O atual e o virtual na metafísica bergsoniana
O estudo da filosofia de Henri Bergson, em especial de sua metafísica, é o estudo da imagem do pensamento como criação. O conceito que nos permite pensar a criação é o conceito de diferença. 0 encontro imediato com este conceito é considerado o fundo de toda a filosofia, sendo a diferença dita de muitas maneiras: Virtual, Absoluto, Tempo, Duração.
Bergson eleva o conceito de diferença ao absoluto, livrando-o de toda maldição ou captura, vencendo a antipatia contra as multiplicidades quantitativas, com o devir, com o infinito e com o tempo.
A relação do pensamento com a diferença é anterior a qualquer coisa, é o próprio princípio em Filosofia e compreender isso é o problema metafísico primordial. Partir da diferença significa dizer que a filosofia não parte do sujeito, do lugar que ele e suas faculdades operativas se encontram, mas que o pensamento é absolutamente impessoal, pré-individual, o que significa dizer que o pensamento não começa em você, na sua consciência, mas antes, fora de você, no absolutamente Fora, como chamou Foucault.
A filosofia não precisa nem de um entendimento excessivo, nem de uma boa vontade, nem tampouco de uma compreensão universal. Pensar não é raciocinar ou argumentar; não é o exercício natural de uma faculdade, do senso comum ou do bom senso; não é objeto de recognição ou de entendimento; não é uma expressão intelectual, abstrata, profunda ou vazia. A filosofia pressupõe a instauração de um plano onde há um despojamento de qualquer idéia, sujeito ou objeto, ou seja, um plano anterior a qualquer formulação que possa se atualizar numa imagem, o que na linguagem bergsoniana será dito a instauração no virtual puro. Em outras palavras: o pensamento se instaura ali onde só há a potência infinita da diferença e nada mais. Assim, Bergson entrega o pensamento aos movimentos infinitos, fazendo-o ir ao encontro das virtualidades inesgotáveis e inconsumíveis que são o movimento da vida.
Tomar contato com a diferença pura não significa acumular verdades progressivamente demonstradas ou realizar um acordo universal de certezas inabaláveis, colocando-se em acordo com as exigências do entendimento, das necessidades da linguagem ou da ciência. E é nesse sentido que para pensar é preciso violentar o espírito. Como diz Safatle, “pensar é uma forma de violência autorizada contra si, contra aquilo que ‘si’ descreveu até agora” (2024, p. 19).
Nesse sentido, Bergson distingue duas formas de conhecer: um modo de conhecimento relativo, em que damos volta em torno das coisas, realizando uma análise que depende de pontos de vista sucessivos em relação ao objeto, que opera por tradução e simbolização e pressupõe a redução do objeto a elementos já conhecidos; e o modo de conhecimento absoluto, em que se simpatiza com o próprio objeto, o apreendendo de dentro, por si mesmo (1979b, p. 13-14). Para o primeiro tipo de conhecimento, bastam os instrumentos da inteligência, amplamente utilizados no campo científico; mas para o segundo, que visa a simpatia com o infinito, é necessário outra faculdade, qual seja, a intuição.
O esforço intuitivo é o esforço filosófico por excelência, pois só pela intuição que se pode apreender a duração, isto é, a continuidade da mudança que é própria da vida; só ela pode se colocar na mobilidade que é própria do real. Nosso espírito, diz Bergson, “pode se instalar na realidade móvel, adotar a mesma direção incessantemente mutável, enfim, apreendê-lo intuitivamente” (1979b, p. 32).
A ideia de intuição não remete a um patamar filosoficamente mais elaborado ou complexo, mas sim a um caminho pelo qual a filosofia busca a sua expressão infinita, designa um encontro direto com o virtual sem qualquer mediação: “a intuição é um conhecimento imediato da realidade na sua singularidade, sem intermediário algum” (Diamantino Martins, 1946, p. 34).
E, é nesse sentido, que Bergson diz que “a filosofia tem com a arte profundas afinidades”. É porque o artista “vê o mundo melhor que o comum dos mortais: o vê sem véus. Vê a realidade nua. Ao olhar um objeto ele não vê signos convencionais que nos permitem reconhecer um objeto e distinguí-lo de outros. Ele se esforçará para ver a realidade integralmente, completamente desnuda, sem véus para cobri-la. Ele não a vê com olhos de quem interpõe entre nós e objetos convenções para a comodidade da vida. Este é um artista mas é também um filósofo” (Bergson, 1916, p. 1201).
