Mitos Cosmogônicos III – O nascimento do mundo segundo Israel*
ARTIGO /
Dando continuidade à publicação de mitos tradicionais de criação do Universo, exibimos neste número trechos da apresentação de Jean Bottéro** também proferida no encontro ocorrido em 1959, na França, onde se juntaram antropólogos, arqueólogos e historiadores.
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IDEIAS
A COSMOGONIA TEOLÓGICA
O que surpreende primeiro na leitura destes textos é o caráter teológico da cosmogonia, tal como aparece na Bíblia: teológica, isto é, deduzida, de alguma forma, de certa concepção do divino, ou pelo menos de acordo lógico com ela.
Características dessa cosmogonia teológica
As teses essenciais desta teologia, as ideias que fazem sua originalidade a mais incontestável da cosmogonia bíblica, se confrontada com suas contemporâneas, são, todas, que o universo tem uma causa pessoal, distinta e independente dele; que esta causa é única; e que é ela que continua presidindo com tanta eficácia o funcionamento do mundo.
Personalidade do Criador
Inicialmente, todos os textos concordam neste ponto: eles o nomeiam pelo “nome próprio” de Yahweh (Jeovista; Salmo CIV; Jó) ou pelo de Deus-Elohim (Código sacerdotal); todos atribuem à origem do cosmos um criador, isto é, uma personalidade autônoma. Nada nos diz que a criação tenha sido uma obra obrigatória e inevitável: tudo nos mostra, ao contrário, que o autor do mundo concebeu e executou o plano livremente. Na narrativa do Jeovista, nós o vemos deliberar fazer os animais para dar companhia ao homem: “Eu vou lhe fazer um companheiro que lhe convenha!” (Gênese, II, 18). Da mesma forma, no Código sacerdotal, ele decide, no fim, fazer os homens: “Façamos a humanidade à Nossa imagem, como uma réplica Nossa…” (Gênese, I, 26). E este criador tem, manifestamente, como tal, apenas os vínculos com o universo que religam a causa ao efeito.
Unicidade do Criador
Os mesmos textos estão também de acordo em afirmar a unicidade dessa causa e desse criador. Todas as “obras” pelas quais o mundo se fez e se povoou são religadas somente a ele: o céu, a terra, o mar, a luz, os astros, as plantas, os animais e o homem – todos lhe devem a origem. Se uma passagem de Jó (XXXVIII, 7) supõe espectadores à Grande Obra, as “estrelas do alvorecer” do mundo e a corte celeste dos “Filhos de Elohim”, estes seres, igualmente devedores de sua existência a Deus, como já sabemos, estavam lá apenas para “aplaudir” as maravilhas que viam sendo feitas e “cantar” a glória do Criador.
No contexto atual, o uso da primeira pessoa do plural, “Façamos a humanidade à Nossa imagem, como uma réplica Nossa…”, do Código sacerdotal (Gênese, I, 26) não saberia ter outro sentido que um “plural de majestade”, aquele que empregam ainda, em nossas línguas, os grandes deste mundo, os chefes dos povos. Aliás, o próprio nome de Elohim, que designa Deus em hebreu clássico, é um plural, mesmo se constantemente aplicado a um só e único Deus. Não saberíamos então invocar esta passagem para imaginar, na teologia bíblica das origens do universo, uma pluralidade de criadores.
Continuidade entre a criação e a governança do cosmos
A continuidade entre a atividade de Deus durante a criação e no andamento subsequente do mundo aparece mais vivamente do que em qualquer outro lugar no livro de Jó. Logo após a narrativa da formação da terra e do mar, Deus evoca sua obra cotidiana na natureza: é ele quem a cada manhã faz levantar a aurora; dispõe onde é preciso e na ordem requerida a luz do dia e as trevas noturnas; planeja a chuva, a neve, o granizo, a geada e o gelo, as tempestades e os ventos; resolve a mecânica celeste das constelaçõe; e cuida de todos os animais selvagens, que não saberiam esperar do homem nem seu alimento diário nem a assistência à sua reprodução. Mesmo entre estas descrições do controle cotidiano de Deus no funcionamento da natureza aparecem numerosos traços que se relacionam de modo mais direto, até exclusivamente, com a própria constituição dessa natureza, e então com a cosmogonia. Se, por exemplo, Deus “sabe de que lado habitam” luz e obscuridade, é porque ele é o autor de sua “separação” primordial (comp. Gênese, I, 4), e então destinou a cada uma sua residência. Os “regos” que guiam a chuva até acima da região onde ela deve cair se abastecem nesse imenso reservatório das “águas superiores” que foi um dos primeiros efeitos do ordenamento do caos original (comp. Gênese, I, 7). E é então que Deus terá constituído as enormes “reservas de neve e de pedras de granizo”, das quais usufrui, desde então, quando é necessário. Na muito extensa passagem dedicada aos animais, a tônica é mais na originalidade de cada um, sua conduta e seus costumes surpreendentes ou inesperados: a “inteligência” meteorológica do íbis e do galo, a estupidez da avestruz, a bravia independência do burro, o caráter indomável do búfalo, a fogosidade e a coragem maravilhosa do cavalo, os instintos solitários e cruéis das aves de rapina, tantos traços inexplicáveis se não os relacionamos a um “plano” definitivo – infinitamente sábio e complexo, realizado por Deus, no momento mesmo da criação, nos protótipos desses animais. A descrição dos dois “monstros”, Behemoth e Leviatã, me parece também focada em sua constituição excepcional, ou seja, em sua criação: tudo o que é dito sobre eles tem como objetivo excitar a surpresa e a admiração perante a sabedoria e a potência de seu autor.
Mais curto e concebido de modo diferente dos discursos de Jó, o Salmo CIV deixa aparecer a mesma continuidade entre a fabricação do universo e sua governança cotidiana: à constituição da terra e do mar se ligam a irrigação do campo pelos rios e pelas chuvas e seu resultado indefinidamente renovado, a exuberância das plantas alimentadoras, e assim por diante.
