O cosmismo russo: konstantin tsiolkovsky e as viagens espaciais
Este artigo foi previamente publicado na Khronos, Revista de História da Ciência nº 12, dezembro 2021, com a permissão do Editor, o Prof. Dr. Gildo Magalhães.
Resumo: O Programa Espacial Soviético foi um importante marco na história das repúblicas comunistas. Em 1957 a URSS lança o primeiro objeto em órbita, o satélite Sputnik e em 1961 a nave Vostok leva Iuri Gagarin (1934-1968), o primeiro homem a ir ao espaço. Os soviéticos ficam muito à frente em relação ao seu maior oponente na época, os Estados Unidos. Mas toda essa empreitada teve como responsável um matemático autodidata proveniente de uma pequena cidade russa chamada Kaluga. Seu nome era Konstantin Tsiolkovsky (1857–1935), o responsável pela equação matemática que iria possibilitar a URSS catapultar seus foguetes e a própria história para a modernidade.
Palavras-chave: Cosmismo, Tsiolkovsky, ciência, viagens espaciais, conhecimento oculto.
Introdução
O homem já foi à Lua há mais de cinquenta anos, mas uma empresaholandesa, Mars One, criada por Bas Lansdorp, um engenheiro mecânico nascido em 1977, tinha um projeto de enviar uma nave tripulada à Marte em 2023. O custo total do projeto seria de U$ 6 bilhões de dólares (CARVALHO, 2015) e Lansdorp não hesitava em afirmar que a conquista de Marte seria um dos eventos mais importante da história. Mas a empresa holandesa declarou bancarrota e Landscorp assegura estar procurando soluções para recuperar seu empreendimento. Enquanto isso, Elon Musk, dono da Space X, garante que ainda nesta década está programada uma nova viagem ao espaço que será um marco na história da humanidade, quando voluntários vão explorar Marte, numa viagem só de ida (Saldanha, 2021). A Space X é uma das principais empresas privadas de serviços de transporte espacial do mundo. A empresa projeta, fabrica e lança foguetes, mas seu principal foco é possibilitar viagens espaciais com o objetivo de pessoas habitarem outros planetas. Mas para a agência do governo norte-americano de exploração espacial, a NASA, o sonho de ir a Marte somente será possível após 2030…. De qualquer forma, se a humanidade está prestes a explorar rincões mais afastados do sistema solar, isso só foi possível devido ao desejo de explorar outros mundos quando os aviões ainda nem cortavam os céus. E foi o russo, Konstantin Tsiolkovsky, o primeiro homem a não somente almejar as viagens interplanetárias, mas também a formular a equação que possibilitaria ejetar da Terra um projétil ao espaço.
Konstantin Tsiolkovsky e o Programa Espacial Soviético
O Programa Espacial Soviético foi um importante marco na história das repúblicas comunistas. Quando em 1957 a URSS lança o primeiro objeto em órbita, o satélite artificial Sputnik e em 1961 a nave Vostok leva o primeiro homem ao espaço, Iuri Gagarin (1934-1968), os soviéticos ficaram muito à frente em relação ao seu maior oponente da época, os Estados Unidos. Mas toda essa empreitada teve como responsável um matemático autodidata proveniente de uma pequena cidade russa chamada Kaluga. Seu nome era Konstantin Tsiolkovsky (1857–1935), o responsável pela equação matemática que iria possibilitar a URSS catapultar seus foguetes e a própria história para a modernidade.
O Programa Espacial Soviético remonta a um período pré-revolucionário, quando um grupo denominado “cosmistas” ajustaram teorias espirituais ocultas com utopias tecnológicas para desenvolver a visão de um cosmos colonizado. Os principais mentores do cosmismo russo foram Nikolai Fedorov (1829–1903) e a Konstantin Tsiolkovsky (1857–1935).
