Jogos da Natureza – Parte III – Capítulos 5 e 6
CONTO /
Mario Novello //
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CAPÍTULO 5: No interior de um Buraco-de-verme
– Papai, o que é isso que os físicos chamam de buraco-de-verme?
O dr Luis logo percebeu que ela estava se referindo aos estranhos caminhos que os físicos haviam imaginado para poder encurtar distâncias no universo. Embora nunca tenha sido observado, estas configurações podem existir em algum lugar do universo. Elas são conseqüências inevitáveis – demonstradas a partir do estudo das propriedades do campo gravitacional nas vizinhanças de uma estrela colapsada ou de um buraco negro. Como se tratava de uma questão difícil de ser compreendida, ele procurou a explicação mais simples e direta que poderia encontrar.
– Todos nós sabemos que existe mais de um caminho para ir de um ponto A para outro ponto B do espaço. Em verdade, existe uma infinidade de caminhos entre dois pontos quaisquer. E esses caminhos permitem ser percorridos nos dois sentidos: a trajetória que leva de A para B pode levar também de B para A. Isso é simples, trivial. A questão interessante ocorre se perguntarmos quantos caminhos existem para irmos de um ponto X do espaço-tempo para outro ponto Z do espaço-tempo? A resposta é a mesma: existem infinitos caminhos. Entretanto, se perguntarmos agora ” é possivel andar por esses caminhos do espaço-tempo nos dois sentidos?” a resposta é não! A direção do tempo não pode ser invertida. O caminho que leva de X para Z não pode ser usado para ir de Z para X.
Como já te expliquei mais de uma vez, todo acontecimento é caracterizado não somente pela sua posição no espaço mas requer também o conhecimento de um tempo. Essa mudança da descrição de um mundo puramente espacial para um mundo espaço-temporal foi um passo importante na física do século XX, e pôs em relevo o caráter dinâmico do mundo. Pois para responder à questão que você fez ainda há pouco posso dizer, de modo bem simples e conciso, o seguinte.
Parou para ajeitar-se na cadeira-de-balanço e depois de olhar por cima dos óculos por duas vezes, como a procurar inspiração, continuou:
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Um BDV isto é, um buraco-de-verme ou wormhole, como dizem os americanos que lhe deram este estranho nome – pode ser pensado como um segundo caminho, uma trajetória alternativa, um atalho entre dois acontecimentos, entre dois pontos do espaço-tempo.
E por que haveria este atalho? Como se formariam tais caminhos?
Quem governa sua fabricação? E quantos atalhos deste tipo existem? Estas perguntas são a um só tempo muito atraentes, como tecnicamente dificeis de serem resolvidas. Como a origem de um BDV está na força gravitacional, pode-se entender porque não podemos fabricar um tal atalho.
-Por que?
– Porque a gravitação não pode ser controlada!
-Não entendi, disse a menina.
– Olha, eu já te expliquei que as forças elétricas tem dois sinais: podem ser atrativas ou repulsivas. Se coloco duas cargas elétricas do mesmo sinal elas se repelem; quando aproximo duas cargas de sinais opostos elas se atraem, não é?
Ela fez que sim com a cabeça.
-Pois como não existe massa negativa, a força de gravidade é sempre atrativa. Desse modo, eu não posso combinar os efeitos das forças gravitacionais a meu bel-prazer; esta força, contrariamente às forças elétricas não é controlável! Não é possivel gerar um campo de força gravitacional de acordo com nossa vontade e assim, não se pode criar um BDV!
Vendo que o interesse da filha continuava, achou que deveria falar um pouquinho mais sobre algumas propriedades que os físicos tinham conseguido entender dessas estranhas configurações.
– Veja você – continuou para alegria da menina – há duas utilizações que a Natureza pode fazer depois dela ter criado um BDV e que são, é bem verdade, pouco usuais, e que podem ser sintetizadas em duas afirmações sobre os BVD:
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O BDV conecta dois pontos do espaço-tempo através dois caminhos distintos;
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O BDV é um caminho que conduz para um outro universo.
A menina arregalou os olhos, atraída por essas duas possibilidades. Em verdade, ela tinha dificuldade até mesmo de saber qual das duas situações era a mais fascinante.
– Como assim?, foi tudo que ela conseguiu balbuciar.
