Introdução à metacosmologia
Resumo da palestra a ser dada no I Colóquio Interuniversitário de Problemas Filosóficos IFCS/UFRJ (março 2020) cujo tema principal está contido na questão: qual deve ser a relação entre a filosofia e as ciências?
Jamais, jamais concluir uma paz com o dogma
~Hegel
Nós só reconhecemos uma ciência: a ciência da história
~K. Marx e F. Engels
Ciência e filosofia podem andar juntas?
“Devem!” afirmou Einstein, e o mesmo disseram Newton, Schrödinger, Hoyle, Bohm e muitos outros.
Nesse simpósio, iremos refletir sobre a contribuição entre ciência e filosofia a partir de algumas questões fundamentais como a origem e a evolução do universo tratadas pela Cosmologia, o cenário rico de interpretações sobre o real e o virtual associado à ciência quântica, as inúmeras indagações sobre a evolução da vida, bem como outras questões que exigem uma permanente recriação do pensamento inerente à natureza mesma da investigação filosófica.
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O renomado físico Victor Weisskopf sugeriu dividir as ciências da natureza, segundo seu escopo: haveria as ciências cósmicas e as terrestres. As primeiras distinguir-se-iam das segundas pelo valor das grandezas representativas dos fenômenos sob exame – grandes massas, altas velocidades, vastas energias, largas distâncias, longas durações. Disciplinas tipicamente cósmicas seriam a astronomia e a astrofísica, a física de partículas elementares e, naturalmente, a representante típica, a cosmologia.
Foi no domínio das ciências terrestres que se forjou uma ordenação newtoniana do mundo. Até o final do século XIX, as verdades científicas que a física exibia pareciam compreensíveis para os não cientistas, o que não ocorreu com as explicações contidas nas mais importantes teorias do século XX. Tanto a teoria da relatividade, restrita e geral, quanto a teoria quântica cercaram-se de uma aura transcendental para a intelligentsia, em razão das dificuldades de sua compreensão para aqueles que não são cientistas dessas áreas e que não dominam suas formulações. Essa dificuldade tem uma única origem: estas teorias tratam de situações que não são observadas no cotidiano. A ciência terrestre, fundamentada na física newtoniana, se ocupa de propriedades capazes de serem explicadas por meio de uma linguagem usual, corriqueira, por considerações do dia a dia. Tratam de fenômenos com baixas velocidades, pequenas pressões, temperaturas não extremamente elevadas, características que podem ser associadas aos nossos corpos, à dimensão humana.
Por outro lado, a ciência cósmica se ocupa de experiências produzidas, sofisticadas e de difícil acesso. Trata, por exemplo, do que ocorre quando se atinge velocidades fantasticamente grandes, próximas da velocidade da luz – trezentos mil quilômetros por segundo; trata também das propriedades novas de corpos extremamente pequenos (da ordem de um átomo ou inferior), bem como de situações envolvendo estruturas enormes como galáxias formadas por centenas de bilhões de estrelas.
Passou-se assim do exame de estruturas envolvendo características de dimensão humana para muito além ou muito aquém dela. Esta situação, conhecida como a questão do dialeto newtoniano, explicita as fronteiras entre o que tratava a física clássica (até o início do século xx) e a nova física, relativista e quântica, surgida nas primeiras décadas do século passado.
Neste novo território de explicação, fenômenos que parecem impossíveis de realizar no mundo, efetivamente ocorrem. Por exemplo, como entender, com nosso modo newtoniano de representar a realidade, usando nossa experiência corpórea, sentenças como: para ir de um ponto do espaço a outro, no nível quântico, não é preciso passar por todo os pontos intermediários; ou, como entender a possibilidade descrita por algumas soluções permitidas na teoria da relatividade geral, onde a causalidade local não pode ser estendida globalmente, permitindo afirmar que, naqueles casos, embora a cada momento eu caminhe para meu futuro, estou ipso facto me aproximando de meu passado.
O leitor não acostumado com essas afirmações da física do século xx certamente terá dificuldades em fazê-las entrar em seu sistema racional, construído com suas próprias experiências, em seu cotidiano. Essa dificuldade se dá porque estas propriedades não são comuns, não fazem parte de situações usuais de nosso dia a dia; ao contrário, são propriedades da matéria em circunstâncias muito especiais, que só podemos acessar mediante um embasamento formal sofisticado, que é no que se transformou a física moderna. No entanto, elas formam a teia que sustenta a ciência e que devemos entender como constituindo a realidade subjacente que ela está revelando.
Essas considerações me levam a concentrar minha questão aqui sob a visão cosmológica.
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Desde sempre o homem foi atraído pelo esplendor do universo.
Adentrar a cosmologia, usar a razão e o método cientifico para perscrutar o universo deveria ser um momento grandioso do pensamento. No entanto, a cosmologia ao longo do século 20 produziu a diminuição desse maravilhamento, deixando em seu lugar equações que para a grande maioria dos não-iniciados não faz sentido e cuja interpretação não provoca nenhum aprofundamento da reflexão sobre o mundo.
A acreditarmos em Heidegger, a ciência não poderia mais ser entendida como um valor de civilização, ela se tornou um afazer técnico e prático. Ela não permitiria, no caminho que se desenvolveu, produzir modos de pensar amplos, capazes de despertar o espirito e produzir reflexão sobre o mundo.
Contrariamente a essa visão negativa do filósofo, iremos ver que a cosmologia está gerando um movimento de ideias que vão em direção oposta e, sim, permitem um despertar do espirito. Em particular iremos ver como uma certa atividade, construída a partir da análise da estrutura do universo, deu origem a um caminho de renovação do pensamento que iremos chamar de metacosmologia.
De modo preliminar podemos distinguir a cosmologia que trata deste universo, da metacosmologia, que trata de todos os universos compossíveis.
Na tarefa de produzir novos modos de pensar, a metacosmologia vai se apoderar, em particular, daquela que Heidegger considera a questão fundamental da metafísica, isto é, “por que existe alguma coisa e não nada?”
O primeiro importante conceito que devemos investigar para entender a necessidade de leis físicas é a estabilidade.
Aplicado ao universo, requer que ele tenha um tempo de existência suficientemente longo para permitir sua evolução e a formação de estrelas, planetas estáveis e configurações como o nosso sistema solar capaz de permitir a constituição de um ambiente favorável ao aparecimento da vida.
Certamente não é por acaso que a estabilidade de uma sociedade humana requer a existência de leis jurídicas que priorizam a coletividade. Aparentemente, o mesmo parece acontecer com as leis físicas: elas permitem a existência de um cosmos estável no qual a solidariedade de suas partes servem para controlar possíveis instabilidades que o destruiriam em tempo mínimo. Isto aponta para uma analogia bastante defensável entre as leis que tendem a priorizar a coletividade.
Sabemos, por exemplo que um universo sem interação entre suas partes, sem solidariedade (como os modelos de universo estático, sem evolução, como se pensou no passado) são altamente instáveis.
