Jogos da Natureza – Parte V – Capítulos 9 e 10
CAPÍTULO 9: Jogo da Dicotomia
Maria Luísa pensava distraidamente no modo pelo qual o dr. Luís havia preparado a lista de convidados para a festa em homenagem ao professor Ulpiano. Ia ser uma bela mistura de colegas físicos com seus companheiros filósofos.
Ela estava orgulhosa de si pois a razão desta reunião não era para comemorar nenhuma data especial deles; não era aniversário de nenhum amigo, nem nenhuma comemoração convencional, mas sim estava ligada a ela. Ulpiano havia interpretado seus sonhos de um modo especial e desde que souberam disso, os amigos de seu pai ficaram ansiosos para conversar a esse respeito. Segundo ele, os sonhos dela representavam pensamentos, reflexões, pontos de vista do dr. Luís, com uma vantagem excepcional: estavam condensados naquilo que era essencial para a sua compreensão. Ademais, na linguagem dos sonhos, as teorias mais modernas que os cientistas estavam produzindo sobre o comportamento do universo se tornavam compreensíveis, mesmo para eles que não tinham nenhuma formação científica. De que modo a visão de mundo do dr. Luís conseguira passar para os sonhos da filha era precisamente o que Ulpiano havia entendido e iria explicar. Entre seus comentários havia igualmente a explicação da razão pela qual os filósofos e os físicos tinham resolvido participar da festa vestidos de palhaços!
E esta festa iria acontecer daqui a pouquinho!
Seu pensamento passeava pela cena de seleção dos convidados. Tendo numa das mãos a agenda de telefones, o dr. Luís lia um por um os nomes e, dizendo ora sim, ora não, copiava alguns para uma folha de papel. Quando percebeu que ela o olhava, virou-se para ela.
— Parece até um jogo, não é? E se tivéssemos que dar-lhe um nome seria natural que o chamássemos de Jogo da Dicotomia, não acha?
Ela fez um gesto como quem concorda, sem o menor entusiasmo. Embora ela soubesse o que significava dicotomia, não conseguia imaginar como se poderia fazer um jogo interessante de uma atividade tão trivial. Mas como estava na hora de ela dormir, não pensou muito nisso, pois logo seus olhos se fecharam.
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Isso sim, disse ela, daria um bom jogo: o jogo dos contrários! Pena que a Natureza não saiba disso.
— “Como não?” interveio o fóton mostrando uma intimidade grande com ela. Parecia mesmo que o fóton tinha sido escolhido para dialogar com a menina. “Esse jogo é muito mais popular do que você pensa. Eu sei muito bem disso. E não sou só eu. Todos os meus companheiros também sabem, como o neutrino, o píon, o …”
— “Todos sabem?” interrompeu bruscamente Maria Luísa. Ela preferiu ser um pouco indelicada do que arriscar a ter que ouvir o fóton enumerar, como era de seu feitio, uma longuíssima lista de amigos. Ela conhecia bem a inércia do fóton nesses momentos e antes que começasse a citar todas as partículas, decidiu que deveria interrompê-lo.
— Em verdade nos divertimos com esse jogo o tempo todo! E como pode ser jogado dentro de outros jogos, isso acontece com frequência.
— Não entendi, retrucou ela.
— É simples: o jogo-da-dicotomia não interfere na estratégia de outros jogos. É como se fosse nada mais do que um pequeno detalhe para prolongar um pouquinho mais o tempo entre uma ação e outra de um jogo maior.
— Você vai me perdoar, mas ainda não consegui entender.
— Venha comigo e vou mostrar como isso funciona na prática.
A menina ficou muito interessada. Começaram a andar e passaram por uma espécie de labirinto, cheio de portas, que o fóton manobrava com grande intimidade. Parecia realmente muito à vontade. A menina estava admirada. Não por essa habilidade do fóton, que ela não se espantava mais com nada do que ele fazia; mas pelo ambiente. Era um lugar extremamente limpo. Feito unicamente – teto, portas, maçanetas, paredes e tudo mais – de um único e pouco comum material: liso, extraordinariamente liso; era um metal de cor indefinida, contato agradável, textura, tudo tão pouco comum! E, no entanto, sabia que tinha visto isso em algum lugar, provavelmente no Centro de Pesquisas onde trabalhava o dr. Luís. A impressão que tinha era como se estivesse na presença de um grande, um gigantesco computador. Mas – e essa era a impressão mais forte – do seu lado de dentro! Era como se ela tivesse ficado pequena a ponto de poder entrar num daqueles computadores do CBPF ou, mais estranho ainda, que o mundo todo fosse somente um imenso computador.
O fóton viu o deslumbramento e o embaraço da menina e resolveu explicar.
— O que você está vendo é o mundo através de uma particular representação. Isso é porque nós estamos dentro do jogo da Dicotomia. Aqui, tudo se reduz a uma opção muito simples, tipo “sim ou não”. Isso se chama sistema binário. Por isso é possível tratar tudo-que-existe como se o mundo fosse nada mais do que um computador. Aqui, só esse jogo importa. Mas como você vê, isso é parte de um jogo maior.
A menina não via nada. Nem entendeu a explicação que o fóton continuava a dar.
— Pois existem muitas configurações do mundo que não são binárias. Às vezes gostamos de outra opção. De podermos ser ao mesmo tempo isso e aquilo ao invés de isso ou aquilo, entende?
Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, ele apontou um monumento:
— “As inscrições foram feitas pelos amigos de teu pai. Mas é um jogo que até a natureza aprecia.”
Ela nem reparou no comentário, tão fascinada ficou pela imagem à sua frente. Era realmente muito atraente. No meio de uma sala maior, de frente para um dos corredores havia uma enorme roda que girava o tempo todo com velocidade variável. Como ela era dividida em casas do mesmo tamanho, como setores coloridos repartidos nas cores do arco-íris, fazia um curioso efeito aos olhos de quem a vê pela primeira vez. A partir de uma dada velocidade parecia uma folha de papel completamente branca. Mas à medida que sua velocidade diminuía podia-se reconhecer que cada uma das casas tinha uma inscrição específica. A menina chegou perto, parou a roda com a mão e começou a ler as inscrições das sete casas, que estavam distribuídas em sentido horário.
Jogo da Dicotomia
- contínuo ou descontínuo?
- local ou global?
- determinístico ou aleatório?
- unitário ou múltiplo?
- cheio ou vazio?
- absoluto ou relativo?
- linear ou não linear?
O fóton começou a explicar as regras básicas.
— O jogo começa lançando-se um pequeno dardo. Quando o dardo chega à roda, um mecanismo obriga a parar sua rotação. Pode-se assim enxergar a casa ou setor atingido e ler a inscrição correspondente.