Se a coisa não aparece tão nitidamente nas narrativas em prosa do Jeovista e do Código Sacerdotal, é porque os citamos aqui separados de seu contexto ulterior, isto é, a história humana cuja introdução cosmogônica faz somente preparar, e onde rebenta, a todo instante, a intervenção e a ação do mesmo Deus. Assim, no Jeovista, a interdição de comer da Árvore-do-discernimento-do-bem-e-do-mal (Gênese, II, I6 s) dá início à narrativa da primeira desobediência do homem, fonte de todas as outras, que forçarão Deus a intervir com tanta frequência para retomar, corrigir ou salvaguardar sua obra.
A criação no conjunto da atividade divina
Em suma, na teologia bíblica, a cosmogonia constitui apenas o primeiro ato, o estabelecimento dos atores da história, e é apenas um e o mesmo Organizador que é responsável por toda a peça. Criando cada ser ou protótipo, ele o infundiu no papel que deve exercer para sempre, ele mesmo e cada um de seus descendentes: e todos só têm que exercitar sua parte, sob a influência e a vigilância eternas do mesmo Diretor. Este último fez para todas as coisas aquilo que tinha feito para o mar, na narrativa de Jó: imediatamente tirado do caos e subsistindo nele mesmo, “impôs seus limites” intransponíveis e sua irreformável “lei” (Jó, XXXVIII, 8-II; comp. Salmo CIV, 9). É ainda o que encontramos de modo equivalente em Jeremias, no fim do século VII a.C.:
Não criei o dia e a noite?
Não estabeleci as leis do céu e da terra?
E mais tarde, provavelmente depois do Exílio, no Salmo CXLVIII:
Que todos estes seres louvem o nome de Yahweh!
Ele lançou uma ordem, e eles foram criados;
6 Ele os estabeleceu para sempre, para sempre;
Ele lhes deu uma lei que eles não transgridem!
Mais tarde ainda, no começo do século II, no Eclesiástico, ou Sabedoria do filho de Sirach:
XVI
26 Quando no começo Deus criou suas obras,
Assim que Ele as fizera, Ele distribuiu os elementos.
27 Ele ordenou suas obras para sempre:
De suas origens até suas gerações posteriores,
28 Elas não sentem nem fome nem cansaço
E não cessam nunca de cumprir seu trabalho,
29 Nenhuma nunca atingiu a outra,
Nunca elas desobedecem as Suas ordens…
Na Bíblia, a criação também não seria um ato à parte, desligado de todo o resto, realizado uma vez por todas e que não pode se refazer. Ela é apenas um “começo” (Gênese, I, I e ver Eclesiásticos, XVI, 26; comp. também Provérbios, VIII, 23), o que significa que o funcionamento do mundo, dirigido pelo mesmo Deus, comporta outros momentos homogêneos. É assim, por exemplo, que o Dilúvio (Gênese, VI, 5-IX, 7) é apresentado de forma explícita, principalmente pelo Código sacerdotal, como uma nova criação do mundo: vontade divina de recomeçar tudo; retorno ao caos aquoso pela mistura das águas “superiores” e “inferiores”; terra de novo inteiramente recoberta pela águas; nova separação das águas “superiores” e “inferiores” e do elemento úmido e da terra; novo nascimento de todos os animais, espécie após espécie; novo mandamento de fecundidade e multiplicação e nova distribuição mútua das criaturas para servir de alimentos umas às outras. E algumas intervenções “miraculosas” de Deus no curso das coisas, bruscas modificações por ele operadas na ordem da natureza, lembram, de muito perto, sua atividade criadora.
Assim, quando em Isaías Deus faz as promessas seguintes aos que regressaram do Grande Exílio, para o momento em que atravessarão novamente o deserto antes de voltar para a Palestina:
18 Eu escavarei rios sobre as dunas
E fontes bem no meio dos desfiladeiros
Eu transformarei o deserto em lagos
A terra ressecada em fontes.
19 Eu colocarei cedros no deserto,
Acácias, murta, oliveiras;
Eu colocarei zimbreiros na estepe
Ou quando ameaça arruinar Babilônia durante uma catástrofe sem precedentes, uma convulsão cósmica (Isaías, XIII):
10 Os céus e suas constelações
Não acenderão mais sua luz:
O sol será entenebrado logo à aurora
Cosmogonia e monoteísmo
Tal doutrina teológica das origens e do funcionamento do universo deve as características, a coerência e, no fim das contas, a origem ao fato de que traduz no campo cosmogônico o axioma fundamental da religião de Israel, o monoteísmo absoluto.
Antes de Mim, nenhum Deus tinha sido formado,
Depois de Mim, não haverá mais nenhum!
Eu, Eu (somente) Eu sou Yahweh…
Eu (somente) Eu sou Deus.
Eu o sou, Eu, desde a eternidade!
Esta declaração (Isaías, XLIII, 10-13) nos vem de um dos maiores escritores israelitas, cuja tradição anexou a obra àquela do profeta Isaías (última metade do século VIII) e que, por esta razão, nomeia-se entre os especialistas o “Segundo-Isaías”, por falta de se conhecer mais sobre sua pessoa. Ele escrevia em torno da metade do século VI, para proclamar o fim do Exílio. Mas a ideia do monoteísmo, que encontra no texto tão vigorosa expressão, é de fato anterior a ele. Virtualmente já contida, sem dúvida, no pensamento de Moisés, fundador da religião israelita, ela tomou forma principalmente no começo do primeiro milênio. O Jeovista a reflete exatamente, como vimos, quando ele reconhece como só e único criador o Deus só e único, Yahweh.
Após Moisés, e principalmente pelos feitos dos grandes profetas, o monoteísmo irá se afirmar mais, depurar-se, aprimorar-se e culminar, enfim, na sua conclusão inevitável, resultando na transcendência, isto é, a distinção radical, a total diversidade de Deus e do universo. É através disso que a teologia cosmogônica da Bíblia, já completa, nos seus elementos essenciais, desde o tempo do Jeovista, aperfeiçoou-se e aprofundou-se.
