Impressões sobre o livro Ensaios sobre a singularidade, de Tony Hara
ARTIGO /
José Martins Salim //
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Fui surpreendido por um vento forte e frio, vindo do interior do Paraná, que me retirou da letargia que o mundo contemporâneo produz com a sua ânsia de conhecer e controlar o futuro. Certas partes do corpo, já entorpecidas pelo hábito forjado pelo ofício, voltaram a produzir dor, reclamando pelo descuido que lhes foi imposto. Novamente o eu preocupado com o saber deu lugar aos cuidados de si e aos sintomas que este tempo produz.
Muito já se escreveu sobre o encontro Nietzsche – Foucault, mas nada do que li até agora me afetou como esse texto.
De modo transparente é expressa no texto a distinção entre saber (verdades que aprendemos pelo uso da representação, e que acreditamos verdadeiras, por isso as utilizamos) e aprendizado. Distinção tão necessária quando o que está em jogo é a Grande Saúde. O aprendizado é o resultado de tomar o próprio corpo como laboratório e, a partir de cada encontro e dos afetos que ele produz, deixar que a sensação avalie e oriente o devir a seguir, produzindo o aprendizado e as indicações de como amplificá-lo em novos experimentos. Um processo singular e que só a interioridade do indivíduo tem acesso, deixando para autoconsciência apenas algumas figuras de seus efeitos.
A leitura desse texto deixa clara a enigmática afirmativa de Heidegger: “após os pré-socráticos o único pensador que conhecemos é Nietzsche”. Indica, para que o leitor experimente, um modo de dar sentido ao que significa pensar. É Nietzsche quem atualiza a máxima do pensamento grego, a experimentação que permite ter sucesso na busca de tornar-se o que se é. O “confronto com o sistema de ensino voltado para a massificação dos modos de ser”, que no nosso tempo invadiu também a pesquisa científica, levou o professor, sempre envolvido na busca de despertar as jovens individualidades, a adoecer. Terríveis enxaquecas que duravam vários dias e impediam o contato com a luz e crises de vômito levaram Nietzsche a fazer “nesse estado de sofrimento os mais esclarecedores experimentos”, explicitando os efeitos de tornar-se uma peça do moderno corpo social. Na descrição de seus experimentos ele relata que
meu instinto decidiu-se inflexível pelo fim daquele ceder, seguir, confundir-se com os outros. Qualquer espécie de vida, as condições mais desfavoráveis, doença, pobreza – tudo me pareceu preferível àquela indigna falta de si, na qual havia caído por ignorância e permanecido devido ao chamado sentimento de dever.
Com clareza essa passagem expressa a fonte da saúde, a profundidade produtiva, e como ela é amordaçada pelo “sentimento de dever em relação ao emprego, ao mercado de trabalho, às necessidades da família (…) que afastam o homem de si mesmo”. Esclarece como funciona o pensamento no caminho do aprendizado. O saber se refere sempre ao geral, ao modelo do homem que foi transformado em saber científico a partir de tudo o que é objetivo, externo e visível no espaço, como os intestinos. A profundidade foi eliminada pelo princípio de causalidade em favor do que vem de fora, da causa externa.
O convalescer na doença e a atenção a tudo que é próximo, às pequenas coisas, como “alimentação, lugar, clima, distração, toda a casuística do egoísmo, são inconcebivelmente mais importantes do que tudo o que até agora se tomou como imperativo”. O medo, no entanto, leva rapidamente a buscar o médico e o analgésico.
Nietzsche-Hara é quem flagra, através de uma observação fina e fulminante, o surgimento de um ideal de vida nos tempos modernos. “Queremos que algum dia não haja nada mais a temer.”
É esse sentimento que atrelou os animais racionais modernos ao pensamento estatístico, visando a um futuro previsível onde a doença, o sintoma de que um novo aprendizado se faz necessário, seja ignorada em favor de extirpar do corpo aquilo que tem uma probabilidade de se tornar doente – caminho seguido recentemente por Angelina Jolie.
Pena que esse nosso tempo tornou tão raros verdadeiros médicos como Tony Hara. Talvez seja porque é esse mesmo tempo que despreza a vida do sertão, da fazenda, o convívio com o silêncio e o gosto da solidão, essencial para entrar em contato consigo mesmo, essa profundidade sem fundo, cada vez mais alijada pela busca de um mundo sem medo, onde a vida estará privada do que tem de melhor, o novo.
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José Martins Salim é físico do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas.
Contato: jmsalim@cbpf.br