Notas sobre a arquitetura
1. Em meados do século passado, a arquitetura foi pensada, de modo recorrente, como a linguagem que realizaria a síntese das artes. Sobretudo entre críticos e artistas afinados, naquele momento, com as vanguardas locais da abstração geométrica e do concretismo – reativadoras, em contextos específicos, das proposições construtivistas –, a arquitetura aparecia como o desenvolvimento mais lógico e consequente de pesquisas estéticas levadas adiante com a pintura e a escultura, mas que afinal apostavam no progresso científico e na superação da autonomia das linguagens individuais para a criação integral de uma nova sociedade, realmente moderna.
Podemos encontrar essa formulação em escritos de Jorge Romero Brest e Mário Pedrosa; assim como em projetos e obras de Max Bill; e, logo, como preocupação com o espaço compartilhado e desejo de uma nova objetividade, em ambientações de Lygia Clark e de Hélio Oiticica, por exemplo. Num texto de 1954, Romero Brest afirmava que se os artistas concretos pintam quadros e fazem esculturas, “estão destinados a inventar objetos que irão vincular-se com o organismo arquitetônico, já que a sensibilidade que possuem aproxima-os mais da arquitetura que da pintura ou da escultura”. Para o crítico argentino, o caminho plástico deveria levar à arquitetura, a uma espécie de “urbanismo integral” também buscado por artistas como Tomás Maldonado ou Waldemar Cordeiro. Mário Pedrosa, por sua vez, em reflexões um pouco posteriores, afirmaria que essa vontade integradora é própria do homem que “aspira à unidade dos contrários e à comunhão espiritual perdida”. E que quando chegasse, finalmente, a “hora plástica”, seria a estética que disciplinaria a ciência (arriscada, de outro modo, à vanidade do conhecimento pelo conhecimento), em razão da síntese e da recriação da vida, como de resto já propusera Nietzsche.
2. Obviamente, essa aposta era reforçada pelo prestígio alcançado pela arquitetura modernista, que no cenário internacional ganhou contornos facilmente reconhecíveis, convertendo-se mesmo num estilo. No Brasil, como sabemos, a pregnância desse estilo internacional encontrou linhas autorais, materializando-se em edifícios icônicos, assinados por alguns arquitetos célebres: se um evento servir de confirmação desse êxito, poderíamos mencionar que, já no início de 1943, o Museum of Modern Art (MoMA) apresentava em Nova Iorque a exposição Brazil Builds, em que a arquitetura “moderna e antiga” do país – o “colosso do sul” – era consagrada, com destaques como o prédio do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, e o conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte.
Para dizer de outro modo: a consagração do estilo internacional made in Brazil está atrelada a uma genealogia que pode ser retraçada até as conferências feitas por Le Corbusier em São Paulo e no Rio de Janeiro, em 1929 e 1936, e a sua real ascendência sobre estudantes da Escola de Belas Artes e o grupo de jovens arquitetos que orbitaria o Ministério de Gustavo Capanema (para Lúcio Costa, aliás, Le Corbusier era o próprio “livro sagrado da arquitetura”). Ou que pode, ainda – por outros caminhos –, abranger os projetos de Flávio de Carvalho, o pioneirismo de Gregori Warchavchik e mesmo as críticas ao “espírito acadêmico modernizado” (isto é, ao modernismo transformado em fórmula hegemônica), publicadas na revista Habitat, de Lina Bo Bardi. Mas, de todo modo, trata-se de uma consagração que responde ao aparelhamento e à oficialização da arquitetura moderna que ocorreram sob um Estado intervencionista, com frequência entramado com o capital da alta burguesia: uma aliança estética e política que, de Vargas a Kubitschek, culminaria no símbolo máximo da modernização vanguardista da nação, ou seja, na construção de Brasília.
3. Passadas as décadas, é possível considerar as diversas limitações desse projeto vanguardista. E talvez a maior delas recaia sobre a própria premissa que afirmava que uma sociedade nova surgiria da criação de novas formas simbólicas, depuradas pela sensibilidade artística objetiva e racionalizadas pelo avanço da tecnologia: como se o futuro pudesse, nesse sentido, ser projetado ex nihilo, quer dizer, à revelia das lutas e contradições que constituem o processo histórico.
Não por acaso, no já longo presente do capitalismo globalizado, quando as apostas no avanço orquestrado do modernismo e da modernização aparecem ao longe como imagens de arquivo, reconhecidos arquitetos/escritórios tornaram-se, em grande medida, marcas registradas – digamos assim –, recursos quase inescapáveis, por exemplo, em projetos de urbanização que, em meio ao espetáculo, visam promover a “revitalização” de áreas sociais degradadas. Por certo, os museus de arte, esses notáveis repositórios de experimentações estéticas e atratores de investimentos financeiros, muitas vezes ocupam aí um protagonismo algo desconcertante, como Fredric Jameson, Hal Foster e outros críticos já mostraram.