Tsiolkovsky foi um cientista e matemático russo pioneiro do foguetismo e das viagens espaciais. Quando criança contrai escarlatina e se torna autodidata, pois as escolas não aceitam crianças com enfermidades. Em sua infância e juventude reclusa, se interessa pelas disciplinas exatas e posteriormente pelas viagens espaciais. Tsiolkovsky torna-se professor de matemática de ensino médio e em 1903 publica um artigo intitulado, Exploração do Espaço Sideral usando Dispositivos de Reação. Por meio deste trabalho, Tsiolkovsky apresenta uma equação, denominada de equação de Tsiolkovsky, mostrando a velocidade mínima para que um foguete com hidrogênio e oxigênio líquido pudesse entrar em órbita, revelando pela primeira vez que era possível um foguete fazer uma viagem espacial. O historiador espacial Assif Siddiqi assim define a equação de Tsiolkovsky:
Pronta em 1914, este compêndio de escritos da mecânica de lançamentos de objetos no espaço e a física do voo humano constitui a primeira intervenção matemática coerente em qualquer parte do mundo onde até aquele momento era especulação e mito (SIDDIQI, 2016, p. 145).
Tsiolkovsky mostra que a rapidez adquirida para um foguete alcançar o espaço é diretamente proporcional à rapidez de ejeção e impulsão inicial. Ele projeta uma nave alimentada por oxigênio e hidrogênio líquido e na parte da frente uma cabine para o piloto com um a reserva de oxigênio. Posteriormente vai propor um novo propulsor à base de hidrocarbonetos.
Suas fórmulas matemáticas serviram de base para o programa Sputnik, que lançou pela primeira vez um homem ao espaço em 1961, com a nave Vostok. A aparência externa de seu foguete foi a mesma utilizada pelas viagens espaciais posteriores, com um foguete divido em três partes, sendo a primeira onde se encontram os pilotos e as restantes onde se depositavam os combustíveis. Segundo Tsiolkovsky, a velocidade de escape poderia ser atingida com um modelo com três variáveis de mudança de velocidade de foguete: massa do foguete, massa do propelente e a velocidade de saída do gás.
Em 1919, Tsiolkovsky foi eleito para a Academia de Ciências da URSS e dez anos depois seu trabalho era reconhecido no mundo inteiro. Em 1924 publicou Os foguetes no espaço cósmico sendo nomeado professor da academia de Joukowsky (Rússia) e estabelece contato com Goddard e Oberth, cientistas norte-americano e alemão respectivamente, ambos também versados sobre viagens espaciais (cf. LARDIER, 1992, p. 18).
Tsiolkovsky foi influenciado por Nikolai Fedorov um pensador russo, ambos responsáveis pelo movimento denominado cosmismo russo, uma corrente filosófica que buscava a integração entre ciência com a tradição religiosa e esotérica eslava. Segundo afirma George M. Young, autor do livro Os Cosmistas russos:
os temas principais do pensamento cosmistas incluem o papel humano ativo na evolução do homem e do cosmo; a criação de novas formas de vida, incluindo um novo estágio da humanidade; a extensão ilimitada da longevidade humana em direção a um estado de imortalidade prática; a ressureição física dos mortos; a pesquisa científica séria sobre questões há muito consideradas objetos próprios apenas da ficção científica e da literatura ocultista e esotérica; a exploração e colonização de todo o cosmos; a emergência em nossa biosfera de uma nova esfera de pensamento humano chamada ‘noosfera’; e outros ‘projetos’ de longo alcance: alguns dos quais não parecem mais tão impossíveis ou insanos quanto pareciam, quando foram primeiramente apresentados em fins do século XIX e princípio do século XX (YOUNG, 2012 in MORAES, 2021, p. 3).