Não existe uma passagem gradativa do entendimento para a intuição. Se é da natureza do virtual a diferença, não é pelo entendimento que nos entregaremos ao infinito, mas ao contrário, será preciso que nos libertemos dos hábitos propriamente intelectuais pois as formas da representação humana (a consciência, a linguagem, a razão) só criam dificuldades e impedem um encontro direto com o pensamento puro. Ou seja, a intuição supõe o encontro com a diferença e para tal é necessário ultrapassar os usos das faculdades da inteligência, sempre limitados por princípios lógicos e impedimentos de compreensão.
Se Bergson diz que a filosofia é um esforço para ultrapassar a condição humana, é também porque as faculdades habituais do homem não dão conta do pensamento, não do conta do encontro direto com o virtual. O universo, a vida, é mais vasta do que a nossa intelecção alcança, mas pela intuição pode se ultrapassar os seus balizamentos, suas dificuldades e suas aparentem impossibilidades.
A vida deve ser entendida como duração, isto é, continuidade indivisa e portanto criação de qualidades novas: “o impulso da vida consiste numa exigência de criação” (BERGSON, 1979, p. 220); deve ser concebida pela continuidade da mudança, pela produção incessante de diferença. A vida é uma experimentação criativa, uma evolução criadora de imprevisíveis movimentos, sempre encaminhando o surgimento de novas formas. Ou seja, diferenciar-se, criar formas novas, é a expressão de uma potência imanente à vida que não pode ser determinada por finalidades ou mecanismos, não pode ser feita tão somente de multiplicidades quantitativas, pois isso nos levaria a simples diferenças de grau sem nenhuma criação.
A vida deve ser entendida como uma atividade permanente de invenção, portanto, é essencial que se entenda que suas variações não são meramente acidentais, não são puramente um jogo do acaso. Há fundamentalmente uma necessidade: a necessidade da vida de produzir diferenças, isto é, de expressar qualidades novas no mundo.
A diferença pura ou o puro virtual é a própria natureza da vida e o seu movimento inesgotável é o de eterna expressão dessa diferença em diferentes graus. Ou seja, existe a diferença pura e os graus dessa diferença. Em outras palavras, o virtual é povoado por virtualidades e o seu movimento é o de diferenciação, isto é, atualização das virtualidades.
A primeira questão que se faz necessário esclarecer é que o virtual não se opõe ao real. Ao contrário, é sempre real ainda que não possua atualidade. O virtual não é o irreal, mas o real que a gente não vê e arrisco-me a dizer, a única categoria que conta. O seu movimento não é para tornar-se real, mas para tornar-se atual. Diz Deleuze: “é próprio da virtualidade existir de tal modo que ela se atualize ao diferenciar-se e que seja forçada a atualizar-se, a criar linhas de diferenciação para atualizar-se ” (1999, p. 78).
O virtual não forma um conjunto cujas partes componentes são as virtualidades – não é somando as virtualidades que chegaremos ao virtual. Como Bergson nos ensina nos “Dados imediatos”, para enumerar, é preciso que as unidades que compõem o número sejam idênticas. Só podemos contar algo porque esquecemos as diferenças individuais entre as coisas e nos atemos à sua função comum. Supomos pois as unidades idênticas, supomos simultaneidades de termos que não diferem em natureza (1988, p. 58). Mas se o virtual é a diferença pura, ele jamais será reduzido a um número. É como diz Deleuze: “o todo designa uma virtualidade cujas partes atuais não se deixam totalizar” (1999, nota 131, p. 75).
O real faz dois movimentos, um de divisão em diferenças de natureza e outro de reunião no virtual. Ou seja, há uma inseparabilidade entre o atual e o virtual uma vez que é da essência do virtual a expressão de suas virtualidades, qual seja, as atualizações destas. É ao se atualizar que se realiza o movimento de diferenciação e é a partir dele que surgem no mundo novas formas, novas imagens, novas possibilidades de vida, novas qualidades, tantas outras diferenças de natureza.
É fundamental compreender que as diferenças não são de grau, de intensidade, de posição, de proporção, de maior ou menor proximidade com um ser imóvel, estável e eterno em uma escala que iria de uma perfeição divina ao nada – não existe uma hierarquia entre os seres que determina sua maior ou menor proximidade com relação a um princípio transcendente.