No momento em que a rigidez neoliberal leva ao abandono da solidariedade, não deixa de ser iluminador olhar para o universo e, seguindo os passos de Giordano Bruno, pensar a utopia de uma sociedade que mimetizando a beleza cósmica, produza uma profunda alteração nas relações sociais estabelecida sob a égide do único conceito universal e absoluto que nos vem do cosmos e que significa cooperação, interação, participação, ou seja, solidariedade.
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Breve comentário sobre o alcance e a aparência da solidariedade
Sabemos que no universo encontramos diversas catástrofes cósmicas, como galáxias que se devoram, estrelas que colapsam e se transformam em buracos negros, etc.
Esses exemplos parecem contradizer a tese de solidariedade do cosmos. No entanto, estes exemplos são sempre questões locais, não envolvem a globalidade do cosmos, da qual a solidariedade que estamos nos referindo está associada.
Embora a analogia com a situação da espécie animal seja ineficiente, eu ousaria considerá-la somente para relatar a dicotomia local-global e suas diversas aparências no universo e nas relações entre animais. Ou seja, vamos ver (salvadas as consequências do comentário acima) o que diz André Pichot sobre a dualidade egoísmo-altruismo na espécie animal.
“Le dawinisme est consideré comme totalement égoiste, car il suppose une lutte sans merci entre les individus, dont seuls les plus aptes à vivre sortiront vainqueurs. Autrement dit : chacun pour soi, la sélection reconnaîtra les meilleurs. Pour sortir de cet égoïsme tout en conservant les principes darwiniens, il fallait donc imaginer un comportement altruiste héréditaire ayant une valeur sélective supérieure à celle de la lutte de tous contre tous ; un comportement conférant aux individus le pratiquant un avantage tel que l´évolution le conserverait. Wallace trouva ce comportement altruiste dans l´entraide entre les individus d´un même groupe social (il dit « tribu »).
En effect, selon lui, une telle entraide entre ses membres permet à la tribu de plus facilement survivre dans la lutte pour la vie, comparativement aux tribus dont les membres ne s`entraident pas, tribus qui sont donc moins solidement soudés face à l´adversité. »
Ou seja, o individualismo pessoal se transferiu para o egoísmo do grupo. Para preservar o grupo, um efetivo altruísmo se instalou individualmente.
No caso do universo, a solidariedade global requer que as catástrofes acima apontadas sejam sempre localizadas, limitadas no espaço e no tempo, e que elas possam ser incorporadas como pequenas oscilações no território maior do cosmos. Quando isso não acontece, quando essa solidariedade global não se instala, o resultado é uma catástrofe global, o universo se destrói. O exemplo mais simples é o cenário cosmológico de Einstein.
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Para entender o universo inacabado
Isaac Newton teve um “insight” extremamente bem-sucedido ao generalizar a queda de um corpo na Terra sugerindo a existência de uma atração universal de todos os corpos via força gravitacional. Um tal procedimento, no entanto, não deveria ser uma regra geral aplicada a todos os processos físicos observados na Terra. Infelizmente, a extensão ilimitada das leis físicas terrestres a todo o cosmos, feita sistematicamente, associou o universo a um sistema rígido, fechado, completo.
Essa orientação se baseou na hipótese de que ao examinar as leis físicas nos laboratórios terrestre, os cientistas estariam desvendando a estrutura das leis cósmicas, válidas para todo o universo.
Imaginar que as leis da física são eternas e imutáveis, dadas por um decálogo cósmico é ter uma visão a-histórica dos processos no universo. Somente introduzindo a dependência cósmica das interações é possível retirar qualquer resquício de irracionalidade na descrição dos fenômenos na natureza e afirmar a força do modo científico de pensar o cosmos.
É ingênuo pensar que no século XX se tenha introduzido a função histórica na cosmologia graças à caracterização da expansão do universo. A extensão do alcance de aplicação das leis físicas para além da região onde elas foram efetivamente observadas é um modo natural de iniciar a descrição cientifica do desconhecido. No entanto, seu uso absoluto resultou ser tão impositivo e foi usado de modo tão amplo que inibiu qualquer forma de crítica, mesmo naqueles territórios onde essa extensão das leis não possuía nenhuma confirmação observacional.
Essa forma de limitar o pensamento, na tentativa da descrição racional do universo levou à subordinação a leis rígidas, fixas, imutáveis e cuja origem estaria para todo o sempre inacessível. Creio que é aí que podemos encontrar as origens de sustentação formal do nefasto pensamento único que controla e corrói a sociedade nos dias atuais, uma utilização indevida da prática científica.
Recentemente, (Scientific American, outubro 2018) comentei a importância de experiências que estão procurando por evidências da dependência cósmica das leis da física. Como meu texto foi muito resumido, estou voltando ao tema pois penso que ele merece uma explicação maior para que se possa ter a devida dimensão das consequências derivadas da sentença principal com que terminei aquele texto, isto é, de que “a natureza possivelmente está ainda em formação. Não somente em processos e fenômenos, mas na constituição de suas próprias leis”. Ou seja, refletir sobre consequências daquelas experiências e responder a duas questões:
- A dependência cósmica das leis da física enfraquece o poder da ciência em sua leitura da realidade?
- Como uma tal dependência afeta a procura da síntese capaz de conter todo conhecimento da natureza em um só esquema formal? Ou melhor, a entrada da história na descrição dos processos físicos no universo enfraquece a dominação absoluta do positivismo na ciência?
Essa dependência pode parecer para os não-iniciados como limitação do alcance das leis físicas, gerando uma nova interpretação da ciência ou até mesmo, se levado ao extremo, anunciando o fim da análise racional dos processos na natureza. Se as leis variam, então não existem leis fixas, rígidas, duradouras? Não existem “leis duras” da natureza?
Para esclarecer essas questões devemos preliminarmente entender como se estrutura, no interior da atividade científica, aquela dependência. Para isso, não será necessário questionar o sistema de formação do conhecimento cientifico nem considerar sua robustez como método. Vários filósofos têm examinado essa questão e apresentado múltiplas orientações. O que aprendemos dessa análise é que os processos de síntese global não são controlados por estruturas localizadas. Em termos mais precisos, a descrição dos fenômenos em termos de equações diferenciais não controla completamente questões envolvendo características globais, como por exemplo aquelas associadas à topologia.
Para desenvolver a análise dessa questão deve-se percorrer um caminho um pouco mais sofisticado, mais técnico. Tentarei ser o mais didático possível, embora reconheça a priori a difícil tarefa que tenho pela frente, pois os argumentos que devemos usar para esclarecer aquela sentença exigem o aprofundamento formal de algumas questões.
Até muito pouco tempo a microfísica e, de modo mais amplo, a física terrestre, eram pensadas fora do contexto cósmico. Elas pareciam não necessitar de explicação ulterior, eram tratadas como sistemas autorreferentes, sem admitir qualquer forma de análise extrínseca para constituir uma razão auto consistente. No entanto, nas últimas décadas a Cosmologia invadiu abruptamente esse domínio tranquilo do pensamento positivista dominante e destruiu a paz racional daqueles que acreditam que a Terra, os homens, possuem um papel especial no Universo.
