O eclipse de Sobral: o Brasil no mapa da teoria da relatividade
ARTIGO /
Cássio Leite Vieira* //
Cássio Leite Vieira comenta fatos controversos da história da teoria da relatividade geral.
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Conta-se que, pouco antes do início da sessão conjunta da Sociedade Real e da Sociedade Real de Astronomia, em Londres, em 6 de novembro de 1919, um cientista renomado levantou-se na plateia, apontou para um imponente retrato na parede e alertou a todos sobre o que seria dito naquele encontro. A pintura retratava o físico inglês Isaac Newton (1624-1727).
O que estava em jogo era a validade de duas impressionantes contribuições intelectuais: a teoria da gravitação de Newton, que já somava cerca de 250 anos de sucesso, e a do físico de origem alemã Albert Einstein (1879-1955), mais conhecida como teoria da relatividade geral.
A sessão se encerrou com a validação da relatividade geral. E, a partir de então, a gravitação de Newton passou a ser um caso específico da primeira teoria, sendo aplicável apenas a situações em que as massas são muito menores que a de uma estrela e as velocidades bem inferiores à da luz (300.000 km/s). A relatividade geral, por sua vez, tornou o instrumental matemático para lidar com a física do gigantesco e do ultraveloz. Seu alvo são estrelas, galáxias, buracos negros, entre outros corpos e fenômenos cósmicos.
Einstein, ao finalizar a teoria, em novembro de 1914, propôs três testes para sua validação. Interessa-nos aqui apenas um deles: o desvio da trajetória da luz quanto esta passa perto de corpos muito maciços (estrelas, por exemplo).
As três tentativas
A ocasião para testar esse encurvamento da luz é em um eclipse solar. Fotografa-se o Sol e o céu ao redor dessa estrela antes e depois do evento. Com essas duas baterias de chapas, mede-se um ângulo mínimo, que representa o quanto a luz se entorta.
Até 1919, três tentativas haviam sido feitas. Uma delas em 1913, em Passa Quatro (MG). Chuva e céu nublado impediram as medições. A segunda, na Crimeia (Rússia), cerca de um ano depois, acabou frustrada por causa da eclosão da Primeira Guerra. O terceiro eclipse ocorreu em 29 de maio de 1919. Foi observado em dois locais: a ilha de Príncipe, na costa ocidental da África, e em Sobral, no Ceará. Um dos líderes dos trabalhos foi o astrônomo inglês Arthur Eddington (1882-1944).
Dois números liliputianos se enfrentaram nas medições: 0,87 segundos de arco (teoria de Newton) e 1,75 segundos de arco (relatividade).
Pergunta incisiva
Pergunta incisiva que assombra a historiografia da física desde então: a relatividade geral teria sido realmente comprovada no eclipse de 1919?
Para muitos artigos e livros, sim. A data é histórica. E desse assento será difícil removê-la. E a mídia da época ajudou a reforçar as bases desse trono: no dia seguinte, o jornal londrino London Times estamparia a manchete “Revolução na Ciência – Nova Teoria do Universo – Idéias de Newton superadas”. Pouco depois, o New York Times – que até então nunca havia citado o nome de Einstein – traria o poético “Luzes curvam-se nos céus”.
Einstein se tornaria o que talvez tenha sido, entre os cientistas, o primeiro fenômeno de mídia do século passado. Até sua morte, não houve um só ano em que o nome dele não tivesse aparecido na imprensa norte-americana.
Na ilha de Príncipe, choveu, e as medições ficaram prejudicadas. Em Sobral, o sol se abriu depois de nuvens teimosas serem dissipadas. Várias fotografias foram feitas.
Nestas nove décadas desde o eclipse, a suposta comprovação foi atacada pela frente e flancos. Exemplos de argumentação: uso de telescópios impróprios; grande margem de erro das medições; descarte de chapas fotográficas nas quais o desvio sofrido pela luz estava mais próximo do valor previsto pela teoria newtoniana; distorção causada pela interferência da atmosfera terrestre nas imagens; medidas com até 30% de erro experimental…
Protestos iniciaram-se em seguida. Caso emblemático: o livro Gravitação versus Relatividade (1922), de Charles Poor, professor de mecânica celeste na Universidade de Columbia (Estados Unidos).
Sentiria pelo bom Deus…
É preciso contrastar Einstein e a relatividade no cenário da época. A teoria da relatividade geral era entendida por poucos – sua matemática era complexa; e a fenomenologia, pouco verossímil. Para muitos, era assunto do campo da filosofia – daí, em parte, Einstein ter levado o Nobel de 1921 por outro trabalho, o efeito fotoelétrico, no qual propôs que a luz é formada por partículas (fótons).
No início da década de 1910, foi alvo de nazistas de plantão – entre eles, dois Nobel de Física, Johannes Stark (1874-1957) e Philip Lenard (1862-1947) – o que mostra que o prestígio do prêmio não dá a medida do caráter dos agraciados. Outras críticas, infundadas, vinham dos que resistiam às mudanças de paradigma na ciência, e as medíocres, da ala que via nisso chance de autopromoção.
Uma pessoa nunca vacilou sobre a validade da relatividade geral: Einstein. Ainda em 1919, depois da notícia da comprovação, sua assistente, Ilse Rosenthal-Schneider (1891-1960), perguntou-lhe o que teria dito se a teoria não fosse confirmada. “Sentiria muito pelo bom Deus, pois a teoria está correta”, respondeu ele.
