HORROR DO VAZIO
Resumo
O universo estava condenado a existir.
Para entender o sentido dessa afirmação é preciso considerar duas propriedades notáveis associadas à expansão do universo: o mecanismo de formação da matéria pelo campo gravitacional, induzindo o fenômeno de bifurcação no espaço-tempo; e a dependência das leis físicas com o tempo global produzindo a historicidade do cosmos.
Quantum, fóton, cosmos: revoluções na física
No começo do século 20 vimos o surgimento de duas teorias fundamentais, a relatividade e a quântica. Além delas, é possível perceber o surgimento de uma nova revolução em curso: a dependência cósmica das leis físicas.
A Cosmologia, ao exibir essa variação das leis físicas com o tempo cósmico, está a exigir um profundo reexame da atividade cientifica, e impõe que a construção de uma representação do universo requer mais do que uma aliança, ela deve ser feita em verdadeira comunhão com outros saberes.
Quando a cosmologia identifica virtual e real
Virtual é sinônimo de possível, não se identifica com o real.
Uma partícula/um corpo virtual, segundo essa definição, não pode exercer ação sobre outro corpo.
No entanto, na descrição quântica do mundo, isso acontece: uma partícula virtual pode ser intermediária de uma interação.
Um fóton pode se transformar em um par de partículas, como por exemplo, um elétron e um pósitron — a antipartícula do elétron. No entanto, eles se recombinam imediatamente e se fundem regenerando o fóton.
Aquele par de partículas é considerado virtual, ou seja, não possui um tempo de existência suficiente para que seja observado. Não podemos apontar para esse par e dizer: ”ali estão o elétron e o pósitron”.
E, no entanto, em laboratórios terrestres se fazem, com frequência, centenas de experiências com esse par virtual.
O exemplo mais notável dessas estranhas propriedades do mundo quântico leva à mais formidável conexão entre o virtual e o real: a origem do universo.
Friedmann ou o mito científico da criação
No século 20 uma visão do universo como um processo dinâmico foi construída pelo físico russo Alexander Friedmann, tendo como ponto de partida a teoria da gravitação de Albert Einstein, a teoria da relatividade geral.
Embora esse modelo tenha tido uma excelente acolhida pela comunidade cientifica, ele possui uma dificuldade que limita sua descrição.
As propriedades mais importantes desse modelo estão em bom acordo com as observações astronômicas, a saber:
- Homogeneidade espacial em grande escala;
- Isotropia;
- Expansão do volume tridimensional.
Talvez devêssemos lembrar que não existe um só modelo de Friedmann, mas sim um número grande de diferentes cenários. Eles se distinguem basicamente pela caracterização da distribuição de matéria e energia no universo.
O cenário de Friedmann possui uma única função do tempo cósmico, que é determinada pela densidade de matéria/energia existente. Para cada configuração material segue uma função temporal distinta para a evolução do volume espacial do modelo de Friedmann.
Os primeiros modelos construídos, por Friedmann e seus seguidores, constituíam distribuição descritas como um fluido perfeito e com uma equação de estado linear relacionando a pressão à densidade da matéria.
No entanto, todos esses cenários exibem a mesma dificuldade: a presença de uma singularidade onde todas as componentes fisicamente observáveis assumiriam em um dado ponto o valor infinito.
O cenário do universo eterno
Ao perseguir uma racionalidade sem limite para descrever o universo, fomos levados a examinar alguns processos que impedem a existência da singularidade. De qualquer singularidade, e, em particular, a mais indesejável, a da geometria do universo. Foi para eliminar essa dificuldade que construímos uma solução das equações da Relatividade Geral, distinta da proposta por Friedmann, um cenário mais realista, onde o universo, a partir de um estado fundamental, teria tido uma fase colapsante (na qual o volume espacial diminuiu com o passar do tempo cósmico) atingido um volume total mínimo – diferente de zero – passado por um bouncing einiciado o atual processo de expansão. Qual seria esse estado fundamental que teria permitido essa configuração do universo? O vazio. Mas não o vazio da física clássica, mas sim o vazio quântico, um vazio cheio de potencialidades.