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O Cosmos solidário
No livro La solidarité, enquete sur um príncipe juridique, Alain Supiot coordena um exame cuidadoso da evolução do conceito solidariedade. Esse exame se estende desde as longínquas origens jurídicas do termo até questões atuais em diversas áreas, como a biologia, a sociologia, a política, e em diferentes épocas geográficas e históricas.
Neste livro André Pichot apresenta diversos aspectos da solidariedade na biologia e compara com a utilização da sociologia num quadro de analogia darwiniana.
Uma ausência notável, a relação da solidariedade com a ciência da física. Curiosamente, essa ausência é entendida como natural, pois solidariedade é um conceito que não seria aplicável ao universo, mas somente à espécie animal.
No entanto, a cosmologia permite a aplicação desse conceito, solidariedade, ao universo. Mais do que isso, ele pode contrabalançar o papel autoritário e arrogante de uma proposta que pretende dar ao universo um sentido de caráter eminentemente antropomórfico através da utilização do princípio antrópico.
Neste caso, solidariedade pode ser entendido como compatibilidade, coerência no sentido da matemática e da física. Essa interferência cósmica sobre a física local não deve ser entendida como a substituição de uma razão absoluta por outra razão absoluta. Não se trata de trocar o absolutismo associado ao caráter universal da física local pelo absolutismo de uma física global. A questão é um pouco mais complexa. O matemático-filósofo A. Lautman faz uma bela síntese do que está em jogo em seu livro Essai sur les notions de structure et d´existence en mathématiques. Ao examinar a dicotomia local-global ele propõe uma alternativa extremamente interessante com consequências tentaculares, referindo à possibilidade de produzir uma síntese orgânica entre diferentes teorias matemáticas que tratam das conexões local-global e que escolhem o predomínio de uma sobre a outra. Lautman argumenta que é preciso estabelecer uma ligação poderosa entre a estrutura do todo e as propriedades das partes de modo a que se manifeste de modo claro e preciso nessas partes a influência organizadora do todo ao qual elas pertencem. Esse ponto de vista, que parece adotar ideias e programas retirados seja da biologia seja da sociologia, pode aparecer na matemática como um procedimento de síntese. Para isso deve-se abandonar o programa de Russel-Whitehead de reduzir a matemática a estruturas lógicas atomísticas; como também a visão de Wittgenstein e Carnap segundo a qual as matemáticas nada mais são do que uma linguagem indiferente ao conteúdo que elas exprimem. De modo semelhante ao que ocorreu na cosmologia relativista na última década com o abandono da axiomatização Penrose-Hawking, que foi estruturada para dar apoio à identificação da existência de um momento único de criação do universo separado de nós por um tempo finito.
Em outro lugar irei me estender sobre esse caminho que Lautman propôs. Aqui, serve somente como citação, como um exemplo de análise do que está acontecendo no território da cosmologia, para apontar que essa questão transcende nosso plano de exame das questões da física e constitui, em verdade, uma área de reflexão em diversos territórios do conhecimento. Ou seja, uma vez mais, nos deparamos com limites incertos de uma questão bem definida em um território que permite uma análise especial em outro território. Embora distintas, essas questões tratam de algo que aproxima os diferentes modos de compreensão da realidade e que constituem o conjunto das ciências, da natureza e humanas. Exemplos concretos dessas ideias têm sido examinados nos últimos anos.
Como disse recentemente, isso coloca a todos nós, físicos, cosmólogos, pensadores de outras áreas, como grandes companheiros em uma caminhada maravilhosa rumo à compreensão do universo, tendo por base a ideia de que a natureza possivelmente está ainda em formação. Não somente em processos e fenômenos, mas na constituição de suas próprias leis.
E surge então a questão, como mudam as leis? A estabilidade das leis da física observadas em laboratório terrestre decorre do fato que sua dependência temporal envolve tempos cósmicos. Isso significa que somente olhando o universo em grande escala podemos observar esse processo de modificação. Exemplos importantes para detectar essa evolução são a análise da nucleossíntese que determina a abundância dos elementos químicos no universo bem como o exame dos processos que deram origem ao excesso de matéria sobre antimatéria; fenômenos excepcionais, que ocorreram em um estágio extremamente denso do universo, nos primórdios da atual fase de expansão.
Nossa tarefa é examinar como é possível entender solidariedade como a pedra-de-toque para a aplicação da regra de ouro de Lautman na compatibilização entre o micro e o macrocosmo, entre as propriedades das partículas elementares e as características globais, topológicas, do universo.
O modo natural de empreender essa tarefa seria examinar algumas questões formais que requerem desenvolvimento especializado (como a origem da massa, não-linearidade, dependência cósmica das interações, etc.) que deixaremos para um seminário mais técnico. Façamos somente um breve sobrevôo da questão.
Há certas dicotomias que são levadas a um exagero em suas representações e importâncias. Isso será feito aqui, em um primeiro momento como uma tática para que possamos discursar livremente e construir de imediato a questão a ser examinada.
Um exemplo típico, que aparecerá frequentemente é a relação entre uma forma de atomismo e o pensamento global, ou de modo mais amplo, entre propriedades locais e características globais.
A física de Altas Energias, dita de partículas elementares, constitui a atual depositária de um discurso arquitetado há muito e que de modo simples iremos provisoriamente descrever como o primado do local. Com essa denominação sintetizamos diferentes ideias com uma configuração básica comum: a aceitação de que tudo que existe é construído a partir de umas poucas unidades fundamentais. Com o passar dos tempos e a evolução da ciência essas unidades mudam de configuração e seu número pode variar. Eram chamados de átomos nas primeiras décadas do século XX; hoje, são outras formas de elementos fundamentais denominados leptons e quarks.
Em oposição, para simplificarmos a dicotomia forjada nesta batalha, encontra-se o modo global, que iremos simplificadamente identificar pelo termo Cosmologia, a ciência global.
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A entrada em cena de um matemático-filósofo imaginativo: A. Lautman
A análise de diversos processos físicos, sejam eles originalmente retirados da mecânica teórica, seja de outras áreas da física, faz aparecer um princípio-guia: a inércia provoca a ilimitada permanência em um estado estável. Ao aplicarmos esse princípio não somente a partes compactas, regiões limitadas, mas à sua mais completa extensão, o universo, essa entidade global que ousaríamos chamar provisoriamente de totalidade, produzimos um critério absoluto de constituição das leis físicas, associado a esse tempo ilimitado de existência. Segue então a inesperada concepção de que o universo persegue o caminho que leva à duração eterna. A quebra da continuidade, com a perda da eficiência da solidariedade impõe ao universo sua autodestruição, restando somente o vazio que servirá para outra tentativa de construção de um cosmos, de forjar um mundo. E, assim, indefinidamente.
