que havia deixado à parte para algum momento especial e começou a escrever. Para separá-lo dos demais blocos, que continham cálculos de seus trabalhos científicos, escreveu em grandes letras à primeira página:
SONHOS CÓSMICOS
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Rio de quem não ri de sua ciência
(comentário de um filósofo alemão)
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CAPITULO 1: Procurando as regras do jogo da Natureza
Maria Luisa estava entusiasmada tentando aprender a jogar Go, um jogo bem antigo. Seu pai, o dr Luis havia aprendido este jogo com um colega físico, companheiro de trabalho em seu Instituto, e assimilado tão bem as regras gerais que tinha até mesmo conseguido ganhar dele em algumas partidas.
O principal – ensinava o dr Luis – é entender que contrariamente ao conhecido jogo de xadrez, no Go todas as peças têm o mesmo valor. Qualquer uma delas se identifica com um peão. É somente ao longo de seu desenrolar, na prática do jogo, na situação do momento, em cada movimento especial, que uma peça qualquer pode eventualmente se destacar e adquirir momentaneamente uma importância estratégica grande.
— Como assim? perguntou ela.
— Deixe-me explicar um pouco melhor: os dois jogos, xadrez e Go, são jogados em um mesmo tipo de tabuleiro, mas as regras são bem diferentes. Além daquela diferença dos valores individuais das peças de que falei ainda há pouco, deve-se acrescentar outra fundamental: no xadrez cada peça possui uma forma particular de movimento. Por exemplo, a torre só se movimenta em linha reta. Os bispos ocupam somente as casas diagonais. É por isso que existem dois bispos: um deles só anda pelas casas brancas e outro pelas pretas. E assim, de modo semelhante, todas as demais peças são obrigadas a obedecer uma dada forma particular de movimentação. Além disso, no início do jogo, todas estão colocadas no tabuleiro, em uma posição fundamental, específica, que caracteriza um momento importante: o estado inicial, a partir do qual começa o jogo. No Go, a situação básica é bem diferente: seu estado inicial é o vazio. O tabuleiro é só um pano-de-fundo. No inicio do jogo, não há nada no tabuleiro, nenhuma peça foi nele ainda colocada. Esta distinção do estado inicial é extremamente importante para a evolução dos movimentos dos jogos. Isso vale até mesmo se consideramos outras situações, não necessariamente limitadas a jogos simples como esses dois. Vale para outros jogos mais sofisticados, vale até mesmo para jogos mais fundamentais, como o jogo da criação, que envolve a origem e evolução do universo.
Ela não entendeu qual seria a relação desses jogos que pareciam para ela uma simples diversão, com uma coisa tão diferente quanto a evolução do universo! Mas como ela confiava muito em seu pai achou que algum dia ele iria explicar isso para ela.
À medida que o jogo avança, continuou o dr Luis, um a um os peões vão sendo colocados. Outra diferença importante: no Go as peças são colocadas nos vértices onde se cruzam duas linhas. Em verdade, o tabuleiro se identifica com um verdadeiro campo de batalha e estas linhas horizontais e verticais devem ser interpretadas como caminhos possíveis que um soldado – representado pelo peão – pode percorrer, desde que não encontre um inimigo. Se os quatro vértices adjacentes àquele onde coloquei meu peão-soldado estão livres, isso significa que em princípio, ele poderia seguir por qualquer direção. Se, no entanto, no caso extremo oposto, os quatro vértices estão ocupados, isso significa que meu soldado está cercado pelo inimigo e deve-se interpretar isso como se ele tivesse sido capturado. Mas embora uma peça-soldado sozinha tenha a mesma potência, o mesmo valor que qualquer outra, na prática do jogo, pela situação do momento, um soldado pode valer mais do que outro. Vejamos, por exemplo, o caso em que um soldado tenha três de seus vértices adjacentes ocupados por inimigos. Se mais um soldado inimigo for colocado no quarto vértice, livre até então, ele ficará preso; entretanto, se ao invés de meu adversário for a minha vez de jogar – isto é, de colocar mais um soldado no tabuleiro – e se eu colocar meu peão-soldado precisamente no quarto vértice, aquele que ainda está livre, então aumenta o número de caminhos livres que nossa equipe passa a possuir. Dois soldados conectados por um caminho – isto é ocupando vértices adjacentes – possui não mais quatro mas sim seis possíveis entradas que se abrem para caminhos por onde supostamente soldados amigos poderiam chegar. Assim para cercar-nos seriam agora necessários seis soldados inimigos! E assim sucessivamente. Isto é, a importância efetiva de cada soldado pode variar muito, conforme a situação especial do jogo.
A menina ficou impressionada com o Go. Não que ela o preferisse, mas o que a fascinou neste jogo foi sua dinâmica, totalmente diferente do jogo de xadrez. E – pensou ela- muito mais democrático!
Além disso, identificar um peão como um soldado na guerra deu a ela uma nova dimensão para o próprio jogo de xadrez. Ela passou a interpretar o xadrez como um campo de batalha aristocrático, com hierarquias pré-estabelecidas. E quanto ao Go, ele bem que poderia ser associado a uma guerrilha popular.
Depois desta conversa, Maria Luisa foi para o quarto, com uma ideia fixa na cabeça:
— E se a Natureza jogasse Go? Se não houvesse nenhuma hierarquia em tudo-que-existe, como é que a física iria descrever o mundo? perguntou ela, querendo, como sempre fazia, aplicar de imediato idéias recém-adquiridas em outras situações.
Distraidamente, sem esperar pela resposta, começou a ler a lista das partículas elementares no volumoso livro sobre a física dos constituintes da matéria, que o dr Luis guardava em seu escritório, para ver se havia ou não alguma hierarquia lá no mundo microscópico dos átomos. Deitada na cama, começou a refletir.
“Diz aqui que existem várias classes de partículas elementares: a classe dos eletrons, a classe dos neutrons, dos protons, neutrinos, pions, fótons,…. qual dessas partículas é a mais importante? se fossemos jogar xadrez eu teria que escolher qual a rainha, quem é o rei, e o valor de cada uma das demais peças. Mas isso, sempre que mexemos com a vaidade das pessoas (“e até mesmo das coisas!” -lembrou) causa uma bruta confusão e inveja para todo lado. Ainda bem que no Go isso não é preciso. Menos um problema..”
Maria Luisa continuava a divagar sobre o jogo.
— E se isso não fosse so uma brincadeira e o Go, fosse jogado de verdade pela Natureza? Eu poderia concluir que a ordem de importância das partículas depende somente da sua quantidade, do número total de partículas existente em cada classe. Mas se for mesmo pela quantidade, o mais importante então, sem a menor dúvida, é o fóton. Papai disse que no nosso universo há 100 milhões de fótons para cada átomo de hidrogênio que existe. Então o fóton é, sem dúvida, o personagem mais importante! – concluiu ela.
Essa última frase foi dita em voz alta de tal modo que seu pai apareceu na porta para ver o que estava acontecendo. Depois da explicação da filha, dr Luis começou por argumentar que querer saber quem é mais importante, quem tem mais poder é coisa lá entre os homens, e que certamente esse tipo de hierarquia não deveria ser aplicada à Natureza. Ademais, havia tantos fótons no universo que era até ingenuidade atribuir alguma forma de “vaidade” associada a um fóton que fosse; ou mesmo falar qualquer coisa sobre um fóton ainda que superficialmente, relacionada à sua individualidade.
Maria Luisa não conseguia afastar o pensamento desta quantidade fantástica de fótons que existem no universo. Mudando completamente de interesse, aproveitando que o dr Luis estava ali, arriscou perguntar:
– Papai, por que no universo existem exatamente 100 milhões de fótons para cada átomo de hidrogênio e não outro número qualquer?