Ou seja, ao invés do modelo singular (Big Bang) – que impede a descrição racional completa do universo — devemos examinar as propriedades do modelo de universo eterno (Big Bounce) que permite ir além do momento extremamente condensado do universo, promovendo a análise do mecanismo de variação do volume total do espaço. Só assim é possível continuar com o programa instituído pelos pais fundadores da ciência do universo, como Kepler, Brahe, Newton e Galileu.
Modos de criação
Comecemos com os vazios. Esses vazios podem ser qualificados e se distinguirem pelo que podem vir-a-ser, pelo que podem gerar. Para cada partícula, se associa um dado campo e um vazio especifico: vazio do campo eletromagnético, do campo do próton, do campo do elétron. Trata-se do vazio quântico.
Em meu livro “O que é cosmologia” reproduzi uma anedota que o cientista russo Ya. B. Zeldovich gostava de contar em uma tentativa popular de descrever esse vácuo quântico.
Disse ele: Um jovem entra em uma lanchonete e pede um sorvete. O dono lhe pergunta: “Com que cobertura o senhor o deseja?” “Nenhuma, não quero cobertura, só o sorvete de baunilha”, retruca o rapaz. “Sim”, continua o dono, “entendo; mas qual cobertura o senhor não quer que eu coloque em seu sorvete: o senhor não quer cobertura de marshmallow ou não quer cobertura de chocolate?”
Essa anedota exemplifica bem a questão da descrição do vácuo: ele só pode ser definido em relação a um certo espectro de estados compossíveis; dos quais o vácuo é um particular caso. Não é possível definir o vazio absoluto, sem referência a possíveis estados físicos acessíveis. Isto é, ao tratar o vazio como um estado realizável, é preciso a priori introduzir uma ordem formal na qual outros estados fisicamente possíveis poderiam ser ocupados.
Esses vazios não estão no mundo, isto é, não são diretamente observáveis em qualquer descrição do espaço-tempo. Eles são modos que os físicos construíram para descrever formalmente, processos reais de criação e destruição de partículas, embora tenham a propriedade que chamaríamos de real, pois podem gerar fenômenos observáveis.
Surge então a questão: como conciliar essa virtualidade com sua transformação em corpos reais? Dito de outro modo, quem pode excitar esses vazios e permitir o acesso ao que chamamos realidade?
No estado atual de nosso conhecimento, o único responsável universal (isto é, capaz de gerar qualquer espécie de matéria) é o campo gravitacional, por sua universalidade e ação somente atrativa.
Sigamos a proposta da teoria da relatividade geral e consideremos então que esse campo seja descrito por uma configuração métrica, satisfazendo uma dada dinâmica que determina sua evolução.
Aparelhados dessa forma, podemos elaborar um modelo de construção do mundo.
A princípio precisamos somente de uma configuração de espaço e tempo sem matéria, até o momento em que o vazio se realiza e produz partículas materiais.
Precisamos somente de uma estrutura capaz de representar essa geometria sem fonte, sem origem. A não linearidade da gravitação permite sua existência, sem fonte, uma forma de geometria métrica satisfazendo a equação da relatividade geral, representando a expansão da totalidade do universo, como na métrica descoberta por E. Kasner, de um universo vazio de matéria, espacialmente homogêneo e anisotrópico.
Instabilidade do vazio
O vazio é um estado possível de ser associado a todo campo material (e até mesmo à geometria, como na métrica descoberta pelo matemático americano Kasner). Nosso interesse aqui é com o vazio quântico.
A mais importante propriedade que nos atrai nessa incursão à estrutura do universo se prende à instabilidade do vazio. O sistema sai desse estado e produz seja matéria, seja uma pura geometria.