Podemos então entender o uso do conceito de solidariedade na formulação de Lautman dos princípios da matemática moderna. Trata-se, resumidamente, de conciliar propriedades locais e globais. Para que essa compatibilidade seja bem sucedida, uma troca eficiente de informação deve percorrer o universo. De outro modo, deveríamos aceitar que o controle da evolução do universo estaria dado por um determinismo a priori relacionado a desconhecidas condições iniciais de estruturas locais de equações diferenciais.
Essa solução de compatibilização lautmaniana pode não ter um sucesso absoluto. Uma tal perspectiva faz surgir a ideia de eficácia limitada da compatibilização lautmaniana. Dito de outro modo, é possível imaginar que o universo tenha passado por várias fases ou ciclos, cada um deles podendo ser caracterizado por um número S (de solidariedade no sentido de Lautman) cujo domínio de valor deve ser posto entre zero e um. O valor zero sendo o menos solidário, o menos competente na conciliação entre propriedades locais e globais; o valor um sendo o máximo de compatibilidade possível, o limite idealizado de Lautman.
Entendemos dessa forma a aplicação desse critério ao universo. Ele pode ser exemplificado com outras configurações menos abrangentes, como por exemplo, no processo pelo qual um gás ao ser colocado em um frasco se dilui e ocupa todo o volume do recipiente. As forças localizadas se organizam para permitir essa configuração. Podemos também usar procedimentos estatísticos para compreender esse fenômeno. Mas os detalhes local/global não são importantes para essa análise. O que importa é o resultado final que permitiu a conciliação para gerar a dispersão do gás no interior completo determinado pelo frasco que o contém.
Essa compatibilidade não é organizada a priori, mas decorre de processos relativos à relação local-global. A física estatística se ocupa de apresentar uma versão desse processo independente do conhecimento dessa relação, de cada etapa necessária para atingir a situação de equilíbrio final, ou seja, a ocupação completa pelo gás do volume que lhe foi imposto, sua fronteira global.
Para entender de modo simples a compatibilidade da ordem que parte do local para o global e a situação inversa do global para a estruturação do microcosmos vamos nos valer de uma pequena modificação de uma ideia com que Newton exemplificou sua ordenação das leis físicas.
Metáfora do túnel da Mancha
Os engenheiros sabem como conciliar, na construção de um túnel através do mar ou através de uma montanha, ao ser executado simultaneamente a partir de ambos os lados da montanha, para que o encontro dos dois buracos seja harmonioso isto é, que eles se encaixem corretamente.
É preciso técnica e arte para que esses buracos abertos de cada um dos lados da montanha sejam compatíveis em seu encontro, isto é, que ao se encontrarem estejam na mesma altura do solo.
Se um deles estiver, erroneamente, acima do outro então um desvio será necessário fazer. Esse desvio certamente irá provocar defeitos futuros e gastos adicionais não previstos. Para evitar essas dificuldades e tornar todo o processo compatível, os engenheiros devem exercer máxima atenção e competência.
Uma disfunção análoga, associada a este tipo de dificuldade, poderia estar presente também se não houvesse compatibilidade das leis físicas do microcosmo, ao nível das partículas elementares e o macrocosmo, na estrutura global do universo e em particular sua topologia.
Assim como deve existir uma profunda solidariedade, cooperação entre os esforços dos engenheiros de um e do outro lado da montanha, também no universo a solidariedade local-global é fundamental para que perturbações esporádicas não cresçam sem controle, gerando uma condição de instabilidade sem limite. Isso é o que acontece por exemplo no modelo cosmológico de Einstein que foi elaborado tendo como fonte da geometria do universo somente matéria ponderada sem interação entre suas partes, sem pressão: a ausência de solidária interação entre suas partes o torna altamente instável.
Um universo que entra em uma fase de expansão controlado por uma aceleração negativa (da variação de seu volume total) — atribuída à força gravitacional atrativa, gerada por matéria ou energia convencional terá inevitavelmente um fim próximo, posto que seu volume começará, cedo ou tarde, a colapsar. Seu futuro, nesse caso, é sua destruição.
Para evitar esse fim, o universo deveria adentrar o modo lautmaniano, invertendo o sinal negativo de sua aceleração e produzindo uma aceleração positiva que volte a dominar sua evolução.
Essa descrição permite pensar que o universo teria passado por diversos ciclos de expansão e colapso, realizados dentro dos valores possíveis 0 < S <1.
Resumindo, podemos chamar os estados limites dos processos fisicos com nomes emprestados da solidariedade social, ou seja, ao estado S = 0 chamaríamos estado de egoísmo máximo; ao valor S = 1, chamaríamos estado de solidariedade máxima.
Um universo que atinge S = 1 existirá para sempre; um universo com valores de S menores, terá tempos de existência finita que poderão ser determinados pelo correspondente valor de S.
Na teoria das equações diferenciais não-lineares, Poincaré mostrou como é possível existir certas soluções especiais que funcionam como verdadeiros atratores. Isto é, qualquer que seja o inicio de um processo descrito por essas equações, a probabilidade é grande para que eles terminem como o estado estável que serve de atrator.
Na cosmologia que estamos examinando, uma situação semelhante ocorre, o que leva à questão: essa atração irresistivel de atingir o estado S = 1 afeta a evolução das leis físicas?
A diminuição ou mesmo a ausência da solidariedade local-global estaria associada à instabilidade. Um universo onde S não tem o valor máximo provavelmente seria instável por perturbações que sempre podem ocorrer por flutuações locais, levando-o à autodestruição. Tal é, por exemplo, o cenário cosmológico estático de Einstein. Sem relação dinâmica entre suas partes ele está fadado a uma limitada existência.
Diferentemente, o universo de Friedman – mesmo possuindo um horizonte, ou seja, mesmo sem ter uma completa conexão entre todas suas partes – permite uma estabilidade maior e a ação de eventuais perturbações não o destroem, mas sim permitem o surgimento de estruturas como galáxias, estrelas, planetas, vida.
O mais fundamental dos princípios que está na base da ciência consiste na hipótese de uma única estrutura espaço-tempo. Uma outra possibilidade admite cenários evolutivos que permitiriam a variação das leis físicas e consequentemente produzir uma história dessas leis concomitantemente com uma história de diferentes universos.
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Metacosmologia
O filósofo Martin Heidegger, em seu curso de introdução à metafisica, faz uma avassaladora crítica ao desenvolvimento da ciência no último século. Um extrato de sua argumentação serve para que a possamos entender:
Sur l´état de la science, qui, ici, à l´Université, nous interesse particulièrement, on peut juger de notre situation dans les dernières décennies. Si on voit aujourd´hui deux conceptions, en apparence différentes, de la science, et qui en apparence se combattent, la science comme savoir professionnel technico-pratique et la science comme valeur de civilisation en soi, il n´en reste pas moins qu´elles se meuvent toutes deux sur la même voie de décadence, celle d´une mésinterprétation et d´une enérvation de l´esprit. Elles ne se distinguent qu´en ceci, que la conception technico-pratique de la science comme science spécialisée peut encore revendiquer, dans la situation actuelle, l´avantage d´être logique avec elle-même ouvertement et en toute clarté, tandis que l´interprétation, qui réapparait aujourd´hui , de la science comme valeur de civilisation, essaie de cacher l´impuissance de l´esprit, avec une duplicité inconsciente.
