Manifesto Cósmico – 2
A instabilidade do vazio leva a afirmar
que o Universo estava condenado a existir.
Introdução
Esse texto trata de questões que têm sido ignoradas ou tiveram uma atenção tímida por parte dos cientistas. Iremos nos concentrar em três aspectos fundamentais que se fizeram ausentes nos temas principais de investigação da física e que levam a uma desconstrução do caráter absoluto das leis físicas quando extrapoladas para o universo. São eles: solidariedade cósmica, o universo disrupto e a dependência cósmica das leis físicas.
Iremos buscar inspiração para nossos comentários nas propostas e modos de dialogar dos primeiros cientistas, nos momentos iniciais da organização da ciência, onde a ruptura entre os diversos saberes não estava ainda consumada. Em particular, colocar novamente em relevo questões filosóficas sobre o mundo no interior do discurso científico e empreender um diálogo com outros modos de análise do real.
1.
Considerando a ordem estabelecida na organização cientifica nos dias atuais, é quase impossível deixar de aceitar que o filósofo Martin Heidegger tinha razão em seu ácido comentário sobre a atividade cientifica ao afirmar que..
…La science est aujourd´hui, dans toutes ses branches, une affaire technique et pratique d´acquisition et de transmission de connaissances. Elle ne peut nullement, en tant que science, produire un réveil de l´esprit. Elle a ele-même besoin d´un tel réveil.
A ciência é, hoje, em todos os seus ramos, uma questão técnica e prática de aquisição e transmissão de conhecimentos. Ela não pode, de forma alguma, como ciência, produzir um despertar do espírito. Ela tem, ela mesma, a necessidade desse despertar.
Como responder a essa crítica? Ou melhor, como compreendê-la? Antes de a analisarmos, façamos uma pausa para um comentário, que será um guia importante nesse nosso texto.
Pode parecer absurdo comparar a argumentação dos filósofos Marx e Engels sobre a crise que, no século 19, eles exibiram na sociedade, com a situação na ciência no século 21. E, no entanto, uma leitura atenta de seus escritos, associada ao conhecimento da atividade dos cientistas, expõe uma analogia impressionante e que permite parafraseá-los, em uma crítica ao desenvolvimento científico.
Há décadas, a história da ciência confunde-se com a história da tecnologia e se relaciona com as crises dos paradigmas que, recorrentes de tempos em tempos, põem em xeque a independência da orientação científica de sua ordenação tecnológica, arrastando a crise para toda a sociedade cientifica.
Nos dias de hoje, o cientista vale e é considerado pela quantidade de artigos que consegue publicar em revistas internacionais. Isso produziu uma diminuição considerável no encantamento e na reflexão sobre o universo, uma tarefa que os primeiros cientistas no século 16 consideravam ser a sua função mais nobre.
Assim, podemos detectar um movimento desestabilizador na atividade institucional na ciência, ao analisarmos as relações de produção e circulação dos textos científicos e o papel das sociedades cientificas. O cientista se vê lançado em uma confecção ininterrupta de artigos, limitando a profundidade de sua reflexão sobre questões fundamentais.
Espelhando a argumentação daqueles filósofos, isso pode ser entendido como consequência de um fenômeno que seria inconcebível em épocas passadas e que se organiza, atingindo diretamente a atividade do cientista: a epidemia da super produção.
2.
Quando uma crítica em uma determinada área do conhecimento produz uma transformação com consequências amplas e profundas, aqueles que estão longe do centro dessa ação dificilmente são informados imediatamente. Há um processo viscoso de relaxação da informação que descreva de modo fiel o abalo que a crítica tenha efetivamente produzido e que pode demorar um longo tempo até atingir a sociedade.
A descrição de um desses movimentos que ocorre no interior da prática da cosmologia dos últimos anos, serve para exemplificar como está mudando a representação científica do universo e como isso afeta a sociedade ao transbordar para outros saberes.
