Homo Naledi: Raízes e florações do human
Resumo
Aqui se conta uma história de alguns segredos, tão antigos quanto algo entre 240 e 350 mil anos, revelados por uma misteriosa caverna. É uma história que ganha vida como um palimpsesto, sobrepondo-se à outra, narrada no documentário Caverna de Ossos, da série Explorando o Desconhecido. Impossível não ficar impactado por esse relato, pois levanta várias questões intrigantes sobre a evolução humana e sobre a própria definição de humano. Essa narrativa, mais do que pela razão formal e analítica, é conduzida pela poética do tempo arcaico, ou seja, é levada pela emoção de vislumbrar raízes da natureza humana, tão distantes – pré-históricas – e pelo fascínio de muitas das indagações interdisciplinares postas aqui em evidência. É, em última análise, uma breve história de devaneio acerca do significado de ser humano.
- Preâmbulo
O pano de fundo das reflexões ora apresentadas é a relativamente recente descoberta do Homo naledi. Uma espécie extinta, primitiva em todas as formas, com indivíduos apresentando uma altura média de cerca de 1,5 metro e um cérebro do tamanho de uma laranja, pequeno se comparado ao do homem moderno. Uma revelação singular, com capacidade de transcender a paleoantropologia e aventar uma plêiade de questionamentos instigantes, complexos e recorrentes em várias áreas do saber, principalmente sobre o significado de humano.[1] Questões fascinantes, ainda sem respostas definitivas!
Esse novo achado tornou-se, ademais, em pouco tempo, um atrator de controvérsias, depois de a equipe responsável pelas pesquisas de campo afirmar ser o extinto hominídeo dotado de um cérebro de dimensões tão pequenas e, mesmo assim, ser capaz de carregar seus mortos para um particular sistema de cavernas onde os sepultava, gravar padrões e formas abstratas em suas paredes internas além de acender fogueiras. O fervor da perplexidade e das discussões então suscitadas decorre, em minha opinião, da crença profundamente difusa de que comportamentos complexos como esses, conhecidos há tempos, costumam ser associados apenas aos cérebros maiores de indivíduos mais evoluídos.
Um cérebro grande, acredita-se, facilita uma gama de capacidades tipicamente humanas, dentre as quais a mais óbvia, provavelmente, seja a linguagem [NIÉSTURJ, 1984; FOLEY, 1988, p. 58; p. 198-207; ARMSTRONG & WILCOX, 2007]. Ou será que, à luz dessas novas evidências, esta relação direta e intuitiva entre o tamanho (ou volume) do cérebro e as faculdades do indivíduo, admitida pela Ciência, virá a ser contestada ou até mesmo reformulada?
Não me sinto à vontade de prosseguir sem alertar o leitor quanto aos equívocos e riscos de se enveredar por uma ciência do homem mormente pautada em medições precisas, seja de crânios, cérebros, de ossos em geral ou de qualquer outra característica anatômica, como adverte o paleontólogo e biólogo evolucionista estadunidense Stephen Jay Gould (1941-2002), em seu instigante livro A falsa Medida do Homem [GOULD, 2003] Em seu juízo, os dados quantitativos encontram-se tão sujeitos ao condicionamento cultural quanto qualquer aspecto da Ciência e, por conseguinte, têm potencial de ser usados, conforme desgraçadamente já se testemunhou, repetidas vezes na História, como alicerce de teorias pseudocientíficas justificando o racismo e a segregação de grupos étnicos.
Se, por um lado, a Ciência lida com fatos, por outro, há vários exemplos históricos em que novos fatos são de difícil assimilação em seu \corpus de pesquisa. No geral, não é raro o pensamento científico contemporâneo, em face à sua crescente segmentação e particularização, deparar-se com dificuldades ao defrontar-se com um achado singular, adversidade essa acentuada quando é necessário dialogar com outras áreas do saber, mesmo sem sair da esfera científica. Um dos motivos desta dificuldade está relacionado a uma conjuntura específica na qual especialistas, independentemente da área, se impõem – a priori e algumas vezes de maneira inconsciente – limites cerceadores ao discutirem o novo. Desse jeito, mantêm-se em uma zona de conforto, evitando excessivas especulações, principalmente quando se vêm compelidos a uma confrontação inter ou multidisciplinar. Esta tendência geral é fruto de uma visão quase dogmática das teorias científicas canônicas; responsável, em última análise, pelo anseio de salvaguardar a unidade e o poder explicativo-preditivo de uma teoria bem-estabelecida, antes de eventualmente assentir que ela possa ser refutada [LAKATOS, 1979; 1989]. Tudo isso é mais tangível em áreas específicas como Cosmologia, Geologia e Paleontologia, nas quais os dados experimentais são poucos e as hipóteses, muitas.
Em particular, do ponto de vista intelectual, esforços liberatórios capazes de isentar o saber científico dos entraves apontados no parágrafo anterior são bem-vindos e, talvez, só emanem de uma revalorização do Humanismo, semelhante ao ocorrido no Iluminismo, o que, por sua vez, contribuiria para uma maior integração de saberes. Uma questão mais pontual, relacionada ao tema deste ensaio, seria: – É plausível esperar, com a inclusão dos naledi ao gênero Homo, alguma dessas transformações?
O escopo primeiro do artigo tem a ver com uma tentativa de remarcar as fronteiras do entendimento e do preconceito humanos, fundamentada em uma ampla e desobrigada reflexão de cunho científico-filosófico, o mais desprovida possível dessas amarras, despojada do medo de se propor hipóteses ou fazer conjecturas, por mais estranhas ou inalcançáveis que pareçam, evitando a típica resistência de se lançar em busca da troca de informações e competências com outras áreas do saber. Só assim se constrói um discurso interdisciplinar, um discurso que não exclua o poético enquanto atributo humano e não dizime a curiosidade sobre os dados desconhecidos! Além disso, é provável, algumas vezes, que a abordagem de um tema polêmico se beneficie de contribuições de pensadores com princípios e orientações diferentes. Acredito, desse modo, no futuro, ser viável constatar o interesse renovado dos jovens pela Ciência, que não exclua as relações entre as Ciências e as Artes [STROSBERG, 2013; CARUSO, 2021; 2024].
A melhor maneira de resumir o intuito deste ensaio talvez seja recorrendo ao breve comentário do matemático francês Cédric Villani (n. 1973), muito instigante e inspirador, referindo-se à (im)possibilidade de uma compreensão total do Universo [ALBERT & KOPENAWA, 2023].
O Universo permanecerá incompreensível, para todo o sempre. Dele só compreendemos alguns fragmentos, e jamais poderemos aprendê-lo. Já não é um elefante explorado pelos cegos, é um baobá explorado pelos cupins (cegos, como deve ser). E é o poema último, é claro. Então, o matemático o lê sob o prisma matemático, constrói para si mesmo uma representação, inscreve o mundo na matemática e a matemática no mundo. Mas para contar esse mundo aos outros é preciso extrair-lhe histórias. Para captar a atenção, as histórias devem ser inesperadas e harmoniosas, suaves e cruéis. A figura do contador é certamente importante e universal. O contador pode ser científico ou xamânico, trata-se de uma questão de comunhão. É nosso dever contarmo-nos histórias uns aos outros […].
É isso: desejo ser mais um contador de histórias. Não um narrador matemático, como o da citação, mas um físico de formação, com interesses históricos, filosóficos, artísticos e literários, quiçá, com a benção dos xamãs.
Possa a História – inesperada, decerto, harmoniosa, quem sabe – contada a partir da Seção 2, no entanto, não se referir ao Universo, mas à Humanidade e, portanto, em última instância, direcionada a mim. E, sobretudo a nós. Ela ainda não tem um final, mas já comecei a escrevê-la. Há o risco de não engendrar uma conclusão. Não importa!
Embora esteja ciente do espectro das minhas limitações, aspiro lograr compartilhar uma narrativa afetiva de uma jornada com o potencial de me fazer sonhar e, porventura, também ao leitor. Este propósito me impele a continuá-la – construindo-a e desconstruindo-a –, nem sempre com equilíbrio e sem emoção, desde que assisti, não faz muito tempo, ao documentário Caverna de Ossos [CAVERNA DOS OSSOS, 2023]. Uma história capaz de modificar minha concepção do que é humano e lançar nova luz sobre tantas questões, especialmente quanto à pergunta para a qual, possivelmente, nunca se terá resposta: – De onde viemos?
- De ossos, fatos e suposições
Era uma vez, na África do Sul, uma caverna misteriosa, situada na localidade conhecida como “Berço da Humanidade”. Seu nome: Caverna Estrela Nascente. Durante centenas de milhares de anos ela, com insistência, escondeu seus segredos do homem.