La confusion inhérente à l´absence totale de pensée va même parfois si loin que l´interprétation technico-pratique de la science reconnait en même temps la science comme valeur de civilisation, de sorte que, dans une égale absence de pensée, toutes deux se comprennent parfaitement bien.
…..Les domaines des sciences sont séparés par de vastes distances. Elles traitent chacune leur objet d´une manière foncièrement différente. Cette multiplicité de disciplines ainsi émietté doit le peu de cohésion qui lui reste à l´organisation technique d´Universités et de Facultés; et le peu de signification qui lui reste aux objectifs practiques des spécialités. En revanche, l´enracinement des sciences dans leur fondement essentiel est bel et bien mort.
La science est aujord´hui, dans toutes ses branches, une affaire technique et pratique d´acquisition et de transmission de connaisances. Elle ne peut nullement, en tant que science, produire um réveil de l´esprit. Elle a ele-même besoin d´um tel réveil.
(pag 60, M Heidegger Introduction à la métaphysique, 1935)
A orientação imprimida ao trabalho que os cosmólogos temos feito tem como função mostrar que a cosmologia e sua extensão natural, a metacosmologia provoca uma forma de despertar na direção requisitada por Heidegger. Ela irá questionar aquilo que os físicos têm dado pouca atenção, entre outras coisas o que chamo utopias controladas.
Comecemos por distinguir Cosmologia e Metacosmologia.
Como primeira tentativa de explicitar essa distinção dizemos: a cosmologia trata da aplicação de leis físicas (dependentes do espaço-tempo ou não) ao universo para explicar observações de natureza global, tais como a expansão do volume espacial do universo, a existência de radiação cósmica de fundo, a homogeneidade espacial perdida pela formação de estruturas (galáxias) e outras.
A Metacosmologia coloca questões do tipo “por que a massa do nêutron tem precisamente este valor? Por que existe matéria e não antimatéria no universo? Existe somente um universo? Poderia ter existido uma fase anterior e alguns restos desses universos anteriores estarem ainda perambulando pelo cosmos atual? Por que existe alguma coisa e não nada?”
Dizer que “o vazio é instável” não deve nos contentar como explicação pois realizamos essa resposta examinando propriedades especificas do vazio. Mas para fazer isso efetivamente é preciso descrever a teoria na qual esse vazio particular aparece, se organiza, se define. E nesse ponto devemos questionar se a aplicação de leis da física terrestre pode validar uma resposta satisfatória.
Examinando essas questões, usando as estruturas das leis físicas e suas variações cósmicas controladas pela curvatura do espaço-tempo, estamos construindo o lugar da metacosmologia (cf o livro CosmoseContexto).
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Utopias científicas (de Gödel a Markov)
(Apresentado na conferência Renascimento das utopias, Rio, Setembro 2017)
“Na natureza, tudo que não é proibido de acontecer, acontece.”
A contradição geralmente evocada entre ciência e utopia que encontramos em vários textos, não deveria ser considerada uma verdade isenta de críticas. Ela se consolidou em certos discursos a partir de exemplos cotidianos transfigurados, por inércia, em regra geral. Afirma-se que é utópico desejar a juventude eterna, assim como esperar que a primavera não termine. Desejos irrealizáveis, identificados como utópicos por violarem alguma lei da natureza.
É possível reconhecer utopias mais brandas, aquelas que embora não violando as leis da natureza, afastam-se da convenção dominante na sociedade, segundo a qual deve-se aceitar uma definição única e universal da realidade. Essas são utopias da ordem humana, entendidas como um ideal de sociedade a ser eventualmente perseguido e, com maior ou menor sucesso, ser realizado.
Há também outras formas de utopia que compreendem configurações organizadas dentro dos cânones científicos. Alguns desses exemplos, embora construídos na ciência, satisfazendo as leis físicas convencionais, constituem estruturas consideradas irrealizáveis, concedendo-se a elas, de modo errôneo, o mesmo tratamento atribuído aos processos que violam alguma lei da natureza. Vamos considerar alguns exemplos.
Ao longo do século XX, os físicos construíram teorias, modelos de interpretação de fenômenos, que permitem o desabrochar de configurações extraordinárias, inesperadas, algumas até mesmo fantasiosas, impossíveis de serem observadas no cotidiano. Embora organizadas no interior da prática científica, elas exibem propriedades tão singulares, tão incomuns, que foram colocadas à margem do discurso convencional da ciência, como se fossem impossibilidades formais, o que em verdade elas não são.
Curiosamente, algumas dessas configurações povoam há muito o imaginário popular, como por exemplo, a construção formal de caminhos que levam ao passado e complexas formulações representando o universo como um átomo de um universo maior.
Essas formas são entendidas como utopias controladas, isto é, processos admitidos no esquema convencional da ciência identificados como exemplos de configurações de difícil realização, que, embora descritas no interior de teorias cientificas aceitas, produzem imagens conflitantes não só com o senso-comum como também com o establishment cientifico. Como consequência, elas são colocadas no limbo, à parte das afirmações cientificas usuais. E, no entanto, a teoria sobre a qual esses processos se sustentam, aceita integralmente como verdadeira, os tornam parte integrante do mundo descrito pela ciência.
A teoria da relatividade de Poincaré e Einstein, a teoria quântica de Schrodinger e Heisenberg, a dinâmica expansionista do universo de Friedman e Hoyle são alguns exemplos conhecidos e que já fazem parte do imaginário popular construído a partir da visão autoritária da ciência. Existem processos descritos no interior dessas teorias que permitem o aparecimento de estruturas que levam a imaginação a empreender voos tão estranhos quanto os sonhos mais esdrúxulos de Joseph K. São esses exemplos que chamamos utopias controladas.
Uma característica comum de reação a essas configurações extraordinárias é sua obsolescência pela comunidade científica bem como a repulsa a considerá-las como temas convencionais, mesmo sendo essas propostas consequências formais de teorias bem aceitas. Contrariamente ao que ocorria no passado, aqueles que se dedicam ao exame dessas propostas não são excomungados como Galileu, nem colocados em fogueiras como Giordano Bruno. Nos tempos atuais, na sociedade do espetáculo que vivemos, eles recebem um castigo maior: são ostensivamente ignorados pelo establishment. Elimina-se qualquer referência a esses projetos, a não ser em mínimas notas de pé-de-página em alguns poucos textos técnicos. Ou, nos últimos tempos, são associados como se fossem fantasias delirantes apresentados como configurações no limiar de irracionalismos.