Como se trata de questões técnicas, nossa tarefa será imensa, de tamanho igual à nossa pretensão que é a de permitir aos não-iniciados, estudiosos de outras áreas, o acesso a essas novidades.
Como método de trabalho, iremos inverter o procedimento convencional e ao invés de descrever sistematicamente os estudos e propostas que a cosmologia está oferecendo bem como seus resultados formais – o que exigiria de nossos leitores um interesse muito especial pelo conhecimento científico– resolvemos apresentar de imediato um resumo condensado das ideias gerais que possam extravasar para outros saberes, deixando a tarefa de fazer uma exposição mais ampla em outro lugar e nas referências anexas.
Devemos ter em mente que a análise que estamos realizando não se resume a um negócio entre físicos, em uma convencional luta por visões distintas de um procedimento técnico, mas tem caráter genérico, permeando toda organização científica.
Nossa tarefa é produzir uma conexão que aproxime questões cotidianas com reflexões sobre a formação do universo. E, de mesmo modo, pensar o cosmos e suas questões para inseri-las em nosso cotidiano.
3.
Todo manifesto pretende a um só tempo desconstruir uma narrativa e construir uma versão que venha ocupar seu lugar. Assim, em um primeiro momento deveríamos esclarecer: qual narrativa se está criticando? Qual a nova proposta para substitui-la?
A primeira pergunta possui uma resposta simples: trata-se de questionar a supremacia do pensamento único associado desde sempre ao conhecimento cientifico. Assim fazendo, estaremos levando essa crítica para outros modos de produção de conhecimento, além do território do saber científico, limitando uma das suas consequências mais nefastas: a uniformização do pensamento—um mal-estar que permeia, de modo quase incontrolável, a sociedade capitalista nos dias atuais.
Quanto à segunda, a resposta é mais complexa e iremos apresentá-la ao longo desse texto. Antes de começarmos, um pequeno comentário para esclarecer a ação nefasta do pensamento único em um território onde não se esperaria nenhuma crítica à sua determinação.
4.
Existe uma crença generalizada segundo a qual uma ideia hegemônica quando aparece no interior de uma dada ciência deve ser entendida como uma verdade, provisória certamente, mas como uma certeza que transcende a simples opinião e que é típica dessa atividade de investigação da natureza exercida pelos cientistas. No entanto, nem sempre é assim. Podemos apontar exemplos em várias áreas. Um caso típico encontramos na análise da origem explosiva do universo como descrito na cosmologia da segunda metade do século XX. A comunidade cientifica aderiu de modo quase leviano ao pensamento único segundo o qual teria havido um momento de criação do universo ocorrido há uns poucos bilhões de anos. Esse cataclisma cósmico único ficou conhecido, por sua enorme repercussão na mídia, pela expressão bigbang. O termo “aderiu” é usado propositadamente para enfatizar seu caráter não-científico. Os detalhes dessa adesão e as razões pelas quais a comunidade científica internacional se deixou seduzir por essa ideia podem ser encontrados nos textos citados ao final.
É preciso, no entanto, esclarecer uma confusão que foi sistemática e ostensivamente propagada referente ao termo big-bang pois ele possui duas conotações bem distintas. Em sua utilização técnica, entre os físicos, ele significa a existência de um período na história do universo onde seu volume total estava extraordinariamente reduzido. Consequentemente, a temperatura ambiente era extremamente elevada. Isto é um dado da observação apoiado em uma teoria bem aceita. Praticamente todo cientista da área considera correta essa explicação pois ela permite entender um número grande de observações astronômicas. Um segundo uso, agora mais ideológico, para o mesmo termo big-bang, requer sua identificação à existência de um momento de criação, singular, para o universo. Durante as últimas décadas essa segunda interpretação se espalhou pela sociedade exercendo uma função que ocupou o espaço imaginário da criação do mundo, até então controlado pela religião. E, no entanto, tratava-se de uma hipótese de trabalho travestida em verdade científica.