Em 2013, entretanto, essa localidade revelou ao mundo, caprichosamente, parte desses segredos. Uma nova espécie de hominídeos foi descoberta lá, pelo grupo de Lee Rogers Berger (n. 1965), paleoantropólogo sul-africano [BERGER, 2015]. Muito provavelmente, em meio a tantos ossos e terra, nenhum humano teria pensado que ali se depararia com tantas sutilezas, emoções e indagações sobre sua própria identidade, ou a respeito da necessidade de rever o conceito de humano. Minha história começa aqui.
Foram identificados e catalogados 1 550 fragmentos de ossos, correspondendo a 15 indivíduos de diversas idades, cujos crânios (e, por inferência, cérebros) são um pouco maior que o de um chimpanzé, i.e., em média, cerca de 1/3 do tamanho daquele de um humano moderno. Todos esses ossos contam uma história enigmática, suscitam sentimentos, suposições e perguntas, dentre as quais: – Por que todos eles estão juntos numa mesma caverna? – Por que são todos de uma única espécie?
Análises preliminares dos esqueletos reconstruídos indicam, num primeiro momento, que não são de humanos, embora exibam mãos semelhantes às humanas, com polegares opositores maiores. Há, além destas, outras semelhanças, mas, em troca, algumas características aparentam corresponder aos primeiros hominídeos. Findas todas as ponderações, esses indivíduos foram incluídos no gênero Homo, tendo recebido a denominação de Homo naledi.
Em certa altura do documentário, cogita-se o que ocorreria se fosse viável ficar cara a cara com um indivíduo naledi. Esse tête-à-tête hipotético despertaria sentimentos, ou haveria algo mais a nos conectar? Inevitavelmente, lembrei-me da indescritível cena de um vídeo [VAN HOOFF, s/d], envolta em emoções recíprocas, do derradeiro abraço, de despedida, entre a velha matriarca chimpanzé “Mama” e seu conhecido de longa data “Jan”, Johan Antoon Reinier Alex Maria van Hooff (n. 1936), biólogo e primatólogo holandês, evidenciando um respeito mútuo comovente entre dois primatas [DE WAAL, 2021]. De volta ao documentário Caverna de Ossos, é indagado se o olhar do Homo naledi poderia nos dizer muita coisa relativamente a nossas diferenças e semelhanças. Neste sentido, ainda com referência ao olhar dos primatas, a ponderação a seguir, do antropólogo e geólogo britânico Robert Andrew Foley (n. 1953), registra o que, para muitos, é imponderável [FOLEY, 1998, p. 51]:
A compaixão inspirada pela humanidade latente que espreita nos olhos de um gorila é testemunho das estreitas afinidades que os humanos têm com os macacos. E, no entanto, é bem fácil perceber a magnitude da distância, ao compararmos as rudes vocalizações de um chimpanzé com a poesia de Shakespeare.
Não é difícil imaginar que mais afinidades seriam acolhidas do olhar de um naledi. O primatologista e antropólogo norte-americano Agustín Fuentes (n. 1966), por exemplo, está convicto da existência de laços de amor e carinho entre o homem e o Homo naledi e se questiona: – É isso que significa ser humano?
Em meio a inúmeros ossos esparsos, um {detalhe, em especial, chamou a atenção dos cientistas [CAVERNA DE OSSOS, 2023]: os restos de um corpo em um buraco oval no solo. Uma sepultura, à primeira vista. Até então, acreditava-se que sepultar seus semelhantes era uma prática adotada apenas pelos humanos. Sepultar é um ritual, que importa respeito, por meio do qual se presta um tributo ao semelhante falecido.
Os primeiros sepultamentos humanos registrados, até então, ocorreram em Israel, entre 100 a 130 mil anos atrás [RONEN, 2012]. Embora nada se conheça no tocante ao estilo de vida do Homo naledi, sabe-se agora que, assaz antes dos humanos, em um período de 250 a 335 mil anos atrás, eles já sepultavam seus mortos.[2] Essas estimativas de datação implicam, provavelmente, a revisão da origem dessa prática atribuindo-lhe um novo marco, i.e., retrocedendo, pelo menos, de 120 a 150 mil anos na História. No documentário, Agustín declara ter sido sentimental sua primeira reação a essa descoberta, ao levantar a seguinte dúvida: – O que significa ser humano, se outras espécies também sepultam seus corpos?
Em 2018, houve uma escavação na câmara Dinaledi da caverna Estrela Nascente e outra sepultura foi encontrada. Neste grande salão, depararam-se, inclusive, com resquícios de uma pequena fogueira de 250 mil anos atrás, contendo um diminuto osso queimado, aparentemente de um pequeno antílope. Os naledi, portanto, dominavam o fogo e comiam a carne da caça.
Um bloco, envolvendo o fóssil recém-achado, foi talhado, separado do solo e envolto em gesso. Desse jeito, foi possível ser retirado com segurança da caverna. A datação das duas sepulturas foi estimada entre 236 a 355 mil anos. Apesar de a resolução da imagem não ser boa, um tomógrafo de um hospital próximo revelou o corpo de uma criança em posição fetal, reputado como uma rara revelação. Mais tarde, os pesquisadores transportaram este bloco até o Centro de Radiação Ciclotrônica da Europa, em Grenoble. Com o significativo ganho em resolução nas imagens lá geradas, conseguiu-se ver que, em seu interior, havia uma pedra misteriosa, semelhante a uma ferramenta e, o mais interessante, ela havia sido colocada com cuidado na mão do esqueleto, como se fosse ser usada pouco depois. Sua aparência é de uma faca (lâmina) bem afiada. Até então, não havia uma ligação concreta entre os naledi e qualquer tipo de ferramental.
Sobre os símbolos entalhados em determinadas paredes da câmara Dinaledi, os cientistas compararam esses, feitos pelos indivíduos da espécie naledi [TAYLOR, 2023.] com os produzidos por indivíduos da espécie neanderthalensis numa caverna no sul da Espanha, em Gibraltar, há cerca de 200 mil anos. Outra comparação foi feita com os desenhos criados pelo Homo sapiens na caverna de Blombos (África do Sul) há cerca de 80 mil anos. Teriam os naledi feito Arte?
O documentário registra, en passant, a especulação de Berger de que esta capacidade possa ser proveniente de algum tipo de consciência genética. Esse ponto será refutado mais adiante, na Seção 5.
Assevera-se, ainda, no documentário, que vários membros do gênero Homo foram achados nos últimos 2,5 milhões de anos. Essa assertiva tem respaldo científico nos possíveis caminhos na evolução da linhagem humana, de acordo com a Encyclopædia Britannica [ENCYCLOPEDIA BRITANNICA, 2024], e resume-se na linha do tempo reproduzida na Figura 1.
No entanto, é necessário ter sempre em mente o quanto essa linha do tempo – ou outra semelhante – é imprecisa e incompleta. Incompleta sempre será posto que baseada em evidências científicas. Um único exemplo, apresentado a seguir, deve bastar para ilustrar a afirmação referente a essa imprecisão e incompletude.
Em 2017, foi encontrado o mais antigo fóssil de um Homo sapiens, com idade estimada entre 280 e 350 mil anos,[3] numa região pertencente hoje ao Marrocos [HUBLIN, 2017; RICHTER, 2017; CALLAWAY, 2017; WONG, 2017], o que justifica o período de plausível existência de nossa espécie demarcado na Figura 1. Entretanto, ainda em conformidade com este gráfico, o Homo naledi foi quem vagou por mais tempo na Terra, e teria vivido até meio milhão de anos atrás e não entre 236 e 355 mil anos, como previsto com base nas escavações na câmara Dinaledi, conforme mencionado no documentário. Confirmado esse cenário, haveria uma coexistência, em distintas regiões terrestres, do Homo sapiens e do Homo naledi durante um intervalo de tempo relativamente pequeno na escala evolutiva.[4]
A mensagem final do documentário é esta: as descobertas aqui abordadas sugerem uma cultura de outra espécie, merecedora de todo nosso respeito!
Como já declarei, essa produção muito me impressionou, inclusive pelo que não abordou. Ficaram em aberto indagações capazes de despertar a curiosidade de quem quer que seja, tais como: onde moravam esses hominídeos?; por que não foram encontradas outras ferramentas ou utensílios de outra natureza?; por que a escolha de um lugar de tão difícil acesso para levar os cadáveres? Por que foram extintos? Só o tempo dirá se aquela região, algum dia, vai descerrar mais alguns de seus mistérios encobertos para o escrutínio humano. Nesse ínterim, que se possa sonhar e se emocionar com aqueles hominídeos e suas conquistas.