A pessoa do Criador
Comparemos, por exemplo, a apresentação que é feita da pessoa do Deus-criador pela narrativa anterior ao Exílio e pelo Código sacerdotal. No Jeovista, o Criador lidava com um canto de jardim, com um rio – mesmo enorme! –, com um homem, que ele toma um pouco como seu fazendeiro, com um animal de cada espécie, com uma mulher, modestos inícios de um cosmos na organização da qual se sente bem. Aliás, o homem terá também sua parte, e não pequena (ver o início da narrativa Jeovista, em Gênese, II, 4b-5). No Código sacerdotal, este mesmo Criador é posto frente a frente somente com realidades universais: a água, a terra, o céu, a luz, as trevas, os astros, as espécies botânicas e zoológicas, a raça humana. E quando acaba sua obra, nota-se bem que, na essência, o crescimento do universo será, principalmente, somente uma questão de número e multiplicação dos indivíduos (Gênese, I, 22 e 28).
O Salmo CIV, com suas imagens luminosas, destaca ainda mais o brilho e a excelência do Arquiteto do universo. Mas em toda a Bíblia é talvez o duplo discurso de Deus em Jó, principalmente se o recolocamos em seu contexto, que fornece a mais alta e mais forte expressão do sentimento de transcendência absoluta do Deus único e criador. Se Deus toma a fala, é perante as perguntas de Jó, que, inocente, quer saber por que sofre por Deus; diante dos teoremas limitados de seus três amigos, segundo os quais Deus será obrigado a castigar o único pecador e a recompensar o único justo; é para pulverizar suas pretensões humanas. Em vez de discutir, ele se contenta em lembrar alguns aspectos de sua obra única, inimitável, formidável e incompreensível, na constituição e no funcionamento do universo. Sem que valha a pena explicá-la, esta obra o coloca tão acima de todo o cosmos, e mesmo da sua obra-prima, o espírito do homem, que resta a este último apenas uma atitude a adotar diante dele: a confissão de ignorância radical, da definitiva incapacidade de entender a sublimidade divina, a adoração e o abandono à Sua vontade.
O modo de atividade criadora
O mesmo sentimento de transcendência aperfeiçoou também outro dado da cosmogonia na Bíblia: o próprio modo pelo qual era concebida a ação criadora de Deus. Na narrativa do Jeovista, ainda parece material e antropomórfica, mesmo que o autor pareça estar consciente do caráter figurativo dos termos utilizados por ele. Deus age pessoalmente, assim dizendo: tal um poceiro, “faz subir um fluxo da terra”; “planta”, como um jardineiro, um “jardim de árvores”; faz o oleiro “modelando de barro” o corpo do homem e, mais tarde, o de seus companheiros; e “insufla às narinas” destas estátuas “hálito-vital”, que fará delas “seres vivos”. Estas imagens tiradas da atividade humana aparecem ainda em outros lugares, mesmo entre obras bíblicas recentes, onde, aliás, o caráter poético é frequentemente evidente: quando Deus “calcula as dimensões” da terra e “estica a linha” como fazem os arquitetos e os pedreiros (Salmo CIV, 5; Job, XXXVIII, 4-6), provavelmente não devem-se tomar estas metáforas ao pé da letra mais do que quando “barrica o mar”, ou “veste-o de nuvens” e “envolve-o de bruma” (Jó, ibid., 8 s), ou quando “desenrola os céus” como o Beduíno desenrola “sua tenda” (Salmo CIV, 2). O zelo evidente que o Código sacerdotal toma para evitar tais expressões é significativo. Em sua narrativa, Deus praticamente não age: ele fala apenas, e tudo se faz na hora, tudo aparece, tudo “é criado” conforme a ordem assim proferida.
Qualquer que tenha sido a origem dessa ideia da “fala divina eficaz”, não há dúvida de que se é aplicada à cosmogonia na narrativa do Código sacerdotal é para acentuar a transcendência do Autor do universo, espiritualizando mais sua atividade.
Israel irá mais além neste desejo de altear o Criador e a Criação; para além da fala, ainda material, num sentido, irá até o conceito que ela concretiza, no “plano” mental (já Jó, XXXVIII, 2), nas ideias divinas, maravilhosamente vastas, admiráveis, infalíveis, ao conjunto das quais dar-se-á o nome de Sabedoria divina. Em um dos trechos cosmogônicos mais recentes da Bíblia, extraído de uma parte do livro dos Provérbios, provavelmente posterior ao século VI, essa Sabedoria divina, preexistente a toda a obra de Deus, se apresenta a nós como a força final que presidiu a atividade inteira do Criador:
VIII
22 Yahweh designou-me encabeçando Suas obras,
Anteriormente a (tudo) que Ele fez, desde sempre!
23 Eu fui fundada desde a eternidade,
Desde o Princípio, antes das origens da terra:
24 Quando o Abismo não existia, eu tinha sido gerada,
Quando não tinha nem as nascentes nem as fontes do mar;
25 Antes que fossem implantadas as montanhas;
Antes das colinas, eu tinha sido gerada!
26 Ele não tinha ainda feito a terra, nem o campo,
Nem mesmo os elementos da poeira do globo.
27 Quando Ele consolidou os céus, eu estava lá,
Quando Ele traçou um círculo na superfície do Abismo;
28 Quando Ele desdobrou as nuvens,
Quando Ele fez transbordar as fontes do Abismo;
29 Quando Ele exigiu ao mar seus limites
Cujas águas nunca atravessarão o traçado;
30 Quando Ele estabeleceu os fundamentos da terra;
Eu estava a Seu lado, inseparavelmente…
AS COSMOGONIAS MITOLÓGICAS SUBJACENTES
Construindo desde pelo menos o século VIII, antes da nossa era, sua “teologia” da criação, os pensadores israelitas com frequência fizeram apenas impregnar sua mentalidade e suas ideologias religiosas de toda uma escolha de concepções cosmogônicas que lhes eram fornecidas por tradições anteriores ou exteriores ao seu tempo e ao seu mundo.
