A crise na física, a crise na ciência e a crise orgânica do capital
Na última década, a crise na ciência foi reconhecida como um problema real por um número cada vez maior de cientistas. Em uma enquete de 2016, publicada na Nature, da qual participaram 1.576 pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, 90% destes afirmaram existir uma crise de reprodutibilidade na produção científica e 52% do total afirmaram tratar-se de uma crise significativa. Apenas 3% refutaram taxativamente tal diagnóstico (BAKER, 2016). Nesta pesquisa físicos e químicos se mostraram um pouco mais confiantes que cientistas de outros campos como psicologia e medicina, mas, mesmo assim, apenas 73% destes apostariam que mais da metade dos artigos publicados em suas áreas trazem conclusões corretas, um percentual similar ao dos físicos que também responderam terem fracassado ao tentar reproduzir um experimento alheio.
A crise da ciência não é um tema restrito aos círculos especializados. No caso da física, na medida em que não houve descoberta significativa em seus fundamentos desde os anos 1970s, a própria divulgação científica passou a repercutir temas como a crise do modelo padrão, a crise da teoria das cordas, a crise na cosmologia, e, dentro desta, a falência da tão propalada ideia do Big Bang como criação do universo a partir de um ponto no espaço e no tempo.
É possível relacionar a crise da física, dentro do contexto de uma crise geral da ciência tal qual ela é hoje produzida, com crises paradigmáticas mais gerais da sociedade, que, por sua vez, também se expressam em crises globais concretas como a do coronavírus, a ambiental, a da crescente fome e a da guerra pelo mundo? O materialismo histórico responde afirmativamente a esta questão ao propor um caminho de interpretação no qual a inter-relação entre todos esses processos críticos pode ser pensada justamente na medida em que estas crises são determinadas pelas relações sociais que os seres humanos estabelecem entre si e com a natureza.
Analisando a formação social que nos é contemporânea, cujos paradigmas mais gerais são derivados da relação-capital, BEVILAQUA (2017) desenvolve uma teoria marxista da crise orgânica do capital que destaca a interconexão entre a crise econômica e as crises da ciência e da educação. Ambas a ciência e a educação tem um importante papel na explicação da dinâmica geral e na trajetória histórica da crise do capital, já que incindem na composição orgânica do capital, definida como a proporção entre o trabalho vivo, imediato, cujo trabalhador está presente e o trabalho pretérito, acumulado em máquinas, softwares, insumos e infraestrutura, que se confrontam e se amalgamam no processo de produção de mercadorias. O trabalho científico e educativo foi a base dos efeitos disruptivos da tecnologia na sociedade experimentados na Revolução Industrial.
Por outro lado, a crise orgânica do capital se generaliza da econômica para as demais esferas da sociedade e constrange o desenvolvimento da ciência e da educação que são deformadas para atender às necessidades do capitalismo em crise. O problema da ciência e da educação é o mesmo problema da sociedade em geral.
1 A física está alheia às relações sociais?
A física é considerada um modelo de ciência exata, enquanto que existe o entendimento de que a biologia situa-se no meio do caminho entre as ciências moles e as ciências duras. A linha que separam essas duas culturas científicas, na definição de C. P. Snow, também delimitam, na biologia, por um lado, disciplinas como a biofísica e a bioquímica, consideradas parte das ciências exatas, e, por outro, áreas como evolução e ecologia, nas quais o diálogo com as ciências humanas e seus métodos é muito mais profícuo para que o caráter complexo de seus processos seja revelado.
Essas interações são indispensáveis para o avanço do conhecimento, contudo cabe destacar que o diálogo e a apropriação de conceitos e categorias não ocorre apenas entre diferentes campos da ciência, mas existem também intensas trocas entre as ciências e as outras instituições sociais. Nas ciências biológicas, em diferentes áreas como ecologia, agricultura e evolução, estão bem estabelecidas as críticas que demonstram como os seres humanos projetam suas relações sociais na natureza, de forma a naturalizar as relações dominantes e o efeito condicionante que isso tem sobre o tipo de ciência que é produzida (LEWONTIN, 2000),(PRIMAVESI, 2002), (GOULD, 2002).
Diferentemente do que muitos pensam, as categorias da física também são historicamente determinadas. Um exemplo é a convenção de se chamar os polos elétricos opostos de negativo e positivo, algo que têm muito das crenças liberais de equilíbrio do mercado que permeavam a sociedade em que vivia Benjamin Franklin, um bem-sucedido homem de negócios, que criou esses conceitos. Em sua teoria do fluído único, a carga elétrica era como o dinheiro na economia, que naturalmente tenderia a se balancear através de uma série de débitos e créditos.
