Entrevista com Nuccio Ordine no Jornal da Universidade (UFRGS)
Embora o pico já tenha passado, a Itália (como outros países europeus, penso na Espanha e na França) vive uma crise sanitária e econômica sem precedentes. O Norte (a parte mais produtiva do nosso país) pagou um preço elevado em termos de vidas humanas (desapareceu toda uma geração de pessoas idosas e doentes atingidos por outras patologias) e de produção industrial (muitas empresas foram obrigadas a liberar ou a demitir seus próprios funcionários!).
JU – O distanciamento social adotado por alguns países como forma de reduzir o impacto da pandemia não tem sido uma unanimidade. Muitos países simplesmente não o adotaram alegando que essa medida afeta nossa liberdade. Quais as suas considerações sobre o distanciamento social?
Estamos todos reclusos em nossas casas, neste momento, para enfrentar a situação de emergência criada pelo coronavírus. Mas por que estamos renunciando a nossa liberdade de ir e vir, aos nossos afetos. Qual é o objetivo disso tudo? Por que nos pedem isso? Sobretudo para salvar vidas humanas, para salvar as vidas de uma geração que está desaparecendo. É a geração dos nossos avós, a geração das pessoas mais idosas, que são as vítimas preferidas pelo coronavírus. E também para defender os mais frágeis, aqueles que já estão doentes e que são atingidos com mais facilidade pelo coronavírus. E, então, neste momento talvez seja bom refletir sobre o que o coronavírus pode nos ensinar e o que podemos aprender nesses momentos difíceis. Tenho em mente uma cena terrível, dramática, que todos vimos na televisão: centenas de caixões no norte da Itália e em outros países do mundo, especialmente no Brasil e na América Latina, onde os mortos são enterrados em grandes valas comuns, quando não são abandonados pelas estradas, corpos de pessoas pobres, com as quais ninguém se preocupa. Vimos essas imagens de pessoas mortas no isolamento, sem o calor humano de um filho, de um neto, de uma esposa ou de um marido. Então, por essas pessoas devemos, como digo, fazer esse sacrifício, não somente por nós mesmos, mas especialmente para os outros.
JU – Epidemias tem sido uma incomoda presença na história da humanidade. Antes do advento da ciência moderna, as pestes e as desgraças relatadas pelos historiadores e especialmente pela literatura também produziram um forte apelo simbólico. O que essas narrativas nos ensinaram?
Exatamente nesses dias estava relendo o segundo livro da Eneida de Virgílio. Um texto belíssimo. Muito atual. Isso para compreender que a literatura, como faz tempo venho dizendo aos meus estudantes, não se estuda para passar num exame ou para conquistar um diploma. Estuda-se literatura porque ela nos ensina sobretudo a compreender o mundo no qual vivemos. Nesse segundo livro, encontra-se uma cena famosa, que todos já leram, mesmo nas antologias: Troia está em chamas e, em certo momento, Enéas, carregando às costas seu pai Anquises, e que, com seu filho pequeno, procura salvá-los. Nessa cena que Virgílio nos apresenta propõe, vemos o passado, Anquises, o presente, Enéas e o futuro, Ascânio, filho de Enéas. E aqui encontramos a ideia de um conceito importante da pietas romana, ou seja, os deveres que temos para com os nossos pais, para com os nossos genitores. E ao mesmo tempo os deveres que temos para com a comunidade. Então, neste momento em que estamos vivendo há também uma análise que podemos fazer das dificuldades que tivemos até agora e que ninguém teve a coragem de denunciar em alta voz. A cena narrada por Virgílio nos apresenta, portanto, um gesto “fundador” no qual o futuro não pode existir sem o papel essencial do passado, sem o assumir dos deveres morais que temos para com os nossos familiares e a comunidade na qual vivemos. A literatura, a música, a arte, a filosofia, a ciência básica nos ensinam faz séculos que a nossa vida tem um sentido somente se conseguimos viver para os outros. De resto, a história tem mostrado muitas vezes a importância da cultura para superar momentos difíceis de crise: não é um mero acaso, somente para dar um exemplo, que Israel e Alemanha tenham retomado o diálogo traumaticamente destroçado pelo desastre da Segunda Guerra Mundial, exatamente graças à colaboração científica internacional…
JU – Mesmo neste momento de distanciamento social e de uma avalanche de notícias sobre os problemas e as mortes em razão da Covid-19, você acredita que a literatura poderia nos ajudar a manter nossa saúde psíquica e mental?