Eu me limitarei aqui a considerar três dessas utopias controladas que pertencem ao domínio da ação gravitacional descritos pela teoria da relatividade geral de Einstein, a saber:
- A estrutura causal em geometrias que possuem curvas temporalmente fechadas (Godel);
- Ciclos de evolução do universo (Tolman);
- Extensões analíticas para fora do universo (Markov).
O que essas configurações têm em comum?
Em um primeiro momento podemos afirmar que elas produzem desconforto formal pois embora se apoiem em conceitos convencionais e teorias bem aceitas, elas tratam de exemplos que povoam a imaginação popular identificados como estruturas irracionais, fantasiosas, impossíveis de constituírem parte integrante da ciência. E, no entanto, eles estão solidamente apoiados nos conhecimentos atuais da ciência física.
Antes de penetrarmos na descrição desses cenários científicos, um comentário genérico sobre a estrutura das leis físicas se faz necessário.
Desde sempre, os cientistas se viram às voltas com as propriedades do que se chamou lei física. É ela que controla os fenômenos da natureza e, embora sua forma possa variar, dependendo do grau de conhecimento obtido em sua análise, ela constitui uma estrutura rígida, inabalável, determinando as configurações possíveis no mundo.
É claro que o formalismo com que a descrevemos pode mudar. Isso decorre da incerteza humana. No entanto, o objetivo final da ciência é atingir o cerne da lei e obter sua descrição completa. Um objetivo que de tempos em tempos os cientistas acreditam terem conseguido, para mais adiante se darem conta de que novos fenômenos desconhecidos até então, impõem alterações na forma da lei. Essa variação da lei é convencional e está associada à natureza humana. Não diz respeito às leis do mundo propriamente dita.
Pois bem, ao longo do século XX foi se acumulando evidências de um tipo de variação mais dramático, ao se reconhecer que essas leis não são as mesmas em todo o cosmos, podendo variar com sua localização espacial e/ou temporal. Em um primeiro momento, essa variabilidade das leis apareceu como uma fantasia, uma especulação de cientistas renomados – como Dirac, Lattes, Hoyle e outros – que podiam se permitir interpretações pouco comum de alguns fenômenos induzindo à possibilidade de tratar leis físicas como variáveis.
Essas especulações, é bom que se diga, nunca foram de agrado do establishment, mas não eram tratadas com repulsa total. Aos poucos, no entanto, diversas propriedades mereceram análise tão distinta das convencionais que essas propriedades de variação das leis físicas passaram a ser convencionais, tornando-se uma importante área de investigação.
Alertados para essa dependência cósmica das leis da física, projetando a natureza histórica das próprias leis da natureza, independentemente de sua formulação na ciência, podemos empreender a tarefa de examinar os três exemplos de utopias controladas já citados:
- Utopia causal ou a volta ao passado;
- Utopia Gulliveriana ou é nosso universo um átomo de um universo maior?
- Utopia dos vários ciclos pelos quais o universo passou.
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Utopia causal ou a volta ao passado
O exemplo mais marcante de que propriedades da física local, na Terra e suas vizinhanças, podem não ser válidas globalmente, nos confins do universo, foi apresentado em 1949 pelo matemático austríaco Kurt Godel. Em uma conferência em homenagem a seu amigo A. Einstein, Godel apresenta um modelo de universo na qual embora o principio causal seja válido em cada ponto desse universo, ele não vale globalmente.
Localmente, a existência de um limite máximo de propagação de informação identificado com a velocidade da luz permite construir configurações tipo cônes, em uma representação espaço-temporal, de tal modo que a luz se propaga sobre esses cônes e toda e qualquer forma de matéria e energia só pode se propagar no interior desses cônes. Isso significa que para cada observador no mundo existe associado um cône no espaço-tempo que determina a distinção passado-futuro para este observador. Assim, causalidade local é rigorosamente definida.
Entretanto, a força gravitacional atuando sobre os fótons, os grãos elementares da luz, distorce a orientação desses cônes. O resultado mais dramático, descoberto por Gödel, se refere à possibilidade dessa deformação impedir a veracidade global da sentença “ao caminhar para o futuro, afasto-me de meu passado”. Essa sentença que para nós, em nosso cotidiano, é uma verdade sem dúvida, deixa de sê-la globalmente. Com efeito, Gödel mostrou que em certas configurações do campo gravitacional –que não são as de nossa vizinhança terrestre – ao caminhar para o futuro estaria me aproximando de meu passado. Ou seja, como se a imagem mental do tempo como uma linha reta deveria ser transformada na imagem mental de um círculo.
Ou seja, a ideia utópica de volta-ao-passado não conflita com a teoria da relatividade geral que descreve os processos gravitacionais. Ao mesmo tempo, conseguiu-se uma demonstração clara e simples da razão pela qual não é possível na Terra termos a experiência de volta-ao-passado: porque o fraco campo gravitacional produzido pela Terra, possui características diferentes da configuração especial descoberta por Godel.
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Utopia Gulliveriana ou é nosso universo um átomo de um universo maior?
O universo é um sistema fechado? Sim é a resposta convencional e óbvia desde sempre. No entanto, o físico russo M. A. Markov ensinou que pode não ser assim. A demonstração disso é por demais técnica para ser apresentada aqui, mas uma descrição compacta de como Markov a construiu é possível. Ela se desenvolve em quatro etapas, todas elas associadas a processos gravitacionais controlados pela teoria da gravitação de A. Einstein.
Primeiro movimento: estudo do campo gravitacional gerado por uma estrela, um corpo compacto em geral. Na região externa ao corpo tem-se a solução das equações da gravitação da Relatividade Geral, construída por Schwarzschild. Assintóticamente, longe, muito longe da estrela, a ação gravitacional evanesce e a geometria passa a ser descrita idealmente pela métrica plana, sem curvatura, do espaço-tempo vazio de Minkowski.
Segundo movimento: ainda o campo gravitacional gerado por uma estrela, um corpo compacto. Diferentemente da situação anterior, na região externa constrói-se uma modificação da solução de Schwarzschild de tal modo que longe, muito longe da estrela a ação gravitacional não desaparece, mas se transforma e a geometria é descrita, de modo mais realista que na configuração anterior, pela métrica de um universo em evolução como na geometria de Friedman. E quanto ao seu interior?
Terceiro movimento: ao interior da estrela é associada uma estrutura métrica representada por um universo tipo Friedman em evolução. Esse interior é então acoplado de modo continuo à solução do exterior da estrela de Schwarzschild do primeiro movimento.
Quarto movimento: Na estrutura anterior do terceiro movimento, a geometria de Friedman é estendida para o exterior identificada com uma geometria de Schwarzschild que, por sua vez, é continuada para uma outra geometria representando um outro universo do tipo Friedman em evolução.
O resultado dessa complexa sequência de soluções exatas das equações da relatividade geral pode ser visualizado como o interior de um corpo, integrando-se solidariamente a um universo maior.