– Bem, vamos considerar um pouquinho mais de perto cada um destes dois casos.
Caminhos fechados no espaço-tempo
Antes que ele continuasse a menina perguntou:
– E por que estes BDV levariam exatamente a esses lugares? Eu, cá comigo, acho muito estranho que a natureza tenha um roteiro de caminhos especiais.
– Pois, pode se espantar que é disso mesmo que se trata: estes caminhos especiais são como atalhos numa imensa floresta. Na floresta, os atalhos, têm origens bem diferentes. Todos construídos ao acaso. Aqui, uma árvore onde um raio caiu e a destruiu antes do tempo. Ali, um inesperado animal em fuga, que atravessou assustado esta região, aumentando um pouco a devastação sobre um caminho que se formava; um outro animal, aproveitou este pequeno espaço recém-criado, para passar também por ali… Ou seja, mais ou menos sem haver uma ordem para que isso ocorra, ao acaso, vai-se formando, aqui e ali, atalhos naturais. Os ventos, as diferenças de temperatura foram também dando sua contribuição. Assim, sem que nenhum plano previamente acertado tivesse sido estabelecido, estes tantos e diversos agentes foram cooperando coletivamente na criação dos atalhos da floresta.
Fez uma pequena interrupção para ver a reação da filha para concluir:
– Pois é bem possível que assim também tenha acontecido na criação destes BDV. Ao acaso.
– Mas se eu posso passar duas vezes pelo mesmo ponto do espaço-tempo, isso quer dizer que posso voltar ao passado? perguntou com uma certa angustia por estar dizendo uma grande bobagem.
– É exatamente isso, sorriu o dr Luis, orgulhoso com a observação, que ele considerou muito esperta, da filha. Um BDV é um atalho no espaço-tempo que pode fazer um viajante retornar a um ponto de seu passado.
– Mas isso não é impossível?
– Bem, disse o dr Luis, a existência de um BDV certamente coloca um certo número de questões difíceis, de serem compatibilizadas com o comportamento do resto da natureza. Pode-se até mesmo imaginar alguns paradoxos que daí decorrem. Mas isso vamos deixar para discutir outro dia. Vamos ver agora a segunda possibilidade de um BDV.
Saindo de nosso universo
– O modo mais simples para não nos envolvermos em dificuldades relativas a viagens ao passado, disse, consiste em considerar a idéia original dos cientistas que primeiro pensaram estes “wormholes”: imaginar que eles são caminhos para fora deste nosso mundo.
MLuisa olhou para ele para ver se estava falando sério ou brincando. Como viu que não havia o menor vestígio de sorriso no rosto dele, teve certeza que o dr Luis falava seriamente. Sem perceber esse pequeno momento de dúvida da filha, continuava:
– Você sabe – eu já falei mais de uma vez nisso – que a Natureza pode ser maior que nosso universo. Ou dito de outro modo menos chocante, que o que chamamos de universo pode se referir somente a uma parte de uma Totalidade maior. A grande questão para os cientistas consiste em procurar algum modo de observar estas extensões para além da imagem mental que fazemos do universo, para além destas quatro dimensões em que pensamos a realidade.
Maria Luisa ficou absolutamente perplexa. O dr Luis raramente falava assim deste jeito coloquial com ela. Pensou que se tivesse sonhado essa conversa, acreditaria mais nela do que agora. Ficou um longo tempo pensando que aquela história de decidir sobre que jogo a Natureza joga estava ficando bem mais sofisticado do que ela imaginara. Pensou se poderia voltar a seus sonhos mais simples!
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CAPÍTULO.6: Jogos e Encantamentos
Tem dias que não dá vontade de sair da cama. Maria Luisa tinha passado a semana inteira dormindo tarde. Ela tinha feito uma experiência para ver se mesmo sem ter terminado o segundo grau conseguiria ser aprovada no concurso vestibular para a Universidade. Mas agora, graças a Deus tudo tinha terminado e ela podia ficar descansando até mais não poder. Afinal de contas, tinha se saído tão bem que nem precisava esperar o resultado: sabia que tinha acertado mais de cinquenta por cento de todas as questões das provas. E se considerar que muitas das questões tinha deixado em branco porque se tratava de matéria que só veria nos próximos dois anos, certamente tinha razão para ficar orgulhosa. É bem verdade que ainda não decidira qual curso iria fazer. Hesitava entre matemática, fisica e biologia. Gostava demais dessas três. Uma coisa parecia certa: iria fazer alguma ciência exata. Não necessariamente na área de estudo de seu pai, mas certamente iria se dedicar à pesquisa.