No Oriente Médio antigo, vê-se pela presente obra, é bem antes de Israel e de sua religião de Yahweh que se fizeram perguntas sobre as origens do mundo e do homem e que se tentou respondê-las, cada povo ou cada tempo seguindo sua própria visão religiosa das coisas. Assim nasceram vários “sistemas” cosmogônicos, cada qual se impondo aos olhos de seus adeptos, como o “sistema” bíblico, acima exposto, aos olhos dos fiéis de Yahweh.
Todas essas cosmogonias são de ordem mitológica, isto é, elaboradas em função de um pensamento que, não tendo ainda inferido as ideias puras nem aprendido a construir os raciocínios formais, procedia através de imagens e encadeamentos de imaginações, buscando muito menos a genética controlada e objetiva de um dado de fato do que a sequência de eventos, reconstruídos com mais ou menos fantasia, que bastava para lhe atribuir a razão.
Alguns desses “sistemas”, transmitidos através de civilizações como as da Mesopotâmia, que tiveram no Oriente Médio antigo uma importância e uma difusão considerável, ou simplesmente elaborados por vizinhos de Israel, foram conhecidos por este último. E se analisarmos os textos cosmogônicos da Bíblia afastando somente a teologia que lhe é própria, reencontramos os rastros dessas cosmogonias mitológicas, como vestígios de crenças anteriores ou suporte de ideias particulares à religião de Yahweh.
A narrativa do Jeovista
Cosmogonia propriamente dita
Na narrativa do Jeovista, a sequência das “imaginações” que descrevem as origens do universo resume-se, na essência, a isto: antes, uma terra em pousio, sem nenhuma vegetação; depois, a mesma terra fornece primeiro ervas, e selvagens (o “mato”), e exploráveis (o “gramado”), e árvores frutíferas (Gênese, II, 5 e 8). A passagem a outro estado é devido à intervenção de dois elementos novos adicionados à terra virgem: a água, que a torna fértil, e o homem, que a desbrava e a cultiva.
A “imagem” fundiária que parece ter comandado a elaboração dessa cosmogonia é a do deserto cultivado pelo desabrochamento de poços (o “fluxo que sobe da terra”, de 6) e pela intervenção de camponeses. Este parece ter sido o pensamento de pessoas acostumadas a ver o deserto ceder ao trabalho irrigador e desbravador dos homens. A Palestina, principalmente na parte meridional e oriental, onde a estepe e a terra cultivada se avizinhavam, com esta última invadindo aos poucos a primeira, pode muito bem ter sido a parte original de tal mito cosmogónico, onde – preterição significativa! – o mar não tem nenhum papel (não é nomeado, nem os peixes, na lista dos animais modelados por Yahweh no Gênese, II, 19 s). Talvez os autores do mito tenham sido antigos nômades ou seminômades, se o “jardim plantado de árvores, (lá) em direção ao Oriente”, isto é, provavelmente em pleno deserto, evoca realmente um oásis, com seu “fluxo que sobe do solo” para irrigá-lo.
Mas a localização do primeiro jardim “(lá) em direção ao Oriente” poderia ter outro sentido e designar não o deserto sírio-árabe, mas a própria Mesopotâmia. O que confirmaria esta interpretação é o trecho do Gênese (II, 10-14) que descreve a situação do Éden. Nem tudo é límpido, mas se os dois primeiros “rios”, Pisom e Giom, são desconhecidos, os dois outros, Tigre e Eufrates, não deixam espaço para nenhuma dúvida. A “geografia” esboçada dessa forma poderia então se esclarecer, supondo-se o Éden na origem dos dois rios que delimitam a Mesopotâmia, na região montanhosa ao norte deste país; e, por outro lado, o Pisom e o Giom, como dois braços de um imenso curso d’água que envolvia, em ambos os lados, o mundo, cujo centro seria a dita Mesopotâmia. Esta “geografia” rudimentar e, naverdade, mitológica seria tipicamente mesopotâmica. Não somente porque as “Montanhas do Norte” sempre tiveram um papel na lenda sumério-acadiana das origens e também na residência terrestre dos deuses, mas, principalmente, porque esse curso d’água cósmico, cercando a terra como uma ilha, evoca o célebre “Oceano terrestre”, o Apsu, cujos textos cosmogônicos e cosmológicos da Mesopotâmia destacam com tanta ênfase.
Percebeu-se desde muito tempo que o trecho em questão, Gênese, II, 10-14, poderia ser suprimido sem que a sequência da narrativa se modificasse, e ele tem, por consequência, todas as características de um enclave. Se esta hipótese for a correta, teríamos rastros na cosmogonia do Jeovista de duas tradições diferentes: uma provavelmente de origem palestina, sobre as origens do mundo; a outra, mesopotâmica, no posicionamento geográfico dessas origens e na concepção cosmológica da terra como uma ilha cercada do Oceano universal, traço que poderia relembrar por sua vez a própria cosmogonia mesopotâmica, a qual, porém, não figura, como tal, na narrativa do Jeovista.
Antropogonia e zoogonia
A origem dos mitos antropogônicos e zoogônicos, no mesmo Jeovista, é menos clara. O homem e os animais são “modelados de argila” por Deus, antes de serem “animados” pelo “sopro de vida” que o Criador insufla em suas narinas (Gênese, II, 7 e 19). Este apelo mitológico à arte do oleiro e do modelador de estatuetas tem laços com a lenda mesopotâmica, mas pode ter vindo também através da ideia de qualquer um que tenha visto um oleiro operar. Porém, a enigmática escolha de uma “costela” do homem como ponto de partida da criação da primeira mulher, “mãe de todos os vivos” (Gênese, III, 20), se esclarece talvez se, como se reparou há muito tempo, recorrermos a um jogo de palavras sumério entre “costela” e “vida”, escrito pelo mesmo “ideograma” e pronunciado igualmente ti ou til. Poder-se-ia então ter a reminiscência mesopotâmica: no entanto, não encontramos na Mesopotâmia, ao meu conhecimento, o mito antropogônico atestando esta homonímia.