Essa construção que Markov organizou pode assim ser descrita como se um corpo, uma estrela, um grande conjunto de estrelas, um conjunto de galáxias, identificado a um elemento único compacto ou universo, que, juntamente com inúmeros outros corpos semelhantes, estivesse imerso em uma configuração maior constituindo o que deveríamos chamar super universo. Dito de modo coloquial, como se nosso universo pudesse ser descrito como um átomo de um universo mais amplo.
E se é assim, poderíamos imaginar ações entre esses átomos-universos de modo a permitir que leis da física pudessem ser extrapoladas para essas configurações. Esse universo em que vivemos, identificado como um átomo, um elemento de um mundo quântico, se abriria para complexas e extraordinárias configurações.
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Utopia dos vários ciclos pelos quais o universo passou
Nos últimos anos, depois de ultrapassar a avalanche midiática que pretendia identificar o chamado bigbang – um cenário de descrição do universo em sua fase extremamente concentrada — com o “começo-do-mundo” os cosmólogos voltaram a examinar antigas propostas, desenvolvidas nos anos 1930 e 1940, referentes a possíveis ciclos de expansão e colapso do universo.
A ideia original descrita pelo físico Richard Tolman examinou a possibilidade de além da atual fase de expansão do universo, na qual o volume espacial total aumenta com o tempo cósmico, teria existido outra fase na qual esse volume teria diminuído, ou seja uma fase anterior de contração.
A dificuldade em aceitar essa configuração esbarrava na impossibilidade de existir uma continuidade analítica entre a fase de colapso e a fase de expansão. A razão é clara: no momento de passagem de uma fase à outra a estrutura métrica exibiria uma singularidade que implicaria que toda forma de matéria e energia existente assumiria valor infinito. Do ponto de vista prático, isso significaria que nenhuma forma de informação poderia passar de uma fase para outra. Por essa razão, o cenário proposto por Tolman foi relegado pela comunidade científica.
Essa dificuldade só foi sanada ao final de 1979 quando surgiram dois cenários pioneiros (Melnikov-Orlov na URSS e Novello-Salim no Brasil) representando configurações de universos sem singularidades possuindo bouncing, isto é, exibindo soluções analíticas de teorias físicas na qual o universo teria experimentado uma fase de colapso gravitacional na qual seu volume espacial total teria atingido um valor mínimo, diferente de zero; e em seguida iniciado o processo atual de expansão. A propriedade de ter um volume mínimo distinto de zero elimina a singularidade dos modelos do tipo bigbang e permite consequentemente a passagem de toda forma de informação de uma fase a outra.
Superada a dificuldade maior do cenário bigbang, esses cenários cósmicos permitiram então o exame de configurações mais sofisticadas e complexas onde mais de um ciclo colapso-expansão teria acontecido. Questões técnicas novas apareceram, que se tornaram matéria de intensa investigação científica que continua atualmente.
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Múltiplos universos
Nos anos 1960 o físico russo Andrei Markov propôs a construção de uma solução das equações da Relatividade Geral combinando uma configuração local com uma global. Vou descrever essa proposta, sem entrar em detalhes maiores que exigiriam uma discussão técnica que nos propusemos não realizar nestas lições.
Basicamente, a análise de Markov depende de duas geometrias distintas: o modelo cosmológico de Friedmann e a geometria de Schwarszchild. Fizemos uma breve descrição da geometria de Friedmann. Vamos nos deter um pouco para descrever essa outra geometria.
O campo gravitacional gerado por uma estrela, na teoria da Relatividade Geral, ou melhor, a modificação da geometria no exterior de uma estrela foi descoberta pelo astrônomo Karl Schwarszchild em 1916. Essa solução ganhou notoriedade quando se mostrou que ela continha propriedades inusitadas e que conduziram mais tarde à noção do que se chamou buraco negro. Esse termo foi introduzido por uma propriedade especial: a possibilidade de matéria e energia sob qualquer forma ficar aprisionada no interior de um raio que depende somente da quantidade de matéria da estrela.
Expliquemos. Vamos considerar idealmente o campo gerado por uma fonte puntiforme. Trata-se de uma idealização que os físicos fazem, mas que permite ter uma descrição e uma interpretação clara e simples da situação.
A superfície caracterizada pelo raio pode ser entendida como uma membrana unidirecional, que permite qualquer forma de matéria e energia — um corpo qualquer que chamaremos de C — entrar nessa região interior de mas impede que dela possa sair. Isso independe da intensidade da força, de caráter não gravitacional, que se aplique ao corpo C. Ou seja, nenhuma forma de matéria e energia, inclusive a luz, pode sair da região interna a essa superfície Desse modo, essa estrela com dimensão pontual (ou, digamos, de raio menor que não é visível do exterior. O único efeito de sua existência é precisamente o campo gravitacional que ela produz. É um corpo que não emite luz, invisível, ou seja, um buraco negro.
Se no exterior dessa estrela a geometria é dada pela forma de Schwarszchild, o que podemos dizer de seu interior? O físico americano Richard Tolman sugeriu pensar esse interior como se fosse um universo de Friedmann de uma forma especial: ele seria modificado um pouco da forma original para que pudesse ter uma continuação analítica para um exterior que seria precisamente a métrica de Schwarszchild.
Essa construção formal, a união de geometrias, é um procedimento legitimo e conhecido dos físicos de longa data por sua analogia com o que ocorre com o campo eletromagnético. Sabemos como se dá a descontinuidade de um campo elétrico ao passar por uma superfície separando um corpo carregado de um meio externo qualquer.
Assim, teríamos a seguinte configuração: no interior da estrela a métrica seria do tipo Friedmann e em seu exterior seria da forma Schwarszchild .
Note que esta forma de universo associado ao interior da estrela não pode ser idêntico ao universo de Friedmann pois deve conter uma particularidade a mais capaz de permitir essa configuração externa. Os detalhes técnicos podem ser encontrados nas referências.
A geometria de Schwarszchild representa o campo gerado por uma estrela. Ora, sabemos da teoria newtoniana que este campo decresce com a distância à estrela e se anula para uma distância suficientemente grande (representamos pelo termo infinitamente distante). Essa característica é explicitada na forma ao reconhecermos que essa métrica coincide, assintóticamente no infinito com a métrica de Minkowski, plana, isenta de curvatura.
Markov dá um passo além dessa construção ao alterar essa condição no infinito. Ele provoca uma nova geometria para além da impondo que existe uma extensão, em uma região finita, onde a geometria se associa, se transforma, se estende para uma outra forma de geometria distinta da de Minkowski. E qual é essa geometria que Markov escolhe? Precisamente a geometria de Friedmann.
O argumento é fácil de entender. Ao considerar o campo gravitacional da estrela em uma região muito afastada, a geometria deve ser identificada à do universo onde essa estrela está mergulhada.
Temos assim uma configuração complexa envolvendo três regiões:
- Região 1 (0 < r < : geometria de Friedmann;
- Região 2 ( < r < : geometria de Schwarszchild;
- Região 3 ( < r): geometria de Friedmann.