Essa pergunta, feita tão tarde na noite, quando o dr Luis estava se preparando para dormir, o inquietou um pouco. Mas como ele sempre estava disposto a conversar com ela sobre questões ligadas a seu trabalho, sentou-se à cama e procurou encontrar um modo simples para dar uma explicação que pudesse satisfazê-la.
— Bom, começou, para ser cientificamente rigoroso devo admitir que ninguém sabe a verdadeira origem deste número. Poderia ser outro número qualquer? Talvez. Este excesso de fótons sobre todas as demais partículas que existem tem mesmo uma causa a que podemos ter acesso ou seria ele fortuito, mero acaso? Não sabemos. Poderíamos viver em um universo onde não haveria essa
predominância tão acentuada de radiação luminosa no mundo? alguns cientistas se perguntam. Mas qual a resposta, também ainda não sabemos.
— Como assim? Então os físicos não sabem nada? Isso quer dizer que este número tão grande de fótons poderia ser outro? Não é uma lei da natureza? perguntou, bastante espantada pela novidade de saber que os físicos ousavam pensar a possibilidade de existir um mundo diferente deste que vivemos!
O dr Luis se deu conta de que tinha falado mais do que deveria. Ela certamente não estava preparada para entender certas questões que exigiam um pensamento tão abstrato. Para tentar consertar isso ele resolveu que deveria estender um pouquinho mais a sua explicação.
— Veja bem: alguns físicos pensam que isso depende de nossa própria existência e que dessa forma não seria de todo absurdo pensar na possibilidade de um universo com características diferentes deste nosso. Assim, dizem eles, poderíamos entender um pouco melhor o mundo em que vivemos. Não acredito que esta proposta tenha uma argumentação suficientemente forte para entendermos as propriedades deste universo. Entretanto, como se trata de uma solução simples, vamos hoje só tratar dela. Outro dia, em hora mais conveniente e com mais tempo, prometo mostrar outras ideias mais interessantes que os físicos têm desenvolvido sobre aquela questão e que propõe explicações menos fantasiosas. Ocorre que estas idéias são bem mais sofisticadas e difíceis de serem descritas em linguagem simples.
Enquanto o dr Luis conversava com a filha pensou que talvez fosse útil anotar em algum lugar aquela pequena explicação. Outras pessoas poderiam eventualmente se interessar por ela. Com efeito, no dia seguinte o dr Luis, assim que chegou ao escritório, resolveu redigir o que tinha rascunhado na noite anterior para a filha sobre a explicação que alguns físicos haviam proposto sobre a origem das propriedades especiais deste mundo, isto é, as razões pelas quais a aparência do mundo é precisamente esta que percebemos e não uma outra.
Anotações do dr Luís sobre o Princípio Antrópico
É, sem dúvida, um modo de pensar muito especial, curioso e certamente pouco comum o que descreveremos aqui. Trata-se de tentar compreender algumas peculiaridades do universo a partir do reconhecimento de que nós existimos.
Questão primeira: enumerar as necessidades básicas mínimas para viabilizar a existência de um planeta capaz de atingir, em um tempo finito, as condições ambientais ideais para o aparecimento da vida.
O princípio antrópico se baseia na hipótese de que se algumas constantes que os físicos usam para descrever o universo tivessem um valor numérico diferente do que efetivamente possuem, então, como consequência disso, o universo seria diferente. Mesmo que as alterações nos valores daquelas constantes fossem pequenas, as características do universo poderiam mudar sensivelmente.
Trata-se de mostrar que pequenas alterações nas quantidades que caracterizam o mundo têm consequências desastrosas em alguns processos importantes, como, por exemplo aqueles relacionados à existência da vida. Com efeito, para que vida apareça no universo, uma série de pré-requisitos se fazem necessários, envolvendo o valor de algumas constantes fundamentais da física. Só para citar um exemplo deste modo de pensar: se a massa da partícula neutron que existe no interior dos átomos fosse um pouquinho diferente do que ela é então possivelmente a quantidade de hidrogênio existente no universo seria diferente. Isso acarretaria uma série de consequências e – em um processo em cascata, um verdadeiro efeito dominó – alterar seriamente as condições mínimas para o surgimento da vida. Isso levou alguns físicos a sugerir que vivemos num universo que teve uma evolução preparada para que pudesse aparecer, em algum momento, o homem. Na origem do universo – qualquer que tenha sido ela – estaria contida a informação que guiaria sua evolução para que fosse possível o aparecimento futuro de homens.
Fim das anotações do dr Luís
À margem, escrito à mão, o dr Luis acrescentara: não esquecer de comentar sobre a arrogância da espécie que gerou uma tal teoria!
Ela queria saber se isso poderia ser feito assim, deste modo simplista, mudando arbitrariamente o valor de uma só constante da natureza sem alterar as demais. Um dia seu pai lhe explicara sobre a solidariedade quase absoluta entre as diversas partes em que os homens, artificialmente, retalham a natureza. Mas ela não conseguia mais manter os olhos abertos. Quando estava chegando ao fim da explicação o dr Luis percebeu que a filha estava dormindo e, pé ante pé, sem fazer ruído, desligou a luz do pequeno abajur e deixou o quarto.
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Maria Luisa olhava para o centro do salão de onde vinha um grande rebuliço que atraíra sua atenção. Foi andando para lá e começou a notar que todas aquelas partículas que estavam nomeadas na Tabela do dr Luis estavam por ali. Cada uma trazia em volta de si um xale onde havia seu nome escrito.
Ali estava o proton, mais adiante o eletron dando piruetas de mãos dadas com o neutron e um monte de outras partículas que discutiam justamente sobre as inúmeras situações possíveis que aparecem no desenrolar do jogo de Go! Sem estranhar essa inusitada cena, ela achou que seria o bom momento de procurar entender uma coisa que a intrigara.
— Por favor, antes de continuarem a falar dessas propriedades especiais do Go e do xadrez, alguém pode me explicar se na Natureza só existem estes dois jogos? disse em voz bem alta.
Por um brevíssimo momento todos olharam para ela , suspendendo a conversa. Passado esse instante, continuaram como se não tivessem entendido a pergunta ou como se ela não merecesse resposta. Um pouco envergonhada, mas insistente como sempre, repetiu a pergunta. Depois de um pequeno momento, que no entanto pareceu a ela ter a duração de uma eternidade, e sem que reconhecesse de quem seria essa voz, ouviu finalmente, lá de trás uma resposta:
— Certamente que não! Há vários outros jogos. Mas estes outros servem só para distrações menores.
Maria Luisa ficou espantada com essa afirmação. Afinal, ela tinha aprendido desde bem cedo que descobrir as regras do jogo da Natureza nada mais era do que conhecer as Leis da Física! E como uma coisa tão séria quanto a própria razão do comportamento de planetas, estrelas, átomos, partículas de qualquer espécie, radiação, luz e tudo mais que existe poderia estar associada a uma origem tão pouco profunda ou até mesmo, por que não dizer, leviana, quanto uma simples distração?
Resolveu se afastar dali e se aproximar de um outro grupo onde uma acalorada discussão dominava a roda toda.
Alguém, agitando os braços em gestos amplos, fazia comentários, e parecia precisamente estar se preparando para responder à questão que ela havia feito. Foi chegando mais perto até que conseguiu entender o que falavam.
— Ora, dizer que estamos em um jogo que é só uma distração não significa que estamos fazendo uma atividade “inferior”, mas se trata precisamente do contrário!
Porque era o contrário, ela não entendeu. Mas ficou muito curiosa para ouvir o resto da argumentação. E, com efeito, ele continuava…
— Um jogo não é um passa-tempo. Um jogo tem precisamente como prioridade definir o tempo, o próprio tempo do jogo! Não sua duração, mas seu ritmo. Diferentes jogos, diferentes ritmos, e possivelmente diferentes tempos. Ou não. Assim, enquanto nos “divertimos”, com este passa-tempo, vamos criando a natureza.