Fedorov era filho ilegítimo de uma família nobre russa, os Gagarin, cujo descendente seria o primeiro homem a ir para o espaço. Entre 1873-1876 Tsiolkovsky costumava encontrar-se com Fedorov na Biblioteca de Chertkovskaya em Moscou, onde Fedorov era funcionário. Além de ajudar financeiramente Tsiolkovsky, também há muitas evidências que Fedorov lhe incutiu as ideias sobre viagens espaciais, embora Tsiolkovsky não o tenha mencionado. Como afirma Siddiqi:
As ideias de Fedorov de reestruturar a humanidade e o cosmos, e especialmente o papel central da Ciência e Tecnologia nesta transformação, antecipou os escritos de Tsiolkovsky, que também se fundiram com o desejo prometeico de refazer tudo o nos cerca (SIDDIQI, 2016, p. 144).
O historiador alemão Michael Hagemeister alega que nos anos de 1980, muitos livros de Tsilkovsky foram publicados na Rússia e seus escritos afirmavam que as viagens ao espaço seriam a forma pela qual o homem poderia se aperfeiçoar e assegurar a existência da humanidade, em decorrência de qualquer catástrofe natural que ocorresse na Terra ou uma eventual superpopulação. Quando em 1903 Tsiolkovsky publica A Exploração do Espaço Cósmico por Dispositivos de Reação, sua principal motivação adveio da profunda influência da obra de Nikolai Fedorov, Philosophy of the Common Task (Filosofia da Causa Comum), onde este afirma que seu principal anseio era encontrar um meio de se alcançar a imortalidade, de modo a superar os limites da morte.
Segundo o site Cosmonaut, para os bolcheviques, a ideia de transcender a morte era uma oportunidade de ir além dos limites de classe, quando a própria natureza humana poderia ser suplantada. O projeto de Tsiolkovsky, bem como dos cosmistas, era o de preparar o corpo humano para as condições de vida no espaço. Segundo Tsiolkovsky, “Não há fim, nem para a vida, nem para a inteligência e refinamento do homem. Ele vai avançar eternamente. E se for o caso, também não há dúvida sobre sua aquisição de imortalidade” (TSIOLKOVSKY, 1911, in HAGEMEISTER, 2012, p. 139). Conforme os cosmistas, para se empreender as viagens espaciais faz-se necessário suplantar a morte, pois esta é uma barreira para a realização de viagens de grandes distâncias. Estas propostas lembram os transhumanistas da atualidade, cuja vertente mais atuante são os adeptos do uso de nootrópicos no Valedo Silício, na Califórnia, os quais afirmam que tais substâncias são capazes de aperfeiçoar e prolongar a vida humana. A professora de cultura eslava, Birgit Menzel, afirma que:
Transhumanismo ganhou terreno internacional desde a década de 1990. Ele promete salvar a humanidade de suas restrições biológicas, incluindo a abolição final das doenças e até a própria morte (…). Embora o transhumanismo apareça como uma forma distinta no movimento ocidental do século 21, centrado na próspera indústria de tecnologia dos Estados Unidos, algumas de suas características mostram semelhanças impressionantes com as ideias e experimentos científicos na Rússia no início do século 20 (MENZEL, 2013, p. 2)
Os cosmistas tiveram uma maior projeção após a Revolução Russa, pois apesar de ser uma corrente mística cujo intuito era o de superar as barreiras e as limitações humanas, compartilhavam ainda uma identidade com os bolcheviques, na medida em que ambas as correntes viam na tecnologia uma saída para a libertação humana. Tanto os cosmistas quanto os bolcheviques almejavam construir uma nova sociedade e durante este período houve uma ampla difusão de utopias de grande experimentação social.
O período após a Guerra Civil e a consolidação da NEP (Nova Política Econômica – 1921/1928), foi uma época de certa tranquilidade, possibilitando a realização de muitas experimentações, tanto científicas quanto artísticas. Durante este período Tsiolkovsky fez inúmeros trabalhos criativos, dentre eles um protótipo de seu foguete. Foi um período fértil no tocante a possibilidade de se construir uma nova sociedade, motivo pelo qual as ideias de Fedorov e Tsiolkovsky tiveram grande repercussão: “As obras dos cosmistas pretendiam ser científicas e proféticas, combinando misticismo e ciência de uma forma que só se encontra na ficção científica” (COSMONAUT, 2020).