Podia então voltar a examinar o que a estava atormentando. Neste período intenso de leituras dos mais diversos tipos, preparando-se para o vestibular, lera numa revista de divulgação, que no mundo da microfísica podem-se reconhecer modos de comportamento bastante diferentes e até mesmo parecendo contraditórios uns com os outros. Por exemplo, em certas circunstâncias a natureza parece ser contínua e em outras parece ser discreta.
O caso mais escandaloso era certamente o do fóton. Pode-se jurar que em certas ocasiões se comporta como uma verdadeira partícula – isto é, uma estrutura discreta, constituída por energia localizada; e em outras, como uma onda que se espalha continuamente por uma região. Mais grave ainda, às vezes parece até que ele se comporta, ao mesmo tempo, como ambos!
Mas então, refletiu em voz alta para si mesma, a Natureza tem diferentes comportamentos em situações que são ou parecem ser semelhantes? Eu pensava, como costuma dizer um amigo do papai, o dr Alberto, que a natureza, o universo inteiro, por ser um só, deveria ter um programa único, de coerência global, que se adaptaria a toda circunstância, e que a função maior da ciência consiste em descobrir e revelar este programa. Eu pensava que a Natureza não deveria ter muitas formas de comportamento.
Dizia isso ao mesmo tempo que enrolava a fronha. Como ela sempre suava muito à noite, pela manhã tinha que fazer o estranho ritual de trocar a fronha de seu travesseiro e colocá-la, junto com as diversas camisetas que usara pela madrugada, na cesta de roupas para serem lavadas. Fazia esta operação quase automaticamente, em estado ainda meio sonolento, de tal modo que parecia estar ainda em meio ao sonho.
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De repente teve a estranha sensação de que havia outra pessoa no quarto. Olhou em volta e, com efeito, reconheceu de imediato o fóton, com quem já entrara em contato. Parecia com cara de poucos amigos. Com efeito, antes que ela pudesse entender o que estava ocorrendo ouviu um comentário ……
– “Com que então você pensa que na Natureza só existem poucas formas de comportamento? Pois saiba você que temos muitos e variados modos à nossa disposição!”
Pelo jeito dele falar e o tom da voz, percebeu que ficara irritado com a idéia da menina de que ele e tudo o mais no mundo são obrigados a ter o mesmo comportamento, único, em qualquer circunstância. Ele continuou como se quisesse mostrar, ao contrário do que ela dissera, que possuía uma grande riqueza de possibilidades de ação e que dependia de sua vontade optar por um ou outro comportamento.
Ela se lembrara que havia presenciado uma longa discusão, quase uma verdadeira briga, sobre o tipo de jogo que a natureza preferia: xadrez ou Go. E resolveu aproveitar o que ele dissera para desviar sua atenção e acalmá-lo, perguntando sobre isso.
– A propósito: você prefere jogar xadrez ou Go?, disse em um tom bastante amigável.
O foton fingiu que não tinha ouvido e ao invés de responder, continuou sua intervenção, indignado:
– “Nós sempre estamos envolvidos em algum jogo. Nem é porque queremos, mas é assim que prepararam esse mundo.
Adiantou-se um pouco e apontando um enorme e volumoso livro explicou:
– Ali estão enumeradas, descritas e explicadas todas as regras dos jogos a que temos acesso.
Fez um breve silêncio, empertigou-se e acrescentou, enfático:
– …de todos os jogos, entendeu?
A menina se espantou com a agressividade com que ele disse esta frase, mas olhou assim mesmo para o livro. A capa era totalmente branca. Com alguma dificuldade, devido à distância, pôde ler:
Plano das regras de todos os jogos
e, como sub-titulo, trazia:
Primeiro Programa de Unificação
A menina tomou um susto.
– “Primeiro?”.
Como ela já tinha se dado conta da extrema susceptibilidade do fóton, falou bem baixinho, com medo de que ele ouvisse, “eu pensava que só deveria existir um único programa de unificação. Porque se existem vários, que sentido tem? Não unifica nada!
