João Cabral nos desdobramentos do silêncio criador
ARTIGO /
Rafaela Cardeal* //
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Na obra de João Cabral de Melo Neto opera-se uma mudança estética em que o sono solidifica-se em pedra, desencadeando uma desativação onírica que deságua em cortante consciência poética. Pedra do Sono e Os Três Mal-Amados, primeiras produções do poeta, imersas ainda na atmosfera fluida do sonho e do devaneio, contêm em si o germe, o princípio, o embrião, que amadurecerá em A educação pela pedra, ápice do projeto cabralino, maturidade e fio de corte, e Agrestes, revisitação do movimento dialético e progressivo da obra. O todo é mais do que a soma de suas partes, é o salto pré-existente a cada parte, a construção de um universo autônomo, uma linguagem inaudita possibilitada pela fala, mas principalmente pelo silêncio, submetidos à sintaxe dos atos poéticos.
Expressão da modernidade, o Concretismo elege como grandes pilares da literatura brasileira as contribuições de Oswald de Andrade com a síntese poética e de João Cabral de Melo Neto com a arquitetura do verso. A concepção concreta do fato literário compreende a poesia como uma tensão de palavras-coisas no espaço-tempo, criação racional e substantiva, sendo a palavra núcleo que irradia o sobressalto expressivo. Toda linguagem é limitada, já que é um conjunto de signos e modos operantes, mas sua potência é medida por seu caráter incomunicável, intraduzível, e se realiza em presença-ausência. O poema é um constructo de “palavras e silêncios”, “essências e medulas”, “conteúdo e forma de si mesmo”. Essencialmente, o poema é, ele não transmite nenhuma mensagem, mas é sua própria mensagem.
Esta análise desdobra em dois momentos a produção de João Cabral, não de maneira estática e dicotômica, mas dialogicamente, compreendendo-a como contínuo e progressivo amadurecimento de um projeto po-ético, centrado em certas “ideias fixas” e imagens-chave. O primeiro momento, Pedra do Sono e Os Três Mal-Amados, é visual, dos olhos que, fechados, enxergam dentro do sonho, dos olhos que transbordam e liquefazem. O segundo momento, A educação pela pedra e Agrestes, é muscular, das mãos que operam o muro, das mãos que tocam e constroem. Aos olhos do geômetra define-se o sólido perfeito que é edificado por forças de resistência cuja vontade é dominar a matéria. Em reciprocidade, o verbo criador desdobra-se em abstrato e concreto, o visual é ímpeto muscular, o olho opera um recorte enquanto a mão fabrica o objeto, e o muscular é furor visual, o objeto revela ao olho uma tangibilidade potente. Como num despertar, o poeta captura a gênese do trabalho resistente, a partir da conversão da matéria em energia, sua geometria constrói o interior e exterior das coisas e, principalmente, da poesia e de si mesmo no espaço da folha em branco, da ausência e do silêncio.
Primeiro momento: visual
Pedra do Sono e Os Três Mal-Amados apresentam um ambiente onírico em que se encontra o embrião de sua poética. Neste momento predomina o ímpeto visual em que há o recorte do real, não através da pura e passiva contemplação do mundo ao redor, mas por meio da construção de um olhar. “A geometria do olho” é o primeiro passo de um projeto, o esboço ou risco de uma obra a se realizar. Em cada olho há uma medida particular que absorve os dados externos e os recria em formas e dimensões internas.
A visão desempenha a vontade de ver-se a si mesmo, pois a observação das coisas é fundamentalmente um exercício do ser. Assim, estrutura-se um discurso metalinguístico em que o poeta inflete-se sobre o seu fazer-se, edificando o poema como matéria. A visão enquanto faculdade de ver, de percepção material, é também propriedade imagética, de abstração onírica. Em “Considerações sobre o poeta dormindo”, tese apresentada por João Cabral ao Congresso de Poesia do Recife, o poeta aproxima as relações entresono, sonho e poesia, universos constituídos de uma linguagem própria, criados numa lógica específica, num espaço-tempo diferente do relógio. O sono, momento em que se suspendem temporariamente as atividades perceptivas e motoras resulta num estado de inércia e inatividade corporal, não é apenas uma ausência, mas a possibilidade de com “olhos abertos” penetrar no escuro.