As leis da física e as orientações cósmicas: como entender a sentença “o universo está ainda em formação”
5.
A principal novidade, que tem origem nas recentes análises, teórica e observacional, da cosmologia, pode ser sintetizada na afirmação da dependência cósmica das leis físicas. Uma tal proposta é, sem dúvida, um ataque frontal à paz do pensamento único antropocêntrico que, tradicionalmente, tem controlado a construção e manutenção do ordenamento científico. O elevado satus da ciência na sociedade faz com que essa ordem extrapole para outros saberes e procedimentos, desembocando na ação política.
6.
Alguns cientistas não conseguem conceber como se pode falar de “lei física” se ela variar no espaço ou no tempo. Podemos citar, como exemplo, o matemático francês Albert Lautman.
7.
Para entender a limitação da argumentação critica de Lautman é preciso separar claramente o que é considerado como lei física, organizada teórica e experimentalmente na Terra, de sua extrapolação para todo o universo. Isso porque além de nossa vizinhança, além do sistema solar, além da nossa galáxia, onde novas formas de interação ocorrem, não é possível manter a mesma descrição dos fenômenos. As leis, o modo pelo qual descrevemos os acontecimentos e suas causas, não são as mesmas e isso se deve, principalmente, à ação da gravitação.
8.
A forma da lei física se modifica. Ainda podemos falar de organizações de comportamento dos corpos físicos, mas sua estrutura não é isenta de contaminações decorrentes de sua posição no espaço-tempo. Algumas alterações são suaves, outras tornam a lei irreconhecível. A principal origem dessas transformações é devida a efeitos associados a campos gravitacionais extremamente intensos que, por exemplo, existem nos momentos de extrema condensação do universo.
9.
Essas alterações, essas mudanças das leis não afetam observacionalmente os fenômenos em nossa vizinhança terrestre. Por que, então, procurar conhecer as variações das leis no cosmos profundo, se elas não influenciam nosso cotidiano?
A resposta é simples e é aquilo que orientou os primeiros cientistas a organizarem a ciência: por curiosidade.
10.
Reconhecemos assim que além do modo utilitarista, existe ainda esse encantamento por conhecer o universo em que vivemos. Essa, e somente essa, é a razão para procurar entender como se estruturam as leis cósmicas. Nesse caminho, estudando as alterações ainda pouco conhecidas das leis físicas, surge a esperança de que possamos enxergar em que direção o universo se move, e por quê.
Das leis físicas às leis cósmicas
(Onde se organiza a cosmologia como ciência do cosmos e se apresenta um caminho para uma crítica do status das leis físicas)
11.
A dependência cósmica das leis da natureza produz uma nova forma de entender o processo de constituição dessas leis, em substituição ao cenário idealista — que sempre foi considerado como uma hipótese natural– de tratá-las como uma configuração fixa, universal e atemporal, inacessível a uma análise ulterior. A consequência mais notável desta dependência consiste na rejeição da hipótese tradicional de pensá-las como tendo caráter universal.
A mudança de atitude que a nova descrição do universo faz surgir da cosmologia moderna, conduz ao abandono do antropocentrismo que dominou desde suas origens o pensamento científico. A cosmologia, exibindo essa dependência das leis da física com o tempo cósmico global leva a afirmar, de modo semelhante às teses de Marx e Engels, que toda ciência deve ser histórica.
12.
Esse Manifesto Cósmico-2 não tem a intenção sub-reptícia de afirmar um saber arrogante nem de tentar impor uma ordem a partir de um conhecimento. No entanto, é preciso esclarecer com rigor as bases do que estamos afirmando, pois decidimos usar um saber específico para expressar uma visão-de-mundo. Não podemos deixar esses detalhes formais para outro lugar. Ao propor um caminho, devemos esclarecer com que argumentos ele se sustenta.
13.
