O novo ‘tempo dos monstros’
Anuncia-se uma nova ‘Santa Aliança’ com a pretensão de reordenar o mundo, sob um novo projeto conservador, substituídos os impérios russo e austríaco e o reino da Prússia pelos EUA de Donald Trump e seus aliados europeus, ao lado de Israel e da Arábia Saudita. A esse grupo, o Brasil do capitão Messias já pede ingresso, de modo subalterno. Dele deverá ser, a partir de 2019, um bastião no Atlântico Sul, cuidando, como preposto, da América do Sul e da África Ocidental.
O novo ‘tempo dos monstros’ lembra a articulação reacionária dos anos 30 do século passado, quando foram gestados o nazi-fascismo e o stalinismo, o Eixo e a II Guerra Mundial que se desdobraria, até quase nossos dias, renovados os adversários, na Guerra Fria, renascente, agora na oposição Ocidente versus Oriente, EUA versus China e Rússia. No Brasil sua versão contemporânea foi o Estado Novo (1937-1945). Guardadas as diferenças e consideradas as semelhanças, vivemos, hoje, outros tempos (embora não necessariamente novos), porque a História não se repete, embora, ao invés de farsa, estejamos nos aproximando de mais uma tragédia que se chama retrocesso: a volta a caminhos já percorridos, e que não nos deixaram boas lembranças. Trata-se de recuo, que, em termos mundiais, revive os tempos que mediaram as duas guerras, e, olhando para nossa realidade, representa um retorno ao regime militar. A óbvia distinção entre o mandarinato de 1964-1985 não anula o caráter ideológico comum, nem minimiza a preeminência da caserna, que retorna à superfície.
Nossos acadêmicos, de volta a Bizâncio, discutem se o novo regime – o governo Bolsonaro será um novo regime – é um projeto fascista, neofascista ou pós-fascista, pois não se confunde com as experiências clássicas da Itália, da Alemanha e do Japão dos anos 30/40 do século passado, as quais, distintas entre si, relembre-se, também se distinguiram de suas congêneres portuguesa e espanhola. Em comum, o Estado Novo brasileiro e o regime militar instalado em 1964, e não se tratava de um regime fascista, cultivaram a repressão e o anticomunismo que, aqui e agora, se tenta recuperar, nada obstante a ausência de matéria-prima. Porque todo regime autoritário – seja ele os EUA de Donald Trump, o hitlerismo, o mandarinato militar brasileiro ou o grotesco, embora perverso, regime dos militares argentinos – necessita de um inimigo. Quando este não existe, cria-se.
A História não se desenvolve em monótona rota linear; ela conhece círculos e ciclos, move-se como as marés e nenhuma onda do mar é a repetição de sua antecessora, embora dela haja nascido.Os governos de hoje na França, na Hungria, na a Polônia e na Turquia, como o atual governo dos EUA, embora guardem profundas distinções entre em si, são todos de direita e mesmo de extrema-direita; recebem apoio de saudosistas do nazismo e constituem um conjunto político-estratégico. Suas diferenças não anulam orientações doutrinárias expressas na intolerância política, no nacionalismo, na xenofobia, na aversão ao multilateralismo, no anticientificismo, na negação do Estado laico e na instrumentalização do medo e da insegurança como ferramentas de mando.
O regime imposto em 1964 e o bolsonarismo prestes a instalar-se oficialmente, estão separados por 55 anos de processo social e história. Afora o mais, um resultou de um golpe de Estado perpetrado por uma aliança civil-militar, e outro de eleições até aqui consideradas formalmente legítimas. As diferenças óbvias e consequentes, todavia, não nos impedem de agrupá-los no largo campo da direita, o gênero do qual são espécies a extrema-direita, o fascismo, o nazismo, o salazarismo, o franquismo e uma lista sem fim que não termina nem no Chile de Pinochet. Essa classificação, aliás, é reivindicada pelos seus prógonos e epígonos.
O fato objetivo é que o discurso do bolsonarismo, desde a medíocre vida parlamentar do capitão, um barbarismo repetido na campanha eleitoral e nas vésperas da posse, nos acena com a intolerância que promete dividir o país em dois segmentos antípodas e incompatíveis, uma intolerância (nela embutida a politica do medo) que é artificial no embate político e que jamais se supôs compatível com a festejada índole cordial e pacífica, relaxada, de nosso povo. Essa intolerância, que foi essencial na disputa pelo poder, torna-se indispensável para sua conservação.
O capitão não deseja ser ‘o presidente de todos os brasileiros’, como se anunciavam os governantes, mesmo os generais da ditadura militar, mas de uma metade deles, e promete governar contra a outra metade, mantendo em oposição os dois gomos da laranja ideológica.
Ao estabelecer a divisão do país entre esquerda e direita, aquela como o inimigo a ser abatido, Bolsonaro sugere serem de esquerda todos os que a ele se opõem, e esses, se não renunciam aos seus projetos, ou buscam o exílio, devem ter a cadeia como expectativa de presente imediato.
Na construção do inimigo, cuja ameaça galvaniza apoios, Bolsonaro elege o que identifica como a esquerda brasileira, nesse conceito reunindo tudo o que detesta: a esquerda propriamente dita, os socialistas, os comunistas, os trabalhistas de um modo geral, o ambientalismo, os liberais e os democratas de todo gênero. E, principalmente, o lulismo, cujo combate é o mote de resistência da direita brasileira. A esquerda real – que não é a oposição toda – assume, assim, por imperativo das necessidades táticas da estratégia da extrema-direita, um protagonismo superior às suas forças.
Mas qual é seu próprio projeto, considerados seus valores e as circunstâncias de hoje? Evidentemente que a Frente Ampla (e somente será ampla se estiver aberta à participação de todos aqueles que lutam hoje e pretendem continuar lutando contra o novo regime) é a primeira alternativa tática. Trata-se, como ponto de partida, resistir ao inimigo, para derrota-lo na primeira oportunidade, e ao final, tomar as rédeas do governo para realizar seu projeto de sociedade. Mas qual é esse projeto? Hoje não está claro, nem do ponto de vista tático, nem do ponto de vista estratégico.
Independentemente de qualquer classificação acadêmica, arquiteta-se aos nossos olhos um projeto político hegemônico com vocação duradoura, no qual as forças armadas brasileiras, como coletivo, desempenham o duplo papel de sujeito e retaguarda. Esse projeto – que interessa à geopolítica ditada pela grande potência– aspira a algo para além do partido único, desprezados para qualquer fim considerações republicanas ou cuidados com as instituições. Os meios serão ditados pelas exigências do poder.
Seu catecismo compreende nosso isolamento internacional, uma politica anti-imigratória, o desrespeito aos direitos identitários conquistados ao longo de dezenas de anos de lutas, a repressão aos movimentos populares e sindicais de uma forma geral, e o MST de modo particular, mais restrições aos direitos dos trabalhadores, mais recessão, mais insegurança e desemprego. Mais medo, enfim.
Este é o caráter do nosso “tempo de monstros”.