Dizer que a vida é o processo da diferença, significa dizer que a vida é a própria indeterminação, imprevisibilidade de fazer o novo. A vida porta em si uma força explosiva interna que promove o surgimento de qualidades novas no mundo, ou seja, possui uma tendência a mudar e o élan vital é a causa profunda das variações. Estamos sempre diante de evoluções divergentes e em cada linha diante de procedimentos originais. O élan vital é pois este movimento que faz as virtualidades se atualizarem segundo linhas de diferenciação, é a força que anima o infindável florescimento de infinitas qualidades, é a fonte que faz frutificar as multiplicidades. É então, nesse sentido, que consiste numa exigência de criação. Esta exigência sem trégua de diferenciação é o que Bergson chamou de evolução criadora: uma perpétua mudança de forma numa continuidade ininterrupta, de modo que observar todos os seus aspectos é perder-se no infinito (BERGSON, 1979, p. 27). A evolução é criadora porque a evolução é a atualização de virtualidades, ou seja, a afirmação do infinito criativo da vida que não conhece cansaço ou ato final.
Se a vida não tivesse em si essa necessidade infinita de expressão de novidade, de expressão por diferenciação, não haveria imagem alguma, dobra alguma no mundo, somente o puro virtual que nunca se deixa atualizar. É justamente essa potência diferenciante que a vida porta em si, esse “ímpeto” vital que faz com que haja uma troca permanente entre o atual e o virtual pois como já foi dito, é da essência da vida diferenciar-se. O élan vital faz com que a todo instante algo novo apareça no mundo, pois se assim não fosse, ao invés do uno-todo teríamos o uno de Parmênides do qual nada se pode dizer dado que nele não habita nenhuma diferença. Mas sendo o virtual a pura diferença, ele possui a necessidade essencial de expressar sua inesgotável potência criativa, potência essa que metamorfoseia tudo o que toca.
Por tudo isso, a primeira coisa é ver as diferenças de natureza, ou seja, os graus da diferença e não as diferenças de grau. Aqui não se trata de um jogo de palavras. A rigor, ou seja, de direito, as diferenças de grau não existem ainda que possam existir de fato. Eu explico: pensar em termos de direito é sempre pensar em termos da realidade absoluta, enquanto que pensar em termos de fato é pensar no mundo sensível, no existente. Ou seja, um é pensar em termos virtuais e outro em termos atuais.
Quando dissemos que a diferença é a lei da vida é porque não existe um gênero supremo que subsuma todas as diferenças, que garanta as identidades, as semelhanças, as proporcionalidades. A rigor existe somente o infinito virtual e suas expressões – as virtualidades; ou ainda, a diferença absoluta e seus graus. No mundo não existem duas coisas iguais que difiram somente em grau ou em intensidade. No mundo só existem produções de diferenças, singularidades.
O absoluto é pré-individual, isto é, é o virtual, a pura diferença. Quando uma virtualidade se atualiza, aparece no mundo um indivíduo. Pensar em termos de atualização do virtual é sempre pensar em singularidade, enquanto que pensar no atual, ou seja, deter-se puramente na imagem atualizada e assim fechar os olhos para a virtualidade, é pensar na constituição de uma individualidade. Se o atual implica um indivíduo já constituído, ao se pensar a relação do atual com o virtual implica a singularidade, onde o limite entre um e outro é inassimilável (DELEUZE, 1998).
Para que eu nunca me perca do absoluto, sempre que eu vir uma imagem, ao invés de crer nisso que a minha percepção oferece, ou seja, o presente desta imagem, crer na sua mais absoluta atualidade, devemos compreender a potência virtual que ela possui. Ainda que estejam atualizados, os modos são sempre virtualidades. Crer que uma imagem só vale pelo que está atualizado é uma ilusão. Uma atualização pode perseverar, pode permanecer, isto é, a vida pode constituir um hábito como por exemplo a existência de uma espécie, mas um indivíduo dessa espécie jamais perde a sua potência criativa pois ele é um grau do infinito. De repente, esse indivíduo muda de natureza e então é um horror para os cientistas que já não conseguem mais classificar esse indivíduo num gênero. A verdade é que a vida zomba das classificações científicas ou das categorias lógicas em que nosso entendimento gostaria de encerrá-la.