Em um primeiro momento é preciso separar claramente o que é considerado como lei física, organizada teórica e experimentalmente na Terra, de sua extrapolação para todo o universo. Isso porque além de nossa vizinhança, além do sistema solar, além da nossa galáxia, onde novas formas de interação ocorrem, não é possível manter a mesma descrição dos fenômenos.
14.
As leis, o modo pelo qual descrevemos os acontecimentos e suas causas, não são as mesmas. A forma da lei física se modifica. Ainda podemos falar de organizações de comportamento dos corpos físicos, mas sua estrutura não é isenta de contaminações decorrentes de sua posição. Algumas alterações são suaves, outras tornam a lei irreconhecível.
15.
Só quando reconhecemos essa dependência espaço-temporal é possível ainda falar de leis guiando comportamentos dos corpos, determinando diferentes processos e que então devem ser entendidas não mais como extrapolação de leis físicas terrestre, mas sim como leis cósmicas.
Comentários sobre o establishment
16.
Essas reflexões pretendem reunir um certo modo de compreender, interpretar, acionar a ciência. Isso é feito a partir de sucessivos embates entre um pensamento que se fecha e persegue essa reclusão como desejável, finita e definitiva; contra um pensamento aberto, sem limites, que não persegue o poder e não se cansa de exibir a inesgotabilidade do real. Entendendo a ordem científica-tecnológica contemporânea como subordinada estreitamente a interesses políticos e de controle, podemos ser levados a indagar, se ao querermos nos libertar dessa dominação ainda é ciência mesmo sem reverenciar o poder.
17.
Vamos deixar claro: a autocrítica da ciência que iniciamos no Manifesto Cósmico de 2016 não pretende reduzir o pensamento racional e substitui-lo por um movimento de predominância irracional. Ela não pretende diminuir a eficiência da ciência, mas sim produzir espaço para uma análise que devemos empreender e que consiste na elaboração de uma crítica da prática cientifica e que iniciamos com a autocritica dos profissionais da ciência. Ou seja, esclareçamos de imediato, trata-se de uma autocritica dos cientistas, não do método.
18.
Essa autocrítica não agrada os cientistas, nem àqueles que fazem da ciência sua religião, nem à sociedade capitalista moderna que suga a atividade cientifica para sustentar uma ordem controlada por super estruturas que se pretendem imaginárias, camufladas, inacessíveis.
A etapa mais importante do Manifesto anterior é sua explicita ação contra o antropocentrismo, árdua tarefa. Ao mesmo tempo, enfatizar na atualidade o papel dos cientistas, quando o desencantamento da natureza carregou consigo para o ostracismo o maravilhamento face ao Universo que os primeiros astrônomos nos haviam legado.
19.
A autocritica deve ser tal que possa exibir a atividade científica atual como sustentáculo de um modo técnico que tem como consequência sub-reptícia, a devastação da natureza. Durante algum tempo essa critica dirigiu-se para o mal explicito, a saber, a bomba atômica, a produção de gases venenosos, a criação de bactérias assassinas. Devemos então exibir essas consequências que se escondem por trás de uma organização racional que norteia a atividade científica. E, em um segundo momento, nos preparar para voltar a empreender o caminho original, que se escondeu nos tempos modernos e que consistia em pensar a natureza com olhares curiosos e não de dominação.
As sociedades cientificas foram lançadas a um estado de uma guerra que não é de ideias, mas de paradigmas a serem seguidos, como se entrássemos em uma religião. O jovem cientista que não for aceito nessa organização religiosa, não tem futuro.
20.
Do que queremos nos libertar? De imediato, do pensamento único e procurar realizar tal libertação no interior da prática cientifica.
Por exemplo, fomos ensinados a aceitar que cada processo físico possui uma e somente uma explicação. É então por uma crítica dessa afirmação que devemos começar nossa análise.