Durante os anos 1920 vários artistas e diretores de cinema russos ilustraram as viagens espaciais de modo a elucidar na época, toda uma filosofia que ia de encontro com o teor cultural que as viagens espaciais expressavam, não se restringindo ao campo tecnológico. Segundo Assif Siddiqi, a exploração espacial foi uma pequena, mas importante parte da cena cultural durante os anos 1920 na Rússia, no decurso da implementação da NEP:
Recuperando a história escondida das raízes cosmistas soviéticas de viagem espacial, sublinham como os entusiastas de viagem espacial da era bolchevique navegaram o espectro entre o extremo fetichismo tecnológico e a extrema fascinação pelo misticismo (SIDDIQI, 2008, p. 262).
O caso da efervescência cultural em torno das viagens espaciais, como a publicação de Aelita por Aleksei Tolstoi em 1920 e depois sua produção cinematográfica dirigida Yakov Protazonov em 1924, bem como a organização de vários círculos de denominados “utopistas”, os quais se reuniam a fim de estudar técnicas para viagens espaciais, remonta ao que o professor de língua eslava, Anthony Vanchu, afirma que:
Enquanto a ciência e a tecnologia tinham o poder de desmistificar a religião e a magia, eles mesmos se perceberam como locus em que a magia ou o poder oculto poderia transformar o mundo material (VANCHU, in SIDDIQI, 2008, p. 288).
Mas os experimentos utópicos de 1920 não progrediram mais e a necessidade de industrialização regimentou a político-econômica do socialismo oficial. Lenin já havia teorizado e colocado em prática a importância da implantação da eletrificação, do taylorismo bem como das estradas de ferro, apontando que a tecnologia seria a solução para os problemas soviéticos. Lenin dizia que finalmente os utopistas haviam sucumbido a Utopia da Eletrificação (cf. SIDDIQI, 2008, p. 263). Mas as viagens espaciais prometiam ir além da aviação, pois significavam a total libertação humana: liberação do passado, de injustiças e de imperfeição.
Mas foi justamente durante o desenvolvimento do estalinismo e a implementação da política de industrialização que a tecnologia de foguetes foi novamente valorizada, tornando-se durante a década de 1950 uma forma de propaganda contra os Estados Unidos. Desta forma, os defensores das viagens espaciais ofereceram uma forma de atender as necessidades do estado soviético e seus anseios foram desta forma assegurados.
No final de sua vida, Tsiolkovsky já havia publicado vários textos sobre viagens cósmicas e técnicos e embora os seus escritos filosóficos excedam os técnicos, seu trabalho sobre aeronáutica, foguetes e viagens espaciais ganharam notória exposição. Tsiolkovsky foi a maior expressão do cosmismo russo propagado por Nikolai Fedorov, de modo que para Siddiqi: “Tsiolkovsky foi a mais importante ligação entre ciência e misticismo” (SIDDIQI, 2008, p. 284).
Segundo Hagemeister, Tsiolkovsky sofreu forte atuação das escolas gnósticas bem como da Teosofia sendo que no século XX, Kaluga, a cidade onde vivia, era o segundo maior centro irradiador da Teosofia, ficando atrás somente de São Petersburgo. A visão holística do mundo a qual anunciava a teosofia, no intuito de unir ciência, religião e filosofia, o influenciou de forma profunda:
Foi através destes conhecimentos esotéricos que motivou Tsiolkovsky na sua pesquisa concreta ao desenvolvimento técnico. Isso formou a base do programa espacial soviético – um programa que deveria abrir o caminho cósmico par a transfiguração e perfeição da humanidade – e finalmente para a imortalidade e felicidade eterna (HAGEMEISTER, 2012, p. 145).