Mesmo assim, bem que queria poder ter acesso a ele, abrir e ler um pouquinho que fosse. Imagina só, saber todas as regras, de todos os jogos! E como ela sabia muito bem que quando eles falavam regra-de-jogo em geral estavam se referindo às leis da natureza, isso a deixou muito ansiosa.
Tentou chegar mais perto, mas depois de vários esforços em vão, descobriu que não conseguia. Parecia que o livro tinha sido colocado bem encima da linha do horizonte! Por mais que tentasse se aproximar ele estava sempre à mesma distância, longe dela! Ela ficou com um olhar sonhador, imaginando o que poderia saber se pudesse ter, por um momento que fosse, estas regras todas. Sem se deixar impressionar pela aflição da menina, o fóton apontou para o Livro e continuou:
– Pegar este livro é também um jogo muito interessante.
Ela se espantou. Então o tal livro de todas-as-regras constitui também parte de um jogo? E onde estariam escritas as regras deste outro jogo?
A menina estava tão aturdida que nem teve sua reação normal nestes momentos, deixando de perguntar quais seriam, afinal de contas, as consequênciasa que o fóton se referira.
O fóton continuava:
– Além desse jogo-da-unificação, há três outros disponíveis na natureza neste momento.”
Maria Luisa achou muito estranho que ele tivesse enfatizado “neste momento”. Será que existem outros jogos possíveis? e por que não estariam disponíveis agora? É melhor não fazer esta pergunta para não desviar a conversa, pensou.
O fóton falava, agora em voz bem alta.
– Temos vários jogos:
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Jogo da Dicotomia;
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Jogo da Proibição;
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Jogo da Criação,
e muitos outros jogos como o da Transcendência, do Encantamento, dos Paradoxos, mas estes não estão disponíveis.
Ela ia perguntar por que isso, mas ele se antecipou.
– É muito difícil impedir todo mundo de jogar. A natureza, você sabe não?, está sempre disposta a uma boa brincadeira. Se você quiser me acompanhar, pode até mesmo escolher qual te interessa mais e jogar também. De qualquer modo, posso mostrar todos eles a você. Bem, quase todos.
E, dizendo isso, sem esperar pela resposta, pegou sua mão e a levou para um grande salão onde havia uma quantidade infindável de portas. Cada uma delas dava acesso a uma sala de jogo diferente, especificado em letras vermelhas, por tabuleta pendurada em cada porta. A menina ficou de queixo caído, espantada pela quantidade de jogos.
– “Que maravilha!” disse ela, que adorava saltar de um jogo para outro.
Em um gesto abrupto, abriu uma porta onde estava escrito
-
Jogo da Proibição
Por que escolheu este particular jogo e não outro qualquer, até o fóton adivinhou e, para mostrar que conhecia bem este lado dela, comentou:
– Todo mundo gosta de saber o que está sendo proibido e por que, não é mesmo?
Estava tão entretida que nem respondeu.
O que ela viu, logo ao abrir a porta, foi a cena de um senhor de barba branca admoestando com rigor o eletron e o neutrino. Visto de longe, a cena era curiosa. Os dois estavam com as mãos às costas, cruzadas, e olhavam para o chão como se tivessem sido pegos fazendo alguma travessura daquelas mais impossíveis. E, na verdade, tudo que eles queriam, soube-se logo em seguida, era tão somente poder brincar juntos!
– “Vocês sabem que não podem, entenderam bem? NÃO PODEM, brincar juntos. Como é que poderiam interagir? O neutrino não tem carga elétrica e assim sendo qualquer contato entre vocês violaria uma lei física”, dizia aos brados o dr Maxwell. E, continuava, mais alto ainda: “Violaria a MINHA lei! A lei das cargas elétricas que exige que só as partículas carregadas podem interagir através do campo eletromagnético trocando fótons!
A menina não gostou nadinha da arrogância que o senhor-de-barba-branca manifestava e ia tentar intervir quando, antes que ela pudesse fazer qualquer movimento, o foton se antecipou e explicou:
– Como você vê, os cientistas, os homens em geral, não querem dialogar com a natureza, mas só impor suas leis e negociá-las entre si. Pode acontecer daqui a pouco, chegar um outro cientista e, de modo bem semelhante mudar tudo. Em verdade, o que eles querem é chegar a um acordo sobre as leis, independentemente da natureza.