— E é preciso passar por todas as casas?, perguntou a menina.
— A regra é dar a volta completa. Se você atinge uma casa já visitada deve-se proceder como se fosse a primeira vez.
— Isso é – Maria Luísa se antecipou – se perde tempo.
— Em verdade não se perde tempo. Não se progride. Mas isso, afinal de contas, não é muito grave.
— Ora, se ele é dinâmico, se tem movimento, é porque se trata de um jogo onde o progresso é importante, não?
— Dinâmica, minha filha, não é sinônimo de progresso. Às vezes se trata só disso mesmo: movimento.
Fez uma pequena pausa como se duvidasse da necessidade de complementar essa informação, mas acrescentou assim mesmo:
— Você precisa parar de acreditar que quando alguma coisa se põe em movimento ela tem um objetivo. Se você não entender isso, vai acabar como sua tia Luri, procurando a vida toda por um livro sagrado, onde tudo esteja explicado, onde tudo seja conhecido de antemão.
A menina fez, mais uma vez, cara de espanto.
— Deixe-me dar um exemplo que você vai logo entender. Quando o dr. Friedmann ensinou a história científica da evolução, das origens do mundo, lá no Jogo da Criação, você perguntou para ele qual o significado da expansão do Universo? Não, certo?
A menina fez um pequeno gesto, confirmando, com a cabeça.
— Pois então…
Vendo que a expressão do rosto dela ainda transmitia perplexidade, resolveu repetir:
— Às vezes se trata só disso mesmo: movimento.
E, sem esperar que ela se recuperasse dessas informações inesperadas, mudou de tom e resolveu perguntar:
— Quer ver como funciona na prática? Por exemplo, se lançar o dardo na casa linear ou não linear devo escolher um dentre esses dois tipos de comportamento e passar a utilizá-lo. Qual dos dois, é escolha minha. Ao escolher um deles, escolho automaticamente o meu lado. Posso ir acumulando pontos, caso eu persista na escolha e, ao passar de novo pela mesma dicotomia, repita o mesmo comportamento. Mas a diferença é grande: o que se chama de comportamento linear consiste em uma série de situações previsíveis, causais, onde em geral não há mudanças sensíveis. Ao contrário, o modo não linear, constitui-se de configurações ricas de estruturas caóticas, onde processos inesperados aparecem. Se você quiser uma explicação mais detalhada do procedimento geral – disse, esticando para ela um canudo alaranjado – é só ler o manual de instruções que está aí dentro. É importante não esquecer que o resultado de cada etapa deste jogo não é definitivo. Se eu escolho na dicotomia linear x não-linear um deles, digamos linear, isso não me obriga a manter essa escolha em outro momento do jogo, entende? Posso mudar a escolha se me encontrar face à mesma alternativa. Isto é, cada escolha é localizada, momentânea, restrita a uma dada situação. Não implica em uma obrigatoriedade para situações futuras. Há um ditado que diz:
No Jogo da Dicotomia nenhuma escolha é para sempre.
— Isso quer dizer que se pode mudar de comportamento?
— Claro. Mas isso só é possível ao se encontrar de novo frente à mesma dicotomia e escolher a outra opção.
Fez uma pausa e continuou:
É por isso que ele é muito cheio de novidades, agitação e que recentemente se tornou motivo de grande popularidade. Um professor belga chegou a afirmar que através de cada nova e diferenciada escolha, em cada bifurcação que a natureza se envolve, desaparece qualquer possibilidade de previsão….
Hesitou um pouco, e resolveu acrescentar:
… ou, pelo menos, diminui. Isso cria um problema para o conhecimento científico. Não se pode mais ter certeza de que podemos determinar o futuro a partir do que aconteceu no passado. Desse modo, como disse um químico belga, o inesperado aparece e, como consequência, reencanta-se o mundo. Devido a esse comportamento, a ciência estaria obrigada a empreender uma nova aliança com outros saberes, diminuindo seu poder. Levando isso ao extremo, estaríamos de volta a uma era sem lei, na qual o caos imperava no universo. Eu não tenho nada a ver com aquilo que os cientistas pensam ou acreditam, mas que isso é uma grande ingenuidade, ora se é!
Ela ia perguntar por que ele dizia isso, mas achou que se o fizesse estaria dando razão a ele. Mais tarde encontraria uma forma de ele explicar melhor.
Maria Luísa pegou o manual e o abriu. Sua expectativa inicial de compreender melhor o jogo logo se desfez, pois nada mais era do que uma simples folha de papel com um mínimo de informações. Ali estavam descritas umas poucas regras. A menina leu atentamente, mas não conseguiu saber como se procedia no jogo. Na parte final da página, à sua direita, havia as iniciais SNF. Ela identificou a Sociedade Nacional de Física. Isso a espantou.
— Tem certas coisas que não consigo entender! Essa é uma delas: se estas regras são obrigações da natureza, como podem depender da SNF? Pensou que deveria perguntar isso, mais tarde, para seu pai e passou a ler o pergaminho.
Manual da Dicotomia
- Trata-se de um Jogo para tudo-que-existe.
- Pode ser jogado sozinho ou coletivamente. Mas no caso de mais de um agente, deve-se lembrar que os pontos conseguidos são absolutos, isto é, não se deve comparar os pontos entre os participantes. Cada um tem sua própria caderneta de pontuação.
- Quando jogado dentro do Jogo dos Paradoxos não se pode determinar quando começa nem quando termina.
- A estas regras mínimas, devem ser acrescentadas as regras complementares de todos os outros jogos.
- Em caso de indecisão ou imprecisão do jogador, deve-se proceder como se ele tivesse escolhido a opção mais comum [1].
- Em caso de dúvida sobre a sequência do Jogo, deve-se consultar o catálogo geral do Jogo [2].
No verso, haviam feito algumas anotações à mão. A letra não era nada boa e ela teve dificuldades em entendê-la. Depois de um bom momento, conseguiu decifrar algumas palavras. Tratavam-se de pequenas explicações, comentários sobre diferentes dicotomias. Parecia mais como se alguém tivesse feito pequenos lembretes à margem e deixado ali para serem estendidos mais tarde. Ela os separou em dois tipos que, por razões óbvias, chamou de técnicos e informais.
Embora estivessem distribuídos aleatoriamente, ela conseguiu identificá-los e, para fazer sentido e dar coerência a essas frases, fez a correspondência com cada uma das sete dicotomias na ordem que havia arbitrariamente estabelecido, reescrevendo-as ordenadamente em uma folha à parte. O resultado foi o seguinte:
- Os componentes básicos do mundo são estruturas localizadas, como átomos, ou se estendem por diferentes dimensões, por todo o espaço?