Em várias entrevistas nessas semanas dramáticas, procurei retomar algumas reflexões preciosas sobre os efeitos das epidemias contidas nos clássicos famosos. Se consideramos o Decamerão, por exemplo, Boccaccio descreve o desastre moral e material de Florença durante a peste de 1348; para fugir do caos, os dez novelistas não somente deixam a cidade, mas se impõem uma série de regras para disciplinar a vida sanitária e literária. Os protagonistas sabem muito bem que para cuidar do corpo é preciso também cuidar do espírito. De resto, a própria abertura do Decamerão (“é do humano ter compaixão pelos aflitos”) exalta o poder da literatura como farmakon, capaz de aliviar as penas, combater o medo e neutralizar a melancolia. Para uma Florença devastada pela peste (onde a desordem demanda o restabelecimento do poder político e religioso), Boccaccio contrapõe a brigada alegre que em Fiesole busca reconstruir uma ordem perdida. Em muitos textos clássicos nos quais se fala de epidemia retornam frequentemente os mesmos temas: a reação irracional, o sentido de impotência diante de um inimigo invisível, a desagregação social, a procura por um contaminador ou de um bode expiatório, a necessidade de recorrer à ajuda divina ou aos numerosos charlatães, que se aproveitam do desespero para vender remédios falsos, a ausência das relações humanas, os sofrimentos com as separações. Nesse sentido, os clássicos não somente nos mostram o que ocorre nos momentos de crise, mas sua leitura constitui por si só uma resposta à trágica situação que estamos vivendo. Para além das grandes obras que se referem especificamente às doenças e às epidemias (pensemos, somente para recordar alguns textos famosos, aos eventos narrados no Édipo rei de Sófocles, na Guerra do Peloponeso de Tucídides, no Da Natureza de Lucrécio, nos Noivos de Manzoni ou, para chegar ao século XX, na Peste de Camus), a arte da narrativa tem, no entanto, uma função terapêutica porque nos oferece uma oportunidade preciosa para conhecermos a nós mesmos e o mundo que nos cerca.
JU – Como vimos, em muitos países a pandemia se alastra mais facilmente porque encontra um ambiente propício para a sua difusão: desigualdade social, interesses ideológicos e políticos orientados pelos interesses financeiros, por um lado, e a desenfreada escalada da ignorância, o avanço das crenças negacionistas e da mentalidade obscurantista que não foi educada ou que simplesmente desconsidera os resultados da investigação científica. Qual o papel da ciência e das humanidades em meio a uma crise mundial como a que estamos vivendo neste momento?
Especialmente numa situação (quase surreal) de isolamento em casa, os livros, a música e as obras de arte nos ajudam a cultivar nossa humanidade, a reencontrar a solidariedade perdida, a aproveitar a solidão, a saber escutar a eloquência do silêncio. Exatamente agora que somos obrigados a viver distante dos afetos e dos amigos, estamos descobrindo a importância vital das relações humanas, a condição indispensável da presença do outro em nossa existência. Estamos tomando consciência do fato de que sozinhos nunca poderemos vencer o vírus: a pandemia pode ser vencida somente por uma humanidade unida e solidária. Já estamos vendo isso no âmbito da ciência: pesquisadores do mundo inteiro estão em contato para trocar dados e programas de investigação com o objetivo de criar vacinas e fármacos capazes de vencer o inimigo invisível. Trata-se de uma solidariedade que se manifesta também na ajuda concreta que médicos e profissionais especializados (penso nos cubanos, nos chineses, nos albaneses) estão oferecendo nas zonas vermelhas da Lombardia e do Vêneto. O neoliberalismo, essa doutrina que está levando cada vez mais ao egoísmo, nos fez crer que nós seres humanos somos ilhas. Somos divididos entre nós. Cada um deve pensar em seus próprios negócios. Os slogans dos partidos que venceram as eleições nos últimos anos nos Estados Unidos, na Itália, na Inglaterra, na França e em muitos outros países era Prima gli Italiani, America first, la France d’abord, o Brasil acima de tudo… Esses slogans dizem todos a mesma coisa: Que nós devemos pensar acima de tudo em nossos egoísmos, que no início são egoísmos nacionais, mas que depois se tornam egoísmos pessoais. Então, a pandemia nos mostra que não é verdade que os seres humanos são ilhas. Somos vinculados uns aos outros. A humanidade é um único continente. Não vencemos sozinhos o vírus. O vírus somente pode ser vencido numa batalha que de devemos combater todos unidos, sentindo-nos como irmãos. E este espírito de fraternidade é muito importante e não devemos esquecê-lo quando a pandemia terminar. Mas há ainda outra coisa importante que aprendemos. É que a saúde e a educação são os dois grandes pilares da dignidade humana que as políticas neoliberais dos últimos trinta anos quiseram enfraquecer. Por que estamos em dificuldade? Por que estamos vendo tantos mortos? Porque o sistema nacional de saúde, que era um dos sistemas que figurava entre os melhores do mundo, foi fortemente enfraquecido. Porque a lógica era economizar. Economizar na saúde, economizar na escola e na universidade. Por que considero a saúde e a educação os dois pilares da dignidade humana? Por que o direito à vida, os hospitais, o direito à educação, as escolas, as universidades, são fundamentais em nossas vidas. Então, gostaria de recordar uma belíssima metáfora do prêmio Nobel de economia, [Joseph] Stiglitz, quando afirma que nesses últimos trinta anos nos comportamos como o motorista que toma a estrada e para economizar não compra o pneu estepe. Mas a uma certa altura da viagem um pneu fura e aquilo que ele vai gastar então é infinitamente mais do que teria gasto se tivesse comprado o estepe. Assim, enfraquecer o sistema de saúde, enfraquecer o sistema de educação significa enfraquecer o futuro do país. E não é por acaso que nos países, como na Inglaterra e nos Estados Unidos, onde não existe a difusão de um sistema público de saúde haverá desastres enormes. E a contradições começam a aparecer. Portanto, tínhamos razão quando pensar a saúde e a educação devem ser públicas, porque, repito, são dois pilares da dignidade humana.