Uma derradeira ponderação se faz agora necessária, antes de prosseguir com a parte reflexiva da minha história.
Na evolução científica, como sempre acontece e como é imperativo que seja, há questionamentos constantes, enquanto os acontecimentos (únicos) recebem interpretações teóricas diferentes. Deste debate, em torno da busca da verdade, a Ciência se nutre e evolui. Não se poderia esperar nada diferente com relação aos descobrimentos aqui abordados. Deveras, quanto a algumas de suas interpretações deve-se registrar a existência de discordâncias na literatura científica. Por exemplo, há quem sustente não serem suficientemente convincentes os indícios apresentados até agora para apoiar o enterro deliberado dos falecidos pelo Homo naledi, nem que eles tenham feito as supostas gravações rupestres [MARTINÓN-TORRES et al., 2023]. Questionando, basicamente, o limitado número de técnicas até agora utilizadas, esses mesmos críticos fazem esta objeção:
os investigadores não empregaram a ampla gama de métodos científicos (por exemplo, cronologia, tafonomia, sedimentologia, micromorfologia, geoquímica) concebidos para responder às questões colocadas, nem aplicaram os princípios básicos da arqueotanatologia para identificar um sepultamento deliberado
Decerto, nessa crítica, embora pertinente, há um excesso de tecnicismo. Como, até onde eu saiba, não há, até aqui, qualquer objeção de fraude ou indícios de má fé, seguirei com a história, cuja veracidade será ou não comprovada após muitos embates técnico-científicos.
- Do sepultamento
Durante a pandemia de COVID-19, a revista Forbes publicou um artigo no qual o autor alega que, há alguns anos, a antropóloga cultural norte-americana Margaret Mead (1901-1978), tendo sido interpelada por um estudante sobre qual seria, em seu entendimento, o primeiro sinal de civilização em uma cultura, teria respondido com essas palavras [BLUMENFELD, 2020]:
A primeira evidência de civilização foi um fêmur fraturado de 15 000 anos encontrado em um sítio arqueológico. O fêmur é o osso mais longo do corpo, ligando o quadril ao joelho. Em sociedades sem os benefícios da medicina moderna, leva cerca de seis semanas de descanso para a cicatrização de uma fratura de fêmur. Este osso em particular foi quebrado e curado.
Cerca de dois anos depois, outro trabalho publicado desmentiria a afirmativa supracitada da antropóloga [LASCO, 2022].
Contudo, do ponto de vista deste contador de histórias, esse preâmbulo foi deliberadamente trazido aqui apenas para captar a atenção do leitor ou do ouvinte, ao despertar nele certa perplexidade em face a uma resposta inesperada. De fato, a declaração atribuída a Mead, como diriam os italianos, se non è vera, è ben trovata. Trata-se de uma ideia original, que não envergonharia ninguém. Efetivamente, sempre me pareceu uma observação bastante perspicaz e plausível, com a qual concordava, até ver o documentário Caverna de Ossos. Não sendo os cuidados envolvidos na recuperação de um fêmur fraturado o primeiro indício de civilização, qual seria? Hoje, simplificando muito, estou dividido entre qual das seguintes hipóteses aceitar no tocante à gênese da Humanidade: o primeiro sepultamento ou o início da produção de Arte.
Recordando, em 2021, a equipe de Lee Berger encontrou, dentro de uma câmara com acesso extremamente difícil, o fóssil de uma criança naledi, aparentando ter sido colocado na porção superior de uma formação em prateleiras. A equipe interpretou a descoberta como um enterro proposital.
Em julho de 2023, os pesquisadores do grupo de Berger publicaram a continuação dos seus estudos no artigo Evidence for deliberate burial of the dead by Homo naledi, como preprint [BERGER, 2023]. Segundo o relato, diversos esqueletos foram enterrados no piso da caverna, aumentando as indicações de costumes funerários,[5] sobre os quais cabe aqui uma reflexão.
As sociedades humanas têm modos bem específicos de lidar com seus cadáveres. O filósofo-poeta francês Gaston Bachelard (1884-1962) atribui ao dramaturgo e romancista conterrâneo Xavier-Boniface Saintine (1798-1865) o enunciado de uma lei conhecida como lei das quatro pátrias da Morte [BACHELARD, 1981]. Alusão clara ao imaginário dos quatro elementos naturais da filosofia de Empédocles: \água, ar, terra e fogo. Há, portanto, segundo o autor, quatro tipos de exéquias, desde tempos imemoriais até hoje; quatro meios distintos de restituir os restos humanos à natureza, seja no ar, na água, na terra ou no fogo. Ao antecipar a prática humana de enterrar os cadáveres, o Homo naledi está corroborando uma parcela dessa interpretação (referente à terra), originalmente concebida considerando apenas o hábito do Homo sapiens. Dessa maneira, a expressão “tempos imemoriais”, utilizada aqui vagamente como um artifício retórico, ganha agora uma dimensão temporal concreta – e cientificamente respaldada – de cerca de 350 mil anos!
Outras perguntas se originam de um sepultamento tão anterior ao primeiro sepultamento humano do qual se tinha notícia. Seria este um indicativo extemporâneo de algum tipo de religiosidade? Haveria, naquela cultura tão distante, uma crença em algo após a morte? O enterro (ou seria um funeral?), tipificado como uma ação coletiva, envolvendo supostamente umas cinco pessoas, era um tipo precoce de preparação para uma transição da vida para algo que existiria além da morte? Ou um simples ato de despedida ou de celebração em memória de um falecido membro do grupo?
Alguém, com um pensamento pragmático e objetivo, argumentaria que o enterramento se limita tão-somente a evitar que se presencie a decomposição do corpo de um ente querido, uma decorrência natural do falecimento, ou tem o propósito de proteger os corpos da ação de animais necrófagos. Todas são suposições plausíveis, a priori. Entretanto, a posteriori há um importante diferencial, neste caso específico, impossível de ser negligenciado, o qual, per se, nos afasta de algumas dessas hipóteses: a ferramenta, ao que parece, deliberada e delicadamente posta na mão do jovem finado ao ser enterrado.
Primeiramente, não era tão fácil fazer uma ferramenta naquela época. Devia, por conseguinte, ser um bem valioso. Logo, “perder” uma que fosse deveria ser aceitável em prol de algo com um significado coletivo maior.
Embora não haja termos de comparação entre as duas culturas e não se tenha nenhuma evidência de como os naledi concebiam o pós-morte, aquela ferramenta na mão do jovem falecido me parece ser compatível, no mínimo, com a esperança de que ela possa (ou precise) ser usada. Onde, quando? Numa jornada além da morte? Haveria um lugar e um tempo para os mortos? Não sei e, presumivelmente, nunca saberei, mas é uma possibilidade que me apraz cogitar. Mas essa impossibilidade de compreensão não impede a indagação: Por que motivo dar a ferramenta ao defunto?
Muito intrigante para mim, nesse contexto, é a circunstância de a ferramenta ser a única coisa a acompanhá-lo. Não se trata de uma arma para protegê-lo ou para lhe permitir “caçar” para “sobreviver” nessa “viagem”. O exemplar escolhido aparenta ter a função exclusiva de gravar pictogramas em paredes de pedra, de representar animais, desenhar símbolos, enfim, de se comunicar, de alguma forma. Envolve, portanto, um propósito abstrato, de natureza intelectual e artística, certamente não prático, sugerindo uma sofisticação cultural avalista do fazer artístico e da perpetuação da Arte. Para além de procurar suprir eventuais demandas técnicas hodiernas, semelhantes às necessárias a uma pessoa viva destinada a uma peregrinação, vejo nesse ato de colocar essa específica ferramenta na mão do cadáver um desejo e, ao mesmo tempo, uma certificação do quanto a arte transcenda a vida, para o Homo naledi. Um traço indiscutivelmente notável daquela cultura dita primitiva, o qual remete à máxima do filósofo prussiano Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900): “Temos arte para não morrer da verdade” [NIETZSCHE, 1968]; ou, como dizia o poeta brasileiro Ferreira Gullar (1930-2016): “A arte existe por que a vida não basta” [GULLAR, 2014].
Por fim, talvez não por acaso, é verdade que os painéis encontrados com gravações estão dispostos exatamente em frente ao local das sepulturas. Haveria uma relação entre as duas coisas? As inscrições nas paredes de pedra são uma clara vontade de eternizar aquelas imagens. Mas qual a finalidade? Elas se relacionariam, de algum modo, à morte? Ou esses sinais gravados seriam mensagens aos que eventualmente visitassem aquele espaço? Por fim, aquele jovem já havia sido introduzido tão cedo na “arte” de fazer gravações em pedra, ou ainda a “aprenderia” após a morte?