Em 1930 Tsiolkovsky ganha o prêmio da Ordem da Bandeira Vermelha do Trabalhador, mas ainda assim não recebeu o seu devido reconhecimento pelo regime soviético, embora tivesse apoiado a Revolução de Outubro. No entanto, o legado de Tsiolkovsky e do cosmismo foi indiscutível. Um dos seus principais seguidores foi Wernher von Braun (1912 – 1977), engenheiro alemão e um dos principais responsáveis pelo foguete V – 2 da Alemanha Nazista e do projeto Saturno V dos Estados Unidos, responsável por levar os Estados Unidos à Lua.
Hagemeister afirma que outros engenheiros pioneiros alemães, como Herman Ganswindt (1856- 1934), Hermann Oberth (1894 – 1989) e Max Valier (1895 -1930) eram também engajados em especulações ocultas e metafísicas, fascinados por fenômenos paranormais. Afirma também que o engenheiro de foguetes norte-americano, John Whiteside Parsons (1914–1952), cujas pesquisas foram essenciais para o programa de foguetes dos Estados Unidos entre 1930 e 1940, também era um estudioso de tradições herméticas e mágicas, sendo líder do braço americano da Ordo Templi Orientis (O.T.O). Desta forma, Hegemeister questiona os motivos pelos quais há uma identidade de interesses entre as doutrinas ocultas e os estudos espaciais:
O que antes era negócios de mágicos, feiticeiros e alquimistas tornou-se tarefa de cientistas e engenheiros, a saber: a conquista das leis naturais, a transmutação de espécies e elementos, o domínio absoluto do espaço e do tempo, o avanço em novas dimensões, e a criação de um super-humano onipotente e imortal (HAGEMEISTER, 2012, p. 146).
O desejo de reestruturação da humanidade baseado nos padrões do desenvolvimento da ciência e da tecnologia difundidos pelo pensamento de Fedorov, infundiram em Tsiolkovsky o desejo de refazer toda a realidade que nos cerca, sendo ambos responsáveis por uma das tradições de maior relevância para a composição do universo científico e cultural soviético.
Bases Teóricas do Cosmismo Russo
Segundo o historiador Michael Hagemeister, o cosmismo foi um movimento intelectual da atual Rússia, pouco noticiado no Ocidente, e se baseia numa visão holística e antropocêntrica do Universo: “De acordo com o cosmismo o mundo é uma transição da ‘biosfera’ (a esfera da matéria viva) para a ‘noosfera’ (a esfera da razão)” (HAGEMEISTER, 1997, p. 186).
Fruto de uma mentalidade essencialmente russa, Nikolai Fedorov é considerado o pai do cosmismo e apesar da grande importância atribuída a ciência, o cosmismo russo está intimamente atrelado às influências do conhecimento oculto. A ideia de perpetuação da vida e o ressurgimento da morte são conceitos que sempre estiveram presentes na história do gnosticismo, os quais terão grande repercussão através dos defensores do cosmismo.
Apesar da documentação a respeito do assunto ter sido em sua boa parte destruída, é possível atestar que durante a década de 1920 o tema foi particularmente muito presente na Rússia:
Houve o espalhamento da expectativa de que a ciência, arte e tecnologia libertaria das amarras dos interesses conflitivos particulares e pela primeira vez funcionando com o benefício de toda a humanidade pavimentando um ‘futuro brilhante’, transcendendo a barreira final que bloqueava o reino da liberdade – a limitação humana do tempo e espaço (…). O que era negócio de magos, feiticeiros, alquimistas, agora tornou-se tarefa de cientistas e engenheiros (…) (HAGEMEISTER, 1997, p. 188).