Ainda que nas ciências físicas, esse debate seja mais incipiente que nas ciências biológicas, ele é igualmente necessário para entender sua crise pois, sendo possível demonstrar a presença dos paradigmas gerais da sociedade capitalista nas categorias da física, não pode ser desconsiderado o efeito, nestas, da crise orgânica do capital.
Tanto a ciência quanto a visão de mundo mais geral de uma sociedade compartilham paradigmas que, diante da crise orgânica do capital, se revelam insuficientes para lidar com a complexa realidade em que vivemos (BEVILAQUA, 2015). Um desses paradigmas é o reducionismo adotado por Descartes quando este estabeleceu com a geometria analítica as coordenadas para uma descrição matemática do mundo. Indispensável para o desenvolvimento da física no século subsequente, o reducionismo também faz parte da forma como encaramos as relações sociais, ao permitir, por exemplo, a formação do conceito de mercado pela redução de todas as mercadorias a um equivalente comum, o valor de troca, assim como os trabalhadores são reduzidos a uma força de trabalho comum. Não é mera coincidência que tanto a visão liberal do mercado de Smith quanto o universo físico de Newton descrevam o mundo como composto por indivíduos, ou corpos, isolados, que perseguem seus interesses ou mantêm suas trajetória, a não ser que afetados por um choque com outro corpo ou pelo efeito de uma força externa invisível, seja ela o mercado ou a gravidade (CAUDWELL, 1968).
Admitir as determinações de caráter histórico-social no corpo da física não impede que se reconheça uma série de avanços cognitivos obtidos por esta. Foi através desse tipo de abstração que floresceu a matematização do estudo da natureza no século XVII. O cálculo, inventado por Newton e Leibniz, permitiu que soluções fossem dadas para uma série de problemas práticos da produção material, alguns dos que atormentavam as mentes humanas desde a antiguidade. As diferentes equações integrais e diferenciais que surgiram do cálculo, ao representarem a relação entre quantidades físicas e suas taxas de mudança, permitiram o estudo de diversos fenômenos da natureza como a propagação do calor, os campos eletromagnéticos e a dinâmica de fluídos. Estas descobertas da física somada ao trabalho empírico dos artesãos e mecânicos resultou na criação das máquinas, a partir da externalização da forma e dos movimentos do corpo humano, o que deu início à revolução industrial que transformou o mundo.
Porém com o passar dos séculos o modo reducionista de enxergar a realidade mostrou-se incapaz de analisar as diversas e complexas relações que surgiram da formação, ao longo de séculos, de um mercado verdadeiramente mundial, que intensificou as inter-relações entre diferentes fenômenos sociais, muitas vezes de forma não linear. Abusado, o princípio da navalha de Ockan levou à confusão entre a necessária exclusão de epiciclos imaginários para que a causalidade seja estabelecida e a crença exagerada nos modelos, a ponto destes serem tomados pela realidade.
Mesmo três séculos após Newton e Leibniz, e a emergência dos problemas da complexidade, o método reducionista não foi suplantado em muitas disciplinas científicas contemporâneas. Por exemplo, a mecânica quântica tem esse nome porque trata-se de uma teoria que busca descrever as interações entre as partículas subatômicas consideradas abstraindo-se todo o restante do mundo, todas as externalidades, todo o tempo histórico, por isso mecânica.
Um elétron em um determinado orbital atômico, ao ser excitado pela absorção de um fóton irá necessariamente para o orbital que corresponde exatamente à energia que ele tinha acrescida à energia do fóton. Uma transferência de energia que ocorre sem nenhum desperdício para o ambiente na forma de calor. Um movimento que, abstratamente[1] é completamente reversível, pois totalmente simétrico no tempo: ao retornar ao primeiro orbital, o elétron emite um fóton indistinguível do fóton que tinha sido absorvido, com exatamente a mesma energia e propriedades. Nesta abstração, que isola apenas este nível fundamental da realidade, a própria seta do tempo evapora, pois nem as leis da termodinâmica são consideradas, já que estas apenas fazem sentido quando consideramos a relação entre um grande número de partículas.
Da mesma forma, a física de partículas nos ensina que o decaimento β+ de um próton em um núcleo radiativo sempre gerará um nêutron, um pósitron e um neutrino do elétron, mas não há nenhuma sobredeterminação que permita que no lugar de um pósitron surja um elétron. Os elétrons são considerados partículas fundamentais, de natureza pontual (raio zero).