JU – Como você vê a sociedade global após a Covid-19?
O capitalismo de rapina conseguiu transformar nosso planeta num imenso mercado global. Mas o livre comércio e o encurtamento das distências geográficas (em menos de vinte e quatro horas um avião pode nos levar de um lado a outro do mundo) têm infelizmente criado enormes distâncias entre os vários países (a explosão dos nacionalismos selvagens e a construção de muros e barreiras!) e sobretudo entre os seres humanos (a solidariedade, como valor supremo, é zombada e pisoteada pela violência dos racismos e do antisemitismo, do ódio ao outro e ao estrangeiro!). Os políticos que hoje tecem o elogia do individualismo desenfreado contradizem etimologicamente a sua função: para os gregos antigos, no plano da vida civil, os idiotai eram aqueles que se ocupavam exclusivamente com o seu interesse “privado” (idios), em oposição aos interesses da cidade (Polis, palavra da qual deriva “político”). Permita-me considerar “idiotas” esses políticos defensores do mais equivocado egoísmo e dos nacionalismos ferozes, não somente porque pensam exclusivamente em si mesmos, mas também porque são ignorantes. Ignoram que os seres humanos não podem viver menosprezando a importância do outro…
JU – O que a humanidade pode aprender com este momento histórico? Poderiam os grandes pensadores clássicos nos ensinar algo considerando este cenário de crise?
Na última página de seu famoso romance, A peste, Camus lembra a seus leitores as coisas essenciais que podem ser aprendidas “em meio aos flagelos”: toma-se consciência das injustiças infligidas aos fracos (“o doutor Rieux decide então redigir uma narrativa […] para dar um testemunho em favor dos atingidos pela peste, para deixar ao menos uma recordação da injustiça e da violência que lhe haviam sido feitas”) e, ao mesmo tempo, descobre-se “que há nos homens mais coisas para admirar que para desprezar”. Mas a doença não desaparece com o fim da epidemia (“o bacilo da peste não morre nem desaparece”), porque “pode permanecer por décadas adormecido nos móveis e na lavanderia” esperando “pacientemente nas camas, nas cantinas, nas malas, nos lenços, na papelada”. Camus, em suma, nos convida a não esquecer aquilo que vivemos e compreendemos na dramática experiência da pandemia. E nessas semanas, explodiram contradições com as quais convivemos faz décadas: a saúde e a educação (os dois pilares da dignidade humana) extremamente afetadas por cortes brutais, o egoísmo triunfante dos nacionalismos nas campanhas eleitorais em vários continentes, o renascer do racismo e do antissemitismo, o constante aumento da desigualdade (1% da população mundial detém 80% da riqueza), os danos das políticas industriais fundadas sobre a realocação e a entrega do monopólio da produção exclusivamente a quem está em condições de oferecer o preço mais baixo (é possível que somente a China e a Índia devam produzir máscaras?)
JU – A sociedade do conhecimento, que muitos pensam estar vivendo hoje, não nos oferece somente informações factuais confiáveis. Os modernos meios de comunicação, em especial as chamadas redes sociais, produzem e propagam uma avassaladora onda de informações falsas. Em que medida a realidade virtual afeta as relações humanas?