Ato seguinte, a formação de pares virtuais de partículas, é excitada pelo campo gravitacional e se transformam em partículas reais. Cria-se o que chamamos matéria, sob diversas e diferentes formas. O universo se estabelece. A matéria reage sobre o campo gravitacional que deixa seu estado de vazio e adquire formas distintas e, em especial, como uma geometria onde o volume espacial varia com o tempo cósmico.
Questão: que tempo é esse? Quem determina esse tempo?
Na geometria de Kasner (onde não existe matéria), bem como no cenário de Friedmann e outros, trata-se de uma representação do espaço-tempo que imita a formulação newtoniana: três dimensões de espaço e uma dimensão de um tempo global. Enfatizamos que se trata de uma escolha de representação do espaço-tempo, isto é, como identificar eventos, acontecimentos, processos físicos no universo. Ou seja, não há nada intrinsecamente especial nesse tempo a não ser isso, uma imitação do modo newtoniano de descrever acontecimentos.
É isso sempre possível? Não. Um exemplo contundente é o modelo de universo de Gödel onde é impossível definir um tempo global único para o espaço-tempo.
Viscosidade primordial e o fenômeno da bifurcação
Nos primeiros momentos do renascimento da cosmologia nos anos 1970, a ideia de que flutuações do campo gravitacional podem criar partículas materiais começou a ser desenvolvida na União Soviética e nos EUA. Mais tarde outros grupos se envolveram nessa pesquisa. Embora algumas questões ficaram para serem resolvidas mais adiante (como a questão das divergências no modelo padrão de Friedmann) a possibilidade de examinar esse fenômeno em cenário com bouncing atraiu a atenção.
Havia, à época, somente dois cenários que não exibiam singularidades, possuindo bouncing e que permitiam a análise completa desse fenômeno de criação. A razão para isso é que esses modelos tinham uma forma para a métrica conformalmente plana particularmente simples, o que tornava possível o cálculo completo das questões associadas à variação do número de partículas e outras propriedades da teoria quântica de campos (TQC) nessas geometrias. A distinção desses dois modelos envolvia as propriedades da curvatura espacial, um deles sendo de curvatura constante positiva e o outro de curvatura constante negativa. O primeiro construído por cientistas da União Soviética e o outro por cientistas brasileiros. Eles se diferenciavam também no mecanismo pelo qual a singularidade era evitada.
O modelo dos russos envolvia um campo escalar como fonte da curvatura, enquanto o dos brasileiros se baseava na interação entre os dois campos de longo alcance, gravitação e eletromagnetismo, em uma forma não-mínima. O exame da TQC nestes cenários trouxe à baila a questão viscosa, associada à distribuição de energia das partículas criadas pelo campo gravitacional.
Para compatibilizar a existência de um limite de interação entre diferentes partes do universo (associado à presença de um horizonte no modelo de Friedmann) com a causalidade, foi construído um cenário inflacionário – no qual o universo poderia ter passado por uma fase de aceleração de sua expansão e depois voltado à expansão convencional, sem aceleração. Como consequência, aquelas questões consideradas até então como fundamentais na descrição do universo em seus primórdios, foram deixadas de lado. Ou melhor, como se dizia então, foram transcendidas, perderam interesse. Isso se deveu em parte ao fato de que a região associada ao universo observável foi considerada limitada a um compacto domínio espaço-tempo inicial, devido à existência de um horizonte causal na solução de Friedmann, que teria sido posteriormente substancialmente dilatado.
No entanto, mais de trinta anos depois, algumas daquelas questões deixadas de lado, voltaram a interessar os cosmólogos. Dentre elas, a questão crucial da singularidade inicial que não foi resolvida pelo mecanismo de inflação, bem como o fenômeno de bifurcação. Foi graças ao mecanismo de bouncing ao permitir considerar novos modos de analisar a evolução do universo, que algumas daquelas antigas propostas voltaram a ser examinadas. Entre estas, uma particularmente atraente envolve a questão viscosa.