Essa visão mecânica dos níveis tidos como mais fundamentais da realidade tem implicações interessantes para a forma como muitos físicos experimentalistas encaram seus trabalhos. Lisa Randall comentou desta forma a natureza de sua pesquisa no acelerador de partículas do CERN:
Estudamos sistemas que são tão básicos quanto possível para que possamos isolar componentes e leis fundamentais. A ideia é fazer sistemas experimentais tão limpos quanto os recursos existentes permitem. O desafio para os físicos é alcançar os parâmetros físicos necessários, em vez de desemaranhar sistemas complexos. (RANDALL, 2002, tradução do autor)
Físicos que pensam assim reivindicam a existência de um nível fundamental da realidade, acessado de forma imediata, desde que haja energia e dinheiro suficientes[2], no qual, para se obter conhecimento não é necessário desemaranhar nenhum sistema complexo. Contudo, está é, em si, uma posição mais ideológica do que eles reconhecem.
2 A crise na física
Apesar da física de partículas advogar para si uma condição de fundamentalidade e um alto grau de independência de suas teorias do restante do mundo que extravasa seu objeto considerado, um quadro diferente, e mais completo do seu estado atual transparece quando a história da disciplina é considerada. E não apenas pelo fato da física de partículas, ou de altas energias, ter surgido como resultado da corrida armamentista nuclear entre as nações, mas por muitas outras dinâmicas cotidianas, mas igualmente reveladoras, como, por exemplo a questão de como os financiamentos distribuídos entre os grupos acadêmicos ajudam a formar uma força contrária à renovação metodológica.
Segundo Peter Woit (2006), isso está no centro da grave crise que a física de partículas enfrenta desde os anos 1980 com a insistência da comunidade no claudicante paradigma das cordas supersimétricas. Essas teorias, no plural, porque há mais de uma versão matematicamente consistente, tenta explicar todas as partículas da física a partir da vibração de minúsculas cordas muito pequenas que descreveriam nosso mundo, desde que ele tivesse 10 dimensões. Mas nenhum experimento foi capaz de atestar a existência dessas cordas, o que sugere que apesar de toda a complexa, intricada e bela matemática que surgiu dessa teoria, não há evidência de que ela descreva o mundo no qual vivemos.
Apenas mais recentemente um maior espaço passou a ser dado para as teorias alternativas à das supercordas, como a da gravidade quântica em loop, sobretudo com o fracasso do LHC, experimento que custou cerca de 5 bilhões de dólares, em detectar as partículas previstas pela supersimetria, sendo a única partícula fundamental descoberta, o Bóson de Higgs[3], que faz parte do modelo padrão e não da teoria das cordas supersimétricas que deveria suplantá-lo.
Para Woit, durante décadas, uma indústria foi formada em torno da teoria das supercordas, “o único jogo na cidade”[4]: doadores foram cativados, prédios erguidos, conferências realizadas em locais paradisíacos, a imprensa se interessou, bolsas eram concedidas em quantidade. Tudo isso, para ele, responde pela força dessa teoria apesar da notória ausência de evidências experimentais.
O astrofísico Freeman Dyson, outro crítico da teoria das cordas acrescenta um outro elemento da mesma ordem.
Por que tantos jovens são atraídos pela teoria das cordas? A atração é parcialmente intelectual. A teoria das cordas é ousada e matematicamente elegante. Mas a atração também é sociológica. A teoria das cordas é atraente porque oferece empregos. E por que tantos empregos são oferecidos na teoria das cordas? Porque a teoria das cordas é barata. Se você é o chefe de um departamento de física em um lugar remoto sem muito dinheiro, não pode se dar ao luxo de construir um laboratório moderno para fazer física experimental, mas pode se dar ao luxo de contratar alguns teóricos de cordas. (DYSON, 2009).
Facilitou o fato de que essas teorias, unificadas matematicamente e rebatizadas de teoria-M, permitiam acomodar dentro de si a descrição de uma quantidade gigantesca de universos distintos. Isso gerou um problema observado por Woit do departamento de matemática da Universidade de Columbia:
A possível existência de, digamos, 10500 estados de vácuo diferentes e consistentes para a teoria de supercordas [consequentemente de universos diferentes, com suas respectivas forças e partículas] provavelmente destrói a esperança de se usar a teoria para prever qualquer coisa. Se escolhermos entre esse conjunto grande apenas aqueles estados cujas propriedades concordam com as observações experimentais atuais, é provável que ainda exista um número tão grande delas que se possa obter qualquer valor que se queira para os resultados de qualquer nova observação (WOIT, 2006, p. 242).