De toda maneira, pelo exposto até aqui, o ato de sepultar afigura-se como uma manifestação comunitária de sentimento pelo próximo. Uma demonstração de aceitação e valorização da cooperação intergrupal. Ou, inclusive, uma expressão de amor? Parece-me notório, além do mais, o objetivo de preservar certos laços sócio-culturais e a esperança de garantir, em vista disso, que a morte não imponha o esquecimento de quem contribuiu para aquela sociedade. Um registro temporal afetivo, concebido para fortalecer {aqueles que seguem na vida?
O arqueólogo americano Lewis Roberts Binford (1931-2011), um dos líderes do movimento “Nova Arqueologia”, vai além, ao defender que o ritual fúnebre permite inferir comportamentos sociais, relacionando sua complexidade com a complexidade da organização social [BINFORD, 1971]. Ah! Quanto mais se aprenderia se fosse praticável ter informações sobre o rito fúnebre do Homo naledi? Seja como for, a partir dessa prática, é lícito conceber a sociedade dos naledi como mais do que a soma de seus indivíduos, pois a sobrevivência do grupo depende das inter-relações sociais decorrentes do trabalho para o bem da coletividade e, por isso, precisam ser relembradas e a perda, lamentada. Em vista disso, o homem é, inegavelmente, um animal social [ARONSON & ARONSON, 2023], embora essa caracterização não baste para defini-lo, como tentou Aristóteles. Ademais, sou propenso, com maior simpatia, a concordar com o psicólogo e linguista estadunidense Michael Tomasello (n. 1950), quando ele assegura ser o homem, na realidade, um animal ultra-social [TOMASELLO, 2014].
- Do fogo
O Homo erectus foi, presumivelmente, a primeira espécie a dominar o fogo, inovação técnica crucial no progresso da história humana [FOLEY, 1998, p. 49}. Conforme Robert Foley, autor desta referência, o domínio do fogo, além de lhes fornecer luz e calor, permitiu a essa população ingerir alimentos cozidos, um facilitador para a absorvição mais eficiente de nutrientes. Uma publicação de 1999 sustenta que este fato teria propiciado significativo desenvolvimento do cérebro humano [WRANGHAM, 1999].
Além dos resquícios já mencionados de uma fogueira, o documentário revela que o Homo naledi tinha significativo controle do fogo, sendo capaz de conduzir tochas e usar fogueiras como sinalizadoras. Sem esse domínio, seria quase impraticável o deslocamento na caverna e, ainda mais, mover os corpos até o lugar de sepultamento, de dificílimo acesso. Com essas informações e inspecionando mais uma vez o gráfico da Figura 1, que registra que o Homo erectus e o Homo naledi coexistiram no planeta por um período superior a 1 milhão de anos, talvez seja necessário, em breve, à luz de novas pesquisas, rever a primazia do primeiro, com relação ao segundo, no que se refere ao primevo domínio do fogo.
Por outro ângulo, a presença da fogueira no recinto dos funerais, aparentemente frequentado por alguns indivíduos, simultaneamente, nessas ocasiões, sugere, quiçá, uma prática de compartilhar comida durante ou após a cerimônia de enterro, como é, até hoje, relativamente comum, em várias comunidades humanas? Haveria, em vista disso, no funeral, uma espécie de cerimônia socializante em torno da despedida de um indivíduo da mesma espécie? De todo modo, esse achado permitiu, inclusive, concluir que carne animal cozida integrava a dieta dos naledi.
Em uma perspectiva mais ampla, diversos pensadores colocam o fogo como a “pedra angular” de todo edifício da cultura humana. Sua importância é destacada na mitologia grega pelo mito de Prometeu, personagem que roubou o fogo dos deuses e o deu ao homem, motivo pelo qual foi condenado pela eternidade, pois os humanos, na visão de Zeus, possivelmente ficariam tão poderosos quanto os deuses ao dominarem o fogo. Do ponto de vista humano, Prometeu é visto como a origem do fogo, mas cabe à engenhosidade humana conservá-lo e controlá-lo [LEWIS, 1995] e os naledi decerto a possuíam.
O fogo, in natura, assusta os animais de todos os gêneros; não os conforta, nem os aquece. Fenômenos como incêndios florestais, erupções vulcânicas, fogo resultante de raios caindo sobre as árvores são capazes de ser incrivelmente intimidadores. Daí a importância de se tentar buscar uma explicação racional de como os homens pré-históricos teriam conseguido criar o fogo e dominá-lo.[6]
Há, como identifica Bachelard, por um lado, um leitmotiv para explicar sua criação pelos primeiros homens, por intermédio do atrito de dois bastões secos de madeira [BACHELARD, 1972, p. 33]. Por outro, admite ser extremamente difícil conciliar uma explicação racional calcada nessa ideia com as possibilidades psicológicas do sujeito primitivo.
Dito isso, e persuadido de que quando uma justificação racional e objetiva é insatisfatória para descrever uma conquista alcançada por um espírito primitivo, ele abraça a possibilidade de uma explanação psicanalítica ser capaz de levar, por mais estranha que seja, à verdadeira interpretação psicológica. Ao invés de detalhar seus argumentos [Bachelard, 1972, p. 36],[7] é preferível aqui recordar diretamente a conclusão à qual o filósofo chegou: “o amor é a primeira hipótese científica para a reprodução objetiva do fogo”. Alegra-me imensamente fantasiar que o Homo naledi, assim como o Homo sapiens, era igualmente movido por esse amor.
- Da ferramenta
Primeiramente, quero explicar aqui minha preferência pelo uso do termo “ferramenta”, mesmo consciente de sua etimologia, com origem na palavra ferro. Com isso, a rigor, este termo só deveria ser utilizado referindo-se a objetos fabricados a datar da Idade do Ferro. Em compensação, “utensílios” e “artefatos”, empregados às vezes como termos alternativos, não transmitem exatamente o sentido de objetos construídos com o objetivo de criar outros ou modificar o mundo material ao redor do artesão, com propósito específico. Por esse motivo, prefiro adotar a palavra ferramenta, inclusive em referência a períodos nos quais só há a possibilidade de ter sido feitas de pedra, madeira ou osso.
Todas as espécies do gênero humano, nos últimos 2 milhões de anos, têm a habilidade de conceber suas ferramentas, de executá-las, de orientar outros a reproduzi-las e de ensinar a usá-las [OAKLEY, 1959]. Usar ferramentas tornou o homem a mais adaptável das criaturas. Seu manuseio prefigura-se como a principal característica biológica humana, pois, encaradas funcionalmente, são extensões destacáveis dos membros que não mais lhe servem para caminhar, com notáveis contribuições à sua evolução. Quando os primeiros precursores do gênero Homo adquiriram a aptidão para andar habitualmente ereto, suas mãos tornaram-se livres para confeccionar e manipular ferramentas, num primeiro instante e, em seguida, fazer Arte. Mas essa característica basta para diferenciá-lo de outros primatas? Essa questão relevante foi posta pelo antropólogo inglês Kenneth Page Oakley (1911-1981) [OAKLEY, 1959, p. 1-2]:
Embora seja evidente que o homem possa ser distinguido como o primata fabricante de ferramentas, é questionável se esta definição atinge o cerne da diferença entre o homem e os grandes macacos. Estruturalmente não são muito diferentes; na verdade, eles são classificados pelos zoólogos como membros do mesmo grupo, os Hominoidea.
A esse propósito, o anatomista, primatologista e paleoantropólogo britânico Wilfrid Edward Le Gros Clark (1895-1971) se pronunciou com essas palavras [CLARK, 1959]:
Provavelmente, a diferenciação entre o homem e o macaco terá, em última análise, de se assentar numa base funcional e não anatômica, sendo o critério da humanidade a capacidade de falar e de fabricar ferramentas.
De qualquer jeito, desenvolver know-how para fazer suas próprias ferramentas requer habilidades mentais especiais (não triviais), dentre as quais uma concepção inequívoca de causalidade, implícita, na realidade, na construção de não importa qual artefato, não tão diferente do conceito aristotélico aplicável à explanação causal de uma gama maior de atos ou fenômenos. Quais particularidades, então, especificamente atrairiam a atenção dos estudiosos na comprovação de que o Homo naledi manejava ferramentas? Antes, porém, de discutir o que os distingue de outras espécies, examinem-se as características comuns a todas elas.