Com efeito, os cenários convencionais, desde a formulação original de Friedmann e mesmo o primeiro cenário estático de Einstein, trataram a distribuição de energia/matéria do universo como um fluido perfeito, envolvendo uma densidade de energia E e uma pressão P. Ademais, a relação entre P e E foi considerada como linear, ou seja, P = n E onde a constante n deveria estar nos limites entre zero e um. Recentemente essa relação foi alargada para permitir o fenômeno da aceleração do universo que, neste cenário convencional de fluido perfeito, requer que a constante n possa ser negativa. Nestes cenários a entropia é constante.
No entanto, quando se leva em conta o mecanismo de criação de partículas pelo campo gravitacional, o fluido cósmico deixa de ter essa simples formulação e processos viscosos aparecem. Nas análises realizadas por cientistas do Instituto Landau da antiga União Soviética, ao final do século passado, a viscosidade gerada pela criação de partículas foi tratada como função do parâmetro de expansão (o que se convenciona chamar constante de Hubble) que mede a taxa de expansão do volume por unidade de volume. A caracterização do fluido cósmico como possuindo viscosidade não é exclusividade do mecanismo de criação de partículas. Os físicos que tratavam do exame de fluidos complexos sabiam de longa data que sua descrição pode depender da taxa de variação do volume com o tempo. Recentemente casos particulares dessa descrição viscosa voltaram a ser examinados com detalhes e alguns resultados notáveis então apareceram. Um deles diz respeito à questão singular. Fluidos viscosos podem gerar cenários onde o tempo de existência do universo é sensivelmente maior do que o descrito no cenário padrão gerado por um fluido perfeito.
Um outro resultado notável diz respeito ao processo que os matemáticos chamam de bifurcação. A argumentação pode ser descrita da seguinte forma. Usando a Relatividade Geral como teoria dominante para descrever os processos gravitacionais, as equações de evolução de uma geometria espacialmente isotrópica e homogênea, (considerando somente o caso mais simples) podem ser reduzidas a duas envolvendo as variáveis densidade de energia E e o fator de expansão H. Uma, caracterizando a lei de conservação generalizada da energia e a outra envolvendo a evolução do volume total do espaço. As duas equações possuem forma matemática semelhante. Uma delas expressa o fato de que a derivada temporal de E é função não-linear de E e H; a outra, de modo semelhante, informa que a derivada temporal de H é uma (outra) função de E e H. Ao exibirmos essas duas equações nos damos conta de que elas constituem um sistema planar autônomo para essas variáveis E e H. O termo planar se deve a que temos somente duas variáveis dependentes do tempo cósmico; o significado de autônomo se deve a que ambas derivadas não dependem explicitamente do tempo cósmico mas somente implicitamente através das funções de E e H. Uma análise cuidadosa desse sistema permite mostrar que em certas circunstâncias, o fenômeno de bifurcação, onde o sistema deixa de ser previsível, aparece. Se este processo aconteceu no nosso universo uma dificuldade grande se introduz na cosmologia, podendo dificultar o conhecimento da evolução do universo. Ou seja, a introdução da viscosidade na descrição do fluido cósmico primordial, aparentemente uma propriedade natural e simples para generalizar a simplificada descrição de fluido perfeito utilizada no modelo padrão, gerou problemas inesperados para os cosmólogos, dos quais a bifurcação parece ser a questão mais delicada. Desse modo, é crucial entender como evoluem os processos viscosos primordiais. Ou seja, fomos levados a considerar o papel da história na própria constituição das leis físicas aplicadas ao cosmos, ou seja, levar em conta a sua dependência com o tempo cósmico.
Universo viscoso
Em agosto de 1982, na conferência ‘Teorias Relativistas do Universo’, em Shangai (República Popular da China), apresentei os resultados de um artigo que eu e minha colaboradora Ligia Maria Rodrigues havíamos feito no início daquele ano. Sem entrar em detalhes técnicos (ver ‘Referências’), vamos rever algumas conclusões daquele trabalho.