Colocar ordem no mundo, ou reconhecer uma ordem no mundo, é escolher de modo seguro e universal um paradigma de representação. É precisamente essa escolha, uma prática inerente ao método científico, que produz o que eu chamo paradigma paralisante. Ao eliminar explicações alternativas, outras possibilidades de descrição dos fenômenos, elimina para o presumido sucesso, essa multiplicidade indesejada e complicadora (identificada como falsa) e faz de uma delas sua colagem ao real, que se torna assim, de fato, uma verdadeira definição da realidade. Um exemplo típico, como vimos, foi a identificação do momento mais denso do universo (chamado bigbang) com a criação do mundo.
A bem da verdade, todo paradigma que se estabelece como tal é, necessariamente, paralisante. É parte intrínseca de suas características, eliminar os concorrentes. Nada solidário pode advir da instalação de um paradigma. Perseguir a solidariedade é visar a eliminação de qualquer paradigma. Ou seja, aprofundar a afirmação de que nenhum problema admite somente uma solução.
Quando essa univocidade parece acontecer, é porque o problema está colocado fora de seu contexto. Ao inclui-lo em um contexto maior, imediatamente aparecem diversos caminhos. Ou seja, a univocidade esconde uma escolha de representação.
Na natureza, contrariamente ao que a ciência tem sub-repticiamente aceitado, o normal se realiza em bifurcações. Por isso podemos afirmar que toda ciência que investiga o cosmos deve ser histórica.
Estamos assim questionando a convicção implícita de que os enunciados científicos sobre os fenômenos observados que legitimam esse saber não estão isentos da multiplicidade de representações que se pretende, a todo custo, evitar.
Ao longo da história humana, passou-se do discurso sem fundamentação fenomenológica, da produção religiosa ou politica da descrição do real a uma atitude científica de descrição. No entanto, o desejo extrínseco da univocidade, a escolha de representação única dos fenômenos, faz entrar pela porta dos fundos o que havia sido expulso ostensivamente pela porta de entrada.
Essa escolha de representação, embora de aparência escamoteada e escondida, é de natureza política. Isso se dá porque ela não ocorre exclusivamente por adequação e coerência aos processos fenomênicos, mas sim por uma escolha arbitrária, embora consensual, de uma especifica representação. É através da orquestração e aceitação, pelo establishment, dessa univocidade que se esconde seu caráter político.
21.
Essa crítica pode parecer inútil e ingênua. Inútil, porque não alcança os fundamentos dessas atividades e suas funções sociais. Ingênua, porque não consegue atingir o alvo verdadeiro, capaz então de diminuir a ação perniciosa e nociva do modo atual como se estrutura a atividade científica. Pensando o que aconteceu no passado, as propostas que surgiram e como foram abandonadas e/ou desvirtuadas, resultando sempre na manutenção do status permanente do sistema de poder e no sucesso inabalável do establishment, somos alertados que somente uma luta continua, cotidiana, explicita, contra o sistema de pensamento dominante pode ser eficiente nessa libertação.
Horizonte próximo
22.
Não resta dúvida de que a Cosmologia destruiu a paz racional que a ciência ordeiramente, pacientemente e eficientemente organizou nos últimos 400 anos;
A imagem de um universo pronto, com leis físicas eternas deve ceder lugar a uma estrutura volúvel, variável, dependente da posição no espaço-tempo.
Se o universo está ainda em construção (não somente fenomenologicamente, mas em suas próprias leis) torna-se necessário uma radical transformação da interpretação da ciência. A menos que aceitemos o fracasso do projeto que os pais fundadores, Kepler, Galileu, Brahe e outros nos legaram de encantamento em nossos comentários científicos sobre o cosmos e limitemos essa atividade não mais com o objetivo de desvendar o mistério das leis nele embutidas e reduzamos a função dos cientistas à produção de tecnologias.
Intermezzo
Algumas áreas da física, em especial aquelas consideradas fundamentais –como a Cosmologia e a Física de partículas elementares – parecem ser territórios isentos dessa critica tecnológica. Um exame mais cuidadoso mostra que essa isenção é somente limitada.