Em Pedra do Sono, publicado em 1942, encontra-se em linhas gerais a projeção de um espaço poético ainda virtual, mas que determina sua futura realização concreta. A pedra, signo essencial na obra de João Cabral, surge do sono, distanciando-se da terra e aproximando-se do céu. Dialogando com as imagens aéreas, a pedra perde seus valores de solidez e imobilidade e adquire formas de nuvem, fluidez e movimento. Entre os 29 poemas, não há a preocupação formal ou rigidez sintática, entretanto há uma prefiguração de imagens e campos semânticos que configuram uma unidade.
Inaugurando o livro, “Poema” inicia as reflexões sobre a criação poética, em estado espontâneo e fluente, “Meus olhos têm telescópios,/ espiando a rua,/ espiando minha alma/ longe de mim mil metros.” As imagens de afastamento são imagens de ausência, que recaem sobre a atitude do poeta em relação ao fazer poético, como algo que se pode alcançar com a vista, entretanto, continua longe das mãos.
Em Os três mal-amados (1943), a ótica do poeta fabrica uma estrutura formal, o poema em prosa. Desdobramento do poema “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade, a obra estrutura-se nas falas de João, Raimundo e Joaquim, vozes intercaladas que quebram o discurso lógico, dando ao todo um ritmo fragmentado de contradança na qual cada um elege um par.
João, o primeiro dos mal-amados, fundamenta sua fala na sua percepção de Teresa, continuando a atmosfera de Pedra do Sono, dos olhos que vêem através do telescópio. Teresa é a personificação dessa poesia, “distraída e distante”, caracterizada pela distância que, mesmo na intimidade, afasta-se, como a imagem onírica, que escapa a cada segundo sendo ela, originalmente, sua. João é o próprio poeta, João Cabral, ainda não é o engenheiro, é o poeta aéreo e aquático, que aos poucos amadurece o embrião da terra e da pedra.
Raimundo discorre sobre as características de Maria, o ser da poesia, operando a construção de um novo universo poético, com a presença de imagens concretas. Maria era a praia; a fonte; o campo cimentado; a árvore; a garrafa de aguardente; o jornal; o livro; a folha em branco; a lucidez, seu novo impulso poético e a construção de uma nova maneira de ver uma flor, de ler um verso.
O último dos três mal-amados, Joaquim, fala sobre o seu próprio sentimento, entretanto, não se coloca como sujeito, é o amor que concretiza formalmente a destruição, através do seu comer, devorar e roer, que subtrai de sua poética uma série de elementos.
Segundo momento: muscular
O segundo momento o qual denominamos como muscular compreende o lado laborioso que dá força e forma à poesia. A consciência do trabalho atuando nos músculos e nas articulações do poeta que se constrói na luta entre a voz e o silêncio da página branca. As obras A educação pela pedra e Agrestes se aproximam, pois representam o amadurecimento do projeto poético de João Cabral. Configurando um mundo terrestre, há uma profusão de imagens do duro, do menos e do contra, onde a resistência metamorfoseia a vontade do homem e o trabalho formal do poeta.
Em 1966, A educação pela pedra revela em seu título a cristalização do projeto po-ético, o desenvolvimento de uma pedagogia centrada em uma matéria mineral dura e sólida. O retorno do signo pedra destrói a primeira (a do sono), valorizando seu caráter concreto e cortante, do discurso que impede a fluidez e estanca o real nas próprias coisas. A pedra realiza-se também como construção sintática, numa escrita pontuada de síncopes e elisões, que quebra o discursivo e abole os encadeamentos lógicos do verso tradicional.
O livro estrutura-se em dois blocos (Nordeste e Não Nordeste) desdobrados em quatro partes: (a), (b) minúsculo, (A), (B) maiúsculo. Cada seção contém 12 poemas, que dialogam integralmente ou em partes, como ocorre em “Coisas de cabeceira, Recife” e “Coisas de cabeceira, Sevilha”.