A crença de que a ciência pudesse ser capaz de transcender a morte era tão absoluta, que até mesmo Lenin, o líder da Revolução Bolchevique, fora embalsamado na expectativa de que a ciência russa do futuro o viesse a ressuscitá-lo. Esta corrente era designada de biocosmistas. Hagemeister afirma que dentre os cientistas que os biocosmistas queriam recrutar, destacavam-se o fisiologista vienense Eugenin Steinach (1861-1944), que se concentrou em experimentos sobre revitalização de organismos; Albert Einstein (1879-1955), cuja equação E= mc² seria a expressão de uma capacidade mágica de se reverter a dominação do tempo e por último e não menos importante, o matemático Konstantin Tsiolkovsky, difusor do cosmismo e pioneiro dos foguetes, residente na cidade de Kaluga, centro irradiador do pensamento teosófico, como afirmamos acima. Tsiolkovsky também se considerava um biocosmista e não negava que suas maiores influências eram os franceses Júlio Verne e Camille Flammarion, os quais lhe infundiram importantes anseios por viagens espaciais:
O estudo da filosofia de Tsiolkovsky derramaria nova luz para o progresso espacial soviético – um progresso que foi supostamente aberto para o caminho cósmico da transfiguração e perfeição da humanidade (…) para reconstruir o corpo humano de forma a acomodá-lo nas condições de vida do cosmos (HAGEMEISTER, 1997, p. 199).
Segundo a escritora russa Marina Simakova, o cosmismo russo compreende três principais componentes: o primeiro é o encalço da imortalidade, através do rejuvenescimento pela transfusão de sangue e ressurreição da morte proclamada por Fedorov; o segundo componente essencial do cosmismo é a chamada evolução ativa, quando a consciência supera as condições limitadas pelo tempo e espaço, resultando no prolongamento da vida e da humanização do mundo. É uma fase de transição, segundo Simakova, para um ser humano do futuro, absolutamente racional e justo, imbuído de capacidades ilimitadas. O terceiro componente abarca elementos de ordem moral e ética, combinando elementos cristãos, doutrinas ocultas, ascetismo e marxismo, dentre outras filosofias. É um ser humano consciente de sua responsabilidade social no processo civilizatório que compreende o universo. Tsiolkovsky afirmava que a Terra é o berço da civilização assim como Hegel afirmava que a escravidão é o berço da liberdade (cf. Simakova, 2016, p. 9). Segundo o mestre de Kaluga, a vida no espaço não se restringia a colonizar outros planetas, mas também abarcava o espaço interplanetário, os quais Tsiolkovsky denominavam de “assentamentos etérios”, constituído de cidades alongadas construídas em torno da órbita dos planetas, podendo ser observadas em filmes de ficção científica.
O projeto cosmista é um projeto totalizante, na medida em que lida com um ideal social que abarca todo o universo, ainda que deva combater o individualismo, porque homens e mulheres devem viver em união fraternal. É um projeto moderno, embora seja uma modernidade alternativa, conforme sublinha Simakova: “O cosmismo russo foi, portanto, uma resposta radical as doutrinas menos humana, positivistas e racionalistas do século XIX. Isto poetizou seus componentes científicos enquanto problematizou questões existenciais” (SIMAKOVA, 2016, p. 12).
O cosmismo se tornou uma nova doutrina russa e ecoou pela sociedade após a revolução de 1917, cuja promessa seria a libertação das pessoas não somente das travas sociais, mas também biológicas e espaciais, prometendo realizar o que as promessas das filosofias ocultas difundiram, mas que agora a ciência seria capaz de efetuar. Segundo a historiadora francesa, Marlene Laruelle, o cosmismo tinha a marca do contexto histórico durante o qual foi forjado, pois a Revolução Bolchevique favorece a difusão de utopias futuristas que prometiam meios de sair da situação de sonho para o campo da possibilidade. Laruelle afirma que o cosmismo vinha de uma tradição milenarista secular na Rússia, como o biocosmismo, bem como da teoria do rejuvenescimento através do sangue, difundidas pelo médico e revolucionário russo, Alexander Bogdanov (1873-1928) e finalmente o próprio embalsamento de Lenin foi o corolário da crença segundo a qual a ciência seria capaz de desenvolver uma tecnologia que trouxesse vida após a morte. Essas utopias se difundiram por toda a década de 1920, mas foram de certa forma repudiadas pelo alto comando soviético, na medida em que os esforços da ciência deveriam ser direcionados para o desenvolvimento econômico da nação. Mas o cosmismo permaneceu após à grande virada nos anos 1930, pois segundo Laruelle: “O cosmismo foi capaz de achar um terreno comum com o Stalinismo, permitindo que o último instrumentalizasse como parte da vitória da ciência soviética” (LARUELLE, 2012, p. 253).