É possível superar a crise na atividade cientifica que apontamos acima, individualmente. Para isso é necessário que o cientista faça constantemente uma autocrítica de sua atividade.
No entanto, como crise institucional da ciência, ela só será ultrapassada quando a sociedade entender e exigir que ela retorne a seus fundamentos e não se submeta ao desenvolvimento tecnológico. Se isso acontecer é porque a estrutura social, as relações de produção e os interesses da sociedade, se transformaram tão profundamente que a noção de humanidade teria então adquirido seu verdadeiro significado.
Em verdade, um bom caminho, o longínquo ideal, se traduz em uma só sentença: voltar a contemplar o cosmos ao invés de pretender dominá-lo.
O cenário global-1
- Construímos um universo. Organizamos leis cósmicas. Ordenamos sequencialmente observações que descrevemos como extensões de nossos corpos. Vamos além. Impomos que essas leis se refiram a nossos corpos. Produzimos um mundo.
- Da redução dos corpos a coleção de átomos, reconhecemos nossa identidade cósmica. Afinal, astrofísicos-poetas revelam que somos restos mortais de uma estrela. Pois é da morte de uma estrela e de sua liberação de carbono no meio interestelar que retiramos parte de nosso ser.
E, no entanto, não somos só isso. Processos complexos intervém e (nos) organizam, a nível elementar, como espécie e como indivíduos. Nossa identidade se forma como única. E, como tudo que existe, pretende existir eternamente;
25.A visão atual da ciência exibe um universo eterno, esse nosso. Essa descrição de um universo sem singularidade, para além de um cenário restrito e irracional, só foi aceita depois de uma batalha de mais de meio século contra o establishment que considerava que a descrição do universo era dada pelo chamado big-bang, um cenário que fixava a existência do universo a uns poucos bilhões de anos e cuja origem seria jamais acessível.
O cenário global-2
- Nos deixamos levar pela ideia simplista de que o futuro do universo está determinado pela quantidade de energia e matéria que nele existe. Assim, o universo se expandiria para sempre ou re-colapsaria e teria um fim no esmagamento de toda a matéria existente, a inversão do impossível e midiático big-bang. Essas possibilidades conquistaram um grandiloquente anúncio espalhado pelos físicos.
- No entanto, no universo real, da natureza, não dos homens, inacabado, graças à dependência temporal das leis físicas, na novidade gestada nas entranhas do cosmos, outra forma de futuro aparece no horizonte. É dela que é preciso falar.
- Desde os anos 1940, o físico americano Richard Tolman propunha pensar o universo como cíclico. Fases de colapso e expansão. Essa proposta não pôde se desenvolver, pois ao aceitar em sua descrição do universo, a existência de singularidade, impedia a continuidade formal dessa série colapso-expansão. Em 1979 quando apareceram os primeiros cenários não singulares com bouncing — possuindo uma fase de colapso seguida de uma fase de expansão– a ideia original de Tolman pôde ser desenvolvida. Ou seja, aceitar que o universo é cíclico.
Restos das leis cósmicas
- O Universo impõe seus limites e suas qualidades.
- Os elementos fundamentais dos átomos, próton e neutro, tem características próprias, às quais os físicos consideram como um dado da observação. Eles não questionavam a origem desses valores. Os cosmólogos, voltados para a unidade do mundo, penetrando na metacosmologia, vão procurar o que lhes deu esses valores. Por que a massa do nêutron é exatamente essa? Por que a massa do próton é exatamente essa? Como seria um universo se essas massas fossem diferentes?
- Para entender o sentido dessas questões, é necessário o pensamento global. Isso não implica acesso à solução, mas permite pensar a questão. Colocá-la como uma questão significante e procurar um compromisso entre o local e o global, procurando as coerências relativas, para encaminhar uma resposta.