Tirando a menina, todos pareceram entender e escutavam em silêncio quase total.
— Por exemplo, se vamos jogar o jogo da gravitação, todo mundo tem que cair com a mesma aceleração! E desse jeito, construímos um relógio gravitacional para medir o movimento. Não é fácil? Este jogo define então um tempo. O tempo gravitacional. Agora, se quisermos passar para o jogo de outras forças, digamos as forças eletromagnéticas – (o neutrino, bem ao lado da menina que, como todos sabiam, não tem carga elétrica e, consequentemente, não pode sentir o efeito do campo eletromagnético, fez um gesto de total desprezo) – é diferente. Cada um ganha uma aceleração diferente.
Mas mesmo assim, este jogo também define um relógio. E um outro tempo: o tempo eletromagnético.
Ela queria perguntar se estes tempos tinham tic-tac diferentes, mas não teve coragem de interromper.
— Ademais, daqui há muito pouco todos vão ter que escolher entre outros três jogos menores, mas fundamentais! Um deles, o jogo da Dicotomia, por exemplo, vai dar muito o que falar e cada um de nós vai se deparar com uma extraordinária bifurcação.
Lá do fundo ouviu-se um comentário, em tom de brincadeira:
— É como os cientistas dizem que a natureza gosta às vezes de fazer: colocar a gente em uma encruzilhada…
A voz continuou como se não tivesse sido interrompida:
— Mas não é disso que se trata.
MLuisa ficou sem saber a qual afirmativa ele se referia. Depois de uma pequena pausa e com ar solene e grandiloquente, concluiu aos gritos:
— NÓS ESTAMOS JOGANDO COM A NATUREZA!
Ela tomou um susto ao ver que o modo como ele se referia à Natureza, igual como os amigos de seu pai a tratavam: algo separado, longínquo, como se fosse somente uma referência a alguma coisa não identificada com eles, como se fôsseexterna. Que os homens fizessem isso, era uma tolice compreensível, como dizia o dr Luis. Mas que as coisas, elas mesmas, também o fizessem, não dava para acreditar. Afinal tudo-que-existe, não é isso o que chamamos Natureza? Ou será que ela é mais do que isso?
Preciso logo perguntar a papai, disse para si mesma.
Como se tivesse ouvido a menina, a mesma voz interferiu e vaticinou:
— Se você perguntar a seu pai, vai continuar sem saber.
A menina achou esta observação, no mínimo, petulante. Com quê então, um cientista do calibre de seu pai não saberia isso? E mesmo se não soubesse responder de imediato – como às vezes ocorria, ele certamente iria conversar com seus amigos e viria explicar direitinho. Ela se lembrou quando tinha perguntado se a vida havia começado na Terra ou se algum cometa ou outro corpo celeste a teria trazido, talvez ainda sob forma elementar, de algum lugar dos confins do nosso sistema solar, ou mesmo para além dele. O dr Luis então lhe dissera que não sabia responder, mas que iria falar com seu colega Fred Hoyle e depois lhe explicaria. Dito e feito, no dia seguinte explicou direitinho o que os cientistas pensavam da forma que tinha ocorrido.
De um modo bem simples e sem entrar muito em detalhes, a vida – dissera o dr Luis – como nós a conhecemos, requer a presença do elemento químico carbono. Ora, este elemento não foi criado lá na fase extremamente condensada do universo que chamamos Big-Bang, – junto com todos os demais elementos químicos leves – mas sim no interior quente das estrelas. E lá ficaria para sempre não fosse o fato de que as estrelas evoluem, têm uma dinâmica, possuem uma história. Em certas circunstâncias, estrelas morrem, emitindo para seu exterior, sua matéria, liberando entre outros elementos químicos, o carbono que estava no seu interior, guardado sob pressões e temperaturas elevadas que é assim liberado para o meio interestelar. Se, por alguma razão ou acaso, este carbono se encontrar em uma região apropriada – tal como na vizinhança de um planeta ou outro corpo celeste, com temperatura mais fria – pode constituir um hospedeiro ideal para que ali se possam desenvolver interações e eventualmente, a formação de longas cadeias de carbono, possibilitando gerar condições ideais para o aparecimento da vida.
— Isso quer dizer – falava o dr Luis – que a vida como a conhecemos, depende fundamentalmente da morte de uma estrela. Podemos então repetir uma frase famosa de um astrônomo, velho amigo meu:
Nós somos, literalmente, os restos mortais de uma estrela.
Lembrando-se desta explicação, bem como de todas as outras que seu pai frequentemente lhe dava, a menina ficou irritada com o comentário anterior. Antes que ela levasse adiante sua indignação e para evitar mal-entendidos – parecendo saber a admiração que ela tinha por seu pai – a mesma voz acrescentou:
— Nem ele e nenhuma outra pessoa, pois não se trata de conhecimento, mas de outra coisa. Mas vamos voltar um pouquinho àquela questão original.
Fez uma pausa, respirou fundo e continuou com a mesma voz, no mesmo tom.
— A natureza certamente contém tudo-que-existe. Mas não se limita a isso. É alguma coisa mais.
Maria Luisa arregalou os olhos desse tamanho.
— Alguma coisa mais? E o que seria isso?
— Você vai entender melhor quando descobrir as regras do Jogo da Criação. Eu posso adiantar e dizer que conhecer a natureza somente pela observação é uma limitação muito grande.
Ela se interessou por isso, pois se lembrara de uma visita que fizera com toda a família à Dinamarca e onde o dr Luis tivera uma longa e desgastante discussão com outros físicos que diziam precisamente o contrário! Ela se lembrava muito bem desses momentos e até podia repetir alguns trechos da conversa que o dr Luis tivera em particular com um de seus melhores amigos. Por um momento esqueceu dessa discussão aqui. Mas ao voltar a pensar na situação atual em que ela estava envolvida, se deu conta que não entendia porque todos estavam esperando pelo fim daquela explicação. Até que depois de um certo momento de reflexão conseguiu entender qual era a questão. Havia uma divisão entre eles. Um grupo queria jogar xadrez e outro jogar Go. E eles não pareciam chegar a nenhum acordo.
—É preciso decidir logo, pois a Natureza não pode esperar muito tempo mais e todos nós vamos começar a existir daqui a pouquinho! alguém falou em tom angustiado.
— Ué, se eles não estão existindo, como consigo vê-los? Ou será que isso é só um sonho? perguntou-se com um certo temor de descobrir que aquilo tudo que estava acontecendo com ela talvez pudesse não existir de verdade!
Como não sabia ficar à parte de uma discussão tomou logo partido.
— Se eu pudesse decidir escolheria o jogo de Go, refletiu, porque é mais…. pensou em alguma coisa bem precisa e correta,…“democrático.”
— Nem tanto, alguém retrucou. Pode ser mais democrático lá no começo, mas depois fica igualzinho a todos os outros jogos.
Ela não teve tempo sequer de responder a isso pois as coisas estavam ficando quentes, acaloradas mesmo, com uma nítida divisão das partículas em dois campos. De um lado os partidários do xadrez, que começaram cada um a vestir uma roupa especial, à imagem da peça que correspondentemente pretendiam representar; e do outro, os que queriam jogar Go. Pareciam dois partidos políticos: os aristocratas, os nobres, os grandes senhores sempre associados ao poder, optavam pelo xadrez. Do outro lado, em número sensivelmente maior, partículas de várias espécies, como uma multidão de operários, queriam jogar Go.
No primeiro grupo de partículas ela reconheceu o proton e o eletron. Pareciam considerar-se mais importantes que os outros. Traziam várias faixas – algumas delas enormes – que, de quando em quando, levantavam para que todos vissem:
NÓS SOMOS PARTÍCULAS ESTÁVEIS
dizia uma. Outra afirmava:
NÓS ESTAMOS NA ORIGEM DE TODAS AS FORÇAS
O outro grupo, favorecendo o jogo de Go, era muito menos organizado. Não tinham nenhuma roupa especial, vestiam-se de modo bastante grosseiro, rústico, popular, desleixado até, e ao invés de estarem considerando esta disputa como de grande importância, pareciam estar se divertindo despreocupadamente. A menina achou até mesmo que eles estavam sendo irresponsáveis; ou então não tinham percebido a importância da questão.