A semelhança entre os indivíduos é puramente uma semelhança de atualidade. Ela é aparente, ela é produto da pobre percepção que não consegue ver além do atual. Às vezes é difícil enxergar a singularidade e acreditamos que o processo de mudança da vida não é apenas invisível, mas inexistente. Devemos nos esforçar para ver além do atual, isto é, o real na sua mobilidade, perceber o movimento como a própria realidade mesma, ou, como já foi dito, ver a virtualidade coalescente com a atualidade. É porque “não existem coisas feitas, mas somente coisas que se fazem, não estados que se mantêm, mas somente estados que mudam. O repouso é sempre apenas aparente, ou melhor, relativo”. (BERGSON, 1979b, p. 31)
A repetição de uma forma, a insistência de uma qualidade, nunca é uma imitação, pois nunca se perde a riqueza infinita das formas que marcam o desabrochar da vida e que é o seu próprio movimento, que nunca é o mesmo, porque contém nele o desvio. Todo e qualquer hábito contém em si a possibilidade de mudar de natureza, ou seja, de desfazer-se enquanto hábito. O tempo que vai durar para que esse desabrochar aconteça, para que se desfaça esse hábito, é uma questão sem importância. Entender que ao perdurar uma forma imobiliza-se o élan, é iludir-se. A vida não suporta a estabilidade ou a imobilidade, ela sempre expressa a criação de novas formas. As linhas de diferenciação são verdadeiramente criadoras.
Logo, não são somente as diferenças de natureza que promovem as qualidades no mundo. As diferenças de natureza nos levam a uma forma mais radical da diferença: a diferença interna. Esta é a potência que torna cada coisa uma singularidade, ou seja, aquilo que a torna diferente de qualquer outra coisa, inclusive dela mesma. Ela torna possível uma mudança de natureza em alguma coisa que já difere em natureza de alguma outra coisa, ou seja, é ela que torna possível a diferenciação de natureza de alguma coisa consigo mesmo.
Para encontrar a diferença interna devemos encontrar para além do produto, a tendência a mudar. Ou, dito de outra maneira, encontrar a virtualidade além de sua atualização. É porque um rosto não vale só por sua atualidade, mas antes pelas virtualidades que expressa, seja em relação aos outros rostos, seja em relação a si mesmo. Outra forma de dizer é: “uma partícula atual tem seu duplo virtual, que só se afasta muito pouco dela” (DELEUZE, 1998, p. 177) . É como se houvesse uma troca permanente entre o objeto atual e suas possibilidades virtuais. Ou seja, diferentemente do que se pode apressadamente deduzir, atual e virtual não são realidades incomunicáveis, mas ao contrário, estão em troca perpétua, formando quase que um indiscernível. Dito de outro modo, objetos puramente atuais não existem, porque tudo que é atual está envolvido na névoa da virtualidade (idem. P. 173).
A mudança não é a passagem de um estado a outro, porque os estados não permanecem imutáveis. A mudança é incessante e o estado, por sua vez, já é mudança. Isso equivale a dizer que não há diferença essencial entre passar de um estado a outro e persistir no mesmo estado” (BERGSON, 1979, p. 14) É porque a matéria deve ser vista como um fluxo e não como uma coisa e ao invés de pensarmos estados – que supõem sempre realidades prontas e acabadas – pensemos tendências, isto é, vias de realizações. A vida possui infinitas tendências, muitas delas até antagônicas como a reprodução e a individualidade, que combatem entre si no jogo de forças que é próprio da vida. Esta se lança em várias direções e não obedece a uma lei universal que se aplique e regule todas as coisas. Cada coisa, “no próprio ato pelo qual se constitui, afirma a sua independência, segue sua fantasia, desvia-se mais ou menos da linha, às vezes até sobe o aclive e parece voltar as costas à direção original” (BERGSON, 1979a, p. 25).