- Não podemos esquecer que o universo, controlado pela gravitação, sob a descrição da Relatividade Geral, produz bifurcações, sugerindo mais de um caminho para sua evolução, que a natureza escolhe aleatoriamente.
Antropocentrismo cósmico
A proibição que as leis da natureza impõem, não devem ser entendidas como absolutas. A dependência cósmica das leis da natureza enfraquece esse absolutismo. Um processo proibido em um dado cenário, pode ocorrer em outro. É isso, por exemplo, que a violação do número bariônico nos ensina. Ou seja, o fato de que reconhecemos uma lei proibindo processos não deve ser entendida como uma proibição absoluta. O environement determina o alcance no espaço e no tempo dessa proibição. É assim que o físico Sakharov pôde conceber a existência de matéria e não de antimatéria no nosso universo.
Além do universo em construção, que vimos examinando, há outras duas características, modos de tratar o universo e suas formas distintas: o universo em disrupção e o universo solidário.
O universo partido
Repartir e generalizar. Procurar o caminho único e produzir coerência. Aceitar uma só lei cósmica, uma organização que permite pensar o universo unificado.
A questão causal. Caminhos que levam a um tempo anterior. Caminhos fechados no espaço-tempo. Kurt Gödel ensinou como torná-los possível, mesmo em uma teoria que se pretendia determinista como a Relatividade Geral. Para desagrado dos físicos e, em particular, do seu criador, Albert Einstein.
O universo com regiões desconexas. Sem contato umas com outras, sem poder interagir, causalmente desconectadas. Ou seja, pedaços de universo separados. Como falar de unidade, então? Como nomear esses pedaços de universo distintos, se não podemos organizá-los em uma estrutura causal única?
Um caminho: criar uma coletânea de unidades em uma representação que conduza à construção de uma conexão fora do espaço-tempo e que seja formalmente capaz de englobar essas partes disruptivas, rompendo a restrição causal e, assim, desconstruir o tempo único.
A solidariedade no universo (compatibilizando propriedades local e global) ou o universo solidário
Vimos no Manifesto de 2016 como o matemático Lautman ao introduzir o conceito de solidariedade cósmica, propõe conciliar a tradicional batalha envolvendo a dicotomia local x global.
Devemos enfatizar que esse conceito jurídico – solidariedade –, usado por semelhança na biologia e nas ciências sociais, pode fazer sentido nas ciências da natureza, na física ou, mais abrangente, na cosmologia, e ser aplicado na construção de cenários cosmológicos de descrição do universo.
Mais do que isso, esse conceito pode contrabalançar o papel autoritário e arrogante proposto por cientistas que procuraram dar um sentido ao universo de caráter eminentemente antropomórfico.
Solidariedade aqui pode ser entendido como compatibilidade, coerência no sentido da matemática e da física. Ou seja, devemos entender a solidariedade como a pedra-de-toque para aplicar a regra de ouro de Lautman na compatibilização entre o micro e o macrocosmo, entre as propriedades das partículas elementares e as características globais do universo. Exemplos esclarecedores são a origem cósmica da massa (Ernst Mach), a não-linearidade das teorias de campo (Born-Infeld) e a dependência cósmica das interações fracas (Novello-Rotelli).
Podemos entender o uso do conceito de solidariedade na formulação de Lautman a partir dos princípios da matemática. Trata-se de conciliar propriedades locais e globais. Para que essa compatibilidade seja bem sucedida, uma troca eficiente de informação deve percorrer todo o universo. De outro modo, deveríamos aceitar que o controle da evolução do universo estaria dado por um determinismo a priori, relacionado a desconhecidas condições iniciais de estruturas locais descritas por equações diferenciais.