Foi muito fácil para ela reconhecer os fótons, cada um com energia e vibração distinta. Alguns deles vinham de braços dados com outros que embora parecessem muito com os fótons, (ela chegou mesmo a pensar que deveriam pertencer à mesma familia) eram visivelmente diferentes. Eram mais gordos, mais pesados. Tinham dificuldades em se movimentar e se moviam a velocidades muito baixas, bem longe da fantástica velocidade dos fótons. Olhou uma placa que alguns traziam. Estava escrito
BÓSON INTERMEDIÁRIO
Na mesma faixa, um pouco mais abaixo, havia uma explicação em letras pequenas. Ela se esforçou e conseguiu ler. Dizia:
Nós somos para a interação fraca do dr Fermi o mesmo
que os fótons são para interação eletromagnética do dr Maxwell.
— O que será que isso quer dizer? E quem serão estes doutores?
Ela sabia muito bem que aquele dr não os caracterizava como médicos. Eram doutores em física, como seu pai. Mas não tinha tempo de procurar saber isso agora. Muitas coisas estavam acontecendo e a atenção dela se voltou para um terceiro grupo que se formava, para se desfazer em seguida e repetir essa movimentação por mais de uma vez. Mas eles pareciam não estar dispostos a participar de jogo algum, tal como os neutrinos.
Finalmente, depois de muita algazarra e confusão, como se tivessem chegado a um estranho acordo, decidiram jogar os dois jogos ao mesmo tempo!
— Ah, agora entendi porque é tão difícil explicar o comportamento dessas partículas lá no mundo dos átomos: elas estão jogando dois jogos!!
Refletiu por um momento e se perguntou:
Mas como é que sabem qual dos dois jogos estão jogando em um dado momento?
— Em verdade não sabem nem precisam saber.
Quem falava assim, num diálogo muito impessoal com ela, era o dr Luis. Mas – e isso assustou-a – ele estava irreconhecível. Não só a tratava com cerimônia e um certo distanciamento nada usual, mas mais estranho ainda era o modo como estava vestido. O dr Luis trazia uma gravata borboleta (coisa que Maria Luisa nunca tinha visto alguém usar) e usava calças curtas com suspensórios largos coloridos! ” Que é isso?” perguntou-se a menina. Passado o primeiro momento de espanto ela entendeu que se tratava de um sonho. De seu sonho.
Quando eu acordar ele vai falar direitinho comigo, como sempre fez. Assim, tranquilizada por essa reflexão, a conversa continuou.
—Ué, então como é que eles sabem como, ou melhor, quando fazer uma boa jogada?
— E quem diz que é isto que acontece? Eles não se preocupam com isso. A única coisa que importa é não esquecer que a curto alcance jogam xadrez e a longo alcance jogam Go. Localmente, face a face, existe sempre uma hierarquia localizada. A longo alcance, separados no espaço ou no tempo, essa ordem, essa distinção, essa hierarquia dá lugar a uma estrutura cada vez mais homogênea, as características individuais vão desaparecendo e as partes vão ficando cada vez mais parecidas umas com as outras. As diferenças que permitem nomear as coisas -fótons, bósons intermediários, protons, eletrons,..- não são mais importantes no comportamento da natureza. Chegado neste ponto, atingida essa homogeneidade global, para lá das especificidades locais, a aparência não importa mais: a estratégia toma o lugar do corpo!
Maria Luisa não entendeu o que queria dizer isso e ia perguntar quando ele acrescentou:
— Na verdade há duas histórias correndo paralelas!
Essa explicação não melhorou em nada sua compreensão. Parecia uma grande tolice. Resolveu argumentar e explicar porque não podia acreditar naquilo.
— Eu, por exemplo, quando estou brincando de um jogo, não sei jogar outro. Imagina só, jogar futebol e vôlei ao mesmo tempo!
As regras são tão diferentes…
— Se você insistir em querer adaptar o mundo às tuas ideias não vai entender nada mesmo. As regras são eles que decidem e não você, falou em tom bastante agressivo o dr Luis-de-calças-curtas.
Ela ficou aborrecida. Afinal, se esse é o MEU sonho, se sou eu quem está sonhando, se trata então da MINHA realidade. Então por que não vou mandar nela? Afinal de contas, não é isso que todo mundo faz? pensou. E para mostrar que ela podia sim comandar a realidade gritou, como se todos pudessem ouvi-la e obedecê-la:
— Vai todo mundo jogar xadrez!
— Bom, retrucou ele, isso exige uma decisão superior sobre o papel de cada um dos participantes!
— Vamos fazer uma votação!!! alguém falou.
Como se fora uma imposição bem forte que não admitia ser contestada, passaram logo a se organizar para a votação. Fez-se um comitê que estabeleceu uma lista e uma ordem de apresentação. Cada um iria ter uns poucos minutos para expor suas qualidades e, em seguida, todos votariam. Aqueles que tivessem um bom número de votos seriam proclamados o que quisessem: Rei, Rainha ou outro personagem qualquer.
Ela pensou que isso poderia criar uma grande confusão se duas ou mais partículas escolhessem ser a mesma peça. Se tiver dois reis qual deles é que vai mandar? Mas, exceto ela, ninguém mais parecia se preocupar com isso. Estavam todos muito excitados tentando escrever seus discursos de campanha para refletirem sobre questões lógicas que só apareceriam bem mais tarde. Depois, certamente alguém teria que resolver isso. Mas não agora.
Começaram então a se pronunciar. O proton e o eletron queriam papéis importantes.
— Partículas estáveis como nós, que temos uma vida tão longa, do tamanho da duração deste mundo, deveríamos ter papel especial, de Rei ou Rainha, disse o proton. Se um de nós desaparecer deste mundo, o Principio Antrópico garante que até mesmo os homens deixariam de existir!
Lá do fundo ouviu-se uma voz clara e indignada.
— Bobagem! Você vai ver um dia, que se tirarem qualquer tipo de partículas – estáveis ou não – o universo será diferente!
O próton fez um gesto arrogante de total desinteresse por essa discussão. O eletron, visivelmente embaraçado por ter sido citado, dava a entender que concordava com a posição do proton. Mas havia um problema delicado: sua relação íntima com os neutrinos. Com efeito, andavam sempre tão juntos, tão grudados uns nos outros que certamente o que fosse válido para um deveria ser também para o outro. Mas não parecia ter opinião semelhante à do próton. Por isso, meio sem graça, deixava o proton assumir a liderança, sem mostrar sua concordância. Uma particulinha sem maior significância (MLuisa nem conseguiu distinguir o nome que ela trazia tatuado em sua testa) começou a falar em voz bem alta:
— Se eu for eleito não quero ser rei, quero ser um…. demorou um tempão para decidir e finalmente, quase gritando, revelou: …quero ser um Buraco Negro e engolir tudo que está à minha volta!
— Isso não vale!, gritaram todos a um só tempo, só pode escolher ser alguma peça do jogo de xadrez! Um buraco negro, todo mundo sabe não é mesmo?, é uma estrela que colapsou. E disso, de estrela colapsada, não se pode brincar. Ia levar muito tempo! Além disso, uma estrela colapsada é como um universo sem começo e sem fim: não dá para construir!
Maria Luisa não entendeu porque uma estrela levaria muito tempo para colapsar e se tornar um buraco negro, mas pensou que algum dia ela ainda iria entender o que acontecia nestes buracos! Começou a pensar porque não valia e por que iria demorar tanto tempo. Afinal de contas, isso não era uma espécie de faz-de-conta? Isso não era um jogo de xadrez de verdade! Ou era?