Para manufaturar sua ferramenta, por exemplo, é essencial, em primeiro lugar, que o artesão seja capaz de conseguir “ver” dentro da matéria bruta (uma pedra, por exemplo) o objeto acabado, em seu formato definitivo, uma vez imaginada ou concebida sua finalidade. É a antecipação da forma guiando a criatividade e a execução do trabalho. Esta alusão remete ao típico exemplo didático do estatuário, usado no ensino básico de Filosofia, para explicar a concepção aristotélica em favor do envolvimento sempre de quatro causas na elucidação de todo fenômeno físico, aqui exemplificado pela execução de uma estátua. Inevitavelmente, isso me faz lembrar a afirmação do grande Michelangelo (1475-1564), na qual explicava que, ao fazer uma escultura, limitava-se a retirar o excesso de mármore. De maneira análoga, a manufatura de uma ferramenta de pedra exige do seu executor a retirada do “excesso” de material. As quatro causas envolvidas neste exemplo são, consoante com a própria nomenclatura escolástica: materialis, efficiens, formalis e finalis e correspondem, neste caso, respectivamente, ao bloco bruto de mármore, às cinzeladas impostas à matéria pelo artífice, à forma acabada pré-estabelecida e, por fim, a uma finalidade específica a ser cumprida. Em resumo, esculpir uma peça e fazer uma ferramenta não são ações independentes, pois pressupõem habilidades cognitivas comuns, como, por exemplo, memória, criatividade, abstração, planejamento, método e atenção.
Construir um ferramental traduz, em geral, uma vontade e um savoir-faire que espelha uma capacidade de modificar o mundo ao redor. Vontade entendida aqui como uma necessidade física ou emocional que compele um indivíduo a fazer algo. Para o psicólogo bielorusso Lev Semenovich Vygotsky (1896-1934), o conceito de vontade [VYGOTSKY, 1994] seria uma função psicológica superior [VYGOTSKY, 1995], cuja compreensão é essencial para descrever a essência da consciência. Por conseguinte, de acordo com esse autor, a totalidade das espécies do gênero Homo possuem tal função psicológica e, por extrapolação, adicionaria o Homo naledi neste rol. Usar uma ferramenta relaciona-se, em síntese, à execução pré-concebida de um trabalho. Por outro prisma, ser capaz de ensinar outros indivíduos a utilizá-las requer uma pedagogia, eventualmente mais voltada ao bem-estar comum, e não tanto a um aprendizado individual.
É inegável que a ferramenta dos naledi encontrada [BERGER et al., 2023], se comparada com outra semelhante achada, bem mais recentemente, na caverna de Blombos, um sítio arqueológico situado na África do Sul [HENSHILWOOD, D’ERRICO, WATTS, 2009], aparenta ser mais anatômica e mais bem adaptada a seu propósito (Figura 2), apesar de preceder a outra em pelo menos 170 mil anos.
Qualquer um habituado a manusear ferramentas se dá logo conta que o design criado pelo Homo naledi é mais anatômico, encaixando-se melhor na mão, facilitando os golpes contra as paredes de pedra de cima para baixo, aumentando a eficiência dos golpes. Até onde sei, é a mais antiga ferramenta, produzida pelo gênero Homo, conhecida.
Esse diferencial, em si, já é surpreendente. Mas outro, de caráter mais amplo, torna intrigante a relação dos naledi com a única ferramenta localizada, e lança nova luz sobre a vontade e a prática de abstração destes hominídeos. Refiro-me aqui à evidência, já reportada, de uma ferramenta ter sido detectada, bem acomodada, na mão de um jovem enterrado. É bom lembrar de terem sido identificadas duas sepulturas. Infelizmente, foram apenas essas e, para completar, só em uma havia a presença de algum objeto. Em consequência, não é possível se concluir nada com significância estatística com relação àquela cultura, com base em um achado singular. No entanto, isso não impede que se imagine se todos aqueles dotados de habilidades artísticas naquela sociedade mereciam ser sepultados com sua ferramenta.[8] Seria essa uma praxe refinada de uma cultura pré-histórica?
Essa hipótese, se comprovada, ofereceria uma percepção assaz singular do Homo naledi e de como esse grupo valorizava a Arte, inclusos os símbolos geométricos encontrados na caverna Estrela Nascente; até fascinante, eu diria, e não apenas diferente.
Resta ainda um ponto a ser tratado, relacionado à produção e ao uso de ferramentas, cuja importância é decisiva para a assimilação do que se segue, envolvendo os achados descritos nessa história e a própria evolução humana. É o papel do trabalho na antropogenia [NIESTURJ, 1984, p. 142], com ênfase na sua relevância no que tange a experiência de aprimoramento de aptidões individuais [CASSIRER, 1972, p. 349 e sgg.].
A postura ereta, presente igualmente no Homo naledi é, em essência, como se costuma admitir, uma adaptação à modalidade mais característica da atividade vital humana: o trabalho, essencial para uma vida em sociedade. Essencial, mas não suficiente, principalmente quando se considera a evolução social.
A definição de homem como “animal social”, proposta por Aristóteles em sua obra Política [ARISTOTLE, 1985], não é, decerto, suficientemente ampla. É possível encontrar vários exemplos de animais sociais, como abelhas e formigas, capazes de exercer tarefas sofisticadas, como quando as abelhas constroem favos com uma perfeita simetria hexagonal. Essas sociedades são ditas de ação. Uma ação padronizada, sempre exercida da mesma maneira. Todavia, em nenhuma dessas consecuções animais percebe-se algum tipo de diferenciação individual. É esta diferença específica que torna os humanos sui generis.
O psicólogo estoniano Wolfgang Köhler (1887-1967) mostrou haver muitas diferenças de inteligência e habilidade entre macacos antropóides. Quanto aos humanos, o filósofo alemão Ernst Cassirer (1874-1945) nos ensina, fundamentado em seus estudos dedicados à Antropologia Filosófica [CASSIRER, 1972, p. 349], que a sociedade por eles construída não é meramente de ação, mas, diferentemente das outras espécies, mais plural e mais subjetiva, envolvendo pensamento e sentimento; em última análise, esse panorama abre portas para os indivíduos se destacarem em algum tipo de trabalho ou em alguma habilidade específica. Integram essa forma superior de sociedade: a linguagem, o mito, a arte, a religião e a ciência. Nuances do amadurecimento de algumas dessas áreas que qualificam o gênero Homo são perceptíveis nos naledi.
No entanto, em referência às “invenções” individuais, Cassirer admite que [CASSIRER, 1972, p. 350],
Para a estrutura geral da vida animal, entretanto, tudo isto é irrelevante. Esta estrutura é determinada pela lei biológica geral, segundo a qual os caracteres adquiridos não são passíveis de transmissão hereditária. Toda perfeição conquistada por um organismo no correr de sua vida individual circunscreve-se à sua própria existência e não exerce influência na vida da espécie. O próprio homem não constitui exceção a esta regra biológica geral.
Mas o homem, capaz de pensar, sentir e ter vontade,[9] consegue contornar essa limitação e passar, como herança a seus descendentes, esse conjunto de conquistas, não por transmissão genética, mas por meio de uma transmissão cultural – outra característica ímpar da espécie – a qual inclui, hoje em dia, saberes e fazeres envolvendo a integralidade das formas superiores anteriormente destacadas, tratadas, articuladas e re-elaboradas por algum tipo de pedagogia, função essa que vai ganhar uma enorme dimensão com o aprimoramento da linguagem e, enfim, com o advento da escrita. Historicamente, esse desejo de eternizar suas conquistas e aprendizados passa, em um âmbito mais basilar, pela otimização do trabalho e da comunicação. Tudo isso é possível ser resumido na bela frase de Cassirer: “[O homem] não pode viver sua vida sem expressá-la” [CASSIRER, 1972, p. 350]. E não é razoável dizer o mesmo do Homo naledi?
Especificamente com relação à Arte, tema a ser tratado na próxima Seção, gostaria de relembrar os escritos estético-filosóficos do filósofo, crítico e historiador literário húngaro György Lukács (1885-1971), nos quais ele sustenta ter sido o ritmo do trabalho, ainda que não numa relação determinista, a permitir também o surgimento das primeiras expressões artísticas [LUKÁCS , 2023], como deve ter acontecido com os naledi.
Considera-se, além do mais, que o trabalho, em sua diversificação crescente, possibilitou aos humanos a transformação da natureza, de maneira notável e complexa, contribuindo, com o tempo, para o surgimento e as subsequentes metamorfoses da linguagem.
