Modesta justificativa de uma visão parmenidiana do universo
Neste texto o prof. G. Romero comenta a respeito de sua visão do espaço-tempo que, aproximando-se do pensamento do filósofo Parmênides, afirma que esta entidade é eterna, imutável e única. Tudo o que já foi ou pode vir a ser é apenas um elemento contido em sua totalidade quadridimensional. A mudança é ilusória, e a dinâmica nada mais é do que o resultado da comparação de diferentes fatias tridimensionais nas quais dividimos o espaço-tempo. Aqui, ele também responde a críticas e traça um paralelo entre o pensamento parmenidiano e o de Heráclito, comumente colocados em antagonismo.
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1 – Teoria e realidade
O objetivo da teoria física é representar a realidade (p. ex., Bunge, 1967). Uma premissa básica da ciência é que há coisas no mundo e que as coisas têm propriedades (isto é uma hipótese ontológica). As propriedades podem ser representadas por funções matemáticas e outros objetos abstratos inventados pelos seres humanos conforme regras coerentes entre si (p. ex., Bunge, 2006). O valor das funções e a estrutura dos objetos matemáticos da teoria são restritos por equações e condições matemáticas que representam leis físicas, ou seja, restrições ao espaço possível dos estados das coisas. Quando mudam as propriedades das coisas, dizemos que ocorre um evento. Um evento é especificado por um par ordenado de estados de uma coisa (consultar Bunge, 1977). Cada estado é caracterizado por uma coleção de valores de funções do estado. Está claro que a caracterização de uma coisa não é única. O modelo específico de uma coisa depende daqueles aspectos da realidade que a teoria aborda. A sucessão de eventos (ou processos) que ocorrem com uma coisa forma sua história.
Toda teoria física se refere a algum tipo de entidade concreta. A existência dessas entidades é assumida pela teoria. Se a teoria for bem sucedida, ganhamos confiança na existência das entidades. Se a teoria fracassar, podemos considerar as entidades postuladas apenas como hipóteses exploratórias que podem ser abandonadas. Por exemplo, o modelo padrão da física de partículas assume a existência de tipos diferentes de quantons: léptons, quarks e bósons mediadores das interações. A existência de bósons W± e ZO foi uma hipótese de trabalho do modelo de interação eletrofraca até a descoberta das partículas em experimentos no final da década de 1970. Agora, são considerados tão reais quanto os fótons. Os táquions, pelo contrário, são agora desacreditados enquanto constituintes do mundo, por causa tanto de razões teóricas quanto da falta de evidências observacionais. Outras partículas, como o bóson de Higgs, continuam hipotéticas, mas plausíveis até o momento.
Os tipos de objetos que as teorias físicas assumem como elementos do mundo podem mudar à medida que evolui nosso conhecimento do mundo. Desde as plantas, os animais e os planetas, até as partículas elementares e as estrelas de quarks, nossa visão do universo pode mudar, alterando o que achamos que existe, como são as coisas e como elas se relacionam.
2 – O modelo de variedade do espaço-tempo
A relatividade geral é a teoria do espaço, tempo e gravitação formulada por Albert Einstein em 1915 (Einstein, 1916). Trata-se de uma teoria extraordinariamente bem-sucedida que passou em muitos testes, nos limites tanto de campo fraco, quanto de campo forte. É uma teoria altamente complexa, onde o campo gravitacional é descrito através da curvatura do espaço-tempo. As equações de campo são dez equações diferenciais não lineares nos coeficientes do tensor métrico do espaço-tempo. A teoria atinge seu poder preditivo máximo quando expressa independentemente de coordenadas na linguagem da geometria diferencial abstrata. Nessa formulação, conhecida como modelo de variedade do espaço-tempo (p. ex., Hawking e Ellis, 1973; Joshi, 1993), o surgimento de singularidades de coordenadas como na solução de Schwarzschild pode ser evitado. A teoria pode ser aplicada nos mais variados contextos, desde objetos compactos com gravidade forte até o universo inteiro.
O conceito básico dessa formulação da relatividade geral é o do espaço-tempo, introduzido por Hermann Minkowski, em 1908 (Minkowski, 1909). O espaço-tempo pode ser definido como a soma ontológica[1] de todos os eventos de todas as coisas. Não se trata de um mero conjunto, que é um objeto matemático (ou seja, uma ficção), mas sim uma propriedade relacional emergente de todas as coisas. Tudo que aconteceu, tudo que acontece, tudo que vai acontecer é apenas um elemento do espaço-tempo.