MLuisa, desta vez, não podia acreditar nele. Ora vejam, pois o dr Luis sempre dizia que a coisa mais importante que os cientistas tinham entendido é que a realidade independe do observador! Independe do cientista! Isto é, a Natureza se comporta independentemente do modo pelo qual a gente a observa!
– Minha filha, retrucou o fóton – mesmo sem que ela tivesse pronunciado uma só frase – o acordo dos homens não é maior que a realidade. Isso que você vê às vezes acontecer, modos diferentes de interação entre as partículas, situações individuais especiais, não acontece por acaso, mas é controlado por uma política no interior do mundo inanimado.
– Política?, se espantou a menina. No mundo das partículas havia uma política? Mas isso não é coisa entre homens? Nunca pensei que houvesse uma política na Natureza! Certamente seria muito curioso imaginar que existe uma política entre eletrons e protons! O comportamento deles não é controlado pelas regras do jogo da Natureza? Não posso acreditar nisso! Você está mentindo ou não sabe nada!
– Bem, eu só estou traduzindo para a linguagem de vocês, o que se passa no mundo das partículas elementares.
Ela começou a achar que ele falava qualquer coisa, sem a menor coerência. Como sempre, o fóton leu seu pensamento e contestou.
– Coerência, minha filha, do jeito que você usa essa palavra, é só para quem não sabe conviver com opostos, com a contradição, com isso-e-aquilo ao invés da alternativa isso-ou-aquilo.
Como a demonstrar que o foton poderia ter razão, sem que ninguém tivesse visto de onde havia chegado, um homem com uma aparência um pouquinho só mais jovial interveio na discussão do dr Maxwell, procurando um novo acordo sem se preocupar em consultar nem o eletron nem o neutrino. Um acordo, como logo se viu, envolvendo somente os cientistas.
– Bem, disse ele, dirigindo-se para o dr Maxwell, para evitar seu cansaço, aborrecimentos e maiores conflitos, bem como tenhamos que vigiar permanentemente a estes dois, creio que posso ajeitar as coisas de outro modo. Eu tenho aqui comigo um novo jogo – que eu chamo de “jogo da força fraca” – de validade quase universal, que serve precisamente para estes casos rebeldes.”
A menina não conseguiu entender a que casos ele se referia, mas chegou mais perto para escutar melhor.
“Eles vão poder interagir, brincar e conversar à vontade, sem que para isso o neutrino tenha que ter carga elétrica. O jogo é tão simples que qualquer partícula pode participar dele quando bem entender. Algumas delas até já usam para se transformarem umas nas outras. Mas não pense que por ser um jogo de fácil manipulação ele não tenha regras específicas. Mas é sempre assim, não é mesmo? Elas estão contidas neste meu livrinho, disse estendendo-o para o dr Maxwell. A capa, em couro bem escuro, dizia em dourado
Regras do Jogo de interação fraca
(versão preliminar)
E. Fermi
O dr Maxwell começou a folhear, sem mostrar grande interesse. O fóton notou que a menina tentava ler também e retomou o diálogo com Maria Luisa:
– Não precisa ler. Eu sei do que se trata e posso te explicar tudinho! Na verdade as regras mais importantes são só duas:
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Regra I: O jogo exige a presença de um eletron e um neutrino.
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Regra II: A física do lado de lá do espelho não é a mesma do lado de cá.
– E se não aparecer nenhum eletron, não tem jogo?
– Bem, nestes casos pode-se aceitar procuração desde que eles mandem representantes convenientes.
Não achou necessário, no momento, perguntar que representantes convenientes seriam esses.
Uma coisa tinha ficado claro. Parecia que este jogo tinha regras bem diferentes daquelas que estamos acostumados na frente de um espelho. Do lado de lá, a mão direita parece esquerda. É a esquerda. Isso é normal. É exatamente isso que significa a inversão do espelho. Mas às vezes, não é isso que acontece. Esperamos uma coisa e aparece outra bem diferente. A interação fraca, responsável pela desintegração da matéria, é assim. Não obedece às regras simples a que estamos acostumados a reconhecer no espelho. Dessa forma, se algum dia pudesse entrar lá dentro do espelho o mundo que ela veria teria propriedades muito, mas muito diferentes do que aparece na famosa história Alice através do espelho que o dr Luis lhe tinha dado quando pequena.