- Propriedades locais dependem da estrutura global? Isto é, um bater de asas em Kyoto influencia a tranquilidade da Lagoa do Abaeté?
- Todo acontecimento tem uma causa direta ou o mundo é aleatório?
- Há uma unidade no mundo ou ele é múltiplo?
- O estado fundamental de tudo-que-existe é o vazio?
- Existem estruturas absolutas?
- O comportamento individualizado de tudo-que-existe, em diferentes situações, pode ser adicionado? Ou aparecem novidades quando duas situações antigas são adicionadas?
Não havia mais nada escrito. De repente ela percebeu que chegara a seu lado, sem se anunciar, o dr. Ulpiano. Sem se espantar com a súbita aparição dele, perguntou:
— E o que o senhor pensa disso?
Com sua voz grossa e afetuosa, ele esclareceu:
— Veja bem, o Jogo da Dicotomia foi muito importante no passado e foi de grande valia, principalmente para classificar de modo rigoroso o comportamento de tudo-que-existe. Foi importante saber distinguir processos lineares de não lineares; processos de natureza global de outros de caráter local; e as demais dicotomias. Graças a isso foi possível criar uma descrição do mundo. Foi possível definir um mundo, definir o que – talvez com um orgulho desnecessário e certamente desproposital – chamamos de Natureza! Mas hoje, depois de tanto tempo, depois de todas as experiências pelas quais passamos, é possível dar um passo além e reexaminar essas alternativas. Podemos levar em conta a coexistência de processos com dependência local e global; aceitar configurações do tipo vazio-cheio; considerar situações onde a estrutura do tempo relativo coexista com uma descrição do universo feita em termos de um tempo cósmico global; e assim, sucessivamente, reorganizar, todos os sete pilares do Jogo da Dicotomia.
Antes mesmo de terminar essa frase, ouviram-se palmas. Era nada mais nada menos que o famoso cientista Godel que tinha frequentado a casa do dr. Luís e apresentado uma explicação pela qual, na teoria da gravitação de Einstein, é permitida a existência de caminhos que voltam ao passado[3].
Ulpiano agradeceu com um gesto de cabeça e dirigindo-se para o dr. Godel perguntou:
— Vejo, pela sua roupa, que também foi convidado para a festa do dr. Luís, não?
A roupa do professor Godel era, com efeito, em tudo semelhante à que ele usava: parecia feita para um palhaço de circo, com todas as suas principais características bem típicas: gola imensa, sapatos que eram verdadeiras pranchas de surfe, uma imensa bola vermelha presa no nariz.
— Foi o que melhor consegui para me aproximar do que o dr. Luís disse: venha como a natureza gosta: como se estivéssemos em um circo, como se fossemos os palhaços! Eu confesso que no primeiro momento não entendi por que deveríamos estar fantasiados dessa forma. Mas finalmente, conversando com o dr. Luís, consegui que ele me contasse a interpretação que, segundo ele, você tinha dado e compreendi então que estávamos imitando aquilo que é mais fundamental na natureza: a razão de suas escolhas nas bifurcações por que ela passa.
Fez rapidamente um sinal, apontando para dentro da casa do dr. Luís e acrescentou:
— Veja, ele está precisamente passando o portão agora mesmo! Vamos para lá também!
Ato seguinte, começou a correr, dirigindo-se portão adentro da casa da menina. Ulpiano seguiu atrás.
Curioso, disse ela, eu tenho um forte sentimento de que já vivi esta cena[4] mas não sei quando, nem onde. Mas isso às vezes acontece com a gente, não é mesmo? Temos a certeza quase absoluta que vivenciamos um dado momento, uma dada situação no passado, mas não podemos nos lembrar como ou quando isso ocorreu!
Lá dentro, a casa transbordava de alegria e de agitação. Todos os amigos do dr. Luís tinham vindo prestigiá-lo. Dava a impressão que estavam saindo de uma grande tensão, de um julgamento. Parecia que o dr. Luís tinha sido julgado por delitos que não eram dele. Em verdade, parecia, a acreditar no que se ouvia aqui e ali, que o dr. Luís representara no tal julgamento nada menos do que todos os cientistas. Mais até do que isso: todos os que trabalhavam com a razão!
A menina ficou completamente à parte dessa confusão e se viu novamente sozinha com o fóton. Este, pela primeira vez fez um comentário pessoal.
— “Curiosa roupa estão usando. Parece um pouco ridícula, não?”
A menina não gostou dessa observação e pensou que deveria encontrar uma explicação para a indumentária deles.
— Bem, começou um pouco lentamente, sem saber o que falaria. Hesitou um pouco, mas logo se lembrou de uma conversa com o dr. Luís e se esforçou para tentar reproduzir o que ele dissera. Curiosamente, lembrou-se a tempo de quase tudo, mas falou no mesmo tom, sofisticado e impessoal do dr. Luís.
— “Eu penso,” continuou a menina, “que devemos interpretar as ações deles, essa euforia, essa festa, como se tudo o que eles fazem – incluindo o trabalho de papai – lhes proporciona muita alegria. Mais do que isso. Parece que possuem um certo pudor em revelar verdades incompletas, a que seus estudos como cientistas inevitavelmente conduzem, como se fossem verdades definitivas, finais. Como consequência, para eliminar qualquer resquício de arrogância que ainda possam guardar, escondida sem que o percebam, em seu interior, trazem como máxima a regra de nunca deixar que a seriedade do trabalho que fazem, impeça brincadeiras com suas teorias, com suas visões do mundo. Em outras palavras, como eles dizem, devemos todos ter bem à frente o ditado
Rio de quem não ri de sua ciência.
O fóton virou-se para a menina e, de modo quase cerimonioso disse:
— Pois eu acho que aqui é você quem está interpretando o dr. Ulpiano e os amigos dele, e não o contrário, como haviam prometido.
A menina tomou um susto e para não ter que entrar nessa discussão sobre quem interpretava quem, resolveu voltar à conversa anterior e mudar de assunto, perguntando:
— Mas afinal, como se declara o vencedor do Jogo da Dicotomia?
O fóton não se fez de rogado e respondeu:
— Bom, depois de uma longa análise e discussões que se arrastaram de modo quase interminável, chegou-se à conclusão que ganha quem não entra no jogo.
Disse isso com um tom tão solene e de modo tão enigmático que parecia que estivesse imitando a Esfinge.
— Mas se não entrar no jogo, como posso ganhar? disse Maria Luísa num sussurro, mais espantada do que curiosa.
— Só como espectador, disse ele, e desapareceu em seguida.