Grosso modo, para o gênero Homo, a origem do trabalho relaciona-se ao uso das mãos e da força física, envolvidas em atividades voltadas, inicialmente, para suprir suas premências de sobrevivência. O desenvolvimento de habilidades motoras e físicas o conduzirá, é inegável, ao desempenho de novos ofícios, com graus crescentes de complexidade e abstração. Esse processo evolutivo desembocará, bem mais tarde, em avanços progressivos de seu entendimento do mundo e de suas competências, bem como de tecnologias de várias naturezas, atingindo, assim, um estágio no qual o Homo sapiens sapiens passa a ser capaz de deliberada e inexoravelmente transformar a Natureza, em seu benefício próprio e da sociedade na qual está inserido (nem sempre), impulsionando, em conjunto, a evolução da própria sociedade, com o aprimoramento do seu ofício. O período em que essa transfiguração ocorre de forma sistemática recebeu, devido a sua singularidade, a denominação de Antropoceno, designando uma nova época geológica caracterizada pelo impacto do homem na Terra. Nele, não há espaço para observadores ingênuos e passivos; só existem participantes [Green, 2021].
- Da arte rupestre
A origem da Arte [WILSON, 1998; LORBLANCHET, 2007], tanto quanto a criação da linguagem [HERDER, 1987; ARMSTRONG & WILCOX, 2007; EVERETT, 2027], é um mistério fascinante na evolução do gênero Homo. Entretanto, há praticamente consenso que os registros conhecidos mais antigos estão na arte rupestre.
Não obstante não se possa determinar o exato momento histórico do surgimento da Arte, Lukács inferiu que, numa certa época, houve uma separação entre o simples fazer e a emergência da poiesis, permitindo o surgimento do trabalho artístico. Com base no exposto até aqui, parece-me difícil acreditar que essa compartimentação não tenha sido vivenciada pelo Homo naledi.
A arte rupestre do período Paleolítico Superior, abrangendo, grosso modo, o período de 10 a 40 mil anos atrás, o qual se sobrepõe à Era do Gelo mais recente no continente europeu, é fruto – e, simultaneamente, evidência – da evolução da imaginação, da criatividade e do pensamento abstrato nos primeiros Homo sapiens. Comparações de ferramentas e ossos localizados na Alemanha sugerem que membros pioneiros da espécie humana podem ter chegado até à Grã-Bretanha enquanto os Neandertais ainda estavam vivos. Esses achados revelam que a espécie sapiens enfrentou o frio cortante para chegar ao norte da Europa há 45 mil anos, abrigando-se em cavernas durante milhares de anos [ASHWOR, 2024]. Os paleoantropólogos há muito acreditavam, como consequência dessa migração, ter sido a Arte inventada durante uma “explosão criativa” há aproximadamente 40 mil anos na Europa [D’ARCY, 2017]. Esta visão, não obstante, está sendo questionada por novas descobertas, conforme será visto em seguida.
Genevieve von Petzinger, paleoantropóloga da Universidade de Victoria, no Canadá, é responsável, a partir de 2007, por um estudo sistemático inédito sobre a arte rupestre desse período [VON PETZINGER, 2017]. Seu interesse reside, exatamente, no desenvolvimento da mente moderna, com base nessas manifestações artísticas. Em outras palavras, a cientista canadense busca respostas nos desenhos e nas inscrições em grutas e cavernas capazes de iluminarem o significado de humano. Evidentemente, para esse projeto ser levado a cabo, primeiro é necessário estabelecer quem fez as inscrições. De acordo com a própria pesquisadora, cerca de dois terços dos sinais por ela estudados já estavam na caverna quando da chegada do Homo sapiens na Europa, há 45 mil anos. Surge, então, a dúvida [D’ARCY, 2017].: será que o Homo neanderthalensis, que já habitava a Europa nesse período, tendo sido extinto há cerca de 30 mil anos, também criava símbolos e gráficos? Essa situação nova já bastaria para requerer uma revisão da timeline estabelecida para quando esses símbolos começaram a ser criados e utilizados. A isso se justapõe a surpreendente constatação, à qual já se aludiu, de que, desde um período muito mais remoto (da ordem de 200 a 250 mil anos, aproximadamente), as paredes da Caverna Estrela Nascente abrigam inscrições feitas pelos naledi. Com isso, a origem da timeline muda drasticamente e surgem novas e desafiadoras indagações.
Acreditava-se, até os estudos de Genevieve, que apenas os humanos fossem capazes de desenvolver tantas habilidades sofisticadas de comunicabilidade e de expressão, desembocando no aprimoramento da linguagem falada e, bem mais tarde, na invenção da escrita [FISHER, 2009]. Em princípio, a arte rupestre pode ser entendida como a invenção da comunicação gráfica, à qual precedeu em muito.[10] A habilidade para tal realça a posição sui generis do homem em todo o reino animal. Uma nova maneira de se exprimir e interagir com seus semelhantes, inclusive em tempos longínquos, que extrapola o momento presencial da intercomunicação verbal/gestual. Uma maneira de preservar uma mensagem no tempo. A contar de quando tais ilustrações e símbolos saem das paredes e passam a ocupar superfícies de argila, pequenas pedras, papiro, pergaminho, até o papel [KOOPS, 1801], resolve-se, outrossim, o problema do espaço: a comunicação não mais precisa que dois ou mais indivíduos estejam, em um dado instante, compartilhando o lugar.
A linguagem escrita, marca indelével da civilização humana, não surgiu simplesmente de um dia para o outro. Milhares e milhares de anos antes dos primeiros sistemas de escrita completamente desenvolvidos, os nossos antepassados rabiscaram signos geométricos pelas paredes das cavernas onde se abrigavam.
Quanto a essa origem da escrita, e sua relevância para a humanidade, abordada na Ref. [CARUSO & XAVIER DE ARAÚJO, 2020], destaca-se o seguinte:
Ao recorrer a desenhos em cavernas, o homem pré-histórico deu um passo extraordinário na evolução da espécie. Tais desenhos foram a primeira expressão concreta de um esforço voltado para tornar, ao mesmo tempo, visível e duradouro seu pensamento, seus sentimentos e sua visão de mundo. Tão ou mais importante do que fazer representações precisas de pessoas e de animais, era aquilo que se pode chamar de representação estenográfica da realidade, ou seja, sua capacidade de fazer esboços lineares, de traços mais simples, usados para dar significado inteligível aos seres e às situações retratados. Dessa forma, ainda que inconscientemente, a humanidade dava o primeiro passo para a escrita.
Passaram-se dezenas de milhares de anos até que o homem manifestasse consciência da pertinência desses pictogramas como técnica de registro [McMURTRIE, 1982]. Há, na atualidade, praticamente um consenso de que a forma primitiva de escrita foi pictográfica[11] e, em seguida, ideográfica.[12]
Retornando ao rico legado da arte rupestre na Europa, ao final do século XX, mais de 350 sítios de arte rupestre haviam sido revelados, com pinturas de animais, de seres humanos e signos abstratos; estes últimos serão, de agora em diante, genericamente chamados de desenhos geométricos, embora reconheça-se não ser esse o termo mais apropriado. Sim, pois a Geometria (termo derivado de “medida da terra”) é um ramo da Matemática desenvolvido na Grécia antiga como um saber organizado, dedicado a questões de forma, tamanho, ângulos e posições relativas, incluindo as medidas quantificadoras dessas relações. Algo totalmente inexistente na pré-história. A rigor, nem o termo protogeometria seria adequado, pois é reservado para o período entre 1 100 e 800 a.C., na Grécia Antiga.
Neste ponto, é preciso abrir um parêntese para registrar a contribuição do historiador da matemática, o francês Olivier Keller (n. 1943), o qual sustenta que a representação simbólica em cavernas e rochas envolve noções e práticas matemáticas que são usadas, mas não apresentadas formalmente ou integrados em um sistema, por ele denominadas de “suposições não formuladas” [KELLER, 1995; 1998; 2001; 2004; 2006]. Seriam elas: o plano, principal cenário para os movimentos das figuras e seu estudo; um estoque de figuras elementares como segmento de reta, círculo, quadrado, retângulo, triângulo, trapézio, cubo, cilindro, juntamente com os elementos dos quais são compostos – pontos e linhas – atrelados à possibilidade de transformar algumas destas figuras umas nas outras através de decomposição e remontagem; e a capacidade de reconhecer proporções nas figuras, eu acrescentaria. Ainda de acordo com Keller, essas origens pré-históricas da geometria se desenvolvem no Paleolítico e no Mesolítico e, de alguma maneira, remontam à habilidade de fazer ferramentas de pedras. Embora se encontrem críticas à sua abordagem, o autor se mostra bem consciente de que a comparação etnográfica mostra quão traiçoeiro costuma ser o passo do concreto (o artefato) à interpretação [HOYRUP, 1996]. De todo jeito, julgo relevante levar em conta essas ideias ao se meditar sobre a origem da imaginação geométrica.