O campo gravitacional é capaz de criar partículas materiais a partir do vácuo. A questão, então, é: como descrever a distribuição energética espaço-temporal dessas partículas criadas? A resposta veio de antigas teorias dos fluidos usadas em diversos processos clássicos em que a viscosidade é um fator importante. Os detalhes estão descritos no artigo citado, mas podemos adiantar que sua energia se comporta como um fluido imperfeito com viscosidade.
Ao tratar dessa forma a distribuição de energia da matéria criada pela curvatura do espaço-tempo, usando a relatividade geral, as equações descrevendo esse processo são reduzidas a um sistema dinâmico planar. Uma análise desse sistema permite mostrar como aparece o fenômeno de bifurcação por meio do método introduzido há mais de um século pelo matemático francês Henri Poincaré.
Mostra-se, então, que, nas vizinhanças do ponto de bifurcação, o caminho de evolução depende de eventuais flutuações, perturbações que podem ocorrer e que têm caráter aleatório. Ou seja, para dar uma imagem simples do que acontece, poderíamos dizer que o universo se torna hesitante e escolhe um caminho de evolução de modo fortuito.
Tal interpretação só ganha real significado se pensarmos em coleções de mundos em evolução, isto é, distintas configurações de universos possíveis. Somos, assim, levados a aceitar a historicidade, a dependência histórica das leis do universo, cuja evolução não se subordina às condições iniciais, quaisquer sejam elas.
Historicidade da ciência
Enquanto o fenômeno da bifurcação se limitava a processos descritos em laboratórios terrestres, o alcance dessa indeterminação era controlável, isto é, se limitava a configurações especiais que não influenciariam além do limitado território da experiência de laboratório. O químico Ilya Prigogine e a filósofa Isabelle Stengers escreveram um belo livro associando essa historicidade das propriedades de certos fluidos em laboratórios terrestre, descritas por equações não lineares, à necessidade de aprofundar as consequências de uma possível bifurcação aos fundamentos filosóficos da ciência.
Ultrapassando esses processos químicos da ciência terrestre, a descoberta em 1982 de cenários possuindo bifurcação no universo, descritos pelas equações da teoria da relatividade geral, produziu uma dificuldade maior, ao exibir processos muito além daqueles que induziram Prigogine e Stengers a propor um contato mais estreito entre diferentes saberes para sua compreensão.
O que devemos concluir desse comentário é que o universo parece se organizar de modo a requerer, de tempos em tempos, uma liberdade que o rígido determinismo das leis físicas pretendia restringir.
Isso, claro está, não impossibilita a elaboração de uma descrição racional completa do cosmos, mas provoca a necessidade de colocar a história no centro de toda análise cósmica em conformidade com o conhecimento científico atual que levou à certeza do caráter dinâmico da expansão do universo, implicando a alteração de suas propriedades globais com o passar do tempo cósmico.
Trazendo o fenômeno da bifurcação para a cena central da descrição da evolução do universo, a ênfase nesse caráter fundamental da história se torna mais explicita.
Do que vimos comentando, podemos inferir que o universo, sua dinâmica e a possibilidade de realizarmos uma descrição racional das propriedades globais do espaço-tempo não estão determinados a priori, mas, sim, exigem o acompanhamento de sua evolução e o conhecimento das alternativas que lhe são oferecidas aleatoriamente. Ou seja, assim como a história é essencial para a compreensão da sociedade humana, a verdadeira descrição do universo é histórica.
Essa propriedade se torna ainda mais evidente ao reconhecermos que as leis físicas terrestres ao serem aplicadas ao cosmos variam com o tempo, como comentamos acima.
A dependência das leis cósmicas com o tempo global, isto é, a historicidade das leis físicas, nos remete ao livro A ideologia alemã, onde Marx e Engels afirmam: “Nós só reconhecemos uma ciência, a ciência da história”.
Assim, do que vimos nesse texto, a geração das leis cósmicas, a existência do bouncing no universoe sua origem associada à instabilidade do vazio, permite afirmar que a Natureza tem horror do vazio.