– Ainda bem que eu não sabia disso quando li o livro da Alice. Iria perder todo o encantamento.
Ela falou isso sem querer, espontaneamente, e ouviu quase ao mesmo tempo, uma explicação:
– “Não perderia não! Alice trata de outra coisa do que dessas verdades científicas que são estes jogos aqui. Algum dia você vai ter que entender a importância do comportamento simétrico em diferentes situações, como, por exemplo, o que acontece do lado de cá e do lado de lá do espelho. Existem exemplos de coisas simples e bem conhecidas do senso comum acontecendo, como no caso da simetria mão-esquerda versus mão-direita. Mas quando a tal da paridade é violada, situações realmente estranhas acontecem.
A conversa paralela entre Maria Luisa e o fóton continuava.
– Quer ver um caso interessante deste jogo? Pois a particula chamada “neutron” – você já ouviu falar nela, não?
A pergunta era retórica, e Maria Luisa não se preocupou em responder.
– Ela pode, usando este jogo do dr Fermi , se transformar não em uma mas em três outras: um proton, um eletron e um neutrino! Você vê que ali estão, como deveriam, o par eletron-neutrino.
Maria Luisa ficou encantada. Não só o dr Fermi parecia ter conseguido um modo de permitir o eletron brincar com o neutrino, mas tinha ao mesmo tempo explicado uma questão que ela havia acabado de ler numa daquelas revistas de divulgação cientifica e que o dr Luis havia explicado quando falara sobre o modo pelo qual as energias são liberadas das estrelas, isto é: o modo pelo qual umas partículas se desintegram em outras!
O dr Maxwell tinha ficado visivelmente constrangido com aquela intervenção de seu colega. Sem poder impedir a brincadeira do eletron com o neutrino, e incomodado por ter sido identificado como se fora um algoz, foi-se afastando com as mãos enfiadas bem fundo nos bolsos do paletó, resmungando para quem quisesse ouvir:
– “Bom, daqui a pouco isso vai virar uma bagunça, qualquer um vai querer brincar com todo mundo. Onde nós vamos parar? Vai ver até mesmo o fóton vai querer brincar com outros fótons! Mas tudo tem um limite. Isso, certamente, não vou deixar acontecer. Nem que o próprio Einstein venha brigar comigo. Vocês vão ver só! E digo mais: se preciso for, irei aos tribunais. Ouviram bem? IREI AOS TRIBUNAIS! – disse lá de longe, como uma ameaça.
O dr Fermi fez-lhe um pequeno gesto amigável com a mão e, voltando-se para a menina falou, quase num sussurro:
– “Você não deve ficar com uma má impressão dele. Ele já foi muito famoso e teve muito poder no passado. Mas como a ciência evolui, algumas de suas idéias já não tem mais tanta força assim. E quando se perde o poder…” fez um gesto com a mão como se esta perda fosse sentida como uma catástrofe e saiu da sala tão rápido quanto entrara.
O fóton aproveitou que estavam a sós e continuou a conversa
– Este jogo da proibição é muito sofisticado. Mesmo tendo permitido a interação do eletron com o neutrino, outras proibições aparecem, de outra natureza, envolvidas nessas novas brincadeiras, nestes novos jogos.
– “Como assim?”, perguntou a menina.
– Bem, a estrutura desses jogos é sempre a mesma. Viola-se uma regra, por exemplo, permitindo um novo comportamento, uma nova ação, não se submetendo à aplicação de uma proibição antiga. Mas, entre as consequências dessa liberalização, vai aparecer em outro lugar, em outro momento, uma nova proibição! Quer ver um exemplo? Pois vamos olhar um pouco mais de perto a desintegração do neutron.
Pegou um giz e enquanto falava escrevia no quadro-negro o seguinte esquema de desintegração:
Isto é, um neutron se transforma em um proton mais um eletron mais um neutrino. Mas note bem. Todos os quatro têm que estar muito atentos para não se atrasarem, porque isso tem de acontecer no mesmo instante!”