Da mesma forma, ainda não conhecemos, nesse país ou em outro do antigo Oriente Médio, um mito que daria à criação dos homens e dos animais a mesma ordem que o Jeovista: primeiramente o Homem – um indivíduo isolado –, criado de certa maneira como “fazendeiro de Deus”, “para trabalhar e cuidar do Jardim” (Gênese, II, 7 e 15); e os diversos animais, para achar um “companheiro conveniente” para o homem; e esta busca da perfeita conveniência do dito companheiro conduzindo Deus, no fim, a extraí-lo, sob forma de mulher, da própria carne do homem. Alguns traços deste mito teriam referências aqui e na antropogonia mesopotâmica: a androginia primitiva que alguns textos supõem, por exemplo; e ainda a ideia de que o homem é criado para o “serviço dos deuses” e para “concluir a criação”. Mas talvez as semelhanças sejam muito pouco características: não se saberia atribuir outra coisa à antropogonia e à zoogonia do Jeovista além de vagas reminiscências de mitos mesopotâmicos.
É, aliás, o mesmo julgamento que se deve levar em conta sobre o conjunto de sua mitologia da criação, principalmente se for considerado o trecho II, 10-14, como adicionado posteriormente. Ela aparece razoavelmente original, provavelmente autóctone e dependente somente de alguns dados esparsos e incertos da Mesopotâmia.
Cosmogonias pós-exílicas
As coisas mudam após o Exílio. Sem analisar de muito perto as exposições do Salmo CIV e do discurso de Yahweh no Jó, onde a invenção poética pode andar junto com a imaginação mitológica e substituí-la, é mais proveitoso dar principalmente atenção à narrativa do Código sacerdotal, que, aliás, é mais exclusivamente e deliberadamente cosmogônica.
O quadro cronológico
Isolemos primeiro, nesta narrativa, o quadro cronológico da criação: os sete dias que Deus levou para cumprir sua Grande Obra. É, aqui, de modo manifesto, uma característica imaginada em Israel. Um dos preceitos fundamentais da religião de Yahweh previa de fato um ritmo semanal do tempo: seis dias consagrados ao trabalho e o sétimo ao repouso e ao culto (ver, por exemplo, Êxodo, XX, 8-10). O autor do mito quis fundar esta obrigação sobre a conduta de Deus em pessoa, para lhe dar valor mais absoluto e, de certa forma, cósmico. Eis porque ele distribuiu a obra criadora, que compõe em realidade em oito “momentos” essenciais, em seis dias, seguidos do “repouso de Deus”, o sétimo. A ideia é provavelmente mais antiga que o Código sacerdotal: já se encontra no Eloísta, no Êxodo, XX, II:
Foi em seis dias que Yahweh fez o céu, a terra, o mar, e tudo aquilo que eles contêm; mas o sétimo dia, Ele se repousou. Eis porque Yahweh abençoou o sétimo dia e fez dele uma coisa santa.
A cosmogonia
Uma vez desatado este quadro artificial, a cosmogonia, a zoogonia e a antropogonia apresentam-se no Jeovista de modo muito diferente daquelas do Código sacerdotal, mais estreitamente ajustadas.
O ponto de partida não é mais a terra desértica a ser fertilizada, mas um enorme caos para ser, primeiro, ordenado e, depois, mobiliado. Este caos é feito de água, e não de terra. Na Gênese, I, 2, “a terra deserta e vazia” não se refere à “terra” propriamente dita, que aparecerá somente mais tarde sob o nome de “vastidão seca”, mas ao “universo”: e, neste universo, o único elemento é o Abismo-aquoso interminável e obscuro, com o Vento planando por cima, o “Sopro de Deus”, sinal de sua presença e instrumento de sua potência. É a este mesmo caos que se refere o Salmo CIV, falando da mesma “terra”:
6 O Abismo, tal uma vestimenta, a cobria,
E as águas estacionavam por cima das montanhas…
E vimos que o Dilúvio, criação recomeçada, inicia-se também por um retorno do caos aquoso.
Uma vez que apareceu a Luz (Gênese, I, 3 ss), indispensável condição a todo ordenamento, tudo sairá desse Abismo, dessa mistura primordial das águas. O primeiro ato é justamente a “separação das águas”, em “superiores e inferiores”, por uma Abóboda intermediária, que assegura entre elas o espaço vazio, localização de nosso universo. Segue-se, entre as “águas inferiores” e a Abóbada, uma nova separação entre o elemento aquoso, alojado agora em um local definido, o Mar, e o elemento seco, que formará a Terra propriamente dita.
Assim fica constituído o quadro tripartite do universo: o céu, a terra e o mar. Só resta mobiliar cada uma dessas áreas. A vegetação, que vem em primeiro lugar, é apresentada mais como um complemento e um acabamento da parte-terra. É somente depois que se constitui a população propriamente dita das três esferas do universo: os astros para o céu; os animais marinhos para o mar; enfim, para a terra, os animais terrestres e os homens, reis de toda a criação e representantes de Deus aqui embaixo.
Caráter mitológico desta cosmogonia
Aí está uma sequência aparentemente lógica, ou pelo menos que denuncia certa visão ordenada do universo. Ela é, porém, ainda sem controvérsia possível, de ordem mitológica. É uma pura “imaginação”, por exemplo, conceber as estrelas como a população do céu; classificar as espécies vivas aqui embaixo em virtude de critérios totalmente fantasiosos, os vegetais como uma espécie de peliça da terra, e os animais marinhos – peixes e pássaros! – como tendo uma origem totalmente diferente dos animais terrestres – quadrúpedes e répteis…
Melhor ainda: se estiver se referindo à distribuição anterior do universo nas suas áreas essenciais, supõe uma cosmologia perfeitamente superficial e imaginativa. O universo é supostamente formado por um imenso espaço aquoso (as “águas superiores” e as “águas inferiores”), no interior do qual uma abóboda sólida (o céu) organiza o quadro do mundo, que compreende uma parte seca (a terra) e uma parte úmida (o mar). Outros trechos da Bíblia, em acordo fundiário com esta descrição, também a descrevem. Por exemplo, segundo Provérbios, VIII, 27 e Jó, XXVI, 10, o mundo é circular, pois a abóboda do céu – sustentada pelas “colunas” das montanhas – recorta um “círculo na superfície do Abismo” das águas inferiores. A terra está então mergulhada nestas águas inferiores, onde afunda e se sustenta através de “socos” (ver os textos citados de Jó, XXXVIII, 6 e do Salmo CIV, 5). Finalmente, se olharmos de perto o início do discurso de Jó (XXXVIII, 4-II; comp. também Salmo CIV, 5-9), tudo se passa como se o mar ameaçasse a terra e buscasse submergi-la de qualquer jeito: as encostas e as margens, “barreiras” colocadas por Deus para “quebrar o orgulho das ondas”, formam uma linha contínua, e a terra é concebida como uma ilha no meio do mar.