Referências
Mario Novello: Do BigBang ao Universo Eterno, Ed. Jorge Zahar, 2010.
Mario Novello e Santiago Bergliaffa: Bouncing Cosmologies in Physics Reports, vol 463 (2008).
M. Novello, S. L. S. Duque, R. Triay and H. H. Fliche (Centre de Physique Theorique Luminy Marseille ( 4 November 1992) : Phase transition in nonlinear viscous cosmology in Physical Review D 47 , 8, 15 APRIL 1993.
M. Novello e J.B. S. d´Olival: Non linear viscous cosmology in Acta Physica Polonica vol B11 (1980) pg 3-13
M. Novello, H. P. de Oliveira, J. M. Salim e J, Torres: Viscous causal cosmology in Acta Physica Polonica vol B21 (1990) pg 571-579
Mario Novello: O que é cosmologia. Ed Jorge Zahar (2006)
Mario Novello: Os construtores do cosmos. Ed Gaia (2023).
Apêndice (Comentário adicional)
Em minhas palestras sobre cosmologia fazem-me insistentemente uma pergunta sobre a motivação pela qual uma grande maioria de físicos aceitou a identificação do momento de extrema condensação do universo, no valor mínimo do volume total do espaço, como se fora o começo de tudo. Ou seja, identificar o chamado Big Bang ao início do universo.
Em verdade, essa é uma questão que sai dos domínios da física e que deve ser respondida por um sociólogo ou por um historiador da ciência.
De minha parte, posso apresentar as razões que levaram a mim e a vários cosmólogos a rejeitarem essa identificação simplista.
Vamos começar por fazer uma breve revisão da interpretação de observações astronômicas ao processo de expansão do volume do universo.
O território para entendermos racionalmente essa expansão é a interação gravitacional, pois é ela que controla todo processo de descrição da geometria do espaço-tempo.
A teoria que melhor descreve os processos gravitacionais ainda é a Relatividade Geral proposta por Albert Einstein há mais de um século. Segundo a solução descoberta pelo cientista russo Alexander Friedmann, essa teoria admite uma descrição da estrutura geométrica do espaço-tempo global como um processo dinâmico. Dito de modo simples, tudo se passa como se o volume tridimensional da totalidade espacial variasse com o tempo cósmico.
Essa solução de Friedmann passou a ser a explicação padrão do universo em suas grandes linhas, embora ela tenha uma característica extremamente desagradável: ela possui uma singularidade, isto é, em algum momento no passado, o volume total do universo teria sido reduzido a um ponto geométrico, seu volume seria literalmente zero.
Como consequência, todas as quantidades físicas relevantes (densidade de energia, temperatura, etc.) atingiriam nesse ponto o valor infinito.
Ora, sabe-se de longa data que os físicos detestam infinito. Isto é, quando uma teoria admite uma solução na qual alguma quantidade física atingiria o inobservável valor infinito significa que essa teoria deve ser modificada, pelo menos nas proximidades da região onde esse valor infinito poderia ocorrer.
Se essa singularidade existisse realmente em nosso universo, isso significaria que o programa de análise racional do universo, iniciado no século XVI por Brahe, Kepler, Galileu e outros não poderia persistir. O universo seria “irracional” em seus mometos mais importantes, em seus “primórdios” do qual tudo o que seguiu deveria estar dependente.
Essa situação não é exclusiva da força gravitacional, mas é geral. Lembro de uma situação semelhante na época de meu mestrado.
Em 1968, meu orientador de tese de mestrado, o professor José Leite Lopes, sugeriu como tema, eliminar as divergências – os infinitos – que aparecem ao longo da linha de universo do eletron, na teoria eletromagnética de Maxwell.
Eu lhe perguntei por que razão ele estava interessado em suprimir essa singularidade.
Ele respondeu mais ou menos o seguinte: se você tiver uma teoria que permite um processo que tenha um valor infinito, você está em dificuldades mais sérias do que se violar a segunda lei da termodinâmica, o que para um físico, é um escândalo formal.