Terreno das especulações
Se tão fortes dúvidas pesavam contra a comprovação de 1919, ficamos, então, tentados a voltar àquela pergunta incisiva: por que ela foi considerada comprovada?
Adentramos, agora, o solo das especulações.
Eddington foi o maior divulgador em sua época da relatividade no Reino Unido. Conhecia a fundo as entranhas da teoria. Usou-a em seus trabalhos. É provável que, como Einstein, não tivesse dúvidas sobre sua validade. Talvez, tenha acreditado que experimentos posteriores, mais precisos, acabariam comprovando-a – em tempo: isso só ocorreria décadas depois.
As hipóteses ficam mais interessantes quando mescladas aos cenários social e econômico e político daquele final da década de 1910. Por conta dos resultados catastróficos da Primeira Guerra, o mundo sentia-se destruído. Fato. Foi um conflito que, pouco antes, era inimaginável. Envolveu países de tradição cultural e, pior, matou cruelmente milhões de pessoas.
Talvez, Eddington, como quacre – e, portanto, pacifista –, soubesse que um herói, também pacifista, nada de mal causaria a um mundo esfacelado. Ou, talvez, tivesse agido em prol da ciência, mostrando que essa atividade, dita sem fronteiras, poderia dar sentido transnacional a um mundo que a política havia desunido – afinal, a teoria havia sido elaborada na Alemanha e poderia agora ser comprovada por britânicos, campos opostos da batalha.
Se a hipótese se sustenta, é fato que Einstein tinha perfil ideal para personificar esse herói. Mente assombrosa, pacifista, preocupado com a justiça e homem que se autoproclamava sem nacionalidade. Além disso, como os assuntos terrenos não iam bem, é possível que o imaginário público tenha sentido certo prazer em voltar seu olhar para o cientista que havia desvendado os mistérios de algo extraterreno, do universo como um todo.
Isso está nos bons livros: Einstein foi o primeiro grande herói do pós-guerra. Visitou a França e os Estados Unidos, sendo recebido com imenso entusiasmo.
Releitura dos fatos
Todas as conjeturas levantadas até aqui ficam, de certo modo, abaladas por um extraordinário trabalho de pesquisa feito pelo físico e historiador da ciência Daniel Kennefick, da Universidade do
Arkansas (EUA). Ele, como mandam as normas do bom fazer histórico, foi a arquivos, descobriu documentos e cartas, revisou minuciosamente a bibliografia sobre o tema. O resultado foi um artigo
(30 páginas, em inglês, disponível na rede) que deve ser lido por quem se interessa pelo assunto (ver sugestões para leitura).
Para Kennefick, não houve nem bias, nem julgamento enviesado dos dados. E revela algo aparentemente novo: Eddington – que, no eclipse, seguiu para a ilha de Príncipe – não se envolveu na análise das chapas fotográficas de Sobral, o que ficou por conta de pesquisadores do Observatório de Greenwich. E vice-versa.
Kennefick, por vezes, tem que admitir algo de tendencioso nas atitudes e nas escolhas dos cientistas envolvidos. E vale aqui pescar uma sutileza que parece ter escapado a ele ao reproduzir palavras de
Eddington, quando este reclama de uma combinação de dados que faria com que os resultados ‘ficassem muito perto da verdade’. A verdade: o desvio da luz calculado pela relatividade geral.
Do ponto de vista da leitura fria dos dados, ele defende, com excelente argumentação, que a decisão de dar a relatividade como comprovada foi cientificamente justa.
Porém, isenta?
Sua análise não abarca, como outros autores, o lado subjetivo que poderia ter permeado as decisões daqueles astrônomos. Portanto, enquanto não surge nova versão dos fatos, é possível seguir pensando que uma crença profunda, de natureza semelhante à certeza inabalável de Einstein, pode ter feito Eddington anunciar ao mundo a comprovação daquilo que ele acreditava certo.
Se algo a mais do que a frieza dos dados pesou na decisão de Eddington, talvez nunca saibamos. O fato é que Eddington ajudou a criar um mito. Mais do que isso: o ícone que acabou eleito personalidade-síntese do século XX.
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*Cássio Leite Vieira, jornalista especializado em ciências exatas, é editor da revista Ciência Hoje.
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Sugestões para leitura
Kennefick, Daniel. Not Only Because of Theory: Dyson, Eddington and the Competing Myths of the 1919 Eclipse Expedition. 2007. Disponível em: <http://arxiv.org/abs/0709.0685>.
Collins, Harvey M.; Pinch, Trevor. The Golem: what you should know about science. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
Tolmasquim, Alfredo Tiomno. Einstein – O viajante da relatividade na América do Sul. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2004.Amoroso Costa, Manoel. Introdução à Teoria da Relatividade. Rio de Janeiro: Livraria Científica Brasileira/Editora da UFRJ, 2ª edição, 1995.
Videira, Antonio Augusto Passos. Henrique Morize e o ideal de ciência pura na República Velha. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2003.
Na internet
Diários de viagem à América do Sul, em 1925, nos Arquivos Einstein. Disponível em: <www.alberteinstein.info>.
Documento
Tolmasquim, Alfredo Tiomno; Moreira, Ildeu de Castro. Um manuscrito de Einstein no Brasil. In: Ciência Hoje, v. 21, n. 124, 1996.