Com efeito, dava perfeitamente para perceber que o neutrino, como sempre, reclamava:
– “Pois não é que devo estar sempre atento, dizia com ar esbaforido e preocupação na voz. No momento exato em que o neutron começar a se desintegrar eu devo acompanhar o proton e o elétron para que possamos substitui-lo na hora certa! Temos que treinar muito e todo dia, para que nenhum de nós se atrase. Uma situação de extrema acuidade.
Como ela deu a impressão de que não entendera, o neutrino procurou esclarecer:
– De extrema precisão, quero dizer.
– Mas pelo menos o neutron sabe qual o momento de se desintegrar, não?
O fóton interveio e respondeu:
– Nem isso! tudo que se pode dizer é o seguinte: este, como a maior parte dos jogos, é coletivo. Isso quer dizer que não se dá assim, como eu estou contando, face a face, um a um. Em verdade é preciso que haja muitos neutrons e muitos eletrons e muitos protons e muitos neutrinos. Um certo número de neutrons vai se desintegrar, graças a este jogo da força fraca; mas quais os que irão se desintegrar no próximo momento, isso é impossível saber. Eu bem que tentei por diversas vezes ter essa informação. Impossível. Guardam isso a sete chaves. Tudo que dizem é: “aqui está o número de neutrons que irão se desintegrar na próxima hora.” E só. É por isso que o neutrino fica reclamando. Ele tem que estar muito atento o tempo todo.
Ela fez um sinal com a cabeça como a achar aquela uma situação muito desagradável.
– Um verdadeiro circo! Mas isso, você sabe agora, não? é parte do Jogo da Proibição. Não podemos deixar de conservar certas quantidades. O próton e o eletron conservam sempre a carga elétrica. O neutrino não possui esta carga elétrica. Mas, o dr Fermi – falou isso em tom bem baixo, pondo a mão à frente da boca, como se temesse que, mesmo do lado de fora da sala, ele pudesse escutá-lo – foi bonzinho deixando que ele brincasse com o eletron, mas o preço que teve que pagar foi alto: deram-lhe uma outra carga! Uma tal de carga leptônica, que por sua vez, também não pode ser violada… uma confusão minha filha! Pois não é que para compatibilizar tudo de novo, deram ao eletron esta tal carga leptônica também! E é por isso que sempre quando o eletron aparece nestas desintegrações, o neutrino deve estar presente e vice-versa. Para conservar a carga leptônica. Bem, mas agora chega. Você vai ter chance em outro momento de ver esse jogo com mais cuidado.
Disse isso e, em um rápido movimento, voltou para o grande corredor de todos os jogos. Maria Luisa seguiu atrás. Andaram uns poucos metros, quando ele começou a contar uma outra história.
Ao invés de prestar atenção, MLuisa olhava uma tabuleta especial que havia atraído sua atenção desde a hora em que tinha entrado neste corredor. Dizia
Encantamento
Ela reparou que era a única porta onde a palavra jogo não aparecia explicitamente. Apontou para ela. O fóton coçou a cabeça e meio sem-jeito tentou explicar para a menina porque não poderiam entrar naquela porta ..”por enquanto…”
– Vamos deixar para outra hora? disse.
A menina não se deu por satisfeita e, curiosa, tentou convencê-lo pelo menos a dar uma olhadinha.
– Vê-se bem que você não conhece os efeitos desse jogo. Não é possível ..”dar só uma olhadinha..” como você quer. Uma vez dentro, é impossível sair! Ademais, hoje eles estão começando uma forma de jogo antiga, que praticamente tinha sido esquecida, mas que é muito atraente. Aliás, logo se percebe porque não se joga mais.
– Por que?
– Não se consegue parar, disse.
– Como assim?
– Vou te mostrar um exemplo.
Levou a menina para que da porta de entrada pudesse acompanhar duas pessoas que jogavam lá dentro. Não dava para perceber tudo que diziam, mas ficou evidente que era um jogo sem-fim. Cada participante fazia uma pergunta para seu oponente e o outro só podia responder com outra pergunta, relacionada à primeira e assim sucessivamente.
Diálogo entreouvido à porta da sala de Encantamento.
– Como a Natureza é feita?
– De qual Natureza você fala?
– E que tipo de pergunta é esta?
– Qual pergunta?
– Sou eu que preciso responder primeiro?