Voltemos ainda mais no tempo, além da distribuição do universo, até o ponto de início da criação toda, à origem das coisas, a esse Abismo-caos e sua primeira redução e ordenação. Na narrativa do Código sacerdotal, esta última se faz sem choques nem resistência: Deus profere uma ordem e a massa do Abismo se separa em duas pela aparição da Abóboda (Gênese, I, 6 ss). Mas logo o Salmo CIV, 7, com seus “ribombos” de Deus e sua “Voz de trovão” que fazem recuar as águas universais, supõe uma espécie de luta entre Deus e o Abismo. É ainda uma colisão entre o Criador e o mar que evoca, no discurso de Jó (XXXVIII, 8-10), o “jorro” furioso dos fluxos, que precisa ser parado por uma “barricada, uma fechadura e portas”, e ao qual Deus dita sua lei, no final, como o vencedor ao vencido:
Tu virás até aqui, tu não irás além!
Aqui quebrar-se-áo orgulho de suas ondas.
Eis agora, espalhados em diversos livros pós-exílicos da Bíblia, o Segundo-Isaías, Jó e os Salmos, e entre contextos formalmente cosmogônicos, certo número de peculiaridades ainda mais explícitas.
Isaías, LI, 9 Em pé! Em pé! Vestes-te à força,
Braço de Yahweh!
Em pé, como outrora,
Às idades arcaicas!
Não és Tu que fendeste Raabe,
Que furaste o Dragão?
Não és Tu que secaste o mar,
As águas do grande Abismo?…
Jó, XXVI, 10 Ele traçou um círculo na face das águas,
Justamente aos confins da luz e das trevas!
11 As colunas do céu vacilavam,
Apavoradas pela Sua ameaça!
12 Com (todo) Seu vigor, Ele fendeu o mar:
Pela Sua inteligência, Ele venceu Raabe!
13 Seu sopro fez brilhar os céus,
Sua mão perfurou a Serpente tortuosa!…
Salmo LXXIV, 13 És Tu que quebraste o mar, pela Tua potência,
Moeste as cabeças do Dragão, sobre as águas!
14 Tu que britaste as cabeças de Leviatã,
Para dá-lo em pasto aos tubarões do mar!
15 És tu que cavaste as nascentes, os torrentes,
Secaste os rios inesgotáveis!
16 É a Ti que é o dia, a Ti também a noite!
Tu que estabeleceste a luz e o sol!
17 Tu que implantaste todos os limites da terra!
Tu que modelaste e o verão e o inverno!…
Salmo LXXXIX, 10 És Tu que venceste o orgulho do mar!
Tu que apaziguaste suas ondas saltantes!
11 Tu que pisoteaste Raabe como um cadáver
E dispersaste Teus inimigos com um braço irresistível!
12 És a Ti que pertence o céu, a Ti também a terra:
O globo e (todo) seu pleno, és Tu que o fundaste!…
Estes textos estabelecem evidentemente nas origens do universo uma luta formidável entre o Criador e a gigantesca potência da massa de águas, do grande Abismo. Este último parece incorporado em um enorme monstro, portador de diversos nomes misteriosos: Raabe, Leviatã, o Dragão (Tanino), a Serpente tortuosa. Parece até mesmo que houve dois monstros ao mesmo tempo: o Mar e Raabe (Salmo LXXXIX, e Jó, XXVI); o Dragão e Leviatã (Salmo LXXIV); Raabe e o Dragão (Isaías, LI), que são dados como equivalentes evidentes, o primeiro do mar e o segundo do grande Abismo. São os dois mesmos seres aterrorizantes que reencontramos na segunda parte do discurso de Yahweh, no Jó, sob os nomes de Leviatã (conhecido de outro modo: ver acima) e de Behemoth, que significa “a Besta”. A fantasia do poeta faz com que ele se aproprie, para descrevê-los, dos traços dos dois animais que parecem os mais monstruosos em todo o reino zoológico conhecido por ele: o hipopótamo para Behemoth e o crocodilo para Leviatã. Mas se levamos em conta os textos citados mais acima, a escolha foi forçosamente determinada pela lembrança dos dois gigantes primordiais que Yahweh tivera que vencer: como se seu domínio sobre eles, mais ainda que sobre o mundo e seus habitantes (primeiro discurso: XXXVIII-XXXIX), fosse a prova mais forte de sua sublimidade e transcendência. Ele ainda as aumenta fazendo dos dois monstros não mais os adversários, mas as criaturas de Yahweh. E é o que reencontramos claramente no IV Livro de Esdras, obra judaica do fim do I milênio a.C. que faz parte dos escritos “apócrifos”, muito próximos da Bíblia pelo tom e pela ideologia, mas que não foram recebidos no “cânone” dos livros sagrados:
VI, 47 Ao quinto dia (da criação), Tu deste ordem à sétima-parte-do-mundo, onde (através de Seu comando) tinham sido reunidas as águas (inferiores), de produzir animais, voláteis e peixes. E assim o foi: a água muda e inanimada produzindo estes animais, segundo a ordem divina, a fim de que sobre este assunto os povos contem Tuas maravilhas. É então que Tu destacaste dois seres vivos que Tu nomeaste, um de Behemoth e o outro de Leviatã.