Foi durante os governos de Josef Stalin (1878-1953) e Nikita Krushev (1894-1971) que a ciência e a tecnologia foram incrementadas pelo regime soviético e em 1957, com o lançamento da Sputnik, ocorre a culminação entre a ligação do socialismo, ciência e espaço, tendo destaque o trio de Tsiolkovsky, Korolev e Gagarin. Sergei Korolev (1907–1966) foi um engenheiro ucraniano, responsável por projetar foguetes e aeronaves durante a corrida espacial entre os Estados Unidos e URSS durante os anos de 1950 e 1960. Foi Korolev quem persuadiu Krushev a iniciar a produzir e desenvolver satélites como uma forma de propaganda da indústria soviética contra os Estados Unidos. Foi este o caminho através do qual os defensores das viagens espaciais conseguiram se firmar diante das necessidades do estado soviético. O Programa Espacial Soviético foi aparentemente um projeto cuja principal motivação era militar e culminou com o lançamento de mísseis balísticos como o Sputnik, dando início ao que se chama de corrida espacial, que significou não somente a disputa em termos tecnológicos entre as nações, mas também se constituía na forma pela qual pudessem ter destaque as vantagens militares, principalmente das nações hegemônicas do período: EUA e URSS. Foi após o lançamento do satélite Sputnik pelos soviéticos, que os norte-americanos se lançaram também de forma inequívoca na corrida espacial:
A NASA é a agência norte-americana que cuida do desenvolvimento das atividades espaciais. Ela foi criada em 29 de julho de 1958. Os norte-americanos, que até então achavam que a URSS era um país essencialmente agrícola e ainda destruído pela guerra, ficaram surpresos com os sucessos dos primeiros satélites da família Sputnik em 1957. Logo os EUA perceberam que teriam de aumentar e organizar seus esforços caso quisessem se impor às conquistas da URSS no espaço. Foi justamente dessa crise desencadeada pelo Sputnik, que surgiu a NASA (WINTER, O.; MELO, C., 2007, p. 32).
No entanto, conforme Assif Siddiqi, o exitoso programa espacial de 1960, teve contribuição não somente o desenvolvimento do materialismo dos bolcheviques, na medida em que o anseio pela ciência e pelo progresso russo estiveram na esteira da sombria epistemologia dos anseios místicos (cf. SIDDIQI, 2016, p. 130). Embora tenha sido a revolução bolchevique a responsável pela realização do sonho de transformação da tecnologia em realidade, as aspirações espirituais da exploração espacial soviética eram muito evidentes, como afirma Siddiqi:
Há uma vasta literatura afirmando que as inspirações pelas aquisições do espaço soviético tiveram pouco a ver com os interesses bolcheviques na moderna ciência e tecnologia, mas mais enraizada numa tradição filosófica russa chamada de ‘cosmismo’ ou ‘cosmismo russo’ (SIDDIQI, 2016, p. 129).