Antes que a menina pudesse concluir, o que parecia ser o organizador e responsável por aquela reunião deu a palavra ao eletron; depois ao proton, ao fóton e assim um a um, todos tiveram seu momento de discurso. As coisas pareciam ir se ajeitando convenientemente; o que levou a menina a pensar:
“Bom, se esse jogo, em que todos estão envolvidos é só um sonho meu, até que está muito tranquilo.”
Ledo engano. Foi só ela ter esse momento de singela reflexão para as coisas desandarem. Uma partícula, que ninguém soube dizer de onde tinha vindo, qual partido defendia ou se pertencia ao grupo dos ” independentes” como os neutrinos, tomou a palavra e causou um rebuliço daqueles!
— O jogo não é jogado do jeito que vocês estão pensando, começou ela, a princípio em um tom aparentemente tranquilo, mas que foi mudando muito, chegando a ser inflamado, à medida que discursava. A diferença principal aqui é que as regras com as quais jogamos não são únicas e nem dadas no começo do jogo, isto é no começo deste universo! Só temos acesso a umas poucas regras gerais, válidas para qualquer jogo. Outras, especiais, ficam escondidas e só as conhecemos à medida que o jogo se desenvolve. Quanto a estas regras que os cientistas inventam, e vão mudando à medida que jogamos, não são para nós, mas para eles mesmos!
A platéia ficou em silêncio tão profundo que se podia literalmente sentir bater mais acelerado o coraçãozinho do neutrino que se tomou logo de amores alucinados pela particulinha que falava.
— E por que mudam as regras?, porque o mundo é dinâmico?…, perguntou retoricamente, para responder ela mesma:
—… as regras mudam, as leis mudam, os carcereiros (Maria Luisa pensou que ela estivesse se referindo aos famosos buracos negros e outrosaprisionadores de partículas) mudam suas funções. E se mudarem muito, carcereiro e prisioneiro irão trocar de posição e é até possível acontecer que eles deixem de ser duas pessoas distintas… Fez uma longa pausa para ver o efeito destas palavras e continuou:
— Nós, partículas – elementares ou não – não temos nada a ver com isso. Nem mesmo devemos aceitar que este tabuleiro onde brincamos, deva ser único e dado para sempre. Nós podemos mudar o tabuleiro! Podemos fazer o tabuleiro ser curvo como uma bola de futebol! Temos total liberdade. Não somos obrigadas a nada! Essa história de que devemos ter um jogo único, é pura invenção deles,…
Fez um gesto para explicitar que a referência era pouco lisonjeira, e continuou:
… dos cientistas e não tem nada a ver com os maravilhosos jogos que a natureza oferece.
Fez outra pausa e arrematou grandiloquente:
— Este jogo que vocês estão falando é jogado entre a natureza e os cientistas!
A confusão que se seguiu foi inimaginável. As partículas se agitaram enormemente. Uma verdadeira ovação partiu do grupo das partículas-operárias.
Maria Luisa arregalou os olhos desse tamanho! Mas há muito pouco tempo ela tinha ouvido alguém dizer precisamente o contrário!
Como se tivesse lido o pensamento dela, uma operária virou-se para ela e em tom quase agressivo explicou:
— Não dá mesmo para vocês, humanos, entenderem. Pois o que o graviton acabou de dizer é muito claro.
Maria Luisa soube assim quem era a tal partícula-revolucionária. Mas a operária continuava…
— Parece até que vocês não sabem viver no mundo regido por “isto e aquilo”. Vocês gostam de viver o tempo todo no modo alternativo, controlado por “isto ou aquilo”. Por isso vocês estão sempre envolvidos no Jogo da Dicotomia e querem que nós também façamos o mesmo. Mas nós não nos submeteremos a isso! Nunca. Ouviu bem?
Maria Luisa não entendeu o que ela disse, mas teve a sensação de que deveria fazer alguma coisa. O momento não era para conversas, menos ainda para discussões. Ela ficou em pânico. Parecia que uma decisão grave deveria ser tomada. Quem tinha razão? Com que então, não havia regras do jogo da Natureza? e o que é que os cientistas estavam descobrindo? As leis físicas, afinal, como pretendia essa partícula-revolucionária, não eram ” da Natureza ” ? A menina, andando de um lado para o outro, encontrou afinal o dr Luis. Ele trocara de roupa e finalmente passara a se vestir normalmente. Vinha com seus amigos que corriam junto a um grupo de policiais fardados, na direção das partículas com a nítida intenção, estampada em seus rostos, de terminar com aquela reunião que havia se transformado em verdadeiro comício revolucionário….
+++++++++
Acordou super angustiada. Foi até a biblioteca onde o dr Luis já começara a trabalhar. Depois de um bom-dia rapidamente trocado entre os dois e com uma voz bem baixinha perguntou:
—Papai, as Leis da Natureza são fabricadas pelos homens?
O dr Luis que não se admirava de nenhuma pergunta da filha, pegou, antes de responder, o seu cachimbo (apagado, como sempre) e sem conter um pequeno riso de satisfação, abriu carinhosamente os braços para ela e com voz pausada disse:
— Bem, vejo que hoje vamos começar bem cedo…
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CAPÍTULO 2: O fóton fala com Maria Luisa
Maria Luisa tinha recebido um presente muito especial. Sua tia Luri tinha lhe dado uma bela edição condensada da Bíblia. No mesmo dia, à noite, foi para a cama levando seu livro novo. Mal começou a ler ficou com vontade de ir correndo falar com o dr Luis. Afinal, tia Luri dissera que tinha lhe dado um livro sagrado, mas logo nas primeiras páginas, no capítulo intitulado Gênesis, aparece uma história da criação do Universo!!! Mas isso não era coisa de cientista, de cosmólogo, como seu pai?
— Será que papai já leu isso?
Mas antes de ir lá falar com ele, resolveu que seria melhor ler um pouquinho mais. Ela ficou curiosa para saber como seria essa versão religiosa da criação do mundo. Como era de seu jeito, começou a ler baixinho para que só ela ouvisse.
No começo Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava deserta e vazia: as trevas se estendiam sobre o Abismo e o sopro de Deus flutuava sobre as águas. Deus disse então: Que se faça a luz! e de repente apareceu a luz. Deus constatou que a luz era uma boa coisa. Depois Deus separou a luz das trevas.
— Caramba! isso quer dizer que o fóton, esse grãozinho de energia que a gente chama de luz, foi a primeira partícula a ser criada?
Ela entendeu que o céu, a terra e as águas que apareciam nesta narração, nada mais eram do que referências, expressões, representações, respectivamente, do tempo e do espaço. Isto é, modos de falar de um pano de fundo, servindo de cenário onde a matéria se movimenta. Ficou muito espantada com essa história e já estava quase se levantando da cama para falar com o dr Luis quando ouviu uma voz estridente, vindo sabe-se lá de onde:
— Se eu fosse você não ficaria tão espantada. Afinal, como você vai ver mais tarde se trata de um jogo bem concorrido: o jogo da criação. Ele possui várias versões menores, menos abrangentes; mas este a que você está se referindo é sua versão mais ampla: a criação de tudo-que-existe. As regras do jogo da criação foram feitas de modo a permitir diferentes interpretações. Essa falta de rigor e de univocidade poderia ser considerada um defeito. Mas, por outro lado, pode-se pensar que se trata exatamente do oposto: a ausência de regras rígidas permite que o jogo seja alterado de tempos em tempos, sem que com isso perca sua atração, seu charme, seu interesse. É bem verdade que, dependendo destas mudanças, o desenrolar deste jogo, sua história, se torna bem diferente. Mas ele é muito importante e conhecido de todas as civilizações. Elas sempre acreditavam que sabiam bem como descrevê-lo. E isso, como acontece em outras ocasiões, tem uma consequência desagradável: a ingênua identificação do jogo com a descrição que se faz dele.