Tu os separaste um do outro: porque a sétima-parte-do-mundo, onde a água encontrava-se reunida, não podia contê-los. Para Behemoth, Tu deste como moradia uma destas (seis) partes-do-mundo que tinha sido secada o terceiro dia (da Criação): aquela onde se encontra mil montes. Para Leviatã, Tu deste (como moradia) a sétima-parte-do-mundo, a-parte-úmida (= o mar). Tu os conservaste para servir de pasto para aqueles que Tu desejarás e no momento que Tu desejarás…
Este trecho, extraído de uma espécie de retomada amplificada da narrativa da criação da Gênese, I, nos ajuda a entender uma passagem deste último: criando os animais marinhos, Deus começa pelos “Dragões” (Tannînîm, plural de Tannîn, um dos nomes dos monstros primordiais: ver acima). O Código sacerdotal, assim como Jó (ver também o Salmo CIV, 26), tinha então transformado em simples criaturas os Monstros que outros textos nos descrevem como os adversários e os vencidos de Deus na origem do mundo.
Origem desta mitologia
Se o caráter realmente mitológico destas peculiaridades subjacentes à cosmologia do Código sacerdotal (e de seus outros paralelos bíblicos) é inegável, não se pode hesitar também sobre o lugar da origem de tal mitologia: a Mesopotâmia. Somente a ordem do povoamento do universo seguida na Gênese, I, não tem, até o momento, referência segura na literatura desse país, e pode então, a menos que se tenham informações mais amplas, ser atribuída aos pensadores israelitas.
Mas a cosmologia suposta pela ordenação das áreas do universo é, nas linhas essenciais, idêntica àquela que tinham elucubrado os sábios da Mesopotâmia, bem antes que Israel existisse e começasse a pensar e escrever.
E, principalmente, o primeiro ato da criação do mundo traduz exatamente a mitologia das origens tal como se encontra na célebre “epopeia babilônica da criação”, l’Enuma elish, traduzida e comentada acima. Como ela, os textos bíblicos pós-exílicos, devidamente comparados e analisados, fazem começar a criação por uma gigantesca luta entre o Deus-criador (Marduk na Mesopotâmia; Yahweh em Israel) e um imenso caos aquoso, onde se encontram misturadas duas massas monstruosas. Na Mesopotâmia, são Tiamat, o Oceano cósmico, e Apsu, o Oceano terrestre. Em Israel, os vocábulos diferem e, além disso, variam segundo as tradições, como vimos; a primeira das duas massas aquosas adquire muitas vezes o nome de “Abismo”, tradução frequente do hebreu Tehom, que é talvez um nome próprio, em todo caso linguisticamente idêntico a Tiamat; e mesmo a palavra de Apsu parece estar representada na expressão hebraica Aphsey-Éreç, “os confins da terra” (Deuteronômio, XXXIII, 17 etc.), que marca os limites da terra e designa ao mesmo tempo as encostas desse Oceano terrestre que a circunda. A separação da massa aquosa em “águas superiores” e “inferiores”, segundo o Código sacerdotal, lembra a separação do corpo de Tiamat em duas partes, onde uma torna-se o céu e a outra a terra. E mesmo a escolha do verbo “fender”, em Isaías, LI, 9 e Jó, XXVI, 12, parar marcar o ato pelo qual o Deus-criador derrota o Monstro cósmico, denuncia um dado concreto da epopeia babilônica, onde o “cadáver de Tiamat” (comp. o “cadáver de Raabe” no Salmo LXXXIX, II) é “dividido em dois” por Marduk.
É inútil levar adiante, e em todos os detalhes, essa comparação: aquilo que sublinhamos disso é demonstrativo. A epopeia babilônica, cuja mitologia cosmogônica, pelo menos nas peculiaridades essenciais, serviu de patrono àquela do Código sacerdotal, de Isaías, de Jó e dos Salmos citados, parece ter sido composta na primeira metade do segundo milênio antes da nossa era; em todo caso os manuscritos mais antigos que possuímos, mesmo fragmentários, datam do século IX. Ao passo que as obras bíblicas acima enumeradas são todas posteriores ao século VII, ao Grande Exílio de Israel na Mesopotâmia. Não é, então, difícil fixar a direção desta adoção.
Foi imediata? Ou os mitos mesopotâmicos se propagaram da Babilônia até Israel somente através de numerosas estações intermediárias, decantando-se ou modificando-se a cada etapa? Não é fácil responder a esta pergunta. A possibilidade de um conhecimento direto dos mitos mesopotâmicos na Palestina não poderia ser posta em dúvida se pensássemos, por exemplo, que já em plena metade do segundo milênio outros textos babilônicos, como a epopeia de Gilgamesh, ou tratados de divinações e astrologia, eram lidos no texto cuneiforme, e alguns adaptados e traduzidos no idioma do país, na Síria do Norte, na Ásia menor, no Egito. Por outro lado, a possibilidade de uma transmissão indireta não pode ser rejeitada, a priori. Pensa-se notadamente na Síria e na Fenícia, cujos mitos cosmogônicos, do pouco que sabemos, remetem ainda às caraterísticas adotadas de modo manifesto na Mesopotâmia e que reencontramos na Bíblia: como a luta de Baal contra o mar, e provavelmente também a residência do Deus-criador “na junção dos dois braços do rio cósmico”.
No entanto, é de surpreender o fato de que todos os textos bíblicos que refletem mais claramente a mitologia cosmogônica babilônica foram compostos após o Exílio, enquanto na cosmogonia mítica do Jeovista, a única que foi conservada de antes, a criação do mundo é apresentada de maneira totalmente diferente, sobre um tema cujo essencial é quase com certeza de origem autóctone, as adoções mesopotâmicas encontrando-se, ou muito limitadas (a “geografia do Éden”, ou muito vagas e incertas, sem que nenhuma, em todo caso, traia indubitavelmente a mitologia própria ao Enuma Elish. Nestas condições, não se pode deixar de pensar que a cosmogonia mesopotâmica, pouco conhecida em Israel antes do Exílio – pelo menos, julgando-se através de nossos documentos –, foi levada pela primeira vez para seu conhecimento, ou muito mais estimada e, de certa maneira, adotada por seus pensadores uma vez colocados em contato imediato com ela, na própria Mesopotâmia.