– E por que pergunta?
– Posso, ao menos, saber sobre o que estamos falando?
– Não é melhor saber quem está falando?
– …
MLuisa resolveu fechar imediatamente a porta. Ela já estava com vontade de entrar naquela brincadeira! Fazer perguntas era com ela mesmo!
Vendo que a menina ficara menos excitada, resolveu voltar à questão anterior.
– Deixa eu tentar explicar a origem da violação. Um jogo – assim como estes dois básicos que você referiu ainda há pouquinho, xadrez e Go – quando se joga há muito tempo, produz naturalmente, pouco a pouco, um ritmo monótono, arrastado, automático mesmo. As partículas que jogam ficam assim em estado semi-letárgico, sonolento. Vendo de fora, tem-se a impressão que elas estão ali por pura obrigação, sem nenhum prazer, nenhuma vontade. Se as coisas ficarem assim por muito tempo, este universo inteiro fica muito fraco, sensível a qualquer forma de perturbação que o instabiliza. Você sabe porque, não?
Ela não sabia. Mas devido ao modo dele falar, ficou envergonhada em perguntar e fingiu saber.
– E isso, desenvolver uma instabilidade, você sabe muito bem – sendo filha de um físico – é a pior coisa que pode acontecer. Pois bem, para evitar esse mal-estar e tentar prolongar o máximo possível a história deste universo, foi criada uma série de jogos diferentes, os chamados jogos de encantamento. Você vai ver, mais tarde, que o Coringa, um personagem muito especial capaz de modificar certas regras dos jogos em andamento, utiliza métodos ultra sofisticados, inventados pelos matemáticos, para isso. Pois bem, aqui se trata de uma situação semelhante. A principal função é manter as partículas ou melhor, tudo-que-existe, em permanente estado de alerta. Vivamente interessadas. E, mais importante, ávidas por novos jogos, novas aventuras, novos procedimentos, em suma, por novidade de qualquer tipo. E como isso funciona! Quando você vê a diferença… Ao jogar estes jogos comuns, tradicionais, que eles vêm jogando há anos, eles o fazem sem alma, sem paixão. Olhando assim de fora, pode-se até ter a impressão que a natureza é uma máquina! Aliás, antigamente, chegava-se a dizer isso, como se fora uma verdade. Havia até uma expressão bem ingênua, boba, mas que ficou famosa, que dizia:
O universo é um relógio perfeito.
– Quem dizia isso? perguntou a menina.
– Os físicos de séculos passados, antecedentes de teu pai, explicou. Mas, finalmente eles conseguiram enxergar o óbvio e entenderam que esta história de associar o comportamento do universo a uma máquina é uma tolice.
Tomou ares de quem vai fazer uma frase de efeito, aprumou-se todo e disse:
– Nós não somos máquinas previsíveis.
Ela reparou que quando ele dizia nós parecia que estava se referindo ao universo inteiro, à tudo-que-existe. E, com uma certa vaidade, acrescentou:
– Isso não significa que a natureza admita alguma forma de transcendência, se bem que vocês costumam confundir uma coisa com a outra. Encantamento é algo muito diferente…
A menina não compreendia porque ele se mostrava irritado com ela. Afinal de contas, não era ela quem havia dito aquelas coisas. Nem cientista era!
Ele leu seu pensamento e continuou, ainda mais agressivo.
– Se você pensa que não tem responsabilidade só porque não foi você quem disse isso, está completamente enganada. Não pense que pode se por à parte, vir conversar conosco como se não tivesse nenhuma responsabilidade. Tem muita gente que acha que pode fazer isso também, sair incólume de qualquer situação, sem responsabilidade. Essa prática eu conheço muito bem.
Fez um sinal com o braço para provar que não era bobo e acrescentou:
– Vamos deixar esta conversa para outra hora e tratar de ver algum exemplo concreto de um destes jogos. Vamos entrar neste primeiro?
Antes que ela pudesse refletir se queria ou não entrar ali, foi logo abrindo a porta e imediatamente foram puxados lá para dentro.
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Mario Novello é Cosmólogo e pesquisador emérito do Centro Brasileio de Pesquisas Físicas – ICRA/CBPF.
Trecho retirado do livro Os Jogos da Natureza, M. Novello. Ed. Campus.