Como acontece com toda propriedade física, podemos representar o espaço-tempo com alguma estrutura matemática para descrevê-lo. A estrutura matemática e a propriedade representada não devem ser confundidas: a correspondência nunca é perfeita, permanece sempre provisória. O modelo de variedade do espaço-tempo adota a seguinte estrutura matemática:
O espaço-tempo pode ser representado por uma variedade real C∞ diferenciável, quadridimensional.
Uma variedade 4D real é um conjunto que pode ser completamente coberto por subconjuntos cujos elementos estejam em correspondência de um para um com subconjuntos de ℝ4. Cada evento é representado por um ponto na variedade (o inverso não é necessariamente verdade). Cada elemento da variedade representa um evento. Adotamos 4 dimensões pois parece o suficiente dar 4 números reais para localizar um evento (ou seja, fornecer uma caracterização mínima). Sempre podemos fornecer um conjunto de 4 números reais para cada evento e isso pode ser feito independentemente da geometria intrínseca da variedade. Se há mais do que uma caracterização de um evento, sempre podemos encontrar uma lei de transformação entre os diferentes sistemas coordenados. Isto é uma propriedade básica das variedades.
Se queremos calcular distâncias entre dois eventos, precisamos de mais estrutura na variedade: precisamos de uma estrutura geométrica. Podemos consegui-la introduzindo um campo tensorial métrico gab para determinar distâncias. A separação infinitesimal entre dois elementos da variedade, que representam dois eventos do espaço-tempo, é dada por:
ds2 = gabdxa dxb. (1)
O espaço-tempo, então, é plenamente representado por um par ordenado (M, g), onde M é a variedade e g é o campo tensorial métrico. Na relatividade geral, a métrica do espaço-tempo é determinada pela energia-impulso dos sistemas físicos através das equações de campo de Einstein. A própria métrica representa o potencial gravitacional e suas derivadas determinam as equações de movimento através da conexão afim da variedade.
Conforme acontece com qualquer outra teoria física, o modelo de variedade do espaço-tempo assume algumas entidades que são representadas matematicamente. A premissa básica aqui é a existência do que está representado pelos pontos da variedade: a totalidade dos eventos, as mudanças de todas as coisas (e, portanto, de tais coisas, como não há mudanças sem coisas que mudem).
Como a variedade é quadridimensional, um processo, ou mesmo toda a história de uma coisa tridimensional, pode ser representado por um objeto quadridimensional (p. ex., Heller, 1990; Balashov, 2010). Embora a experiência humana com a mudança possa ser usada para inspirar o conceito de variedade, uma vez adotado, podemos descrever o espaço-tempo a partir de um ponto de vista quadridimensional, onde não existe mudança global. Uma alteração do espaço-tempo exigiria uma dimensão extra que nele não está incluída. Isso, por sua vez, implicaria que o espaço-tempo é uma coisa com uma propriedade relacional emergente que deveria ser medida pela dimensão extra ou ‘meta-tempo’. Não existe razão física para introduzir tal ontologia. E se alguém estiver disposto a pagar o preço para fazê-lo, segue-se imediatamente uma regressão infinita, pois o ‘super espaço-tempo’ de 5D pode mudar, exigindo mais dimensões extras. A inflação ontológica tornaria o preço impagável.
Séries de mudanças e processos irreversíveis de coisas físicas são descritos por assimetrias, características intrínsecas, do espaço-tempo. A dinâmica é o resultado da comparação de diferentes fatias do espaço-tempo. O ‘presente’ não é uma coisa que se move. É somente um conceito, uma classe de eventos. Tudo isso conforma a chamada ontologia do universo em bloco (p. ex., Smart, 1963; Balashov, 2010). Essa visão também foi expressa, de forma bastante poética, por Hermann Weyl (1949):
O mundo objetivo simplesmente é, ele não acontece. Somente para o olhar da minha consciência, escalando a linha da vida de meu corpo, é que uma seção desse mundo vem à vida como imagem efêmera no espaço que muda continuamente com o passar do tempo.
3 – O universo parmenidiano
Parmênides nasceu e viveu em Eléia, uma cidade na costa ocidental do sul da Itália, desde fins do século VI até meados do século V a.C. Escreveu um poema intitulado Sobre o que é. Quase toda a primeira parte do poema e fragmentos da segunda sobreviveram graças a Simplicius, que copiou parte do texto no século VI d.C. em seu comentário sobre a Física de Aristóteles.