TEOLOGIA E MITOLOGIA
Mitologia e teologia se apresentam, assim, ao historiador como dois estágios sucessivos do pensamento cosmogônico em Israel. Existe entre elas ao mesmo tempo alguma continuidade e alguma descontinuidade, e nos resta definir.
A continuidade é evidente, pois em pleno sistema teológico israelita, tanto na narrativa do Jeovista quanto na do Código sacerdotal e em todas as outras passagens relativas à origem do mundo e do homem, reencontramos mitos dos quais sabemos hoje terem sido elaborados dentro de sistemas teológicos totalmente diferentes.
Os pensadores israelitas então guardaram e integraram na própria cosmogonia toda uma parafernália de “imaginações” estranhas à religião Jeovista.
Certo número destes vestígios parecem ter servido principalmente para alimentar a verve poética dos escritores da Bíblia: o Segundo-Isaías e os autores de Jó e dos Salmos, notadamente. Mas os poetas fazem frequentemente apelo ao folclore, isto é, às superstições e às crenças coletivas. É perfeitamente possível que o que, ao olhar desses grandes espíritos, era apenas metáfora tenha tido aos olhos dos populares um valor mais absoluto. A história ulterior da Bíblia está aqui para nos elucidar: se relembrarmos os redemoinhos e as lutas suscitadas entre os fiéis, em que ela permanece o “Livro santo”, particularmente no momento da inauguração e dos primeiros progressos de nossas ciências genéticas, começando pela geologia e pela antropologia, será considerada a importância dos mitos e das imaginações cosmológicas para os antigos fiéis de Yahweh ao valor que guardaram por mais de dois milênios depois e mesmo até nossos dias, ao olhar, não somente da gente humilde, mas às vezes de cabeças eruditas e de fortes grandes espíritos.
Também se pode perguntar, mesmo para os autores bíblicos, se não estavam presos tanto às “imagens” cosmogônicas que lhes vinham ao cálamo quanto às “ideias religiosas” que estas veiculavam. Quem nos dirá, por exemplo, em que medida o autor do Jeovista, não obstante a ideia já elevada que se fazia de seu Deus, não julgava verídico, pelo menos de maneira confusa, dados que para nós poderiam ser apenas metáforas, como a “modelagem” do homem e dos animais?
Há casos onde esta dependência dos escritores bíblicos em relação ao sistema mitológico adotado por eles vai além e atinge o domínio das próprias “ideias religiosas”. É assim que pelo menos na própria Bíblia o conceito de criação propriamente dita, ex nihilo, agora elaborado, não aparece ainda. Deus organiza um imenso caos, e o transforma e o mobília, mas este caos existia “no começo” e em lugar nenhum é dito indubitavelmente que Deus foi seu autor e o tirou de um nada absoluto anterior. Entretanto, eis um efeito da própria posição do problema cosmogônico na mitologia mesopotâmica, onde somente o devir era pretendido, e não a origem absoluta dos seres.
Todavia, há de se reconhecer que a coisa é excepcional e que, no domínio das ideias mestres da cosmogonia, a descontinuidade é muito mais manifesta entre a teologia israelita e aquela que traduzem os mitos anteriores.
Sua luta é menos sensível na narrativa do Jeovista, sem dúvida porque não conhecemos seus mitos subjacentes em seu contexto próprio, e também porque o “sistema” israelita, já parado em suas linhas essenciais, não é ainda perfeitamente desenvolvido. Mas se buscarmos não mais as semelhanças, mas as diferenças entre a versão babilônica da cosmogonia segundo o Enuma elish, por exemplo, e a versão do Código sacerdotal e dos outros escritos bíblicos pós-exílicos, o triunfo da teologia de Israel parece arrebatador.
As narrativas do Enuma elish e das outras cosmogonias mesopotâmicas, pelo menos se as tomamos ut littera sonat, são impregnadas de politeísmo e de antropomorfismo: não somente nelas as lutas divinas são frequentes, e a vontade, o medo, a cupidez, a ferocidade, todos os vícios dos homens são as variantes constantes das decisões dos deuses relativas, entre outras, à origem de nosso mundo, mas, coisa muito mais grave e de alcance bem mais considerável, nelas a cosmogonia começa pela teogonia, o devir dos deuses é compreendido no do universo e todos os deuses fazem integralmente parte do cosmos.
Todas estas características foram eliminadas na Bíblia: nela o Criador é o único Deus; as divindades primordiais que formavam a “matéria-prima” do mundo perderam o caráter divino e ficaram somente com o aspecto gigantesco e monstruoso; o Demiurgo não tem mais defeito: é infinitamente perfeito e justo e não é nem por vontade nem por necessidade que ele sentiu a exigência de criar o universo; se Jó, o Segundo-Isaías e os Salmos conservam ainda os rastros da “luta” contra o Monstro primordial do Caos, o Código sacerdotal a suprime, “espiritualiza” a ação divina, fazendo intervir a “fala eficaz”, e guarda mesmo “no começo” somente um caos impessoal, transformando (como Jó e o Salmo CIV) em simples criaturas os seres formidáveis que o hipostasiaram; e, principalmente, o Criador não faz mais parte do cosmos, não é mais submetido ao devir, doravante reservado a este último: não há mais um só universo, envolvendo sob suas leis tudo o que existe, mas duas esferas irredutíveis, o Criador e a Criatura.
Está aí, me parece, uma transformação de alcance incalculável e o próprio auge do sistema cosmogônico israelita. Ela provavelmente não é concluída na Bíblia, que coloca, no fim das contas, apenas o ponto de partida, a visão intuitiva essencial. Mas seja o que for pensado a respeito de seu alcance objetivo, é preciso reconhecer que ela representa, no campo metafísico, uma das mais altas conquistas do espírito humano e, no campo religioso, um aprofundamento admirável.
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* Trecho adaptado do texto La Naissance du Monde selon Israel, em La Naissance du Monde, de Anne Marie Esnoul et al. – Éditions du Seuil, França,1959.
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**Jean Bottéro (1914-2007), foi um historiador francês e diretor de estudos na École pratique des Hautes Études.