Maria Luísa ficou pensando que se tratava de uma imitação mesmo da Esfinge e que, através dessa adivinhação, ela estava sendo posta à prova. Por um momento pensou que tinha entendido.
— Ah, já sei: jogar ou não jogar é também uma dicotomia. Assim, a única possibilidade de estar fora desse jogo é não ter um jogo. Mas sou eu quem decide se tem ou não jogo? É como se tivesse que resolver a dicotomia
existe ou não um mundo?
Mas como posso decidir? Se eu escolher a opção não existir o mundo, automaticamente eu desapareço e assim cabe a questão: quem decidiu não existir o mundo? O que significa isso? “Isso parece mais um…” hesitou em saber a que aquilo parecia, mas acabou encontrando:
“…parece um paradoxo. Isso não é uma situação usual, conveniente para um jogo.”
Parou um momento e reconheceu:
“Estou ficando confusa”.
Talvez a melhor coisa a fazer fosse mesmo perguntar ao dr. Luís o significado disso. Mas não teve tempo sequer de falar com ele pois logo se viu mergulhada em outro jogo mais atraente ainda! Era precisamente o lugar ideal para ela entrar neste momento: tratava-se da sala do Jogo dos Paradoxos.
—–
CAPÍTULO 10: Jogo dos Paradoxos
Era uma dessas noites que Maria Luísa adorava. O dr. Luís iria receber seus amigos do Instituto de Física onde trabalha para conversar sobre o universo, trocar ideias sobre a cosmologia e uma série de outras questões desse tipo, todas fascinantes! Ela ficaria por ali fingindo estar ocupada com alguma outra coisa, mas prestando atenção na conversa para ver se conseguia entender alguma coisa do que diziam. De qualquer modo, tiraria daí um sem-número de perguntas que faria depois para seu pai.
Dito e feito. Logo depois que o último amigo do dr. Luís saiu, ela foi correndo perguntar que história era aquela do tal dialeto newtoniano que eles falaram tanto.
— Eu nunca ouvi ninguém falar este dialeto! Onde é que ele é falado?
— Bom, começou lentamente o dr. Luís, aproximando a sua cadeira para perto da varanda. Não se trata verdadeiramente de um dialeto no sentido que usamos essa palavra. Interrompeu-se um pouco para que ela pudesse também trazer a sua cadeira. Ela sabia muito bem que quando o dr. Luís se instalava assim, com todo cuidado e carregando sua cadeira de braço preferida, a conversa poderia ser longa. Ele bem que tinha gostado que ela perguntasse isso. No dia seguinte daria uma palestra para um público de pessoas que não eram físicos e iria precisamente falar sobre isso. Assim, se ele conseguisse que a filha entendesse, muito possivelmente seria compreendido.
— Não se trata de uma língua particular ou de um jeito especial de falar, continuou. O dialeto newtoniano nada mais é do que uma referência ao modo pelo qual, usando uma linguagem convencional – português, francês, inglês ou outra qualquer – os cientistas descrevem suas descobertas e teorias. É o modo pelo qual eles as comunicam para não cientistas. Vamos tomar como exemplo a afirmação:
- “Um gás, qualquer que seja, preenche todo o recipiente que o contém.”
Você pode não alcançar as razões pelas quais isso acontece, mas certamente entende o que eu estou dizendo. A frase faz sentido, é do tipo que usamos em nosso cotidiano. Ademais cedo ou tarde, qualquer um de nós se depara com um fato semelhante, um exemplo prático onde isso acontece. Uma boa parte das Leis da natureza – o chamado mundo clássico – nada mais é do que generalização de processos, fenômenos, acontecimentos do dia a dia. O avanço da física a partir do século XVI pode ser compreendido em termos de expressões cotidianas, usando essa mesma linguagem com que nos fazemos entender em uma conversação corriqueira. Como o grande cientista britânico Isaac Newton simboliza esse período de enorme sucesso que a Física teve e que se estende até o fim do século XIX, resolvemos, em sua homenagem, chamar essa linguagem de “dialeto newtoniano”. Em verdade essa referência só ganha sentido prático quando descobrimos que ela não é única e absoluta. Ou seja, quando percebemos que é necessário, em certas circunstâncias, utilizar outra linguagem para dar sentido às novas leis que descrevem propriedades novas da matéria, enfim, às teorias que os cientistas têm produzido a partir do final do século XIX. A este modo de descrever como devemos organizar o pensamento, para compatibilizá-lo com as recentes observações dos fenômenos novos chamamos de dialeto não newtoniano. Isto é, o dialeto newtoniano representa um modo simples e convencional de falar sobre a natureza. Este modo teve que ser reexaminado e modificado, para compatibilizá-lo com as novas leis físicas, descobertas ao longo do século XX. Trata-se não somente de uma simples linguagem – como você está vendo – mas sim deste conjunto de ideias e crenças que, desde Newton, conhecemos sobre o mundo.
— Como assim?
— Veja, eu falo sempre – e você já deve estar cansada de me ouvir dizer – que a maior parte, se não a totalidade das dificuldades em entender as estranhezas que os físicos têm descoberto ao longo do século XX está relacionada com acontecimentos, processos, fenômenos que ocorrem em regiões, domínios do espaço ou do tempo que não constituem território convencional ao qual tenhamos acesso em nosso cotidiano. Em geral necessitam, para serem observados, de sofisticados instrumentos de medida que prolongam tremendamente nossos sentidos de observação para muito além do que nossos corpos podem fazê-lo. Por exemplo, o telescópio, o microscópio, e muitos outros aparelhos, veem muito além no céu e no interior da matéria do que nossos olhos podem fazê-lo.
Fez uma pausa e continuou.
Pois bem, descobriu-se então que nessas regiões existem leis que a matéria obedece e que parecem – quando “traduzidas” para nossa linguagem cotidiana – como se possuíssem propriedades fantásticas, algumas mesmo entrando em choque direto com nosso bom senso. Quer ver um exemplo? Os físicos descobriram que os relógios – qualquer relógio – funcionam de modo diferente quando estão se movimentando a velocidades muito altas, próximas da velocidade da luz. Não se esqueça que a velocidade da luz, isto é, do fóton, é a maior velocidade permitida na natureza. Pois isso certamente nos parece muito estranho…
— Mas o que é que parece estranho?