A primeira parte do poema se chama O caminho da verdade. Essa obra contém o primeiro exemplo conhecido de um sistema dedutivo aplicado à realidade física. Parmênides não se contentou só em dar sua visão de mundo. Sustentou sua interpretação de mundo pela dedução lógica a partir do que considerava premissas evidentes por si só. Declarava que não há mudança, não há um tornar-se, não há um vir a ser. A realidade mostra-se imutável, eterna, imóvel, perfeita e única. Só existe uma coisa: o mundo. Seu monismo é absoluto. O que achamos ser um mundo em mutação é apenas o resultado de ilusão e engano.
As premissas do argumento de Parmênides podem ser escritas da seguinte forma:
– O que é, é.
– O que não é, não é.
Assim, nada pode vir a ser a partir do que não é, porque ‘o que não é’ não é coisa alguma. Creatio ex nihilo não faz sentido. A mudança é impossível, já que, para Parmênides, a mudança é a ocupação do espaço vazio, mas não pode haver ‘espaço vazio’. A realidade deve então ser um bloco imutável.
Muitos séculos depois, com o advento das teorias de campo, ficou claro que a mudança pode ocorrer mesmo num universo cheio: a mudança não requer o espaço vazio. Uma perturbação num campo que preenche todo o universo é uma mudança.
O conceito de mudança é imprescindível no modelo de variedade do espaço-tempo. Mas, uma vez que a geometria da variedade é determinada por um campo tensorial representando a distribuição de energia e impulso, sua estrutura é fixa. O universo é representado pelo tripleto (M, g, T), onde T é o campo tensorial que representa as propriedades (energia e impulso) das coisas. Pontos da variedade representam eventos, mas não há evento ou mudança afetando o espaço-tempo como um todo. O espaço-tempo quadridimensional, matematicamente representado pela variedade, é imutável, eterno, imóvel, único, assim como o universo de Parmênides. O que chamamos de processos irreversíveis são descritos por assimetrias na variedade. Os objetos que preenchem o universo são quadridimensionais. Têm ‘partes temporais’, assim como partes espaciais. Desta forma, a criança que um dia fui é apenas uma parte de um ser maior, eu, que é quadridimensional. O que chamamos de ‘nascimento’ e ‘morte’ são apenas fronteiras temporais desse ser. A mudança aparece apenas quando consideramos fatias tridimensionais de objetos quadridimensionais. Nas palavras de Max Tegmark:
O tempo é a quarta dimensão. A passagem do tempo é uma ilusão. Temos essa ilusão de um mundo em mutação, tridimensional, embora nada mude na união quadridimensional do espaço e do tempo da teoria da relatividade de Einstein. Se a vida fosse um filme, a realidade física seria o DVD inteiro: quadros passados e futuros existem tanto quanto o presente[2].
Não parece injusto chamar essa interpretação do espaço-tempo de visão parmenidiana do mundo. Parmênides, podemos dizer, está de volta com uma vingança, em 4 dimensões.
4 – Objeções
Recentemente, Mario Bunge (2011) criticou forçosamente a interpretação do modelo de variedade do espaço-tempo delineado acima. O cerne de sua argumentação é a que se segue:
Se pontos numa grade de espaço-tempo são identificados com eventos, em vez de se dizer que representem eventos possíveis, o tornar-se desaparece. Mas isso é um absurdo: você ainda está vivo, seus bisnetos ainda não nasceram, a próxima falência econômica ainda está por vir, o Sol ainda não implodiu e assim por diante. Novidades ocorrem objetivamente o tempo todo, mesmo que a origem do tempo seja convencional. Como a conclusão neo-parmenidiana é totalmente falsa, sua premissa deve ser falsa também. Qual era a premissa? Que pontos do espaço-tempo = eventos, em vez de pontos do espaço-tempo representam (apontam) eventos. Ou seja, o problema em questão é uma falácia semântica: a de identificar o mapa com o território, o retrato com o retratado, o diagrama da fiação com a rede, o modelo com seu referente.