Maria Luisa pensou logo na frase que o dr Luis vivia dizendo e que
mantinha em um quadro, em seu escritório:
O mapa não é o território.
— Todas as religiões, continuou a mesma voz, de um modo ou de outro, descrevem a transcendência do mundo a partir do momento mágico e único de sua criação. Não é de estranhar que você encontre várias versões. Eles possuem no entanto, algo em comum: sempre começam com algum personagem importante e por isso é preciso que alguém chegue primeiro e não todos ao mesmo tempo. Mas – acrescentou até de modo casual, sem nenhum orgulho nem decepção na voz – nem sempre sou eu. Por que você sabe, não? As diferentes civilizações que os homens construíram ao longo da história, inventaram mitos para todos os gostos. O último recém-chegado veio dos cientistas: é o mito científico de criação do mundo, o big bang. Como eles não têm muita experiência em construir uma cosmogonia, isto é, uma história completa da criação do mundo – pois chegaram muito atrasados nesta produção – acabaram, meio sem-saber, por imitar as que já existiam. Aliás, em particular, o mito cientifico mais comum – acrescentou em um tom visivelmente de deboche, que não agradou a menina – é muito parecido com esse que você estava lendo. Fácil de acreditar e difícil de entender. Essa história de nascimento do mundo, de criação de tudo-que-existe, do universo, sempre esteve ligada a alguma forma de mito, de religião, enfim essas coisas todas que mexem com o lado irracional que todo mundo tem. E isso não é para entender. É só para acreditar. Não é mesmo?…
Quem falava assim, ziguezagueando pelo quarto, para cima e para baixo, em um movimento aleatório, era, para espanto de Maria Luisa, justamente o fóton – o personagem que ela acabara de reconhecer na Bíblia! É bem verdade que o som parecia vir de vários lugares, tão rápido ele se mexia.
(Ela estranhou que ele falava igualzinho a seu pai. Mas logo se lembrou da conversa que a doutora Mafalda, sua psicóloga, tivera com seu pai. Ela havia dito ao dr Luis que os sonhos da menina nada mais eram do que reproduções um pouco modificadas das conversas que ela ouvia entre o pai e seus amigos físicos. A doutora dissera que estes sonhos poderiam ser usados para escrever, a partir deles, um livro de divulgação das ideias científicas do dr Luis, pois eles misturavam o conhecimento do pai com as fantasias da filha.)
Maria Luisa se lembrou do livro que o dr Luis tinha feito em homenagem ao professor Lattes e das estranhas histórias nas quais ela e os pions – umas partículas muito pequenas, bem menores até do que um átomo – tinham tido uma relação tão intensa que parecia até mesmo que eles tinham realmente falado com ela.
Pensou então – quem sabe, não é? – que talvez agora fosse a vez dos fótons falarem com ela!
O fóton, sem perceber essas dificuldades, continuava…
— Pois essa história do mito da criação chamado big-bang vale a pena conhecer! Ele é tão simples que até eu posso contar, você quer ouvir?
A menina mal tinha se recuperado desta insólita aparição mas, curiosa como só ela, fez um rápido sinal afirmativo com a cabeça.
— Pois veja você, começou ele, uma vez, lá pela primeira metade do século XX, o dr Lemaître, um belga, cônego da igreja católica, cosmólogo como teu pai, quis que eu entrasse na história que os físicos estavam construindo para explicar o começo do mundo. Chegou a escrever um livro a que deu um titulo pomposo e atraente:
O ÁTOMO PRIMORDIAL.
Como subtítulo, trazia:
Um Ensaio de Cosmogonia
— A história era mais ou menos assim. Não me pergunte porque, mas teria havido uma grande explosão, que deu origem a tudo que existe: o espaço, o tempo, a matéria e a energia. Como consequência deste momento inicial, a totalidade do espaço tri-dimensional começou um processo de expansão que continua até os dias de hoje e possivelmente vai continuar por muito tempo ainda! Isso quer dizer que o volume total do espaço varia com o tempo. Em verdade, aumenta. Consequentemente, a densidade de energia diminui e lá no final desta expansão a matéria que sobreviver ficará tão diluída que qualquer um que por ali aparecer vai ter a impressão que o mundo está praticamente vazio. O começo e o fim do universo são bastante diferentes Pode-se mesmo dizer que são opostos. No começo, a densidade de energia é infinita e no final é zero.
Parou um pouco para ver a reação dela e continuou:
É verdade que existe um outro modelo parecido com este, que difere na parte final. O começo é igual, mas ao invés de se expandir para sempre, nesta segunda versão, a expansão se transforma, em um dado momento, em um colapso. Assim, ao final, o universo estaria em um estado igualzinho ao seu começo, isto é, estaria de novo em uma condensação infinita! Embora essa versão da criação fosse considerada, pelos cosmólogos da época, fantasiosa, tão sem-explicar-nada, não é que foi ganhando mais e mais adeptos que acreditaram direitinho nisso? Pior: fez um sucesso tão grande que chegou a virar moda! Eu nem falei nada, porque essas coisas não sou eu quem decide. Mas que parecia bobagem, bem que parecia. O professor Lemaître pediu que eu ficasse o tempo todo por ali para confirmar o que estava contando. Bom, como você vê, era uma história realmente parecida com essa que você leu.
Maria Luisa não gostou nada que ele tivesse repetido isso e ficou com uma certa implicância com ele. O fóton pareceu não perceber e continuou.
— Nem é bom contar a confusão que se seguiu. Como o próprio titulo do livro sugere, esta cosmogonia se baseia na imitação do comportamento dos átomos instáveis, conforme descrito na microfísica. Tudo se passa como se na origem da criação do universo houvesse um ovo inicial, um átomo primordial que teria se desintegrado. Ele costumava dizer uma frase muito curiosa:
Dê-me um átomo e eu construirei um universo.
Essa frase não era dele, foi só uma citação, mas isso não importa, não é mesmo? Um astrônomo, o dr Gamow, com seu jeito muito particular de falar das coisas, fez uma critica brincalhona, ridicularizando este cenário de átomo-primordial-que-explode dando-lhe um nome pejorativo: “big-bang”. Assim mesmo, em letras bem pequenas. Mas não é que os seguidores do cônego conseguiram transformar esse modo simples, jocoso de se referir a esta idéia, como se fora não uma verdadeira crítica mas uma simples brincadeira! Pois é isso mesmo que aconteceu. Passaram a rir desse nome como se estivessem a brincar consigo mesmo. E conseguiram, assim, retirar todo o conteúdo negativo e até mesmo um pouquinho injurioso que ela carregava, passando eles mesmos, a chamar o modelo de universo que apoiavam como sendo o “Big-Bang”. Mas agora assim: com grandes Bês maiúsculos. Bom, tanto falaram e repetiram que a origem do nome se perdeu e hoje que se transformou em um respeitável cenário de descrição convencional dos instantes primordiais do universo, continuam a chamá-lo assim!
“Mas eu não tenho nada com isso. Quando cheguei nesta parte do universo perdi boa parte de minha memória, continuou o fóton, depois de uma pausa. Eu só me lembro que havia um mundão de coisas por aqui …” fez um gesto largo com a mão como quem está se referindo ao mundo todo. Por exemplo, aqueles ali, disse apontando para um conjunto de partículas que passavam por perto, já ouvi eles contando histórias de uma época que nem me lembro”.
Mas então, pensou a menina, se a criação do fóton não se identifica com o começo-do-mundo, isso quer dizer que o livro de tia Luri estava…errado?
Como se tivesse lido o pensamento dela, ele esclareceu.
— Não é exatamente assim. Não está, como você pensou, totalmente errado. A história que aparece lá na Bíblia, em verdade não diz respeito ao universo onde nós – eu e você – existimos.