Nas cabeceiras das duas cidades, diversas coisas se alinham como numa prateleira, onde se organizam a memória e as imagens. Na prateleira com o rótulo Recife, suas formas simples são “densas, recortadas, bem legíveis”. Cabral transforma elementos arquitetônicos em poéticos, executando a dureza como material de resistência e duração. Como o combogó – elemento vazado empregado na construção de paredes perfuradas, para proporcionar a entrada de luz natural e de ventilação – o poeta recorta em suas superfícies “linhas elegantes” e “quinas agudas”, propondo ângulos retos e afiados. O número quatro, cristal de importância em sua obra, emprega a estabilidade e assegura as bases dessa construção, feita também com “paralelepípedos” que firmam “módulos”. Na prateleira com o rótulo Sevilha, suas formas nítidas são “claras e concisas, bem concretas”. Os limites dessa linguagem são fundados através da precisão das expressões: “dose certa”, “incorrupção da reta” e “retensão da seta”. Circunscreve-se a poesia como um “fazer no extremo, onde o risco começa”.
Publicado em 1985, Agrestes revisita o espaço poético de Cabral, a paisagem é construída a partir da dualidade do título, como adjetivo relativo ao campo, sobretudo quando não cultivado, rústico, rigoroso; e como substantivo referente à zona do Nordeste entre a mata e o sertão, caracterizada pelo solo pedregoso e vegetação escassa. O livro com 92 poemas é organizado em seis seções: Do Recife, de Pernambuco; Ainda, ou sempre, Sevilha; Linguagens alheias; Do outro lado da rua; Viver nos Andes; A “Indesejada das gentes”. Em quatro seções, a temática dirige-se para um lugar geográfico – Pernambuco, Espanha, África e América do Sul, enquanto, as restantes dão forma a um espaço abstrato, a criação poética e as reflexões sobre a morte.
No poema de abertura, “A Augusto de Campos”, dedicado ao poeta concretista, João Cabral confessa sua obsessão por “idéias-fixas”: “Você aqui encontrará/ as mesmas coisas e loisas / que me fazem escrever/ tanto e de tão poucas coisas”. A obsessão é construtiva, onde as “coisas” são formas, “o pouco-verso de oito sílabas” e “a perdida rima toante” que faz o verso “andar pé no chão”.
Na seção “Linguagens alheias”, observamos o desdobramento do poeta em “eu” e “outro”, falando de uma linguagem que não pertence a sua poética, ou seja, alheia, vê em outras expressões o que lhe é próprio. Por exemplo, em “Dúvidas apócrifas de Marianne Moore”, há a identificação com o fazer poético da poeta americana que, diz Cabral, não escreve com lápis, mas com bisturi. Com o mesmo bisturi com que retirou da poesia o discurso que recai sobre ele mesmo, João Cabral questiona a validade dessa subtração, que ao mesmo tempo exclui e adiciona. Diz o poema citado:
Sempre evitei falar de mim,
falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?
Esse jogo de presença-ausência, de falar ou não falar, é sempre uma forma de falar da coisa e de si mesmo, retratado também no poema “Falar com coisas”:
As coisas, por detrás de nós,
exigem: falemos com elas,
mesmo quando nosso discurso
não consiga ser falar delas.
Dizem: falar sem coisas é
comprar o que seja sem moeda:
é sem fundos, falar com cheques,
em líquida, informe diarréia.
Finalizando, em “O postigo”, João Cabral aproveita-se do elemento arquitetônico para dar o tom de encerramento de Agrestes. O termo que designa uma abertura quadrangular em porta ou janela, que permite observar sem as abrir, materializa o desejo do poeta em manter-se num ângulo que lhe permita ver sem intervir. Depois de 43 anos “de estar em livro”, o poeta põe fecho no livro e simbolicamente, em sua obra, com o mesmo tema que a estreou, a criação poética, pois “escrever é sempre o inocente /escrever do primeiro livro.” Assim como uma vela, João Cabral acendeu a poesia pelas duas pontas, o visual e o muscular, que se acaba em duplo pavio, impulsos de uma só geometria, de um projeto que constrói a arquitetura do verso.
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* Rafaela Cardeal é graduanda do curso de Português-Literaturas na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Realiza pesquisa em Iniciação Científica sobre João Cabral de Melo Neto.