O bolsonarismo é um estorvo
A última semana terminou refazendo o roteiro das semanas anteriores e dos últimos tempos, expondo ainda mais a incompetência do atual regime para gerir o país, e seu absoluto desdém pelos fundamentos e objetivos consignados na Constituição Federal – que jurou respeitar. Ao fracasso da política econômica, nítido desde cedo, soma-se a forma delinquente como o capitão vem agindo, seja quando desorganiza o combate ao coronavírus, seja quando investe contra a ordem democrática, sua obsessão.
Sabemos que em qualquer hipótese milhares seriam infectados, e muitos, infelizmente, morreriam ceifados pelo vírus. Mas quantos foram infectados e quantos ainda morrerão por conta da irresponsabilidade do presidente, desarticulando as ações do Estado, agredindo governantes, estimulando o contágio?
Como enfrentar uma crise como a atual, governados que somos por um sociopata cuja delinquência se tolera há mais de 30 anos?
Conquanto ainda ostente apoio em setores significativos da sociedade, do dito “mercado” e das forças armadas, trata-se de um governo podre, à míngua de salvação.
Um estorvo.
Na sequência da demissão do ministro da saúde em meio à crise humanitária, somos constrangidos a assistir à lavagem de roupa suja entre o ex-juiz e o agora ex-ministro da justiça e o capitão ainda presidente. A imprensa divulgou, tanto as graves acusações de Sergio Moro ao ex-chefe, quanto as acusações do ex-chefe ao ex-subordinado, que, como juiz, tanto o ajudou no processo eleitoral. Acusam-se de condutas aéticas, de prevaricação e de auto favorecimento, de crimes de responsabilidade, de advocacia administrativa e de chantagem. Um dos pontos da dissidência teria sido a promessa de nomeação do ex-juiz a uma vaga no STF, em troca da substituição do diretor geral da PF. Antes ela havia sido anunciada como paga por serviços prestados. Sabe-se que ambos, presidente e ex-ministro, têm razão nos conceitos que agora externam um sobre o outro. Eles se merecem e se equivalem.
O ex-ministro, em inquérito aberto pelo STF a pedido do procurador-geral da república nomeado por Bolsonaro, foi intimado a apresentar provas de suas gravíssimas acusações ao presidente, sob pena de ser processado por denunciação caluniosa. Moro foi a Curitiba e por oito horas depôs na sede da PF. O teor de suas declarações foi reduzido a texto de umas poucas páginas e divulgado à imprensa (teria vazado à CNN, como antes, nos seus tempos da lava jato, vazava para a Rede Globo). Muita encenação para um grande fiasco, pois o longo depoimento do ex-juiz é um monturo de nada, a lembrar as famosas “convicções” dos procuradores utilizadas para dar pretenso nexo às infundadas sentenças que condenaram o ex-presidente Lula. Foi uma peça de advogado de defesa, um jogo de evasivas e esquivas, de fuga ao combate. Covarde, enfim. Ficou claro o objetivo de desfazer-se do conteúdo acusatório da entrevista coletiva com a qual anunciou sua saída do ministério. Do primeiro ao último minuto, da primeira à última palavra, o ex-juiz de piso cuidou de deixar claro que não imputara crime algum ao presidente. Ou seja, seu objetivo, talvez alcançado (está a depender do entendimento do procurador e do relator) foi de fugir da ameaça, expressa no pedido de abertura do inquérito, de, não comprovando suas acusações, submeter-se a processo criminal por denunciação caluniosa e safar-se da acusação de prevaricação, crime em que evidentemente incorreu. Esse senhor Sergio Moro – que a Rede Globo tenta salvar – é mais um Catão de pés de barro desta república sereníssima. Sobram, para o inquérito, as acusações do capitão ao ex-ministro (será que vai mantê-las, ou já foi armado o acordo?), e as auto-delações do capitão ainda presidente. Refiro-me às suas confissões no discurso atabalhoado, idiota, indecoroso, paranoico, vulgar com o qual, na sede do governo, com seu ministério perfilado, tentou desfazer-se das acusações do ex-auxiliar.