Contudo, sustento que não haja uma falácia semântica aqui. Como fica claro a partir das definições acima, o espaço-tempo não tem ‘pontos’. O espaço-tempo foi definido como uma agregação de eventos. É uma propriedade relacional emergente de todas as coisas mutantes. A variedade, que é certamente um conceito matemático, representa o espaço-tempo, e os elementos da variedade representam eventos. Não concordo que o espaço-tempo seja uma coisa, conforme sustentam os substantivistas (p. ex., Nerlich, 1994). Sustento que o espaço-tempo seja uma propriedade relacional emergente de todas as coisas materiais. Trata-se da mesmíssima posição sustentada por Bunge (1977) e desenvolvida por Perez-Bergliaffa et al. (1998), dentre outros. O ‘retrato’ é o modelo de variedade, o ‘retratado’, o espaço-tempo, e o espaço-tempo emerge de coisas mutantes. Portanto, a premissa ontológica do modelo de variedade do espaço-tempo é a de que as coisas mudam, algo que Bunge provavelmente não vai negar. Mas o próprio espaço-tempo não pode mudar, a menos que aceitemos um tempo multidimensional, não estando as dimensões extras incluídas no espaço-tempo (ver argumentos contra o tempo multidimensional em Bunge, 1958).
A emergência do espaço-tempo a partir de coisas básicas mutantes também é essencial para os fundamentos da gravidade quântica independente de fundo (p. ex., Rovelli, 2004). Se as coisas se relacionam descontinuamente, o próprio espaço-tempo deveria exibir características quânticas.
Outro argumento usado por Bunge é:
…a noção de que o tempo é apenas mais uma dimensão geométrica, em conjunto com as outras três (ou sete), é falsa também, conforme mostrado pelo papel privilegiado que detém nas equações de movimento. Por exemplo, a equação de Hamilton dp / dt = ∂H / ∂x não tem contrapartida espacial. Da mesma forma, as condições de fronteira, tão importantes na mecânica do contínuo e na mecânica quântica, não têm contrapartidas temporais.
Essas afirmativas se baseiam numa interpretação incorreta do modelo de variedade. O tempo não está em pé de igualdade com as outras dimensões, já que a métrica do espaço-tempo é representada por um campo tensorial de traço -2, e não 4. A variedade é localmente lorentziana, não euclidiana, donde representa corretamente o papel distintivo do tempo. Uma mera ‘espacialização’ do tempo é inconsistente com nosso atual conhecimento da natureza. Além disso, podem ser encontradas inconsistências no presentismo defendido por Bunge: num universo com uma velocidade constante e finita para a propagação das interações, a simultaneidade não é absoluta como num espaço newtoniano (Einstein, 1905) e o passado e o futuro de eventos não conectados causalmente são relativos a um sistema de referência. Isso não significa que alguns eventos existam com respeito a um sistema e não a outro. As restrições ao que pode se saber a partir de um sistema de referência física são epistemológicas, não ontológicas. A existência é invariante sob transformações gerais de coordenadas. Os eventos que chamamos ‘futuros’ são tão reais quanto aqueles que chamamos ‘passados’ (p. ex., Putnam, 1967).
Quanto às condições de fronteira, suas contrapartidas temporais são as chamadas condições iniciais. As condições de fronteira reais no espaço-tempo devem ser fixadas em 4 dimensões para se fazer previsões. Não devemos confundir o poder preditivo das nossas teorias com o determinismo ontológico. Este é uma doutrina metafísica: a doutrina de que todos os eventos existem, independentes de nossa capacidade de conhecê-los ou prevê-los. O modelo de variedade do espaço-tempo é ontologicamente determinístico, embora seja compatível com a indeterminação epistêmica.
Pode ser que o modelo de variedade do espaço-tempo esteja, em última instância, incorreto. Todas as representações da realidade são meras aproximações imperfeitas, mas os problemas do modelo não são semânticos. Estão mais provavelmente relacionados com a aplicabilidade do conceito da variedade para representar eventos na escala de Planck.
5 – O rio de Heráclito
É comum opor as ideias de Parmênides de realidade imutável à visão heraclitiana de que ‘tudo flui’. Essa opinião, entretanto, não se baseia nos fragmentos existentes, mas na interpretação de Platão, apresentada em seu Crátilo (DK 22A6[iii]):
Todas as coisas se movem e nada fica, e, assemelhando coisas existentes ao fluir de um rio, ele diz que você não pode entrar duas vezes no mesmo rio.