De volta aos símbolos gravados em cavernas europeias, a já citada paleoantropóloga Genevieve von Petzinger fez pesquisa de campo em 52 sítios arqueológicos na França, Espanha, Portugal e na Sicília, durante dois anos, dando ênfase a um levantamento sistêmico desses símbolos geométricos enquanto os catalogava. Sua primeira constatação é que, em relação às ilustrações figurativas, a presença de signos não figurativos é duas vezes mais frequente.[13] Expõe-se, na Figura 3, lado a lado, um total de 32 símbolos, os quais, para a pesquisadora, teriam sido feitos durante 30\,000 anos, entre 10 e 40 mil anos atrás, considerando todo segmento do continente europeu investigado. Cerca de 65\% desses símbolos aparecem em todo o período examinado.
A autora, ao coletar e sistematizar esse conjunto de símbolos, se indaga se poderiam configurar a base de alguma linguagem. Neste cenário concebível, devo dizer, há algo que me incomoda. Se ele fosse verdadeiro, numa área tão extensa e em um ambiente dominado por condições climáticas absolutamente hostis, por um longo tempo, seria muito difícil conceber um aclaramento plausível de como esse número limitado de símbolos teria se propagado por uma enorme extensão territorial e durante um igualmente enorme período, com relativamente pouca variação e poucos acréscimos, sem falar na agrura de traçar a origem dessa “propagação” iniciada na África do Sul, por exemplo. Além disso, 32 símbolos reputo um número muito reduzido para uma linguagem ideográfica, mesmo primitiva.[14]
No documentário Caverna de Ossos, que aborda um período pré-histórico muito anterior ao estudado por von Petzinger, Berger expressa sua perplexidade, não sem emoção, ao ver de perto os pictogramas na parede de entrada na galeria Dinaledi de forma sintética: – Saí de lá outra pessoa. Note-se que a observação do cientista deixa transparecer uma perplexidade despertada por algo que o impactou esteticamente, e situa-se além do descobrimento de um sítio arqueológico.
Embora representações de animais não sejam mostradas no filme [CAVERNA DE OSSOS], alguns (admito, exigem uma boa vontade do observador para identificá-los) foram publicados posteriormente [TAYLOR, 2023]. Por estar me referindo prioritariamente aqui ao documentário e com o filtro de interesses pessoais, opto, de agora em diante, por me ater somente aos símbolos. Olhando com atenção as fotos publicadas, pude identificar 6 dos 32 símbolos da Figura 3. São eles: cruciforme, linha, signo-Y, quadrilátero, triângulo e o “jogo da velha”, em destaque na Figura 4.
Esta constatação significa que cerca de 19% do total de símbolos da tabela anterior, englobando um período de 30 mil anos, estão igualmente presentes na Caverna Estrela Nascente, feitos, muito provavelmente,[15] com uma antecedência de cerca de 200 milênios em relação à datação dos achados nas cavernas europeias.
Tal abundância relativa de símbolos, em épocas tão díspares, somada ao pequeno número deles, produzidos em uma enorme escala de tempo, e ao embaraço de imaginar a propagação espacial desses símbolos em um período glacial, sugere muito mais que eles não tenham sido aprendidos por meio da experiência e, subsequentemente, possa ter havido alguma transmissão eficiente dessa simbologia entre grupos distintos e geograficamente esparsos. Como, então, compreender esse quadro? Talvez se possa encontrar, alternativamente, uma justificativa para origem desses símbolos na concepção de espaço do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), quando, em seu período crítico, atribui a ele (e, por extensão, à Geometria) um caráter a priori. Tem-se, assim, segundo Kant, um instrumento teórico capaz de iluminar o substrato da imaginação criativa e da intuição do Homo sapiens sapiens. A hipótese que trago aqui é que tal concepção se aplica, mutatis mutandis, ao Homo naledi, capaz de deixar aqueles símbolos gravados nas rochas. Esses desenhos geométricos não seriam, portanto, fundamentados na experiência do homem pré-histórico. E qual seria sua fundamentação?
O filósofo alemão afiança que o fato de a geometria ser um corpo de verdades sintéticas a priori sugere que o espaço deva ser a forma pura da intuição (em oposição a um conceito). E, se para ele a geometria limita-se à euclidiana, então conclui que, no caso específico do Homo sapiens sapiens, ela se constitui em um conhecimento apriorístico, ou seja, um saber cuja veracidade ou falsidade não pode ser suficientemente fundada na experiência [KANT, 1989; STANFORD ENCYCLOPEDIA FOR PHILOSOPHY, 2001].
Em suma, estou efetivamente propondo aqui a aceitação de algumas noções muito primitivas, pré-geométricas, como as sugeridas por Keller, mesmo sem estruturar o corpus de uma argumentação teórica, igualmente como a priori na estrutura de pensamento dos hominídeos, que podem ter vivido entre 250 mil e meio milhão de anos atrás (Figura 1). Ou seja, esse conjunto reduzido de símbolos “geométricos”, representados pelo Homo naledi, assim como outros posteriores, concebidos tanto pelo Homo neanderthalensis como pelo Homo sapiens, seriam formas ou intuições puras e não representariam um conhecimento empírico. Essa hipótese afasta a necessidade de se encontrar um esclarecimento convincente para a propagação geográfica dos símbolos em larga escala, em um longo período de clima muito inóspito.
Uma alternativa a esta especulação de origem kantiana (ou uma possibilidade complementar) pode ser extraída da obra do antropólogo e filósofo francês, de origem belga, Claude Lévi-Strauss (1908-2009), em particular, quando ele analisa analogias evidentes entre as artes pertencentes a regiões e épocas muito distintas [LÉVI-STRAUSS, 2017]. De algum jeito, ele entende que as analogias percebidas entre a arte de diversas sociedades, sugerem, cada uma por um lado (e por razões independentes) aproximações incompatíveis, no fundo, com as exigências geográficas e históricas. Seria isso um dilema para o estudioso? Estaria ele condenado a renegar a história ou a fechar os olhos para essas semelhanças, tantas vezes verificadas?
Para o antropólogo franco-belga, o fato de o contato físico entre diferentes grupos ser (ou ter sido) impraticável não prova serem as semelhanças artísticas ilusórias.[16] Dessa afirmativa, decorre, tão-somente, a inevitabilidade de se buscar outra explicação. Ou seja, algo que se constitua como um sistema, que, de modo análogo à linguagem, possa dimensionar sistemicamente} os acontecimentos e objetos culturais. Um rumo possível para encontrá-la seria recorrer à psicologia ou à análise estrutural das formas, em busca de conexões internas de natureza psicológica ou lógica capazes de justificar as semelhanças. Partindo dessa postura, ele fundamenta as bases de sua antropologia estrutural, com certas regras de organização como alicerces. Portanto, a compreensão viria da busca de elementos duradouros e correspondências estruturais entre sociedades dissemelhantes para descobrir se existem estruturas fundamentais, as quais seriam a base da Antropologia. Dessa maneira, Lévi-Strauss vai se interessar pelas regras subjacentes às práticas culturais [LÉVI-STRAUSS, 1982]. Nesse contexto, então, cabe indagar se a cultura dos naledi teria algo em comum com a dos neandertais e com a do Homo sapiens, para que compartilhem aproximadamente 20% dos símbolos descobertos por Genevieve von Petzinger. No presente, não se dispõe de informações suficientes para uma comparação eficaz. Oxalá, o futuro nos traga boas surpresas nesse sentido.
Sob outro enfoque, enquanto para Kant o indivíduo transcendental conhece a partir da categoria do entendimento (inata) e do conhecimento empírico (adquirido), para Lévi-Strauss, a sociedade se faz (e é compreendida) por meio da vivência (coletiva) e da experiência (individual), trazendo diversidade para cada cultura, as quais, contudo, compartilham as mesmas estruturas.[17] Desse jeito, Strauss se afasta da pura etnografia e cria a antropologia estrutural. Ele vai buscar observar o conjunto de práticas sociais para, a partir de um olhar globalizante, identificar o denominador comum, as regras de uma sociedade. Em outro momento, busca elementos duradouros e correspondências estruturais entre sociedades diversificadas, para descobrir se existem estruturas fundamentais que seriam a base da Antropologia.