Mas a dissidência dentro da récua ainda não seria o fato mais grave da semana. O que é ruim sempre pode piorar. No domingo (3/5), o presidente sociopata volta a reunir militantes, desta feita em frente ao alvorada, rompe com o isolamento social, única defesa conhecida contra a propagação do coronavírus, dá mau exemplo à sociedade e põe em risco de contaminação até crianças, que abraça e leva ao colo. Tendo como fundo as bandeiras dos EUA e de Israel (que belo e cívico cenário montado por um militar brasileiro!), ameaça o congresso e o STF e proclama contar com as forças armadas nos seus arroubos e reiterados acenos golpistas. Nas linhas e nas entrelinhas de seu discurso tatibitate, foi unânime a leitura da ostensiva ameaça à ordem democrática. Não faltaram as suaves notas de repúdio que pretendem defender a democracia diante das ameaças, fundadas ou não, do uso das baionetas. Quem poderia e deveria manifestar-se falou rechaçando as ameaças e reiterando a defesa da democracia. E, como de hábito, falaram as forças armadas, dois dias depois, mediante nota do ministro da defesa, ex-assessor do atual presidente do STF, ministro Toffoli, elo entre o terceiro andar do planalto (irritado com as liminares concedidas pelos ministros Moraes e Barroso) e o poder judiciário.
Triste a república na qual as forças armadas têm a obrigação de, semanalmente, declarar o óbvio: que, instituições do Estado, estão subordinadas à Constituição!
Mas essa nota, a segunda em cerca de dez dias, enseja leitura preocupante. Para muitos observadores, e este escriba se filia a esta linha, a insistência em afirmar o óbvio, a saber, que a independência e a harmonia entre os poderes são ingredientes necessários para a governabilidade (omitindo a regra constitucional do controle jurisdicional de todos os poderes), os fardados estariam, na verdade, afagando o pupilo na presidência, agastado com as liminares que proibiram a nomeação de um apaniguado para a chefia da polícia federal e aquela outra que sustou a estúpida, grosseira, ilegal e inconstitucional expulsão dos funcionários da embaixada da Venezuela em Brasília.
Outro ponto intrigante na nota do ministério da defesa é aquele que nos diz que as manifestações políticas fazem parte da democracia (com o que todos concordamos), devendo-se condenar os excessos, e o texto destaca como excesso a violência contra jornalistas. Se o único ponto condenável da patuscada foi a agressão a profissionais da imprensa, conclui-se que o mais está na ordem natural das coisas. Ou seja, que o teor dos protestos condiz com as franquias democráticas. Mas fazem parte da vida democrática as manifestações contra a democracia, contra as instituições da república, os pedidos de intervenção militar e a defesa de ditaduras? Pois é disso que se trata! A nota seria, portanto, menos uma defesa da democracia e mais um “recado” ao poder judiciário, similar àquele que o então comandante do exército, general Villas Bôas (a quem Bolsonaro, em solenidade oficial, disse dever sua eleição), enviou ao STF no curso da campanha presidencial de 2018, instando a corte a não ousar conceder habeas corpus ao presidente Lula? O supremo, como se sabe, acedeu. Fez-se de cócoras, e agora se esforça para pôr-se de pé. Sua presidência, ocupada naquela altura pela ministra Cármen Lúcia, antiga professora de direito constitucional em Minas Gerais, engavetou o processo (havia seis meses com relatoria pronta), que só veio a ser julgado depois de Lula afastado do processo eleitoral, o capitão eleito e empossado.
Instituições funcionando “normalmente”.
Fica assim acertado: toda semana o capitão delinquente ameaça o país com a possibilidade de uma intervenção militar e um golpe de Estado; as instituições manifestam seu protesto e o ministério da defesa, dois dias depois, emite nota jurando obediência à Constituição. Então voltamos à nossa zona de conforto, até o final da semana seguinte, para quando se espera, porque programado, novo ataque do capitão à democracia, novo aceno ao golpismo, novos protestos e nova nota dos militares. Observe-se, porém: as ameaças à ordem democrática são cada vez mais fortes, e as notas do ministério da defesa cada vez mais tíbias. O capitão perjuro avança dois passos e recua um (é sua tática cediça), e todos aplaudimos o recuo sem anotar o terreno perdido. Assim, o golpismo vai caminhando em sua marcha batida, até onde puder.
Por enquanto, nossos destinos não nos pertencem. Estão nas mãos dos deuses do Olimpo, a gente fardada, o “mercado” e os procuradores do império. O povo é cautelarmente mantido fora da Ágora. Quando será possível a reorganização popular?
Roberto Amaral
Saudades – E lá se foram Aldir Blanc e Flávio Migliaccio. Ficará “O bêbado e o equilibrista”, ficará a esperança e ficará a utopia. Ficará o teatro brechtiano de resistência, do CPC da UNE, de Vianinha e dos esquecidos Armando Costa e Carlos Estevam; o teatro de Guarnieri, Plínio Marcos e Migliaccio, o cinema de Leon Hirszman. É doloroso ver um artista como Lima Duarte, de seus 90 anos, dizer postumamente ao amigo: “eu te entendo, Flávio”. Resistir é preciso; sempre é preciso. Hoje, mais do que nunca.