A origem disso parece estar no fragmento de Heráclito DK 22B12:
Para os que entram nos mesmos rios, fluem águas sempre diferentes.
No Teeteto, Platão vai além e atribui a Heráclito a idéia de que todas as coisas estão sempre mudando em todos os aspectos. Conforme indicado por McKirahan (1994), Platão provavelmente está considerando não o pensamento de Heráclito, mas algumas elaborações extremistas feitas muito mais tarde por heraclitianos ou talvez até por Crátilo. Os fragmentos de Heráclito parecem enfatizar a estabilidade através da mudança e não um COSMO em mutação (κόσμος). E mais, um COSMOS baseado apenas na mudança sem estabilidade ou HARMONIA (αρμονία) é uma contradição em termos, uma contradictio in adjecto: seria o CAOS (Χάος). A idéia mais importante nos fragmentos é a de que existe um LOGOS (λόγος) no COSMO, um tipo de princípio geral que se aplica a tudo. Se permanecemos fiéis aos fragmentos existentes, vemos que Heráclito declara que a estabilidade é atingida através da mudança contínua. Se um rio não flui, se não ‘contém’ mudança, não é um rio, é um lago. É apenas através da mudança que o rio atinge sua estabilidade. O mesmo pode se estender a todas as coisas. Fragmento DK 22B84a:
Mudando, está em repouso.
Heráclito, além disso, compartilha algumas preocupações epistemológicas e ontológicas com Parmênides, conforme mostrado em DK 22B50 e DK 22B123, respectivamente:
Escutando não a mim mas ao LOGOS, é sábio concordar que todas as coisas são uma só.
A natureza adora se esconder.
Ofereço a sugestão que o antagonismo ontológico entre Parmênides e Heráclito normalmente mencionado por tantos autores é o resultado de uma tradição doxográfica que se origina em Platão. Não há muito no poema de Parmênides, nem nos fragmentos existentes de Heráclito, que apóie uma oposição frontal. O COSMO (ou espaço-tempo numa visão moderna) pode ser imutável e, não obstante, formado por coisas mutantes, assim como o rio de Heráclito.
6 – Conclusão: o tempo não passa
Não apoio a espacialização do tempo. Sustento que o espaço-tempo, uma propriedade emergente de todas as coisas, não pode mudar. Não há nada a respeito do qual o espaço-tempo possa mudar. Processos irreversíveis são representados por assimetrias na foliação da variedade que fornece um modelo para o espaço-tempo. O espaço-tempo pode ser modelado porque faz parte da realidade física, como qualquer outra propriedade relacional. O tempo não flui. Não pode fluir porque não é uma coisa. O tempo não passa. Nós, sim.
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Apêndice
Presentismo
O presentismo, doutrina defendida por Bunge, pode ser definido rudimentarmente como a tese de que apenas o presente é real. Mais precisamente (ver Crisp, 2010):
Presentismo. É sempre o caso em que, para cada x, x é presente.
O ‘presente’ parece se referir a um dado instante do tempo. O tempo é normalmente representado por um contínuo 1D real. É claro, a escolha da origem das coordenadas, quando adotamos uma métrica para o tempo, é convencional. Os eventos sinalizados por diferentes instantes não o são. Que evento é presente? Quando é o presente? A resposta parece ser agora. ‘Agora’, como sugeri em outro lugar, parece ser uma classe de eventos que se relacionam com um dado estado cerebral (Romero, 2011; ver também Grünbaum, 1973). Se esta hipótese estiver correta, o ‘presente’ é uma construção do cérebro baseado em sua interação com uma classe de coisas mutantes que o afetam. O ‘presente’ não é uma coisa, que se desloca do passado para o futuro. Todo processo cerebral consciente tem seu próprio presente.
Algumas pessoas pensam no presente como um tipo de fronteira entre o que existiu (e de alguma forma desapareceu) e o que não existe: o futuro. As coisas surgem do nada, existem durante um período e depois desaparecem para sempre. Isso viola o que talvez seja o princípio mais básico da ciência, um princípio introduzido por Parmênides: nada surge do nada. O presentismo implica que tudo surge do nada, o tempo todo, e desaparece de volta ao nada após um intervalo de tempo indivisível. Até Heráclito, ouso dizer, ficaria aterrorizado.