Segue então a pergunta: como essa ideia de singularidade do modelo cosmológico de Friedmann se sustentou? Por que ela dominou a interpretação dos momentos iniciais da atual fase de expansão do espaço-tempo global?
Em um primeiro momento, aqueles que consideravam essa singularidade extremamente desagradável, argumentavam do seguinte modo. Essa solução de Friedmann, embora realmente descreva uma parte da história do universo, muito possivelmente não descreve toda sua história. Isso talvez esteja relacionado às simetrias exageradas que essa solução possui. Outras soluções, com menos simetria, poderiam possivelmente descrever melhor aquela região onde o modelo de Friedmann prevê uma singularidade.
Com efeito, como as equações da relatividade geral são bastante difíceis de serem resolvidas, os físicos procuram simplificar as propriedades que uma solução deveria ter. Por exemplo, o cenário de Friedman descreve um universo espacialmente homogêneo e isotrópico. Então, se dizia, possivelmente a origem dessa singularidade estaria relacionada a essas simetrias e um universo com menos simetrias, talvez mais realista, poderia contornar essa situação e exibir uma geometria sem singularidade, e igualmente adaptável às observações astronômicas.
Essa argumentação dividia os físicos. Foi então, ao longo dos anos 1960 que apareceram argumentos matemáticos sob formas de teoremas, que derrubaram por terra essa argumentação.
Com efeito, os teoremas pretendiam mostrar que em situações bastante gerais, independentes de existência de simetrias, a singularidade seria inevitável.
Esses chamados “teoremas da singularidade” foram propostos por Penrose, Hawking, Ellis e outros. Penrose os apresentou em conferências em 1964 em Les Houches (França) e na conferência Battelle (1967).
Embora esses teoremas sejam bastante sofisticados para serem expostos aqui, a essência deles pode ser resumida como segue.
A inevitabilidade da existência de uma singularidade nas equações da gravitação ocorre se forem válidas as seguintes condições:
- A geometria do espaço-tempo é descrita pelas equações da Relatividade Geral;
- A interação entre a matéria (sob qualquer forma) e a gravitação é feita através de um acoplamento mínimo;
- Ausência de pressões muito negativas ( os valores da energia + pressão deve ser igual ou maior que zero);
- Os caminhos dos fótons não podem desaparecer do espaço-tempo.
Esses teoremas, de difícil demonstração, envolvendo considerações globais, para além das convencionais e usuais estruturas matemáticas de equações diferenciais usadas pelos físicos, transformaram a existência possível do cenário cosmológico de Friedmann como inevitável para a grande maioria dos físicos.
A acreditar no cientista russo Vitaly Melnikov, esses teoremas nada mais são do que um “tigre de papel”. Isto é, a singularidade parece ter sido demonstrada como inevitável, mas isso nada mais é do que uma cortina de fumaça.
Onde reside o ponto fraco dos teoremas? Principalmente nos itens 2 e 3 e, em especial, na hipótese de que a interação da matéria com a gravitação não envolve nenhuma função da curvatura do espaço-tempo. Essa característica é válida na superfície da Terra e em suas vizinhanças porque o campo gravitacional nessa região é fraco. No entanto em domínios onde a intensidade gravitacional é muito forte, por exemplo, na região extremamente condensada do universo, não se pode negligenciar a ação da gravitação através de sua curvatura. Ou seja, as condições de aplicabilidade dos teoremas não seriam então cumpridas.
Foi exatamente dessa forma, examinando os efeitos da curvatura do espaço-tempo sobre o processo de interação com a matéria que modelos cosmológicos sem singularidade, exibindo o fenômeno de bouncing, que em 1979 apareceram as primeiras soluções analíticas das equações da Relatividade Geral descrevendo universo sem singularidade, eterno.
