Introdução ao curso de Cosmologia para não-especialistas
O filósofo Martin Heidegger, em seu curso de introdução à metafisica, faz uma avassaladora crítica ao desenvolvimento da ciência no último século. Um extrato de sua argumentação serve para que a possamos entender:
Sur l’état de la science, qui, ici, à l’Université, nous interesse particulièrement, on peut juger de notre situation dans les dernières décennies. Si on voit aujourd’hui deux conceptions, en apparence différentes, de la science, et qui en apparence se combattent, la science comme savoir professionnel technico-pratique et la science comme valeur de civilisation en soi, il n’en reste pas moins qu’elles se meuvent toutes deux sur la même voie de décadence, celle d’une mésinterprétation et d’une enérvation de l’esprit. Elles ne se distinguent qu’en ceci, que la conception technico-pratique de la science comme science spécialisée peut encore revendiquer, dans la situation actuelle, l’avantage d’être logique avec elle-même ouvertement et en toute clarté, tandis que l’interprétation, qui réapparait aujourd’hui , de la science comme valeur de civilisation, essaie de cacher l’impuissance de l’esprit, avec une duplicité inconsciente.
La confusion inhérente à l’absence totale de pensée va même parfois si loin que l’interprétation technico-pratique de la science reconnait en même temps la science comme valeur de civilisation, de sorte que, dans une égale absence de pensée, toutes deux se comprennent parfaitement bien.
…..Les domaines des sciences sont séparés par de vastes distances. Elles traitent chacune leur objet d’une manière foncièrement différente. Cette multiplicité de disciplines ainsi émietté doit le peu de cohésion qui lui reste à l’organisation technique d’Universités et de Facultés; et le peu de signification qui lui reste aux objectifs pratiques des spécialités. En revanche, l’enracinement des sciences dans leur fondement essentiel est bel et bien mort.
La science est aujourd’hui, dans toutes ses branches, une affaire technique et pratique d’acquisition et de transmission de connaissances. Elle ne peut nullement, en tant que science, produire un réveil de l’esprit. Elle a ele-même besoin d’un tel réveil.
(pag 60, M Heidegger Introduction à la métaphysique, Ed Gallimard, 1967)
A orientação imprimida a esse nosso curso tem como função mostrar que a cosmologia e sua extensão natural, a metacosmologia provoca uma forma de despertar do pensamento na direção requisitada por Heidegger. Ela irá questionar aquilo que os físicos têm dado pouca atenção, entre outras coisas o que chamo utopias controladas.
Comecemos por distinguir Cosmologia e Metacosmologia.
Como primeira tentativa de explicitar essa distinção dissemos: a cosmologia trata da aplicação de leis físicas (dependentes do espaço-tempo ou não) ao universo para explicar observações de natureza global, tais como a expansão do volume espacial do universo, a existência de radiação cósmica de fundo, a homogeneidade espacial perdida pela formação de estruturas (galáxias) e outras.
A Metacosmologia coloca questões do tipo “por que a massa do nêutron tem precisamente este valor? Por que existe matéria e não antimatéria no universo? Existe somente um universo? Poderia ter existido uma fase anterior e alguns restos desses universos anteriores estarem ainda perambulando pelo cosmos atual? Por que existe alguma coisa e não nada?”
Dizer que “o vazio é instável” não basta como explicação pois realizamos essa resposta examinando propriedades especificas do vazio. Mas para fazer isso efetivamente é preciso descrever a teoria na qual esse vazio particular aparece, se organiza, se define. E nesse ponto devemos questionar a aplicação irrestrita das leis da física terrestre a todo o universo.
Examinando essas questões, usando as estruturas das leis físicas e suas variações cósmicas controladas pela dinâmica imposta à geometria do espaço-tempo, estamos construindo o lugar da metacosmologia como propusemos (cf Cosmos et Contexte, Ed Masson, 1987).
Nessas lições iremos entender as razões pelas quais, a partir da segunda década do século 20, uma certa ideia da Cosmologia adquiriu uma quase total concordância entre os cientistas através da aplicação ao universo da teoria da gravitação proposta por Albert Einstein. Vamos discutir alguns dos modelos cosmológicos que se desenvolveram e em particular a solução de Alexander Friedmann de um universo dinâmico e singular.
Aparece então a inesperada possibilidade de poder tratar na ciência a pergunta fundamental qual a origem do universo? Vamos examinar algumas das respostas apresentadas pelos cientistas em diversos momentos e que requerem a distinção entre a formação do espaço-tempo e a criação da matéria. Isso passa pela análise envolvendo o mundo microscópico e ficará claro que as características globais do universo têm uma conexão intima com o mundo das partículas elementares e suas configurações quânticas.
E, no entanto, malgrado esse sucesso que pode facilmente ser exibido pela evolução da cosmologia neste século de sua constituição, irei comentar uma análise crítica que gera dificuldades para essa cosmologia padrão. Em seu favor, vamos ver que esta critica conduz a uma riqueza de consequências que transcende de fato a ordenação cientifica e invade outros territórios do pensamento.
Iremos requisitar que a cosmologia tenha uma atitude crítica e repensar o significado do que chamamos lei da natureza. Em particular, devemos enfatizar que o cientista não deve aceitar, sem uma análise profunda, que uma lei física terrestre seja automaticamente generalizada para o cosmos.