A mobilidade então não é um acidente que vem corromper a imobilidade natural do universo. E não há nada por trás do movimento – não existe um substrato imóvel do movente. “Há mudança mas não há sob a mudança coisas que mudam: a mudança não tem necessidade de um suporte. Há movimento mas não há objeto inerte, invariável que se move: o movimento não implica um móvel” (BERGSON, 1911, p. 1381 e 1382). Tudo isto é outra maneira de dizer que a natureza é absolutamente criativa, ou seja, ela não é criativa a partir de um ponto ou um momento, mas sim o tempo todo e em todos os tempos criativa. Em “A percepção da mudança” Bergson nos diz que se nos convencermos da realidade da mudança dissipam-se todas as dificuldades filosóficas e toda a nossa vida ganha com isso, posto que seria transformada, transfigurada mesmo. Ou seja, não só a especulação ganha com essa visão do devir universal, mas tal visão penetraria na nossa própria vida e do mesmo modo como o artista, passaríamos a ver mais qualidades e mais matizes do que de costume; enriqueceríamos a nossa vida com cada vez mais qualidades e adotaríamos o devir que é a vida das coisas (BERGSON, 1979c, p. 66). Quando tomamos o devir por estados, a duração por instantes, ficamos a mercê de considerações abstratas, criamos problemas insolúveis e tornamo-nos incapazes de perceber a verdadeira evolução. Em uma palavra, “fechamos os olhos para o que há de mais vivo no real” (BERGSON, 1911, p. 1379).
Mas, uma vez que seguimos a orientação bergsoniana de adotar o devir que é a vida das coisas teremos uma nova idéia do que é um indivíduo. Entenderemos que cada indivíduo é um desvio único de sua espécie, que cada um de nós é uma singularidade singularíssima que nunca se produziu e que jamais se repetirá. Somos sempre um desvio porque primeiro guardamos uma diferença de natureza com outros indivíduos e mais radicalmente porque, em segundo lugar, contemos em nós mesmos a possibilidade de nos desviarmos de nós mesmos, de nos diferenciar.
O que não significa de modo algum dizer que a realidade seja evanescente. A mudança não é nem uma supressão nem uma substituição, mas um enriquecimento, um despertar de virtualidades. Ao compreender a vida como mobilidade nos livramos dos pontos fixos, das referências. Diz Bergson: “Tranqüilizem-se! A mudança, se a olhamos diretamente, sem vê-la interposta, rapidamente nos aparecerá como o que pode ter o mundo de mais substancial e mais durável. Sua solidez é infinitamente superior a uma fixidez que não é senão um resgate efêmero entre mobilidades” (1911, p. 1385)
Por isso não falamos em diferença específica, pois não se trata meramente de uma diferença entre uma coisa e outra, de diferenças entre indivíduos. A diferença não vai somente até à diferença de natureza e por isso Bergson diz que “a mudança é muito mais radical do que se acreditava a princípio” (1979, p. 13). Há uma forma mais radical da diferença, que se insere em cada ente atualizado e que faz com que cada atualização seja apenas aparente, momentânea, dado que o processo criativo não cessa de atuar, produzindo uma mudança de cada coisa em relação a si mesmo.
Dito de outro modo: a diferença não está nos caracteres atualizados de uma coisa, mas na possibilidade do desenvolvimento desse ou de qualquer outro caracter, ou seja, na sua virtualidade. Portanto, o que está em questão não é o ser, mas sua tendência a se desenvolver. Uma imagem do mundo, uma atualização de uma forma, é tão somente a expressão de uma tendência. E a expressão é sempre um desvio em relação a uma outra tendência. Ou seja, o que conta não é nem a semelhança de um caracter com outro nem o caracter que se atualizou, mas sim a tendência a se atualizar de um caracter. Significa dizer que mais potente do que a diferença visível, é a diferença que a gente não consegue ver, mas que entretanto não para de atuar.
A diferença interna não é espacial, não é específica, não é superior, não é exterior. É uma potência que garante a singularidade absoluta de uma coisa. Por isso é impossível se agrupar todas as coisas num gênero, encontrar uma certa semelhança que apazigue as diferenças. Toda e qualquer classificação ou aprisionamento das coisas num gênero implica portanto não só numa redução e empobrecimento da realidade, mas antes num total desconhecimento do que seja a verdadeira natureza de uma coisa. Como diz Deleuze, “Negligenciar as diferenças em proveito dos gêneros é mentir para a filosofia” (2006, p. 49).
Nesse sentido, as diferenças de grau não importam, uma vez que ao nos determos nelas, excluímos as tendências inerentes às coisas. Pensar pela intuição é ir em busca da diferença interna, é “apreender a coisa mesma a partir daquilo que tal coisa é, em sua diferença a respeito de tudo aquilo que não é ela, ou seja, em sua diferença interna” (DELEUZE, 2006, p. 48). Em outras palavras, a intuição não é uma faculdade voltada para o que está feito, atualizado, mas o movimento pelo qual me instalo na pura virtualidade, em sua natureza única.