O presentismo é também incompatível com a física vigente. Consideremos dois eventos: eu digito esta linha (evento e1) e uma supernova explode na galáxia M83 (e2). Esses eventos podem ser considerados simultâneos para alguns ‘observadores’ (ou seja, quando medidos em algum sistema de referência), ou relacionados por ‘e1 é anterior a e2’ noutro referencial, ou ‘e1 é posterior a e2’ em mais noutro referencial. O fato é que ambos os eventos existem, sejam presente ou não para algumas pessoas. Da mesma forma, Parmênides existe em alguma região do espaço-tempo, que cobre Eléia e parte da Grécia Antiga entre, digamos, 515 e 450 a.C. E, durante algum tempo, ele compartilhou seu presente com Zeno. Eu existo além da região do espaço-tempo ocupada por Parmênides. Não devemos nunca nos encontrar. Mas somos ambos partes do mesmo espaço-tempo. Sinto-me afortunado por isso.
Agradecimentos
Sou muito grato ao professor Mario Bunge pelas esclarecedoras discussões e críticas devastadoras. Agradeço a Santiago Perez Bergliaffa, a V. Bosch-Ramon e a Daniela Pérez pelos comentários valiosos sobre o original. Eu deveria ter sido apoiado pela bolsa de pesquisa PIP 0078 do CONICET.
Referências
1 – Y. Balashov (2010). Persistence and Spacetime. Oxford: Oxford University Press.
2 – M. Bunge (1958). On multi-dimensional time. British J. Phil. Sci. 9: 39.
3 – M. Bunge (1967). Foundations of Physics. Berlin: Springer-Verlag.
4 – M. Bunge (1977). Ontology I: The Furniture of the World. Dordrecht: Kluwer.
5 – M. Bunge (2006). Chasing Reality. Toronto: University of Toronto Press.
6 – M. Bunge (2011). Parmenides redux?, preprint.
7 – T.M. Crisp (2003). Presentism. In: M.J. Loux and D.W. Zimmerman (Eds.), The Oxford Handbook of Metaphysics. Oxford: Oxford University Press (pp. 211-245).
8 – E. Eaves (2008). What is Time?, in Forbes, February 29th.
9 – A. Einstein (1905). Zur Electrodynamic bewegter Körper, Annalen der Physik 322, 891321.
10 – A. Einstein (1916). Die Grundlage der allgemeinen Relativitätstheorie, Annalen der Physik 49, 769-822.
11 – A. Grünbaum (1973). Philosophical Problems of Space and Time. Dordrecht: Reidel, 2nd ed..
12 – S.W. Hawking, and G.F.R. Ellis (1973). The Large Scale Structure of Space-Time. Cambridge: Cambridge University Press.
13 – M. Heller (1990). The Ontology of Physical Objects. Cambridge: Cambridge University Press.
14 – P.S. Joshi (1993). Global Aspects in Gravitation and Cosmology. Oxford Clarendon Press.
15 – R.D. McKirahan (1994). Philosophy before Socrates. Indianapolis Hackett Publishing Co..
16 – H. Minkowski (1909). Lecture “Raum und Zeit, 80th Versammlung Deutscher Naturforscher (Köln, 1908)”. Physikalische Zeitschrift 10, 75-88.
17 – G. Nerlich (1994). The Shape of Space, Cambridge: Cambridge University Press.
18 – S.E. Perez Bergliaffa, G. E. Romero, and H. Vucetich (1998). Toward an axiomatic pregeometry of space-time, Int. J. Theor. Phys. 37, 2281-2298.
19 – H. Putnam (1967). Time and Physical Geometry, The Journal of Philosophy 64, 240-247.
20 – G.E. Romero, Brain and Cosmos, in press (2011).
21 – C. Rovelli (2004). Quantum Gravity, Cambridge: Cambridge University Press.
22 – J.J.C. Smart (1963). Philosophy and Scientific Realism. New York: Routledge and Kegan Paul.
23 – H. Weyl (1949). Philosophy of Mathematics and Natural Science. Princeton: Princeton University Press.
[1] Escrevo soma ontológica e não ‘agregação mereológica’ porque não considero o espaço-tempo como uma coisa, nem como um indivíduo, mas, sim, como uma propriedade emergente de todas as coisas mutantes. Ver Perez Bergliaffa et al. (1998).
[2] A partir de uma entrevista de Eaves (2008).
[3] A notação se refere à doxografia em H. Diels e W. Kranz, Die Fragmente de repente Vorsokratiker, 6ª ed., Berlim, 1951.