— O fato de que os relógios possam, somente porque se movimentam velozmente, exibirem um ritmo tique-taque distinto. E é estranho porque nós não temos a possibilidade de experimentar pessoalmente essa modificação. Por mais que possamos aceitar essa e outras afirmativas semelhantes como sendo verdades científicas, dificilmente podemos entender as razões pelas quais isso acontece, fora do discurso científico. Isso é porque não temos vivência dessa experiência. Não estamos acostumados a isso, nunca atingimos, pessoalmente, essas altíssimas velocidades. Mas temos que acreditar nisso, pois os físicos demonstraram essa dependência do tique-taque de um relógio com a sua velocidade de muitas e diferentes maneiras. Através de um sem-número de experiências. Do mesmo modo, as estranhezas que acontecem no microcosmos, no mundo dos átomos, dentro deles, não fazem parte de nosso cotidiano. As chamadas “leis da física quântica” possuem propriedades muito diferentes das que observamos em nosso dia a dia. O fato de que precisamos lançar mão de características tão diferentes e que não fazem parte de nosso cotidiano, às quais não estamos acostumados, torna difícil a compreensão do que os físicos estão efetivamente descobrindo nesses territórios afastados de nossa percepção. É por isso que resolvemos chamar de “dialeto newtoniano” àquele convencional com que lidamos em nosso dia a dia para, por oposição, distingui-lo de outro que possui propriedades novas. Algumas delas são impossíveis de serem compreendidas e são aceitas graças à fé depositada no cientista. Exemplos de tais situações encontramos no mundo microscópico, governado pelas leis quânticas ou, na dimensão oposta, no macrocosmo, além de nosso sistema solar, além de nossa galáxia, nos confins do universo.
Em resumo, podemos dizer em poucas palavras que o dialeto newtoniano se identifica com o que chamamos de “bom senso”. Graças a essa distinção, um dia destes vou contar uma história tão estranha que você vai ter dificuldade de acreditar nela!
— Puxa, se espantou a menina, que sempre acreditava em tudo que seu pai lhe contava. E o que seria isso?
— Bom, só para dar uma pequena ideia, vou contar um pouquinho do que se trata. Você sabe que a luz nada mais é do que uma forma particular de radiação. Em geral, pode ser identificada com um movimento ondulatório que pode se comportar em certas circunstâncias – sob um certo olhar, um modo particular de observação, como se fosse dividida em pequenos grãos de energia, como tendo propriedades corpusculares. Damos até um nome especial a essa forma de descrevê-la: são os fótons.
Maria Luísa não se espantou nadinha com isso, nem considerou que isso fosse um verdadeiro paradoxo, tão acostumada estava com eles. O dr. Luís continuava.
— E, simetricamente, os átomos, os corpúsculos elementares que formam a matéria, possuem, por sua vez, propriedades ondulatórias. Isto é, podem ser vistas como verdadeiras ondas de matéria!
A menina se espantou com isso. Essa segunda possibilidade lhe parecia mais desagradável.
E ele continuava.
— Mas esses podem ser entendidos como paradoxos aparentes, que desaparecem quando se esclarecem melhor as propriedades dessas formas materiais. Mas existem outros paradoxos que são – como dizer? – mais robustos. Vamos ver um exemplo e você logo vai entender o que estou dizendo.
Tudo que existe, toda realidade que o cientista comenta e descreve, se passa no espaço e no tempo. Hoje em dia os físicos costumam simplificar e, de modo unificado, chamam essa estrutura de “espaço-tempo”. Assim mesmo, como eu estou falando: tudo junto. Pois bem, você pode imaginar alguma coisa, qualquer coisa, qualquer tipo de coisa ou acontecimento, qualquer acontecimento, que não esteja no espaço-tempo?
— Claro que não! disse imediatamente em voz bem alta.
— Pois bem, continuou o dr. Luís. Em certas situações, alguns fenômenos que efetivamente existem ou existiram não admitem uma tal descrição no espaço-tempo! Não é difícil de imaginar? Pois aí está um belo exemplo onde aparece claramente a necessidade de se usar uma forma de dialeto não newtoniano! Mas isso não é fácil, nem comum. Algumas vezes os cientistas, por simplicidade, comodidade, ou por outras razões – continuam usando o dialeto newtoniano, mesmo nessas regiões atípicas, afastadas de nosso cotidiano. A consequência é esperada: isso faz aparecer situações bizarras, paradoxais, como se houvéssemos gerado contradições, inconsistências, que não são esperadas em um mundo racional. Parecem fantasias ou até mesmo como se os cientistas houvessem feito uma nova, inesperada e indesejável aliança entre a razão e a transcendência. Como se tivéssemos chegado – e ultrapassado – a fronteira com o irracional. Mas isso vamos deixar para outro dia.
— Ah, papai! Logo agora que eu queria saber mais sobre isso…
Como ele estava realmente cansado – a gripe que o abatera a semana inteira ainda deixava efeitos visíveis – essa foi uma das raras vezes em que não fazia a vontade da filha. Mas procurando um modo de não decepcioná-la, acrescentou:
— Bom, vamos fazer assim. Eu digo do que se trata, mas só o começo, e continuamos sem falta amanhã, está bem assim?
Ela fez um sinal concordando.
— Os exemplos que eu queria falar são dois:
- Os diferentes infinitos, os Transfinitos;
- Volta ao passado.
Agora, chega. Por hoje, não falo mais sobre isso. Estou cansado e amanhã vou acordar muito cedo. Vamos dormir.
Quando o dr. Luís dizia que iria acordar cedo isso significava bem cedo mesmo. A menina se levantou correndo, deu um beijo no pai e foi dormir também.
Jogo dos Paradoxos
Maria Luísa se viu novamente no corredor dos jogos. Como se estivesse acostumada com essa situação, sem demonstrar o menor espanto, pensou:
— Bem, se tiver que brincar de novo, desta vez vou escolher este aqui. Parece mais… sofisticado.
Com efeito, a porta do jogo que ela tinha escolhido se destacava. Era feita de material totalmente diferente das outras e o seu acabamento – a maçaneta, os entalhes que separavam sua parte superior da inferior, as dobradiças em dourado, enfim toda ela – era tão superior, que, se comparadas com esta, aquelas pareceriam de muito mau gosto. Bem no alto – e não no meio como em todas as demais – havia a tabuleta de identificação em azul turquesa, e não na cor de um vermelho chocante, como as outras, onde ela havia lido o nome do jogo correspondente.
Logo ao entrar, teve sua intuição confirmada. Estava com efeito em presença de um lugar de altíssimo luxo.
A antessala era dividida em pequenos compartimentos, que se estendiam ao longo de um interminável corredor. No chão, um tapete vermelho extraordinariamente macio dava a sensação de que se andava nas nuvens. Alguns dos compartimentos eram muito bem iluminados e outros eram deixados na penumbra. Em certos lugares nem sequer dava para enxergar o que acontecia. Um senhor, vestido de smoking preto com uma rosa bem vermelha destacada na lapela, fazia as honras da casa. Logo ao perceber a menina se dirigiu em passadas largas em sua direção com uma elegância no andar, semelhante a seu modo de vestir, que a impressionou sensivelmente.