Este é um exemplo de como através da concessão de recursos e de outras relações políticas, a sociedade influencia os temas a serem pesquisados por uma ciência exata como a física, ao ponto de mantê-la num beco sem saída por décadas. Porém, a inércia causada pela ação dos grupos que buscam se perpetuar na academia, um clássico exemplo de fenômeno externo influenciando no interior de uma disciplina é apenas uma parte da explicação. Um outro quinhão desta pertence à própria forma como as categorias da física são moldadas pelas convicções mais íntimas dos e das cientistas, reconstruídas todos os dias a partir do material mental herdado das gerações anteriores.
Como, então, o desenvolvimento dessas disciplinas é afetado pela crise do capital que se generaliza, expressando-se em praticamente todas as esferas da sociedade?
Para se explorar a hipótese de que a crise da física está relacionada com a crise do capital, existe um bom ponto de partida: em 1929, Cristopher Caudwell buscou, brilhantemente, relacionar a forma como os físicos lidavam com a crise da física, em particular, com a forma reducionista com a qual a ciência burguesa lidava com a crise do capital, e com as crises em geral:
As crises surgem com a violência e imprevisibilidade de terremotos. A sociedade burguesa está cheia de qualidade insurgente; contudo, os economistas procuram explicar essas perturbações, exatamente como o físico tenta despojar o Universo da qualidade, rotulando-as como desvios, acidentes, funcionamento defeituoso, como irreais (CAUDWELL, 1968, p. 213).
Para Caudwell, a relação entre esses diferentes paradigmas em crise não é mera coincidência, a interconexão se dá materialmente no cérebro das pessoas, através do compartilhamento, normalmente inconsciente, de categorias gerais através das quais estas entendem o mundo que as rodeiam.
Tomemos o caso da física. Existe, primeiramente, a teoria geral ou filosofia do mecanismo, que o cientista burguês adota inconscientemente. Ele não tem ideia de que ela é uma metafísica: ele a imagina como sendo apenas um modo de examinar as coisas cientificamente, isto é, objetivamente. Ele supõe que o objeto, conforme este aparece na economia burguesa, é a única maneira pela qual a Natureza pode aparecer para os homens. Esta filosofia é comum a todas as ciências. (CAUDWELL, 1968, p. 221)
Caudwell escreveu sobre a crise de paradigmas da Física dos anos 20 e 30 do século passado, evidenciada, para este autor, pelas contradições entre a física clássica, e a então nascente mecânica quântica. Esta crise manifestou-se de uma forma empírica com o fracasso da física clássica em explicar certos experimentos como, por exemplo, o efeito fotoelétrico e a radiação de corpo negro (catástrofe do ultravioleta), ou mesmo o experimento da dupla fenda de Thomas Young que demonstrou que a luz existia concomitantemente como partícula e como onda.
Mesmo esta crise tendo se iniciado no campo experimental, seu enfrentamento e racionalização pelos físicos é um empreendimento que também depende da visão de mundo destes.
A física é o conhecimento sobre realidade, mas é conhecimento abstrato, generalizado. As abstrações ou generalizações são reflexos das relações sociais pelas quais e através das quais a realidade foi feita conhecimento consciente (CAUDWELL, 1968).
Um exemplo disso é a existência de distintas interpretações conflitantes da mecânica quântica, que, com base na mesma matemática, diferem totalmente sobre questões fundamentais como: se essas equações representam um mundo determinístico ou estocástico, quais elementos da mecânica quântica podem ser considerados reais, o significado do colapso da função de onda, e qual é a natureza da medição, entre outros.
A interpretação que se tornou dominante desde muito cedo na história dessa disciplina foi a de Copenhague, que considera a probabilidade como um fenômeno físico e não como uma medição do nível de informação sobre o mundo físico[5]. Hoje essa interpretação já não desfruta mais do prestígio de antes, e muitos críticos consideram que essa compartilha com diferentes disciplinas científicas fora da física, como por exemplo com a econometria, a falácia pitagoriana de pensar que a maneira, os instrumentos, as equações com as quais vemos o mundo refletem a maneira como o mundo realmente é.
A crise que representou para a Física a descoberta de um novo nível de realidade, aquele das partículas subatômicas, levou, inclusive, a um problema de demarcação, tendo em vista que Bohr e Heisenberg postulavam, numa reedição de Kant, que o conhecimento da natureza da matéria por trás dos fenômenos quânticos estava fora do alcance da investigação científica.