Pensar a diferença interna como tal, como pura diferença interna e não pensar essências ou formas, eis a tarefa da filosofia bergsoniana. Bergson não se volta para as atualidades, porque estas “são apenas aspectos tomados sobre a realidade cambiante” (1979a, p. 274).Se a vida é multiplicidade, esta jamais pode se reduzir a um sistema de gêneros. Ao invés de querer esgotá-la num princípio universal ou em qualquer outra generalidade vaga, é preciso uma filosofia que apreenda a coisa mesma a partir dela própria, que perceba o incessante movimento que lhe é imanente.
Resumindo todas essas nuances da diferença: o virtual é a natureza da diferença ou a diferença absoluta e se expressa por virtualidades ou graus da diferença. Toda e qualquer atualização das virtualidades, ou seja, toda e qualquer imagem do mundo não só difere em natureza de qualquer outra imagem como também possui em si a capacidade de diferir de si mesma, logo, possui uma diferença interna. A diferença de natureza e a diferença interna são pois graus distintos da diferença absoluta, porque qualquer coisa que não seja a diferença pura é um grau seu. E a intuição nos leva a todas essas nuances da diferença. Primeiro ela nos ensina a determinar as diferenças de natureza entre as coisas, e para isso devemos seguir as articulações do real, ou seja, as distribuições da realidade segundo suas articulações, ou ainda, a formação das diferenciações; e segundo, nos mostra a diferença interna da própria coisa. Intuir é pois, intuir a diferença.
É importante dizer que a criação não se dirige a um fim. As divergências, as linhas de diferenciação não objetivam a uma forma final. A vida cria sem qualquer finalismo ou determinismo. Não há projeto, plano, termo ou alvo para a evolução criadora. A única coisa que podemos esperar é a própria criação, mas criação de qualquer imagem, contrarie essa imagem ou não nossa expectativa, despotencialize ou não qualquer forma de vida. Em suma, a vida não é a realização mecânica de um plano traçado de antemão, seu domínio é o da criação contínua, do imprevisível e do radicalmente variável. A vida é “um inédito que se inscreve” (Diamantino Martins, 1946, p. 179).
Toda e qualquer solução vital é em si um êxito. É sempre uma forma de alegria. Bergson usa a palavra alegria e não prazer porque esta última implica em conservação de alguma forma vital. Mas a vida não trabalha pela conservação de uma duração – ela se distribui em infinitas durações. “A verdadeira alegria nasce do sentimento de se ter criado alguma coisa, de se ter dado nascimento a uma coisa nova, dotada de movimento e de vida” (1916, p. 1204); “A alegria anuncia sempre que a vida triunfou, que ganhou terreno, que alcançou uma vitória: toda alegria possui um acento triunfal … sempre que há alegria há criação: quanto mais rica é a criação, mais profunda é a alegria … Em todos os domínios o triunfo da vida é a criação” (1979d, p. 80).
A beleza de Bergson está em que os conceitos que ele criou não nos servem como verdades, mas sim como instrumentos para intuir o virtual, a diferença pura. Por isso a resposta ao que é a filosofia reside não na “complicação da letra” – esta é sempre secundária, artificial. Ela reside na “simplicidade do espírito”, no encontro com o virtual, que produz incessantemente novas qualidades, multiplica diferenças, promove o inédito e as metamorfoses, enfim, realiza a evolução criadora.
REFERÊNCIAS
BERGSON, H. Conférence de Madrid sur l’ame humaine (1916). In: Mélanges. PUF, Paris, 1972.
______. Durée et simultaneité. In Mélanges. PUF, Paris, 1972.
______. Ensaio sobre os dados imediatos da inteligência. Lisboa: edições 70, 1988.
______. A evolução criadora. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
______. Introdução à metafísica. In: Bergson, Henri. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
______. A intuição filosófica. In: Bergson, Henri. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
______. A consciência e a vida. In: Bergson, Henri. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
______. La perception du changement (1911) In: Oeuvres. 5. ed. Paris: PUF, 1991.
DELEUZE, Gilles. O atual e o virtual. In: Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998.
______. A Ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, p. 2006.
______. O bergsonismo. São Paulo: 34, 1999.
DIAMANTINO MARTINS, S.J. Bergson – A intuição como método na metafísica. Livraria Tavares Martins, Porto, 1946.
FLAVIA BRUNO