Chegando perto, estendeu-lhe a mão e se apresentou:
— Meu nome é Carroll. Lewis Carroll.
Fez uma pausa e acrescentou:
— Para ser correto, este não é meu verdadeiro nome. Mas é assim que todos me chamam.
Pelo rosto espantado da menina, achou conveniente explicar a razão, antes que ela perguntasse.
— Eu sempre quis mudar o nome que me deram! Mas tive tantas dificuldades que só recentemente, ao ser transferido para trabalhar aqui, consegui.
Olhou fixamente nos olhos dela e em outro tom de voz, mais íntimo, perguntou:
Você não acha que este meu novo nome é melhor?
Como ela não sabia qual era o seu outro nome – o verdadeiro? – ficou sem saber o que responder. Ela tinha achado aquela mudança de nome pouco atraente. Ela adorava seu nome, mas como não queria começar uma conversa criticamente ou com uma atitude negativa, ficou um longo tempo quieta, com o olhar vago, sem saber como continuar este diálogo.
Nem por um instante ele duvidou que a razão do silêncio dela estivesse ligada a outra causa do que à sua ansiedade em visitar a sala de jogo e, um pouco constrangido, resolveu esclarecer logo:
— Você vai nos desculpar, mas hoje temos um problema no sistema central e não podemos exibir todos nossos produtos.
Fez um gesto como quem aparentemente se desculpa mas, exibindo uma mistura de orgulho e arrogância ao mesmo tempo, acrescentou:
— Bem, não é culpa nossa se todos preferem ficar aqui jogando conosco muito mais tempo do que estava previsto. Dizem até que nossos jogos são para sempre. Mas isso só para aqueles que não conseguem resolver o paradoxo da vez. Enquanto você não o entende, deve continuar jogando.
Olhou para ela para ver sua reação. Como a menina nem tinha se dado conta da vaidade contida no comentário, continuou, meio sem graça:
— Se você quiser dar-me a gentileza, estou aqui às suas ordens, para lhe mostrar como devemos encarar este jogo e acompanhá-la em alguns que estão disponíveis.
A menina não estava acostumada a esses volteios, aos gestos lânguidos e à impostação de voz que ele usava e se sentiu pouco à vontade. Conseguiu somente balançar a cabeça como a concordar que tinha realmente interesse em conhecer este Jogo.
— A regra aqui é um pouco diferente dos demais jogos que você deve estar acostumada. Aqui, o objetivo principal é… entender o jogo! E só.
Olhou para ela para ver se essa afirmação a tinha chocado, mas a menina nem sequer entendeu que havia nova arrogância no ar.
Desanimado com a falta de efeito de suas frases, pegou sua mão com a ponta dos dedos. Ela estranhou a frieza desses dedos e, mais ainda, o longo tempo que ele mantinha a sua mão presa. Fez um gesto brusco, retirando-a. Ele não se deu conta do desagrado dela e, com a mão tocando-a levemente, a encaminhou para uma saleta.
— Aqui, disse ele, temos os transfinitos.
Ela olhou e, coisa impossível de acreditar, num espaço menor que seu dedo polegar, viu tanta coisa se acumular que nem podia dizer a quantidade que estava ali. E bem que ela queria saber, nem que fosse só para contar, algum dia, que tinha visto tamanha multidão tão comprimida. Como se tivesse lido o pensamento dela, com voz sempre artificialmente empostada, o sr. Carroll disse:
— São infinitos. Aliás, cada uma dessas coisas que você está vendo na verdade contém, ela mesma, um número infinito de outras coisas. Isto é, cada um contém mais coisas infinitas que o outro.
A menina demonstrou não entender e ele resolveu explicar.
— Todos – eu inclusive – que frequentam este salão, esta sala de Jogos especiais, devem estar preparados para conviver com o fantástico, porque aqui nada é usual. Nada é como se vê, nada é como parece ser. E, afinal, nada realmente é.
Maria Luísa não entendeu porque ele havia achado necessário fazer a ressalva de que aquilo se aplicava a ele também. Como tinha dito “todos,” ele certamente deveria estar incluído! Ia fazer um comentário a respeito, mas a questão anterior a tinha chocado tanto que preferiu voltar a ela.
— Eu pensava, disse com uma voz bem baixa, que existisse só um infinito…
Ele achou que não deveria rir da ingenuidade dela, mas quase não conseguiu evitar que ela percebesse um pequeno sorriso que lhe brotou instintivamente no rosto empertigado.
— Deixe-me explicar-lhe. Assim, vejamos o que temos aqui, falou, pegando ao acaso uma caixa onde estava escrito
Infinito Enumerável.
Eu posso guardar aqui dentro um número infinito de bolinhas, por exemplo. Mas cada vez que esgoto uma série infinita e ainda sobram coisas para guardar, eu passo para uma outra caixa maior. Assim, fica parecendo aquele jogo russo onde um boneco contém outro boneco que contém outro boneco…
— Ora, disse ela, se eles ficam se escondendo uns dentro dos outros eu vou acabar acreditando que nós também podemos ter infinitos outros eus escondidos lá dentro de cada um de nós. Mas se tenho várias Marias Luísas dentro de mim, como vou saber qual delas é a verdadeira? qual delas sou eu? Aliás, neste caso, como posso dizer eu?
— Esse problema de identidade nós nunca tivemos…
E, com um pouco menos de leveza na voz, como se estivesse fazendo uma reflexão para outra personagem que o estivesse ouvindo, acrescentou:
“E isso só acontece porque vê-se que ela continua a privilegiar uma unidade que considera especial, quando é ela quem diz: eu. Aliás isso é muito comum entre eles.”
Maria Luísa olhou em volta. Como não viu ninguém, nem nada de estranho próximo a eles, achou que estivesse refletindo em voz alta e resolveu que não deveria retrucar a essa incompreensível observação intima, inclusive porque ela desconfiava que quando ele dissera “eles” queria significar todas as pessoas que ela conhecia. E isso certamente iria provocar um conflito com ele, que não lhe interessava. Enquanto isso, Carroll prosseguia, já agora voltando-se para ela, como antes:
“Nós fazemos assim: cada vez que se esgota uma série, um caminho, um programa, se procede como um ciclo esgotado e passa-se para outra caixa, e se trata aquela série infinita que acabou de se esgotar como nada mais do que uma unidade. Chama-se isso de renormalização. Assim, cada unidade contém, em verdade, infinitas unidades, entende?