Ao longo do século XX, o reducionismo na física foi perdendo capacidade explicativa na medida que a coleção de partículas subatômicas não parava de crescer, levando-nos ao atual quadro no qual caiu por terra a visão antiga de um mundo povoado por algumas poucas partículas diferentes, bem-comportadas, de nomes simples como prótons, nêutrons, elétrons e fótons, no máximo com suas contrapartes do reino da antimatéria. No lugar desse quadro impôs-se um outro bem diferente com dezenas de partículas distintas, entre férmions e bósons, ou ainda as abstrações matemáticas para explicar os estágios intermediários através dos quais uma partícula se converte em outra recebendo os nomes de partículas virtuais, ou mesmo as quasipartículas, fenômenos emergentes de quando materiais como sólidos se comportam como se fossem compostos de partículas. O anseio de ordem, previsibilidade e controle dos cientistas chocou-se com o princípio da variação do universo, da diversidade.
3 A refundação da física pela cosmologia, a primeira ciência
Uma disciplina da física na qual, desde os seus primórdios e ao longo de sua história a diversidade do universo se reafirma, não como um axioma mas inferida de múltiplas evidências, é a cosmologia, que ressurgiu com força a partir do século XIX, exercendo uma renovada influência sobre a física.
A cosmologia, uma ciência histórica, colocou novos problemas e novos paradigmas para a física de partículas da mesma forma que a evolução, outra ciência histórica, fez com a biologia. Como afirma Novello:
Somente quando colocamos a Cosmologia na frente de nossas intenções de dialogar com a natureza, aceitando seu efeito desestabilizador do pensamento tradicional da física, eliminando assim o nevoeiro que envolve o discurso formal da ciência fixado pelas práticas que configuraram a sociedade, é possível enxergar com clareza as consequências da aceitação de que a verdadeira ciência fundamental é histórica (NOVELLO, 2018).
Mas, se a ciência cosmológica como esta começa a ser pensada no século XXI, possibilita a compreensão de um novo nível de complexidade do real, apreendendo novas formas da matéria se relacionar consigo mesma, nem sempre foi assim. Na segunda metade do século passado o pêndulo pendeu para o sentido contrário, para o reducionismo, que aliado a uma posição antirrealista de muitos físicos (shut up and calculate), enredou a cosmologia a conceitos criados da fusão da ciência com as ideias dominantes da sociedade. Exatamente como ocorre nas ciências biológicas, e, talvez ainda mais extensivamente, nas econômicas e demais ciências humanas, alguns dos conceitos cosmológicos respondiam mais a critérios ideológicos que científicos.
Um exemplo é a ideia do Big Bang, quando apresentada como sendo sinônimo do universo ter se originado de uma singularidade inicial com volume zero e densidade de energia infinita, tal como ela foi proposta nos anos 50 e 60 do século passado por Hawking, Penrose e outros, uma ideia que remetia ao átomo primordial proposto por Lemaitre em 1931, mas também ao Genesis da bíblia. É importante registrar que os dois primeiros viveram o bastante para mudarem de ideia e admitirem que as soluções que propuseram para as equações da relatividade que tinham como corolário a necessária existência de uma singularidade eram para casos hipotéticos especiais, assumindo-se certos axiomas, e que não há evidência de que o universo tenha se originado dessa forma. Porém, esse reconhecimento do limite de suas ideias a determinados modelos, mal foi noticiado, em comparação com a intensidade com que o Big Bang, mito de criação neoliberal, foi difundido pela mídia, levando essa ideia a extrapolar o campo da divulgação científica, tornando-se presença constante no imaginário social.
O Big Bang é apresentado como a conclusão lógica de 3 observações: o desvio para o vermelho na luz das estrelas mais distantes, a proporção entre hidrogênio, hélio e demais elementos nas galáxias e a radiação cósmica de fundo. Contudo, nenhuma dessas descobertas, que estão bem estabelecidas, e que indicam um passado mais quente e denso do universo, permitem concluir que o cosmo tenha sido criado a partir do nada. Para Novello:
A verdadeira responsável por isso foi a ideologia que estava além das observações, e que os levou a concluir abruptamente que, se o Universo tivesse sido mais quente no passado, não deveria haver limite superior à sua temperatura. Consequentemente, ela teria atingido o valor infinito em um tempo separado de nós por um valor finito — uns poucos bilhões de anos. Teria havido uma grande explosão inicial dando origem a tudo que existe! (NOVELLO, 2010, p. 22).