— Como assim?
— Bem, possivelmente você deve ter ouvido muitas outras histórias, diferentes, da criação do mundo. Cada civilização cria as suas. Isto é, cada povo em suas origens, desenvolve um modo especial, particular de produzir uma história da criação do mundo, que se costuma chamar mito cosmogônico. Sempre se precisa disso, dessas crenças irracionais, não é mesmo?
Isso, a menina entendeu. O dr Luis tinha explicado essa história da necessidade dos homens de aceitarem alguma crença, sempre associada a alguma forma de poder. Mas isso ela não podia contar para tia Luri. Ela acreditava seriamente, ao pé da letra, tintim por tintim, na história do jeito como era contada lá na Bíblia e certamente não seria ela que iria se opor à tia.
— Quando crescer, vou explicar direitinho para ela. De qualquer modo, mesmo que eu falasse agora ela não iria mesmo acreditar.
Por alguma razão que ela não entendia, Maria Luisa por sua vez, acreditava piamente nessa história de que os fótons tinham realmente sido as primeiras partículas a serem criadas. Depois de se recuperar da estranha sensação de espanto provocada pela afirmação do fóton de que lá nos primórdios do universo havia outras partículas antes dele ter sido criado, tentou ver se reconhecia alguma das partículas que o fóton indicara. Como estava muito escuro, ela conseguiu ver somente umas poucas sombras. Mas não reconheceu nenhum deles.
O fóton viu a menina pensativa, e ao perceber que ela não tinha entendido, resolveu acrescentar:
— Ou eu não existia ou talvez tenha esquecido. De qualquer modo é a mesma coisa, acrescentou. E, como ela tivesse feito uma cara de espanto maior ainda, achou melhor explicar.
— Você sabe que eu também esqueço certas coisas. Principalmente quando entro em contato direto, em interação com outras partículas. Ou então, nunca se sabe de verdade, não é?, eu talvez não existisse mesmo. De qualquer modo o efeito não muda. Bom, só que a tal de …
Ela parou de escutar o que o fóton dizia. Ele parecia muito arrogante. Com que então o mundo só passou a existir quando ele foi criado! ou, pior ainda, que o mundo só começa a ter uma história a partir do momento que ele se lembra….Ora vejam só! Como diz tia Luri, pretensão e água-benta!
Mesmo assim, resolveu perguntar por que ele dissera aquilo. Mas nem teve tempo. Ele já mudara de assunto.
Porque os amigos de seu pai, continuava, os “cosmólogos”, se reuniram um belo dia, para retirar dos religiosos essa função de produzir uma história completa do começo do mundo. Mas você sabe não é? a religião ainda é muito importante. E, mais que isso, tem muito poder. Então quando se consegue uma descrição – ou até mesmo só uma idéia – que permite uma explicação do começo do mundo que mistura as duas – a religião e a ciência – todos ficam contentes, seguros e confiantes nesta crença. Impossível contra-argumentar. Este cenário da criação do universo virou – nos anos 70 – a descrição oficial da ciência., de tal modo que os cientistas que ousavam não acreditar nela se deram muito mal. Eu não vou dizer que tiveram o mesmo destino que a mãe de Kepler ou Giordano Bruno ou ainda o famoso Galileu que foram queimados na fogueira ou quase isso, porque ousaram propor uma interpretação diferente daquela que a religião principal da época impunha. Não, os tempos são outros. Usam-se métodos diferentes, mais sutis, mas igualmente eficientes. Pois veja você o que aconteceu com os primeiros cientistas que apoiavam a idéia herege de que o Universo não teve um instante de criação, que o universo seria eterno! Pois saiba que foram colocados no ostracismo. E tudo que eles estavam tentando fazer é criar um modelo racional do mundo. Porque, você sabe, não? – se existiu um começo singular, se o universo começou com uma verdadeira explosão, se não podemos continuar a examinar o universo antes daquela fase extremamente condensada é porque ele não admite uma explicação racional precisamente em seu momento mais importante: aquele que vai determinar sua evolução futura!
Fez uma pausa para que a menina o acompanhasse e continuou:
— Ninguém podia sequer pronunciar seus nomes. Isso não significa que foram presos ou excomungados. Pior: foram deixados para serem esquecidos. Ninguém se referia a eles, nenhuma frase deles era citada, nenhuma de suas pesquisas era considerada. E, você sabe não?, deixar de ser citado pelos seus pares, pela sua comunidade é, para um cientista, o pior dos males.
Ela não entendeu essa história e ia pedir para que explicasse melhor mas nem teve tempo, pois ele continuava cada vez mais alto:
— Um exemplo para todos os outros que ousassem qualquer forma de rebeldia contra o mito oficial. Mais tarde, quando você descobrir um dos jogos mais excitantes que a Natureza andou fabricando por aí, o Jogo da Criação, talvez …
Maria Luisa parou de ouvir o que ele dizia. Ela finalmente se deu conta que era muito difícil manter um diálogo com o fóton. Principalmente porque ele parecia não parar nunca em lugar algum. E como é que se pode falar com alguém se não sabemos onde está?, disse em voz alta. Se eu ficar olhando para onde penso que ele esteja agora, aí mesmo é que nunca vou vê-lo. Ela então decidiu olhar para um ponto mais adiante daquele onde a voz parecia estar vindo. Não melhorou nada. Impossível localizá-lo. Desistiu momentaneamente e decidiu que era melhor continuar o diálogo assim mesmo, sem olhar direto para ele.
Enquanto isso, o fóton continuava a falar sem perceber os problemas da menina.
Por um momento ela desviou a atenção da agitação causada pelo fóton e refletiu um pouquinho: Mas isso quer dizer que havia um tempo em que não havia fóton algum no universo? Mas então, disse em tom espantado e mais para ela mesma, como é que foi criado o primeiro? ML pensou (isso ela não falou) ” caramba, isso quer dizer que se pode criar fótons? a qualquer momento? mas como?”
O fóton respondeu como se ela tivesse falado em alto e bom som:
— Minha família não é como certas famílias que andam por aí…
Fez uma pequena pausa e continuou:
—…cheias de discriminação, só interagindo entre si, e obedecendo um código de fidelidade tão restrito que ninguém pode nem mesmo chegar perto! Os colegas de seu pai, dizem que se trata de uma Lei: a Lei de Conservação! “Eles interagem entre si porque só eles tem a qualidade especial para isso”, decretaram os físicos. Assim como a família dos Leptons, por exemplo. Essa família é muito respeitada, é bom que se diga. Eu conheço todos eles – isto é, desde que não tenham escondido um novo que nunca vi – e têm nomes bem conhecidos: eletron, muon, tau. Cada um tem o seu correspondente neutrino filhote (que funciona como um verdadeiro cão-de-guarda, sempre grudado neles) e seu oposto: o anti-eletron, o anti-muon, o anti-tau.
Ele enumerava todinhos como era de seu feitio. Maria Luisa estava fascinada. Quase nem ouvia mais, divagando com o que escutava.
— Nós os fótons temos uma grande vantagem sobre todas as outras familias : cada um de nos é sua própria anti-particula!
— Será que existem outras partículas assim como você, que não tenha anti ou melhor que seja sua própria anti-partícula?, perguntou, quase automaticamente, sem entender bem porque isso a estava interessando e que consequências teria.
— Bem, disse o fóton com uma expressão de desprezo, parece que os amigos de teu pai andam procurando pelo tal de gráviton que seria para a força gravitacional o que eu sou para a eletromagnética. Mas se ele existe de verdade nunca ninguém pôde provar, nem ninguém nunca viu. Quanto a mim, ou melhor quanto à minha extensíssima família, todo mundo conhece e estão cansados de nos verem. Você mesma sabe que nós somos as partículas mais numerosas que existem no universo inteiro, disse com um indisfarçável orgulho e mesmo com uma pontinha de arrogância, que até a voz saiu diferente.