Pois nesse contexto de circulação global, mas com equipamentos situados em realidades sempre específicas, as formas/fórmulas modernistas podem ser citadas com desprendimento, alheias às proposições críticas e criativas que anteriormente traduziam. Ou em outras palavras: respondendo à repetição das demandas singulares, soluções arquitetônicas podem surgir desprovidas de todo purismo, mas também neutralizadas em sua tensão potencialmente transformadora da vida coletiva e mescladas livremente com os elementos mais heterogêneos: materiais vernaculares, alusões à cultura popular ou ao mundo das massas digitais, recursos high-tech não necessariamente funcionais, assim como quaisquer outros jogos informacionais que apontam, enfim, para a corrente equiparação universal das abstrações da cultura e da economia.
4. São vários os efeitos dessa situação sem dúvida complexa. Um deles, quem sabe um dos mais graves, é conhecido pelo termo gentrificação, fenômeno que assola as metrópoles ao redor do mundo e não pode ser bem compreendido, a meu ver, se não articulado à conversão do próprio mundo em imagem (em cifra). E talvez a pergunta seja esta: o que acontece quando a arquitetura passa a integrar a sociedade a partir da concepção do mundo como paisagem, isto é, a partir da conversão dos hábitos e do habitat em espetáculo cênico? Não à toa, ao mesmo tempo em que se tornam inviáveis para a permanência de moradores antigos, de trabalhadores e migrantes de baixa renda (pelo aumento do custo de vida), áreas urbanas “recuperadas” ou “revitalizadas” – não raro assemelhadas a parques temáticos – concentram enorme circulação de turistas, ávidos por serviços, eventos culturais e uma experiência da diferença que, no entanto, padroniza-se pelo mundo, já que regulada por uma lógica que é a mesma.
Em tais condições, podem ser comprometidas as buscas de experiências autênticas ligadas à arquitetura e ao urbanismo, como por exemplo as propostas por Walter Benjamin em meados da década de 1930, ou pelos integrantes da vanguarda situacionista, por volta de 1960 (estes – vale frisar – contrapondo-se ao racionalismo modernista de Le Corbusier e seus seguidores). Isso porque, por um lado, tendem a ser pobres as vivências sobredeterminadas pela contemplação passageira e anestesiada do entorno, já que tecidas à distância dos usos e dos modos de vida realmente atrelados ao espaço da cidade e a seus prédios, no corpo a corpo cotidiano. E, por outro lado, nada mais afastado da participação críticana cidade edo desvio criativodas rotinas pré-estabelecidas do que o roteiro determinado de antemão (pelo “circuito cultural”, pelo “circuito gastronômico” etc.), no qual intervenções arquitetônicas pontuam um trajeto que pode ser fruído passivamente.
5. Naquela que parece ter sido a sua última entrevista, gravada em 1984, Vilanova Artigas respondia a um jovem sobre o futuro da arquitetura brasileira: “Daqui a quinze anos São Paulo terá o dobro do número de habitantes que tem hoje. E precisará do dobro do número de empregos. E vai precisar do dobro de tudo quanto é coisa que você poderia imaginar”. Em sua fala, Artigas apontava os problemas, mas confiava à juventude a tarefa de encontrar soluções para eles. Além disso, ao destacar o enorme impacto do adensamento, apontava uma questão crucial no impasse presente e que diz respeito, em uma palavra, à propriedade da terra.
Com uma perspectiva mais ampla, é o que também salienta Jameson. “A política pós-moderna é essencialmente uma questão de apropriação de terras, tanto em escala local como global”, afirma o autor. “Quer se trate da Palestina ou da gentrificação e do zoneamento nas pequenas cidades dos Estados Unidos, o que está em jogo é essa coisa peculiar e imaginária chamada propriedade privada da terra. A terra não é apenas um objeto de conflito entre as classes, entre ricos e pobres; ela define a sua própria existência e a separação entre elas”. Dos cercamentos no final do feudalismo e da invasão dos territórios dos povos originários aos atuais campos de refugiados e assentamentos, às favelas, desapropriações e ocupações (etc.), em suma, desde o início do capitalismo até hoje, diz Jameson, toda luta tem a ver com a terra. É nesse campo de inúmeras batalhas que trabalha a arquitetura.