A afirmação de que o universo surgiu a partir de uma singularidade implica uma concessão ao irracionalismo, e demarca uma zona proibida à investigação científica, limitando o alcance do nosso entendimento do universo. Um universo com uma origem a partir do nada, viola o princípio da causalidade e coloca em cheque qualquer possibilidade de assertiva científica. Se algo surgiu do nada, não podemos descartar que isso não voltaria a ocorrer. Neste caso “o programa de descrição racional do mundo encontraria uma barreira intransponível”, o problema levantado por Hume sobre a indução se revelaria insolúvel, e nada sobre nossa experiência do universo poderia explicar seu presente estado ou nos permitir fazer projeções (NOVELLO, 2010, p. 51).
Novello, constata que “hoje, não temos nenhum indício que permita afirmar que esse processo de criação e destruição tenha um fim” e por isso propõe a ideia materialista dialética de que o “Universo ainda está em formação, é inacabado, eternamente inacabado, imerso em um processo contínuo de formação, criação e destruição” (NOVELLO, 2021).
Ao mesmo tempo em que a ideologia do Big Bang limitava o alcance da ciência, fornecia as bases para uma cosmologia compatibilizada com a descrição religiosa do Cosmo. Segundo Lerner:
Hoje, os teóricos do Big Bang veem um universo muito parecido com o imaginado pelos pensadores da Idade Média – um cosmo finito criado ex nihilo, cuja perfeição está no passado e que se encontra em degeneração rumo a seu fim. Os princípios perfeitos que conformam este universo só podem ser conhecidos pela razão pura, guiada pela autoridade, independente da observação. Esse mito cósmico surge em períodos de crise social ou recuo e reforça a separação entre pensamento e ação, governante e governado (LERNER, 1992, p. 6, tradução do autor).
A degeneração medieval do universo, apresentada em roupagens científicas como a ideia de uma morte térmica do universo, a outra face da moeda do Big Bang, foi criticada por Engels em carta a Marx de 21 de março de 1869 como
uma teoria muito absurda (…), que “segue com certa inevitabilidade da velha hipótese de Laplace, mas agora é exibida, por assim dizer, com provas matemáticas: que o mundo está ficando cada vez mais frio (…) Estou simplesmente esperando o momento em que os clérigos se apoderem dessa teoria como a última palavra no materialismo. (…) o estado quente original, a partir do qual as coisas esfriaram, é obviamente inexplicável, mesmo contraditório e, portanto, presume um deus. O primeiro impulso de Newton é, portanto, convertido em um primeiro aquecimento (ENGELS, 2010, p. 245-246).
Para esta visão, de que a lei das leis do universo é a do aumento inexorável da entropia, a vida é uma exceção no desenvolvimento natural do universo, que deve assumir, paulatinamente uma existência cada vez mais simples e desinteressante até ele se transformar numa grande sopa homogênea caótica na qual nenhuma relação causal mais possa ser estabelecida.
Alguns pesquisadores, como Prigogine, seguindo a trilha de Engels, de observar as transformações dialéticas presentes na natureza, perceberam como essa visão vai contra o que podemos observar em todo o desenvolvimento histórico, no qual o mundo vai cada vez se complexificando mais, conforme a realidade vai sendo tecida a partir da interconexão de múltiplas determinações. Prigogine, através da formalização de suas estruturas dissipadoras, foi capaz de entender a vida, não como uma exceção, mas como a consequência lógica e histórica do desenvolvimento do universo, o que por sua vez tem implicações contrárias à cosmologia neoliberal.
Não há nenhum experimento científico capaz de, sozinho, decidir por uma dessas duas posições sobre a história do cosmos, ou mais especificamente, sobre o significado do mensurável aumento da entropia no universo observável. Essa impossibilidade, que deriva justamente do fato epistemológico de que nosso conhecimento da realidade nunca será completo, é o que impede que exista uma palavra final, tanto pela posição dialética de que esta é uma propriedade local do universo, sujeita a transformar-se ao longo do tempo, quanto pela que a enxerga como uma lei universal e imutável, que leva a um universo que na verdade é a-histórico, pois todo seu futuro encontra-se inscrito e pré-determinado em seu seu presente, sem a possibilidade de inovações, ou mesmo saltos de qualidade.