Maria Luisa se lembrara da confusão que acontecia sempre que uma partícula, qualquer que fosse ela, entra em contato com sua anti. Sai um clarão, danado de grande, capaz de iluminar tudo que está em volta. E pensou que deveria ser uma boa coisa ser sua própria anti.
A menina não entendera o que afinal de contas ele, o fóton, era para o campo de forças eletromagnético, nem o que seria o gráviton para o campo gravitacional. Mas havia tanta coisa que ela não entendia!
— E o que é que você é para este tal de campo eletromagnético?
O fóton olhou para a menina com olhar espantado como se fosse um verdadeiro sacrilégio ela não saber isso.
— Ora, eu sou a própria materialização do campo! Você sabe, não? – dessa vez a voz dele saiu em falsete, para deixar bem claro que ele duvidava muito que a menina soubesse – todos os campos de força tem os seus grãos elementares de energia, os quanta como os amigos de teu pai chamam. Pois nós, fótons, somos a condensação da energia do campo eletromagnético!, disse com grande pompa.
— Como assim?, perguntou.
— Ora, isso quer dizer que é muito fácil fabricar fótons! Em qualquer lugar, com qualquer nadinha de energia e nós aparecemos aos montes. Nós não temos nenhuma proibição, nenhuma Lei de Conservação…
Falou em tal tom de deboche que a menina achou que estivesse se referindo a alguém presente. Ela olhou em volta e não viu nada que justificasse isso.
—…Até mesmo um Buraco Negro pode produzir fótons, deixar de ser negro e desaparecer!
Maria Luisa ouvia isso cada vez mais espantada. Pois se ela ainda nem entendera como se forma um buraco negro e ele já estava querendo falar sobre sua transformação!! Ela sabia que um buraco negro era uma estrela que colapsou. Mas porque ela teria colapsada isso ela bem que gostaria de saber!
— Por outro lado, para nós fótons, isso nem é discutido, continuava. Aqui, entre nós tudo é popular; nós temos arrogância zero!
Fez um largo gesto para exprimir essa ideia de igualdade total…
— Por exemplo, em circunstância bem comum e com ajuda quase nenhuma eu posso me dividir em dois fótons, em três, em quatro, em cinco…
Ele falava, falava, falava… parecia até que se ela não o interrompesse ele iria enumerar todos os algarismos que existem, e até mesmo inventar outros mais.
— Sei, disse em um tom duro mas amigável, já entendi. Mas de onde você vai tirar energia para produzir estes teus irmãos todos?
— Ah, disse ele, com naturalidade como quem já esperasse por essa pergunta, não vou precisar de mais energia não. Bem, se pelo menos deixarem a gente interagir entre nós mesmos para resolvermos isto!
— Por que, se espantou ela, em geral os fótons não podem interagir entre si?
— Bem, minha filha, essa é uma outra longa história…
Fez um gesto lânguido e continuou
— …, começou lá com o dr Maxwell um amigo de teu pai. Me disseram, nunca se sabe de verdade não é mesmo?, que um dia vai haver um verdadeiro julgamento, só porque alguns membros de minha família – e nem vou dizer quem, porque isso não tem o menor interesse – resolveram negociar diretamente entre si. Sem intermediários. Não aceitamos o Jogo da Proibição que os físicos quiseram nos impor, e muitos ainda continuam a tentar ainda hoje. Viviam gritando:
O FÓTON NÃO PODE INTERAGIR CONSIGO MESMO!
O FÓTON NÃO PODE INTERAGIR CONSIGO MESMO!
— Um dia você vai estar frente a frente com esse jogo e aí sim vai entender o quanto esta proibição nos atrapalhou. É difícil jogar este jogo. Nós recusamos ser lineares o tempo todo!
Maria Luisa não entendeu o que ele queria dizer com isso, mas sugeriu um compromisso:
— Mas não seria possível deixar uma tal violação somente para alguns fotons?
— Bem se vê que você ainda não sabe que essas propriedades não são individuais, mas são características de todo um conjunto, de uma classe de partículas. Uma partícula tem as mesmas propriedades durante toda sua existência! Acrescentou em tom inflamado.
— Mas o que é que mantém esta identidade?, perguntou, curiosa, Maria Luisa.
Ele fez um gesto de que não gostara da interferência e mudou de assunto.
— Voltando ao que estávamos falando, você vê: se eu tenho uma certa energia $ E $ (procurou em volta para ver se tinha com que escrever, vendo que não havia nada parecido com um lápis ou caneta, resolveu usar os dedos para caracterizar o que ele estava querendo dizer) Eu posso me dividir em dois fótons iguais cada um com energia metade $ E/2$; ou então em três cada um com energia um terço $ E/3$, ou então em quatro cada um com energia um quarto $ E/4$, ou..
Desta vez Maria Luisa chegou a ser um pouco menos simpática e o interrompeu abruptamente. Ela já tinha percebido que o fóton tinha uma estranha inércia para continuar indefinidamente uma frase, uma ideia ou um movimento qualquer.
— Sei, disse ela, cada um de vocês vai ficando mais fraco mas embora o número total de fótons vá aumentando, como cada um tem energia menor, mesmo que sejam muitos, a situação é tal que a soma total da energia de vocês todos em cada uma dessas sub-divisões é sempre a mesma.
O fóton considerou que ela tinha realizado um belo esforço para produzir uma frase tão inteligente, olhou para ela com respeito e fez um sinal como quem valoriza o que acabou de ouvir.
— Mas isso, disse ela, ainda não explica como é que o primeiro fóton apareceu.
— Bom, se você quer saber como apareceu o primeiro é muito fácil.
Ele então começou a contar uma história completamente inverossímel. Pena que Maria Luisa não pudesse continuar a ouvir. Ela havia de repente se dado conta que o fóton tinha cessado sua agitação e estava parado. Isso era com efeito muito estranho porque queria dizer que ou o fóton tinha conseguido violar a Lei de Einstein que o obrigava a andar sempre com a mesma velocidade; ou então, mais extraordinário ainda, era ela quem estava se movimentando tão rapidamente que o fóton parecia estar parado! Se essa última hipótese fosse a verdadeira isso significava que a velocidade dela era igual à do fóton! Mas isso não era possível! Ela sabia que se chegasse a ter velocidade muito próxima à da luz coisas terríveis aconteceriam, como por exemplo, a massa dela crescer sem limite! e crescer, e crescer…
De repente ela pareceu entrar em um turbilhão. Acordou assustada e muito suada, como se tivesse passado boa parte da noite correndo para cima e para baixo com velocidades fantásticas.
— Puxa vida, que ginástica! – disse em voz alta. Olhou para o relógio e viu que ainda eram onze horas! Ouviu passos no corredor. Era o dr Luis que chegou logo perguntando o que tinha acontecido.
Ela explicou o estranho sonho que a tinha deixado muito agitada. Como estava visivelmente amedrontada, o dr Luis achou conveniente ficar com ela e conversar um pouco até que recuperasse a calma e pudesse voltar a dormir.
De toda esta história o que a tinha impressionado mais era a questão da criação do mundo. Volta e meia ela perguntava isso para seu pai. Embora ele já lhe tivesse explicado muitas vezes, ela sempre queria saber mais.
O dr Luis achou que seria mais apropriado, pelo adiantado da hora e pelas questões que ela tinha colocado, falar um pouco não sobre o modo científico como os cosmólogos tratam o começo do mundo, mas sim como outros saberes, de natureza não científica, tratam dessa questão. Começou a contar sobre essas outras formas de conhecimento, mas ela logo adormeceu e a história ficou para outra ocasião.
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Mário Novello é cosmólogo do Instituto de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica (ICRA) do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF).
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Capítulos retirado do livro:
NOVELLO, Mario. Jogos da Natureza. Editora Campus. Rio de Janeiro, 2004