Uma tal estrutura é a versão sofisticada, no interior de uma teoria – a relatividade Geral – da ideia quase infantil de imaginar que nosso universo é um átomo de um universo maior.
Pode-se perceber que essa construção de Markov pode continuar com mais fases. Com efeito, nos anos 1980 minha colaboradora Regina Célia Arcuri examinou a possibilidade de compatibilizar esses universos em várias camadas. Uma tal estrutura resultou ser estável e pode constituir um modo de geração de múltiplos universos.
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Múltiplos ciclos do universo
Um outro modo de pensar uma multiplicidade de configurações do universo pode ser construído alargando-se este conceito. Com efeito, consideremos a configuração na figura anexa contendo diversos ciclos de colapso e expansão indefinidamente. Um tal cenário foi construído a partir de uma combinação da gravitação, descrita na Relatividade Geral, e do campo eletromagnético não linear. Ao reconhecer que a teoria linear do campo eletromagnético implica necessariamente um universo singular, diversos autores começaram a examinar a teoria não linear do eletromagnetismo obedecer. Esse universo de múltiplos ciclos é uma das notáveis consequências dessa combinação dos dois campos clássicos conhecidos.
Tunelamento
O físico A. Vilenkin imaginou a possibilidade de criação espontânea do universo. A ideia básica consiste em aceitar que o universo provém de um estado sem matéria, sem espaço e sem tempo a partir de flutuações do vácuo quântico.
Esta proposta requer que exista esse pré-estado – o vácuo quântico – que conteria o germe da formação do universo, matéria, espaço e tempo –mas ele mesmo, esse estado especial – é definido pela ausência de espaço e de tempo. Ou seja, ele seria prenhe desse cosmos, dessa matéria, da constituição do espaço e do tempo.
O fato de poder descrever uma tal situação por meio de equações obtidas pelas propriedades que observamos no universo que existe faz depender essa proposta de características ulteriores do mundo.
Creio que o cosmólogo deve partir da hipótese mínima de que está escrito no universo, em suas características, os detalhes de sua origem.
O estado vácuo quântico faz parte de observações e experiências que foram e podem ser acompanhadas nos laboratórios terrestres. Sabemos também que flutuações do vácuo geram efeitos observáveis.
Falhas na continuidade dessas observações são compreendidas à luz do princípio de incerteza. Mas o que se exige, na formação por tunelamento do vácuo quântico, é a criação do universo projetado no que chamamos realidade sem que uma causação possa ser atribuída, sem que tenhamos acesso a esse vácuo quântico original.
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Conclusão
O que podemos concluir desses inesperados exemplos que fomos buscar em configurações físicas pouco conhecidas, mas satisfazendo leis convencionais da ciência? Cada uma delas possui uma versão popular que a qualifica como utópica. E, no entanto, vimos que possuem uma versão científica, constituindo um processo aceitável, não contraditório com o conhecimento científico.
Chamamos de utópicos esses exemplos porque constituem situações que se afastam do experimentado em nosso cotidiano, sendo idealizações que preenchem um desejo latente que persiste em explodir no real.
Voltar ao passado, fisicamente, dentro do cenário descrito no espaço-tempo da ciência não é impossível de ocorrer em nosso universo. No entanto, a impossibilidade factual de realizar essa viagem em minha experiência pessoal, continua qualificando-o como utópico. A utopia não está na minha relação com a natureza das leis físicas, mas sim na resistência a pensar para além de uma ação física no mundo.
Surge então a questão: esses exemplos que descrevemos aqui, as utopias controladas, possuindo o aval da ciência, retiram do utópico a condição de ser irrealizável?
É verdade que eles chocam o senso comum. Embora descritos dentro das leis físicas aceitas, aqueles exemplos parecem impossíveis de serem vivenciados. Como experimentar “o lado de fora do universo”? Como experimentar a “volta ao passado” se devemos, para isso, acessar uma configuração gravitacional especial, distinta da que podemos experimentar na Terra e vizinhanças? Como vivenciar ciclos passados do universo?
Podemos comparar essas dificuldades com situações semelhantes que ocorreram na história recente da física.
O físico suíço Wolfgang Pauli, há mais de setenta anos, sugeriu a existência de um novo componente do mundo microscópico, uma partícula elementar que chamou neutrino, um pequeno nêutron. Sua proposta de presença dessa partícula foi elaborada para salvar leis físicas sólidas como a conservação da energia. Entretanto, a possibilidade de observar uma partícula com propriedades tão evasivas quanto o neutrino, parecia à época –e para seu próprio criador – praticamente impossível de ser detectada, e para sempre, em laboratório terrestre, levando Pauli a se perguntar, logo em seguida à sua sugestão “como é possível experimentar o neutrino?”
Com efeito, o neutrino tem interação tão fraca com a matéria que nesse momento em que escrevo um número fantástico dessas partículas, vindas do cosmos, passam através de meu corpo sem que nenhum rastro de interferência seja revelado. E, no entanto, nos tempos atuais, o neutrino é observado cotidianamente em inúmeras experiências terrestres e observações astronômicas.
Sigamos com essa mesma análise. Como experimentar um buraco negro? Perguntavam-se os físicos nos anos 1970 quando então o estudo da evolução de estrelas massivas consolidou a possibilidade de existência desses fantásticos corpos, heranças de estrelas instáveis, no universo. Hoje, inúmeros astrônomos tratam a observação de certas configurações localizadas como características convencionais de buracos negros.
A utopia, como empregada nesse texto, extrapola a descrição usual limitada à construção de sociedades perfeitas. Ao estender esse conceito ao estudo de propriedades especiais de regiões do espaço-tempo identificada a distintas configurações do universo, relacionamos a física às utopias sociais, permitindo a utilização da força de conceitos deslocados, ostensiva e independentemente, para a frente de suas realizações factuais.
A ciência, a partir da revolução produzida pela cosmologia nos últimos anos do século XX, apoiada na dependência cósmica das leis físicas, afastando-se da descrição tradicional do mundo de viés essencialmente antropológico, aproxima-se assim da utopia de Giordano Bruno segundo o qual, ao produzir uma leitura do universo a partir de uma nova ordem estabelecida nesse território global e, consequentemente, induzir uma nova visão do papel do homem no cosmos, abre-se o caminho para mudanças profundas na ordem social. Dito de outro modo, ao enfatizar esse aspecto histórico, a ciência deixa aparecer seu lado revolucionário, não somente nas ideias que estendem seu território de ação, mas na elaboração de uma ordem utópica da sociedade.
A partir desses exemplos apossados da ciência, e com ênfase na turbulenta gestão da lei da física, transformada em lei cósmica pelo reconhecimento de sua dependência com a evolução do universo, estamos nos preparando para empreender o grande salto prefigurado por Giordano Bruno na produção de uma nova ordem social. Ao mesmo tempo, estaremos realizando o desejo de Heidegger de requerer da ciência um despertar do pensamento.
Referências
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