Os marxistas partem da inter-relação de todas as coisas, do movimento constante do universo no qual as condições que permitem sua existência atual são negadas num processo de transformação histórica, também, da constatação de que as leis do universo são históricas e que também estão em constante transformação pois a realidade material está sempre criando novas formas de relacionar-se consigo mesma. Enquanto que a cosmologia neoliberal do Big Bang encontra-se em posição análoga a de um agrupamento de seres humanos, que, num passado longínquo acreditavam não haver nada além de certa montanha para eles intransponível[6]. Da mesma forma, por uma limitação de perspectiva, pensava-se no passado que a terra era plana e que também que era o centro do universo.
Não há novidade nesta interação entre conhecimento objetivo e justificativas sociais, a própria cosmologia, quando surgiu, já era uma quimera híbrida de ambos, produto do esforço dos seres humanos do paleolítico que procuravam no céu respostas para fenômenos terrestres cíclicos, fossem eles naturais ou sociais.
A Arqueoastronomia nos ensina que na passagem do paleolítico para o neolítico, a partir de novas necessidades advindas do surgimento da agricultura, diversos monumentos megalíticos foram erguidos de forma cuidadosa para que estivessem alinhados aos astros, isso ocorreu de forma independente em todos os continentes habitados, sendo Stonehenge Stonehenge o mais famoso desses monumentos, com seu alinhamento com o nascer do sol no solstício de verão e com o pôr do sol no solstício de inverno.
A ligação entre Stonehenge e as práticas agrícolas foi recentemente confirmada pela descoberta, através da análise de ADN, que seus construtores eram agricultores que, vindos da Turquia, suplantaram as populações que viviam da caça e da coleta na região (BRACE, 2019), o que sugere que o sítio de Stonehenge está ligado a rituais que marcam as estações do ano e regulam a produção agrícola, indicando os períodos da semeadura e da colheita.
Há dezenas de milhares de anos, tudo que os seres humanos podiam sondar do cosmos além da terra estava na observação direta do céu, por isso a astronomia está na base do desenvolvimento de todas as ciências posteriores, algo hoje bastante estudado pelos arqueoastrônomos, mas já reconhecido por Engels nas suas anotações sobre a história das ciências anexadas à Dialética da Natureza:
Estudar o desenvolvimento sucessivo dos ramos individuais da ciência natural. – Primeiro a astronomia – já por causa das estações do ano, absolutamente necessária para os povos pastoris e agrícolas. A astronomia só pode se desenvolver com a ajuda da matemática. Esta, portanto, também deverá ser tratada. (…) Assim sendo, já desde o início, o surgimento e o desenvolvimento das ciências condicionados pela produção. (ENGELS, 2020).
Ainda que haja alguns exemplos de calendários antigos não agrícolas, produtos de outras dinâmicas sociais, a necessidade imperiosa de se conhecer os ciclos da natureza para o sucesso das colheitas indica um forte entrelaçamento entre o estudo dos efeitos do movimento do planeta pelo espaço, o estudo do cosmo e o desenvolvimento da agricultura. Fica claro como o conhecimento objetivo da natureza, originou o edifício científico, cujo critério de verdade tinha que ser a prática, pois foi sendo sistematizado por conta das necessidades da produção social. Por outro lado, o assentamento em torno de santuários como Stonehenge, por força das dinâmicas sociais no interior das comunidades levou, por sua vez, dialeticamente, à necessidade de se alimentar uma população cada vez maior, o que foi um grande impulso ao desenvolvimento da agricultura.
Em outras palavras, muito antes do capitalismo, o pensamento científico surge como um desdobramento do trabalho produtivo ao mesmo tempo que resultou das necessidades da produção, criou também novas necessidades que transformaram a sociedade.
Paralelamente à confecção de calendários surgiram diversos rituais para marcá-los, e logo, rituais para garantir que o ciclo ocorresse em harmonia, o que passou a demandar a intervenção humana, unindo a ação dos homens à história do cosmo. É essa a função, nos Andes, das intihuatanas, as pedras onde se amarra o sol, como a que existe em Machu Pichu.
Com o surgimento do excedente de produção e a diferenciação na sociedade, agora controlada por sacerdotes e guerreiros, os rituais puderam tornar-se cada vez mais abstratos e complexos propiciando o surgimento de uma reprodução mental do mundo terreno, o mundo celestial. E, da mesma forma que os calendários serviam para interpretar a ordem material, a crença nos deuses favorecia o ordenamento social no momento em que a comunidade primitiva se cindia em classes sociais.