Os brasileiros do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas do Rio de Janeiro (Novello e Salim) usaram acoplamento direto com a curvatura entre os fótons e a gravitação; os russos do Institute of Gravitation and Cosmology de Moscou (Melnikov e Orlov) usaram outra forma de interação direta entre um campo escalar de longo alcance e a curvatura. Os detalhes dessas propostas foram apresentados em várias ocasiões e nas referências citadas abaixo.
Nesses cenários com bouncing o universo teria uma fase de colapso seguida de uma fase de expansão. No momento de transição o volume do universo teria um valor muito pequeno, mas diferente de zero, significando a ausência de singularidade.
Dez anos depois (1989) os principais sustentadores e divulgadores do BigBang (Hawking e Penrose) propuseram modelos cosmológicos sem singularidade, o que finalmente despertou a curiosidade da comunidade científica brasileira para esses tipos de universo. Entretanto, os meios de comunicação (exceto algumas revistas americanas como Quanta magazine) continuam a identificar o ponto máximo de condensação do universo ao seu “começo”.
Por que essa necessidade de imaginar um começo irracional do universo? Questão de difícil resposta.
Duas estudantes de física de universidade paulista (Mariana Milani e Camila Hardt) que durante um ano examinaram comigo diversas questões de cosmologia, se interessaram por investigar essa razão, dedicando-se à tarefa de entender os argumentos dos físicos e, complementarmente, a motivação das pessoas que organizam os meios de divulgação.
Eu também me perguntava com frequência, por que os cientistas aceitam propagar ideias sobre o começo do mundo via BigBang, quando essa é uma matéria já bastante ultrapassada pelos cosmólogos.
Eu entendi um pouco a posição da comunidade científica quando em uma de minhas visitas à Universidade de Lyon (França) para dar conferências sobre o cenário do Universo Eterno tive um diálogo esclarecedor com meu colaborador francês, o físico Edgar Elbaz. Explico o que aconteceu.
Uma noite fui convidado a dar uma palestra sobre o estado atual da cosmologia no anfiteatro da prefeitura para o público em geral, a grande maioria de profissionais de outras áreas, principalmente filósofos, pois esse evento tinha sido organizado por um professor de filosofia. Nessa noite, eu e Elbaz, fomos a pé da Universidade para o auditório. No caminho para o local da conferência aconteceu o seguinte diálogo.
Escuta, Novello, eu conheço bem a tua crítica ao modelo convencional BigBang. Mas veja bem, eles não vão entender o que você pensa sobre isso. O BigBang já está em todas as páginas dos jornais, nas reportagens da televisão, em todos os meios de divulgação. Se você começa por dizer que o BigBang não foi o começo do universo e que o universo teve um começo há muito mais tempo do que o cenário convencional, eles vão perguntar o que aconteceu então para o universo existir?
Ótimo, eu disse, essa é uma boa pergunta. Podemos responder a isso.
Sim, mas se depois você comentar tua proposta de que o universo não podia não existir devido à instabilidade do vazio quântico, eles vão perguntar o que é isso.
Ótimo, eu disse, eu posso explicar de modo simples essa ideia.
Dessa conversa, entendi que a comunidade científica preferia passar ao público de não-especialistas, uma imagem simplista aceitando que essas pessoas não entenderiam uma explicação mais realista, mas mais complexa. Creio que essa é uma atitude bastante temerária. Isso porque, depois de instalada na cabeça das pessoas essa identificação do BigBang com o “começo de tudo”, fica extremamente difícil que se aceite uma outra explicação, mesmo que mais racional e contando com o aval dos cientistas especialistas.
A principal argumentação daquela minha palestra pode ser resumida da seguinte forma.
A instabilidade do vácuo quântico, um vazio cheio de opostos que se cancelam, está na origem da explicação do Universo Eterno. Nesse cenário, o estado final é semelhante ao estado inicial, ou seja, uma enorme quantidade de matéria e antimatéria que se cancelam produzindo um vazio no mundo quântico. Isso tem uma notável consequência: a possibilidade de existir ciclos no universo. Ou seja, a instabilidade do vazio leva a afirmar que o universo estava condenado a existir, o universo não podia não existir.