Antoine de Saint-Exupéry, de modo profético, tinha entendido que “luxo verdadeiro somente existe, e é aquele das relações humanas”. Realmente, nunca como nesses meses de isolamento estamos tomando consciência que as relações humanas – as verdadeiras, não as virtuais – tornam-se sempre mais um bem de luxo. Com essa crise compreendemos coisas muito importantes sobre as relações humanas. Compreendemos, por exemplo, que embora neste momento as redes sociais são fundamentais para manter vivas as relações durante este isolamento, ao mesmo tempo, porém, não devemos perder de vista o fato de que até ontem esses mesmos dispositivos digitais criaram uma nova forma de relação, a relação virtual, que na verdade mata a relação verdadeira. Vou dar um exemplo. Hoje a internet permite que tenhamos vinte e quatro horas por dia as relações com os outros. Mas, atenção: são relações ilusórias. Por que são ilusórias? São ilusórias porque estamos fechados em um quarto e pensamos que estamos entrelaçando as mãos com os outros que estão a quilômetros de distância, mas não percebemos as relações humanas que estão próximas de nós. Agora podemos medir com eficácia a diferença entre emergência e normalidade. Se na emergência da pandemia, confinados em nossas casas, as vídeo-chamadas, facebook, watshapp e outros instrumentos análogos se tornam a única forma de comunicação para manter vivos as nossas relações, em tempos de normalidade, esses mesmos instrumentos podem se revelar perigosas fontes de ilusão. É banal pensar que a amizade num perfil social possa coincidir com um simples clic. Assim como fazer um chat em rede não significa cultivar afetos. Aconteceu-me mais de uma vez, na universidade, ver estudantes – uma experiência que certamente muitos de vocês já fizeram – sentados a uma mesa e cada um deles debruçados sobre seu smartphone enviando mensagens a uma pessoa distante e não trocar uma palavra entre si. Quando as relações humanas se tornam relações virtuais, então estamos cultivando uma solidão terrível que nos ilude de podermos cultivar relações humanas. Isso também vale para as aulas virtuais. Penso que neste momento não temos escolha. Somos obrigados a manter vivas as relações com os nossos estudantes por meio das lições virtuais. Mas atenção. Especialmente em muitas famílias pobres, diz-se que no Sul [da Itália] em torno de 40% das pessoas menos favorecidas, não há possibilidade de terem um computador ou uma boa conexão com a internet. Portanto, é difícil que possam trabalhar. Porém o que me preocupa é que muitos reitores de universidades, muitos professores na rede, estão dizendo a educação à distância é o futuro da universidade, que o futuro da escola deve ser a educação à distância. Bem, isso para mim isso é uma loucura total. É algo gravíssimo contra o qual devemos lutar. Uma coisa é compreender que neste momento os meios digitais para manter vivas as relações. Outra coisa é pensar que os meios digitais, fora da emergência, pode ser tornar normalidade. Isso significa matar o ensino. O ensino é a lição na sala de aula; a interação entre professores e estudantes. Uma relação autêntica necessita de vínculos vivos, verdadeiros, físicos. A dependência dos dispositivos favoreceu progressivamente uma proeminência do virtual, a ponto de ser sempre mais frequente encontrar jovens sentados, um ao lado do outro, cada um com a cabeça inclinada sobre o seu próprio celular, ignorando-se um ao outro sem trocar uma só palavra. Isso também vale para os que usam as redes sociais que, encerrados em seus quartos, pensam poder estabelecer relações por meio de um computador ou de um tablet: por trás de uma permanente conexão com os outros acaba-se por cultivar uma nova forma de solidão terrível. Seria inimaginável viver sem internet ou sem telefones. Mas a tecnologia, como um pharmakon, pode curar ou intoxicar: depende da dose! No New York Times, Nellie Bowles mostra que nos Estados Unidos o uso dos dispositivos está diminuindo nas famílias ricas e aumentando nas médias ou pobres. As elites do Vale do Silício mandam seus filhos para escolas onde em lugar da tecnologia se valorize as relações humanas. Assim, será que no futuro o luxo da interação humana vai ser destinado sempre mais para os filhos dos ricos e o digital-virtual para a formação dos menos favorecidos?
JU – Considerando a situação que estamos vivendo, em poucas palavras, que mensagem você deixaria às novas gerações?
Vamos nos tornar melhores somente se não esquecermos os limites de um neoliberalismo de rapina que, em nome da maximização dos lucros, tem anulado progressivamente a responsabilidade social das empresas, a solidariedade entre as nações e a fraternidade entre os seres humanos. O mito do mercado capaz de regular tudo se esfacelou diante do ataque de um vírus invisível que colocou de joelhos a economia mundial. A literatura e a cultura nos ajudam a valorizar como um tesouro aquilo que aprendemos nesses meses dramáticos. Num romance de Milan Kundera, Kundera diz: “A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”. Se nós realmente pensamos ser melhores e que podemos nos tornar melhores após a experiência, o poderemos ser somente se não esquecermos disso. Eis um convite para manter viva a memória, para não cancelar a nossa humanidade. Esquecer, portanto, significa deixar tudo como antes. Ou pior que antes.