Por que não podemos voltar ao passado?
ARTIGO /
Mario Novello //
– – – – –
Em 1949 o matemático austríaco Kurt Gödel provocou uma revolução no mundo da ciência ao produzir uma resposta inusitada e ao mesmo tempo tecnicamente irrefutável a essa questão. De sua análise, conclui-se que a humanidade nunca teve e nunca terá a possibilidade de percorrer um caminho que leva ao passado, porque o campo gravitacional na vizinhança da Terra é fraco.
Como entender essa explicação? Como os cientistas puderam dar sentido a tal afirmação, que parece inverossímil aos não iniciados?
O ponto de partida se situa em 1915, quando o físico alemão Albert Einstein alterou profundamente a interpretação de Newton do fenômeno de interação gravitacional. Segundo ele, a gravitação nada mais é do que consequência de modificações da geometria do mundo produzidas pela ação da matéria ou energia de qualquer forma. Assim, a noção de distância, quer seja no espaço ou no tempo – ou melhor, no espaço-tempo –, é controlada pelo que chamamos “força da gravitação”. Em linguagem moderna, o campo gravitacional é o responsável por fixar os caminhos pelos quais os corpos se movimentam no mundo. Ou seja, a estrutura do tempo é determinada pela interação gravitacional.
Essa função que foi atribuída ao campo gravitacional é uma consequência natural do caráter universal dessa força. Contrariamente às outras três forças que os físicos descobriram – a força eletromagnética e as forças nucleares, fraca e forte –, nada pode subtrair-se à ação da gravitação. Dito de outro modo: tudo que existe possui interação gravitacional. Podemos até mesmo definir a palavra existir através desse processo de interação: existe aquilo que interage pela gravitação. Essa universalidade é sintetizada na frase “caio, logo existo”. É essa característica da gravitação que a qualifica para ser a responsável pela determinação da configuração daquilo que Newton e seus seguidores consideravam a “arena” onde os processos físicos ocorrem.
Naquela física pré-relativista, a estrutura da geometria do mundo era dada a priori, fixada pelos deuses. Não fazia parte do drama da substância com que descrevemos tudo-que-existe. A partir de 1915 essa situação se alterou profundamente e, embora difícil de ser assimilada pelo senso comum, a geometria do mundo é efetivamente uma consequência dos processos físicos associados à gravitação.
A gravitação foi assim identificada com a geometria do espaço-tempo, sendo a quantificação da intensidade da curvatura associada a essa geometria. Ou seja, a matéria ou energia sob qualquer forma produz uma curvatura no espaço-tempo.
A dificuldade em assimilar essa ideia está relacionada ao fato de que essas modificações na geometria não são percebidas em nosso cotidiano, pois em nossa vizinhança terrestre a intensidade do campo gravitacional é muito fraca e não percebemos com nossos sentidos. Assim, a antiga descrição newtoniana como uma força, e não como geometria, pode ainda ser usada como uma boa aproximação da descrição de processos gravitacionais na Terra, o que fazemos em nosso dia a dia.
Para que essa alteração na geometria possa ser percebida, devemos estar em presença de campos muito mais intensos, que não estão à disposição em nossa vizinhança. De modo semelhante, nossos sentidos não permitem experimentar diretamente a presença e a ação de um átomo, de uma partícula elementar como o elétron ou o neutrino, pois sua ação sobre nossos sentidos é extremamente fraca.
Pois bem, Gödel mostrou que, na teoria de Einstein da gravitação, podem existir situações em lugares (não na Terra, nem em nossa vizinhança) nas quais o campo gravitacional é suficientemente intenso, de modo a permitir acontecer aquilo que chamaríamos “volta ao passado”.
Por esses caminhos um corpo passaria duas vezes pelo mesmo lugar e ao mesmo tempo. Dito de outro modo, naquelas regiões de campo gravitacional extremamente intenso e com certas características especiais, ao caminharmos para o futuro, afastando-nos de nosso passado, estaríamos também a cada momento nos aproximando desse passado. Tal situação, que não faz parte de nossa experiência cotidiana, além de produzir um mal-estar metafísico entre nós, conduz inevitavelmente a uma profunda mudança no conceito linear de tempo que sempre fez parte daquilo que chamamos senso comum.
Como conciliar essa possibilidade física com aqueles paradoxos lógicos que tradicionalmente emergem dessa discussão? Por exemplo, se volto ao passado, poderia matar meu avô, inviabilizando o nascimento de minha mãe e, consequentemente, meu próprio nascimento. Quem então teria voltado ao passado? Os físicos lidaram com essa questão e produziram soluções técnicas. O que elas nos permitem dizer envolve uma mudança radical na descrição do mundo. Pensávamos que cada evento possuía uma liberdade total e quase absoluta de ocorrer, desde que não violasse leis físicas. O que essa caraterística de curvas-que-levam-ao-passado permite concluir é que isso não é mais possível.
Temos uma liberdade local de eventos, mas não global. Dito de outro modo: um processo físico não depende somente do que acontece em sua vizinhança, mas tem um componente global que diz respeito ao universo como uma totalidade solidária.
Transladando essa dependência para nosso mundo do cotidiano, tudo se passa como se uma decisão individual tivesse somente uma limitada dose de independência. Uma boa parte dela depende de um processo global que transcende a individualidade.
Ou seja, o Universo entendido como uma totalidade é solidário. Suas partes não têm autonomia, a não ser quando se trata de procedimentos mínimos, como, por exemplo, aqueles que ocorrem na Terra ou na sua vizinhança.
Tal visão parece ser um rude golpe no orgulho de nossa espécie, além mesmo de nossa individualidade. Mas se limitarmos nossas atividades a pensar somente nos processos que ocorrem aqui e agora, ou seja, na Terra, essa liberdade pode ser entendida como completa, pelo menos no que diz respeito às leis físicas. No entanto, ao pensarmos a Terra na Via Láctea, com suas centenas de bilhões de estrelas, e mesmo para além dessa galáxia, nas centenas de bilhões de galáxias que consistem nosso horizonte observável, ou seja, nessa totalidade que chamamos o universo, e se Einstein-Gödel tem razão, os processos que controlam os movimentos dos corpos não dependem somente de suas interações locais, mas possuem um componente global.
Ou seja, o universo se encarrega para que, nele, no mundo, não apareçam contradições. É disso que se ocupa. Essa é sua natureza formal. Mais do que isso, nós, físicos e cosmólogos, não podemos dizer.
– – – – –
Referência
-
Novello. Máquina do tempo – Um olhar científico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
– – – – –
Mario Novello é pesquisador emérito do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, Rio de Janeiro, e Faculty-member do International Center for Relativistic Astrophysics, Roma e Pescara.