Não só ela não tinha entendido, como começou a duvidar um pouco da sanidade mental dele. Ainda bem que nenhum amigo de seu pai estava por perto. Eles iam pensar que era ela que estava esquisita, falando assim dessas coisas. Sem se dar conta das dificuldades dela em acompanhá-lo, e, ao contrário, como se isso lhe parecesse trivial, continuou…
— Você quer um exemplo? Pois bem, pegue uma caneta e um papel e faça assim: na primeira linha escreva o conjunto A dos números inteiros. Maria Luísa pegou e escreveu:
Conjunto A = {1,2,3,4,5,6,7…..}
— Muito bem. Agora na linha de baixo escreva a série B formada pelo dobro de cada número correspondente em A. Assim, debaixo do 1 escreva 2, debaixo do 2 da linha de cima escreva, na linha de baixo, o número 4, etc.
Maria Luísa assim o fez:
Conjunto B = {2,4,6,8,10,12,14…..}
— Não parece claro que a série B (os números pares) é menor do que a série A? Afinal, todo número que está na série de baixo está na de cima. E, no entanto, como se pode ver, eles têm o mesmo número de elementos! São ambos infinitos! E mais: têm o mesmo grau de infinitude. Todas as classes que têm essa propriedade em comum chamam-se de Infinito Enumerável. Pois bem, se você pegar um pedaço de uma linha reta e fizer o mesmo tipo de correspondência, descobre-se que a linha reta tem mais elementos – os pontos – do que tal tipo de números inteiros infinitos. Isto é, representa um infinito de ordem superior!
Embora L. Carroll fosse uma figura singular e distante, a menina percebeu, para sua alegria, que ele explicava as coisas de um modo muito parecido com o de seu pai. Ia falar sobre isso, mas não teve tempo pois ele continuava em voz alta.
Assim, temos infinitos que contêm infinitos menores. E, você pode crer, isso é uma tarefa formidável.
Ela ficou extasiada. Infinito que contém infinito! Isso era certamente algo muito fora do seu dia a dia. Mas, por outro lado, havia uma sensação boa nisso, algo que positivamente lhe agradara, mas cuja origem ela não conseguia identificar, não conseguia precisar. Era uma sensação de completamento, de plenitude, de cheio-bom, como se nada estivesse faltando. Dava a impressão que essa parte da regra do jogo era:
Não deixar nada de fora.
Isto é, acabar com qualquer forma de limite que impusesse um horizonte além do qual fosse impossível passar. Ela se lembrou que o dr. Luís lhe dissera um dia que o grande problema do cientista era ser obrigado a conviver sempre com um horizonte. Em todas as coisas. Até mesmo em suas ideias.
— O horizonte, costumava dizer, delimita qualquer coisa. Não somente o que podemos perceber, ver, medir, mas até mesmo uma ideia, uma teoria. É bem verdade que se pode utilizá-lo em seu aspecto positivo, remetendo as dificuldades que aparecem na descrição incompleta de um aspecto da natureza para além do horizonte. Esse corte, esse horizonte-geral, dizia ele, nada mais é do que uma representação do infinito: aquilo que não é alcançável. O horizonte é uma outra forma de dar ao infinito a condição de conter as informações que não possuímos e que nos impede de entender totalmente o mundo.
Isso fazia com que o dr. Luís dissesse sempre que o horizonte e o infinito eram, na maior parte das vezes, uma coisa só, um só enigma a ser compreendido, um grande obstáculo da ciência. A questão era saber como tratar eficazmente esses horizontes.
Por isso a menina ficou tão fascinada com os transfinitos que pareciam transgredir a regra e conviver com infinitos horizontes ultrapassáveis! A impressão era de que se passava de um horizonte para outro como se vai de uma coleção transfinita para outra, esgotando uma etapa.
— E essa sequência de infinitos, tem fim ou ela mesma, por sua vez, também é infinita? Isto é, qual é o maior transfinito?
Mas antes que ela terminasse a pergunta ele já estava propondo que saíssem para outra saleta quase empurrando a menina. Foi o que fizeram. Ela estranhou essa súbita indelicadeza.
— Vai ver não sabe a resposta e não quer admitir, pensou, enquanto a visita continuava. Passaram assim por várias saletas. Cada uma mais interessante do que a outra. Maria Luísa estava literalmente maravilhada. Ela nunca tinha visto nada igual.
— Este Jogo dos Paradoxos é certamente o mais fascinante. Eu bem que passaria a vida toda aqui dentro…
Parou um pouquinho e fazendo, como ele, um gesto afetado com as mãos, disse sob forma de declaração, sem conter o entusiasmo:
— Este é o jogo da minha vida!
O sr. Carroll fez um gesto extremamente blasé como se essa afirmação fosse trivial; como se soubesse há muito que todos os que aqui entram não querem nunca sair. E, como a demonstrar que estava certo, que era assim mesmo, apontou para um grupo de pessoas famosas que pareciam maravilhadas por estarem frequentando este jogo.
Era realmente um grupo bem seleto. A menina reconheceu alguns filósofos que tinham frequentado sua casa. Ela estava no limiar de se lembrar dos nomes, quando o sr. Carroll a interrompeu abruptamente.
— Esta é uma das salas mais procuradas.
Precisou se abaixar um pouco para passar pela porta. Contrariamente às outras saletas, que eram separadas do núcleo central por uma passagem sem porta, esta tinha uma porta a separá-la. Precisou usar uma chave mestra para poder entrar. A porta era abaulada e mais parecia uma passagem comum de ser encontrada em países do oriente. Ela nunca tinha ido a nenhum deles, mas era a imagem que tinha guardado de quando lera o maravilhoso livro das Mil e uma noites.
Ao atravessar a entrada, abriu-se um enorme salão como a cúpula de uma igreja, ao final da qual, bem à frente da entrada, uma faixa atravessada, na direção vertical, tomava conta de toda a parede. A menina parou, fascinada pela cor. A princípio nem conseguia ler, tão fascinada ficara. Depois de uns poucos longos minutos conseguiu voltar ao normal e ler:
Templo do tempo.
Havia pequenas reentrâncias, nas quais tochas produziam uma iluminação especial. Nas prateleiras, cartazes indicavam os produtos disponíveis:
Tempo Local |
Tempo Global |
Tempo Inexistente |
e um sem-número de outros.
— Que tempos são estes?
— Você quer uma definição completa ou posso só dar uma ideia do que se trata?
Ela pensou por um momento que uma explicação completa poderia ser demorada. Optou pela mais simples:
— Só quero entender do que se trata, disse timidamente.