Enquanto reconhecemos que existe entre os físicos, entusiasmo na tentativa de estabelecer uma teoria unificada que conteria a base onde reside a explicação de todo processo físico, a cosmologia como a iremos tratar aqui, na contramão dessa prática, deve preliminarmente instaurar um inquérito sobre a validade cósmica dessas leis que se pretende unificar.
Ou seja, a tarefa do cosmólogo não é somente produzir uma ordenação dos processos observados no universo usando uma extensão irrestrita das leis físicas, mas principalmente, examinar de forma crítica e independente de critérios formais universais e absolutos, a aceitação, subjacente à cosmologia corrente, da conjectura de que as leis da física terrestre são válidas em todo o universo
Uma ideia antiga, abandonada pelo establishment por quase um século na aplicação da física ao universo, está vindo à tona e parece produzir um terremoto na organização da ciência e, a partir daí, gerar a necessidade de uma reconstrução da ordem científica.
Embora seja uma noção que permeou o pensamento cientifico há muito tempo, podemos simbolicamente atribuir sua aparição com destaque na física no final da década de 1930.
Com efeito, em 1937 dois artigos publicados em importantes revistas científicas, sugerem que as leis da física podem variar com o tempo cósmico. Um deles, o físico britânico Paul Dirac propôs que a força gravitacional entre os corpos tivesse característica diferente com o passar do tempo universal. O físico S. Sambursky da Palestina, sugeriu que o mundo quântico teria propriedades distintas de acordo com o tempo cósmico.
Ou seja, contrariamente à ideia convencional que tem sido utilizada pelos físicos, esses cientistas propuseram que as leis da física não são universais mas sim variam com o tempo cósmico.
Nós iremos examinar algumas questões associadas à ideia de que as leis físicas variam com o tempo cósmico.
Preâmbulo e resumo
Nos últimos cem anos os cientistas se envolveram em uma das questões mais formidáveis: entender o universo em que vivemos em sua globalidade.
Para isso foi necessário, em um primeiro momento, ultrapassar a versão newtoniana da gravitação e produzir uma nova teoria capaz de ser aplicada a campos extraordinariamente fortes.
A astronomia ampliou o limitado universo do século 19, exibindo centenas de bilhões de galáxias para além de nossa Via Láctea. Como cada galáxia possui da ordem de uma centena de bilhão de estrelas, vemos que temos de considerar configurações materiais que vão muito além das que estamos acostumados a tratar nos laboratórios terrestres.
Malgrado essa enorme diferença de objetos de estudo considerou-se que a análise do universo poderia ser feita com a extrapolação direta da física terrestre. A cosmologia ficaria assim reduzida a uma física extragaláctica. Não poderia discutir questões envolvendo o universo como entidade global, não poderia questionar sua origem, sua eternidade ou seu eventual começo singular.
É claro que como método de trabalho, essa hipótese é razoável. No entanto não podemos esperar que ela possa ser utilizada em todas as situações e que sua aplicação integral não provoque dificuldades na interpretação das observações. Em verdade, sempre se soube que a generalização ao universo das leis físicas era uma hipótese de trabalho e que, no futuro, deveriam ser substituídas quando conseguíssemos estruturar teórica e observacionalmente as leis cósmicas. Estamos chegando nesse futuro.
Um último comentário antes de iniciarmos nosso curso. Veremos que a distinção entre a física e a cosmologia, como a iremos descrever aqui, não é somente de ordem de grandeza dos agentes envolvidos, mas é mais profunda. A cosmologia não pretende organizar o mundo subordinada a um formalismo lógico, fechado em si, ignorando os teoremas de Gödel. Iremos então entender porque podemos dizer que, assim como a biologia (cf. Ernst Mayr), a cosmologia é uma ciência histórica.
Em um primeiro momento iremos descrever como Einstein, Friedmann e os primeiros cosmólogos do século 20 organizaram a questão cosmológica. Embora à época havia total ignorância dos efeitos microscópicos sobre o universo e vice-versa, a partir da segunda metade daquele século a interrelação entre o macro e o microcosmo foi se estabelecendo gradualmente até os dias atuais onde essa conexão está presente em toda a cosmologia contemporânea.
Em seguida iremos tratar da questão causal. A partir da aceitação da teoria da relatividade restrita na primeira década do século 20 cada observador, cada corpo material adquiriu um tempo próprio, variável mas de tal modo bem definido que cada corpo construiu uma relação causal onde a distinção entre passado e futuro é bem determinada. Pensava-se que essa causação pudesse ser entendida como universal, isto é, que cada observador poderia perfeitamente e com toda certeza afirmar que ao caminhar para seu futuro ele estaria se afastando de seu passado. Quando em 1949 o matemático austríaco Kurt Gödel mostrou que a gravitação altera profundamente essa universalidade provocou um choque na comunidade cientifica que até hoje ela não se recompôs. Para exemplificar essa estranheza, podemos citar o livro chamado Gravitation de três autores famosos dos Estados Unidos. Esse livro, que recobre mais de quinhentos autores de artigos científicos e livros não faz nenhuma citação ao importante trabalho de Gödel.
Penetraremos em seguida na análise da metacosmologia. Iremos ver então que essa parte da ciência se tornou uma necessidade natural para que a atividade racional de compreender o universo e suas principais propriedades não tenha limite.
Terminamos esse sobrevoo na cosmologia contemporânea colocando as bases para que possamos responder a questão que subrepticiamente a teoria da relatividade geral coloca, isto é, é o espaço-tempo uma substância?