A cisão da sociedade terrena passou a ser justificada pela ordem divina. Os diferentes espíritos, onipresentes nas religiões animistas, seja nas forças da natureza, ou nos diferentes animais e plantas, foram sendo paulatinamente substituídos por deuses guerreiros, antropomorfizados. A vitória de um deus sobre os outros fundamentava a escravidão de um povo por outro.
Depreende-se assim o papel especial e dual que a ciência cosmológica teve no alvorecer da sociedade de classes: ela resultou da necessidade objetiva de um calendário que servisse à agricultura, uma necessidade do desenvolvimento das forças produtivas, e, concomitantemente, ao ordenar o cosmos e sua história ela justifica a ordem social que nascia da dissolução da comunidade primitiva.
Ambos os papéis perduraram ao longo da história, mas, no caso da cosmologia, o primeiro foi perdendo importância para o segundo, na medida em que, após a compreensão das estações do ano, o estudo das estrelas pouco podia fazer avançar a agricultura, enquanto havia todo um campo aberto para a interpretação do cosmos justificar e condicionar a sociabilidade humana.
Esse processo dialético e contraditório entre a ciência como uma forma de conhecer a natureza e, por outro lado, sua apropriação por parte da sociedade como forma de exercer dominação política é uma das chaves para entendermos a atual crise na ciência, seja ela na física, na biologia ou na economia e sua relação com a crise orgânica do capital.
Referências
AKER, Monya. 1,500 Scientists lift the lid on reproducibility. Nature News, v. 533, n. 7604, p. 452, 2016.
BEVILAQUA, A. P. A Crise Orgânica do Capital: o Valor, a Ciência e a Educação. Vol. 1. Rio de Janeiro: Inverta/Edições UFC, 2017.
CAUDWELL, Christopher. O conceito de liberdade: para uma teoria marxista de estética, Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
DYSON, Freeman. Birds and frogs. Notices of the AMS, v. 56, n. 2, p. 212-223, 2009.
ENGELS. F. Letter to Karl Marx, March 21, 1869. in Karl Marx and Engels Collected Works: Volume 43, London, UK: Lawrence & Wishart, 2010, pp. 245.
______. Dialética da natureza. Boitempo Editorial, 2020.
GOULD, Stephen Jay. The Structure of Evolutionary Theory. Cambridge, MA: Belknap of Harvard UP, 2002.
HOSSENFELDER, Sabine. Lost in math: How beauty leads physics astray. Hachette UK, 2018.
LEWONTIN, Richard C. Biologia como ideologia: a doutrina do ADN. FUNPEC, 2000.
NOVELLO, Mario. Manifesto cósmico. Cosmos e Contexto. 2018. Disponível em: <https://cosmosecontexto.org.br/manifesto-cosmico/>. Acessado em 20 fev 2022.
______. Do Big Bang ao universo eterno. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2010.
______. Quantum e cosmos: Introdução à metacosmologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2021.
PRIMAVESI, Ana. Manejo ecológico do solo: a agricultura em regiões tropicais. NBL Editora, 2002.
RANDALL, Lisa. Knocking on Heaven’s Door: How Physics and Scientific Thinking Illuminate Our Universe. Random House, 2012.
WOIT, Peter. Not even wrong: The failure of string theory and the search for unity in physical law. Basic Books (AZ), 2006.WOIT, Peter.
[1]Na realidade, para revertermos o movimento de uma partícula, dada a teoria do caos, teríamos que ter uma precisão infinita de sua posição, o que é impossível.
[2] O que em alguns casos é impossível. Para se observar objetos tão pequenos como as supostas cordas, que tem uma ordem de grandeza de 1 comprimento de Plank, 10-35 m, seria preciso construir um acelerador de partículas do tamanho da Via Láctea. (HOSSENFELD, 2018).
[3]Até março de 2021 o LHC havia descoberto também 59 hádrons, mas estes não são partículas fundamentais, são partículas compostas de dois ou mais quarks, por sua vez já conhecidos.
[4]Essa expressão, título de um capítulo de Woit é tirada de um conto de Kurt Vonegutti no qual um viciado em jogos de azar perdia todos os dias sua camisa em um jogo de póquer. Alertado que o jogo era viciado e que se continuasse assim ele terminaria sem nada, ele responde que sabia, mas que esse era o único jogo na cidade.
[5]Como é o caso, por exemplo de uma interpretação bayesiana.
[6]Essa mera ilustração não basea-se no que sabemos sobre os primeiros seres humanos, que cada vez mais aprendemos que eram ávidos exploradores sempre atravessando montanhas, desertos e oceanos.