— Nesse caso, posso dizer em três palavras. O valor do tempo medido por qualquer relógio depende do seu movimento. Quando este valor varia de um observador para outro, estamos em uma situação local; quando todos medem o mesmo valor, se trata de um tempo global. E, quando estamos examinando as origens do universo, temos de tratar aspectos que não são descritos por uma estrutura de espaço e tempo. Nesse caso, dizemos que estamos fora desse quadro espaço-temporal ou que se trata de um tempo inexistente.
Embora isso não tivesse resolvido completamente a sua dúvida, ela achou que não deveria insistir com essa explicação. Ao invés de continuar com essa conversa, mudou de assunto:
— Qual é o maior paradoxo aqui?
Essa questão o deixou bastante irritado. Essa história de atribuir uma hierarquia, capaz de diminuir ou valorizar um conceito, uma ideia, não lhe parecia de interesse, mas como tinha simpatizado com a menina, pensou que ela deveria estar repetindo alguma pergunta que escutara e respondeu como se realmente a origem da pergunta fosse de outra pessoa.
— Os amigos de seu pai, os cientistas, têm verdadeiro horror por paradoxos! Por outro lado, é bem verdade que eles criaram alguns, bem famosos, embora paradoxo de verdade, desses que dá gosto, não tem como os filósofos para inventar! Eles têm muita imaginação e uma tal habilidade! Ademais, cuidam muito bem deles. Não é o que acontece com os amigos do teu pai. Só para você ter uma ideia, um deles chegou a colocar numa moldura a frase:
O paradoxo é a mais alta paixão do pensamento.
Ela reconheceu a frase do professor Ulpiano. Mas não pôde admirá-lo como desejava pois Lewis Carroll já voltara à questão anterior:
— Bem, se você quiser algo que reconheça como paradoxo importante, talvez algum destes a satisfaçam.
Essa frase foi acompanhada por um duplo movimento com as mãos. Com a esquerda apontou um painel:
QUEBRA-CABEÇA TEMPORAL
e, com a direita, outro:
CTC
A menina não fazia a menor ideia que coisa podia ser um “quebra-cabeça temporal”, mas como já tinha visto muitos quebra-cabeças e não gostava muito disso, achou que não podia ser muito diferente dos que tinha jogado, e sem vontade de repetir uma experiência pouco agradável, resolveu examinar o CTC. Em outra ocasião, se isso se repetisse, ela escolheria o primeiro.
Entrando na tenda CTC
Logo ao entrar se deu conta de que estava em um lugar muito especial e certamente diferente de qualquer lugar que tivesse estado antes! Aliás, diferente de qualquer lugar que tivesse estado depois também! Isso porque logo se deu conta de que aqui podia-se andar para frente ou para trás no tempo. Era muito curioso: por mais que ela tivesse todo o cuidado em andar para frente, chegava-se ao passado! Isso era positivamente pouco usual. Havia uma frase estampada em todas as paredes, no chão e no teto que exibia bem isso:
Ao caminhar para o futuro estou me aproximando de meu passado.
Em verdade, ela nem precisava se preocupar em andar para frente ou para trás no tempo. Parecia que era ele – o tempo – quem se ocupava de direcionar onde ela acabava chegando!
Aos poucos foi percebendo que somente alguns caminhos levavam ao passado.
— Acho que se eu me acostumar um pouquinho que seja com esse jogo vou saber andar para frente e para trás quando eu bem quiser.
Dito e feito. Aos poucos ela conseguia já no começo do caminho que por ali iria acabar voltando sobre si mesma. Foi difícil no início perceber que estava de verdade voltando ao passado. Viu uma ponte no caminho e lembrou que seu pai dissera um dia que o primeiro cientista a descrever esse tipo estranho de viagem às avessas, para trás, tinha sido seu amigo, o dr. Rosen.
“Bem, disse o dr. Luís, não foi realmente o primeiro, mas que diferença faz, se aqui, antes ou depois passa a ser completamente irrelevante, não é mesmo?”
Gozado, pensou a menina, não consigo lembrar de certas coisas que eu deveria saber! Mas basta eu voltar ao começo que tudo parece ser como antes, exceto,… exceto, …ela não se lembrava do que era diferente. Será que quando eu entro num desses caminhos que levam ao passado deixo mesmo de saber alguma coisa?
O sr. Carroll, que tinha ficado quieto, resolveu explicar.
— Em verdade, se você percebeu direitinho, este paradoxo temporal só aparece quando o tempo é descrito como um rio que caminha em uma direção. Mas e se não for assim?
Ela esperou que o sr. Carroll respondesse, mas ele preferiu ficar imaginando um rio que pudesse mudar à vontade o sentido do movimento de suas águas. Como ela não sabia disso, achou que ele tinha perguntado realmente para ela e que deveria providenciar uma resposta. Ficou por alguns minutos indecisa. Como não gostava de fazer comentários sobre o que não conhecia, preferiu tentar mudar de assunto.
Andou um pouquinho para longe dele e se deparou com uma bifurcação. Sem esperar pelo sr. Carroll, foi se encaminhando para a direita. Neste momento, ao perceber a escolha dela e ao mesmo tempo em que se precipita em sua direção, grita, assustado:
— Não, por aí não!
Mas já era tarde. Maria Luísa não ouviu sua advertência e entrou numa pequena sala. Ela estranhou muito, porque contrariamente a todas as outras, que estavam apinhadas de gente, esta estava completamente vazia. O sr. Carroll entrou logo atrás dela. Havia um clima muito especial ali. Um cheiro de incenso circulava no ar. Parecia até que ali se fazia alguma espécie de rito religioso. A menina não estranhou pois sentira por várias vezes esse cheiro em casa de sua tia. Quando seus olhos começaram a se acostumar com a pouquíssima luz do lugar, distinguiu na parede um quadro que tinha uma citação:
TODOS OS PARADOXOS DERIVAM DE UM SÓ
— Acho que sei qual é esse paradoxo-mãe! disse, excitada por de repente ter tido uma ideia que a fizera entender o que estava escrito. No entanto, foi só a menina terminar de dizer essa frase e quase ao mesmo tempo L. Carroll vira-se para ela e, levantando ambos os braços, a demonstrar que isso era possível, até mesmo esperado, mas que o tempo dela havia acabado, ordena:
— Para você, o jogo termina aqui.
Ela se espantou com essa intervenção e considerou a proibição de continuar jogando mais do que uma arbitrariedade, uma verdadeira violência. Afinal, o que ela tinha feito de tão errado que merecesse uma espécie de castigo? L. Carroll olhou para ela e disse:
— Se você pensa que isso é uma proibição grave, vai levar um grande susto quando se deparar com o próximo jogo.
— E que jogo seria esse?
Antes que ele respondesse, ela percebeu que estava inteiramente mergulhada no jogo da proibição.
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