Assif Siddiqi afirma que a evidente motivação espiritual de Tsiolkovsky, embasado em ideias sobre ocultismo, pan-eslavismo e teosofia, não ocultou sua grande contribuição ao conhecimento científico, tornando-se o patrono das viagens espaciais do século XX. No entanto, quando seu legado ressurgiu após a II Guerra Mundial e sua figura foi notoriamente exaltada, somente seus escritos matemáticos ficaram em evidência, ficando ofuscados sua motivação metafísica, permanecendo assim, desde a antiga URSS, enaltecido como um ícone da ciência e da tecnologia, ainda que sua influência esteja muito presente entre outros grupos alternativos presentes na sociedade russa. Segundo Siddiqi:
Konstantin Tsiolkovsky está entre aqueles que as palavras de Fedorov ecoaram de modo que o ‘cosmismo russo’ se expandiu em 1990 num movimento intelectual que tem ligação com o padrão ultra-nacionalista russo centrista e pós-socialista e ao crescente movimento transhumanista que procura imaginar a vida além da forma corrente atual (SIDDIQI, 2016, p. 143).
Desta forma, apesar de o cosmismo ter como embasamento muitos aspectos do conhecimento metafísico, bem como de outras formas de conhecimento com as quais o pensamento científico ainda não pode explicar, seus adeptos acreditam veementemente na ciência. Como afirma a historiadora Marlene Laruelle, os cosmistas assim como os darwinistas, acreditavam que a evolução da vida é baseada na seleção natural, no entanto, segundo os cosmistas, a seleção segue uma lógica que ainda precisa ser descoberta pela ciência. Eles nunca rechaçaram o conhecimento científico, pelo contrário: o cosmismo é fundamentalmente otimista, futurista e acredita que o progresso da humanidade está atrelado ao desenvolvimento da ciência. Mas segundo Laruelle, existem outros aspectos da dimensão humana com as quais a ciência não pode abarcar e que os cosmistas levaram muito em consideração:
O cosmismo compartilhava muitas características com a chamada tradições ocultistas clássicas, como a cabala, astrologia, alquimia, etc. Seu principal pressuposto é que a separação, formulada durante a Renascença, entre metafísica e ciência moderna é uma confusão do pensamento humano, uma negação da multiplicidade de dimensões da existência humana. Cosmismo, portanto, como ocultismo, apela para a recriação das formas holísticas de conhecimento, formas que reconciliariam mente e matéria, metafísica e ciência (LARUELLE, 2012, p. 244).
Durante o período socialista a política soviética dava ensejo a romper com os paradigmas estabelecidos, tanto de ordem social quanto natural, caminhando em direção ao controle total das condições de vida, abarcando até os mecanismos do universo, o que para os biocosmistas compreendia o alcance da “imortalidade infinita” e Tsiokolvsky, apesar de ser adepto das correntes ocultistas e biocosmistas, estava integrado aos anseios socialistas e apresentou seu trabalho com um embasamento científico autêntico.
Tsiolkovsky falece em 1935, mas os frutos de seus anseios foram profundamente enraizados na sociedade soviética, de modo que em 1960 a URSS inicia seu avanço espacial, com a inegável contribuição do professor de Kaluga. Tsiolkovsky tornou-se símbolo do clamor da ciência para o progresso da sociedade soviética, principalmente no tocante ao avanço espacial, mas tendo como principal alicerce teorias metafísicas as quais ele soube bem separá-las de seu trabalho científico.
Desta forma, se os preceitos de Fedorov baseados na busca pela imortalidade instigou Tsiolkovsky a formular sua equação para lançar foguetes ao espaço e dentro deles seres humanos, isso nos mostra como o pensamento utópico, como o cosmismo russo, pode instigar a ciência em transformar aquilo que seria uma teoria filosófica em realidade. A história russa das viagens espaciais mostra, portanto, como “(…) a revolução fez dos utopistas tecnológicos sair do sonho para a arena da possibilidade” (SIDDIQI, 2008, p. 3) e talvez este tenha sido o maior legado do cosmismo russo. E embora o sonho dos cosmistas de se alcançar a imortalidade ainda não tenha se tornado realidade, seus anseios pelas viagens espaciais não somente se concretizaram como foram responsáveis por introduzir a humanidade em um novo patamar de desenvolvimento.
Referências
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