Uma tal perspectiva leva naturalmente a introduzir a ideia de eficácia limitada da compatibilização lautmaniana. Dito de outro modo, levados a aceitar que o universo tenha passado por várias fases ou ciclos, cada um deles podendo ser caracterizado por um número S (de solidariedade no sentido de Lautman) cujo domínio de valor deve ser posto entre zero e um. O valor zero sendo o menos solidário, o menos competente na conciliação entre propriedades locais e globais e, inevitavelmente mergulhando no não-ser, como no modelo cosmológico estático de Einstein; o valor um sendo o máximo de compatibilidade possível, o limite idealizado de Lautman.
Comentário final
Talvez em nenhum outro território a ciência provoca um sentimento tão intenso quanto o que se produz na Cosmologia, na investigação do universo.
A cosmologia desperta um sentimento transcendental, escondido, que foi reprimido pela ciência ao retirar Deus do controle do mundo e colocar as Leis Físicas em seu lugar. Deus era único e eterno, sem possibilidade de evolução. Assim também se pensava com as Leis Físicas e por isso (semelhantemente ao Deus que ela retirava do controle do mundo, para ocupar seu lugar) um choque terrível se dá quando se depara com a possibilidade de que essas Leis possam não ser rígidas, imutáveis, que elas possam depender do tempo cósmico.
A simples ideia de que as Leis podem variar com o tempo cósmico cria um movimento delicado no interior da ciência. É essa indesejável situação que desde sempre provocou a rejeição da ideia de variação dessas Leis como um processo possível no universo.
Quando Deus teve que ceder lugar às Leis Físicas, os cientistas estavam construindo uma nova ordem no mundo, descobrindo como o mundo se organizava. Em um primeiro momento, a grandiosidade revelada do cosmos foi comparada ao mecanismo de um relógio, um ritmo perfeito, continuo e inexorável. Para essa substituição, trocava-se a infalibilidade divina pela rigidez das Leis Físicas.
No entanto, quando se foi compelido a admitir que essas Leis poderiam variar com o tempo cósmico, com a história do universo, um processo começou a se desenvolver e a erodir o mundo da ciência.
Com a elevação do status científico da Cosmologia e a produção de cenários cosmológicos, uma contradição interna na ciência se estabeleceu, ao se considerar a hipótese da dependência cósmica das interações.
Ao mesmo tempo, uma contrapartida notável apareceu, com o re-encantamento do universo, como pretendiam os primeiros cientistas.
Reconhecemos então que é esse caminho que pode evitar a previsão de Heidegger, segundo a qual a ciência estaria se dirigindo inexoravelmente para a total dependência da tecnologia, o que se costuma atribuir ao controle de um ente imaterial, “o mercado”.
Pensava-se que o fim da ciência seria devido à sua extrema eficiência, depois de ter construído o conhecimento completo sobre a matéria, sobre o mundo. No entanto, devemos temer um outro fim, que, segundo Heidegger, seria devido à sua submissão total ao programa tecnológico, ao establishment que ajudou a construir.
Essa contradição interna na ciência raramente é percebida de fora.
Assim como os historiadores ensinam como se perdeu o sentido da relação transcendental do artesão com sua obra no sistema feudal, destruída pela ascensão da burguesia; assim também, de modo semelhante, poderia ocorrer na ciência, com os aparelhos de Estado controlando totalmente seu desenvolvimento.
Referências
Mario Novello: Manifesto Cósmico (2016).
Rocha, R. C. Crise Orgânica do Capital e a Crise de Paradigmas na Ciência em tempos de pandemia. 2021. 150f. Tese (Doutorado em Políticas Públicas e Formação Humana) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.
Karl Marx e Friedrich Engels: Manifesto Comunista (versão da Ed. Cia das Letras, 2020)
Albert Lautman in Les mathématiques, les idées et le réel physique, Paris Ed Vrin, 2006 (original de 1977).
Mario Novello : Universo Inacabado (Ed. N – 1) 2018
Vitaly Melnikov. Variations of constants as a test of gravity, cosmology and unified models. Grav. Cosmol., 2007, 13, N 2(50): 81.