Dessa maneira, independentemente da explicar por que o homem primitivo começou a desenhar símbolos e formas abstratas no interior das cavernas, parece-me injusto não se reconhecer suas capacidades cognitivas. Uma das principais contribuições de Lévi-Strauss, pertinente ao que se está discutindo nesse ensaio, e a este ponto, em particular, é a constatação de que os chamados selvagens não são atrasados, menos evoluídos, primitivos e nem mesmo selvagens, apenas operam de modo distinto da nossa civilização ocidental, com o que a antropologia convencionou denominar pensamento mítico-religioso ou magia [LÉVI-STRAUSS, 2012]. Em termos de operações mentais, o pensamento mítico não é inferior ou menos empenhativo. Ele difere do pensamento humano atual essencialmente quanto à causalidade, quanto à lógica determinista subjacente à interpretação dos fenômenos e do mundo.
O etnólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro (n. 1951) faz uma bela síntese, em uma única frase, do que se deve entender por pensamento selvagem [DE CASTRO, 2011], a qual vale a pena ser recordada aqui:
O “pensamento selvagem” não é o pensamento dos “selvagens” ou dos “primitivos” (em oposição ao “pensamento ocidental”), mas o pensamento em estado selvagem, isto é, o pensamento humano em seu livre exercício, um exercício ainda não-domesticado em vista da obtenção de um rendimento.
Esclarecido esse ponto, é legítimo colocar outra questão: Qual a motivação da arte rupestre? No prefácio de seu livro Pintura Rupestre [RUBINGER, 1979], o antropólogo brasileiro Marcos Magalhães Rubinger (1934-1975) afirma:
a pintura rupestre não é meramente uma obra de arte dos chamados povos pré-históricos ou paleo-índios, mas sim um instrumento, prioritariamente mágico, para prover a subsistência da comunidade [RUBINGER, 1979, p. 15].
e conclui o raciocínio com essa reflexão:
[…] a pintura rupestre é vista […] como um elemento mediador entre a parte da cultura fundamental à sobrevivência do grupo e as outras esferas da cultura, que consideramos superestruturais. Assim, os desenhos são diferentes no seu conjunto ou frequência, conforme sejam diferentes a base econômica e as atividades práticas do homem [RUBINGER, 1979, p. 16].
Com base nessas citações, há que se refletir, portanto, sobre dois aspectos do desenho e da pintura rupestres: o mágico/sobrenatural e o sócio-cultural, no qual incluo o artístico.
O homem parece ter propensão para criar mitos e símbolos [JUNG, 1992], convertendo, ainda que inconscientemente, objetos ou formas em símbolos propícios a emocioná-lo, aos quais está, deste jeito, conferindo uma relevância psicológica. É importante ter discernimento que, na pré-história, mitos (e ritos) não são simplesmente lendas fabulosas, mas um instrumento (um meio) de organização da realidade, a partir da experiência sensível enquanto tal [LÉVI-STRAUSS, 2012.]
Em um significativo número de cavernas, há indícios patentes de que as representações de animais sobre as paredes foram usadas como um tipo de alvo. Nesses casos, há claras marcas que se sobrepõem aos desenhos na pedra, como se tivessem sido apedrejadas ou atingidas por objetos cortantes. As identificações de imagens submetidas a esses “ataques” sugerem estar estes atos envoltos em superstição, podendo ser interpretados como uma espécie de encenação mágica,[18] na qual o animal pintado ou esculpido na pedra desempenha o papel de um dublê, ou seja, sua imagem é vista como um simples substituto do animal real. Dessa maneira, os indivíduos frequentadores dessas cavernas e participantes desse tipo de encenação, acreditavam ser a “caçada bem-sucedida”, no plano pictórico, um bom presságio, ou, pelos menos, criava uma forte expectativa de que a caçada real seria igualmente um êxito. Uma questão, portanto, ligada à subsistência. Atribui-se, desse modo, uma “veracidade” à representação artística, atrelando-a ao “destino”, na esperança de que o acontecido com a alegoria do animal se repita com o animal vivo [JAFFE, 1992], numa evidente confirmação da ideia de Rubinger, mencionada anteriormente, do quanto a pintura rupestre é um elo de ligação entre aquilo que é fundamental para a sobrevivência do grupo – a caçada, nesse caso – e outras esferas de sua cultura, incluindo crenças e valores.
Não em poucos sítios, as inscrições ou pinturas rupestres encontram-se em lugares isolados ou em “câmaras” em locais de difícil acesso. Com qual objetivo? Porventura seria o de preservar aquela magia do olhar comum? Uma magia a relacionar e identificar, em certo sentido, o próprio ser vivente à sua imagem. O mesmo tipo de relação mágica implícita na crença segundo a qual é verossímil usar um boneco vodu para atingir a pessoa à qual ele representa. O pretenso poderio sobrenatural envolvido nessas práticas, em torno de pinturas rupestres representando animais, supostamente se difundiu e se arraigou no imaginário coletivo, a ponto de se verificar, inclusive atualmente, uma espécie de temor mágico-religioso, envolvendo muitas dessas cavernas, capaz ainda de impedir a aproximação e a entrada, nelas, de muitos moradores de suas cercanias.
Quanto aos aspectos sócio-culturais da pintura pictórica na arte rupestre, me parece claro, pelo que acaba de ser aludido, a implicação e a aceitação, por parte do grupo envolvido, de um poder xamânico – no qual aquele determinado grupo crê e deposita fé – e de uma aprovação pelo trabalho do artista, imbricados e voltados à garantia da subsistência da própria coletividade. É igualmente palpável a construção de um modus operandi para a comunicação, que vai além do visual, e a criação de um rito em torno da sedução mágica de uma arte simbólica.
Em ambas as vertentes, destaca-se a questão subjacente da imaginação na concepção artística. Na busca de analisá-la e compreendê-la, uma vez mais, pode-se recorrer a Bachelard. Repetindo os dizeres da filósofa brasileira Marly Bulcão (n. 1939) [BULCÃO, 2003, p. 12],
a imaginação, para Bachelard, é um caminho através do qual o homem consegue se desprender da vida cotidiana e se lançar numa aventura em direção ao novo, ao imprevisto, ao surreal, permitindo, assim que o homem se eleve espiritualmente. A imaginação impõe-se, portanto, como um caminho de sobrehumanidade.
Mesmo no exemplo da imagem como um dublê do animal a ser caçado e abatido, Bachelard não diria se tratar apenas de converter a imagem em um simples substituto do objeto ou do ser-vivo percebido. Há por trás da inventividade daquela imagem um devaneio. Um devaneio promissor, fecundante. Fruto de uma inventividade eminentemente criadora, é o devaneio – libertador dos sentidos, das lembranças – a conduzir o hominídeo por um novo mundo, um mundo mágico, evidente nesse exemplo pré-histórico. Em seu L’eau et les rêves [BACHELARD, 1981, p. 23], ele define dessa maneira a imaginação:
[…] a imaginação não é, como sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; ela é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade.
Essa faculdade é particularmente essencial para a gênese dos signos e símbolos abstratos.
Do ponto de vista artístico, de acordo com o filósofo brasileiro José Américo Motta Pessanha (n. 1932), Bachelard aborda a imaginação pelo enfoque estético, segundo o qual a imagem é apreendida não como construção subjetiva sensório-intelectual, mas como acontecimento objetivo, integrante de uma imagética, evento de linguagem.[19] Acho particularmente difícil se afastar desse prisma ao se tratar de arte primitiva.
A rigor, Bachelard identifica dois tipos de imaginação: a material (e dinâmica) e a formal [PESSÔA, 2008], distinção essa muito relevante para o tema tratado nesse ensaio. Em suas próprias palavras [BACHELARD, 1981, p. 1-2],
As forças imaginativas da nossa mente desenvolvem-se em dois eixos muito diferentes.
Alguns encontram sua ascensão diante da novidade; ela se aproveita do pitoresco, da variedade, do acontecimento inesperado. A imaginação que elas animam tem sempre um motivo a ser descrito. Na natureza, longe de nós, já vivas, produzem flores.
As outras forças imaginativas penetram nas profundezas do ser; querem encontrar no ser, ao mesmo tempo, o primitivo e o eterno. Elas dominam a temporada e a história. Na natureza, dentro e fora de nós, elas produzem germes; germes nos quais a forma está incorporada em uma substância, onde a forma é interna.
Expressando-nos logo filosoficamente, podemos distinguir duas imaginações: uma imaginação que dá vida à causa formal e uma imaginação que dá vida à causa material ou, mais brevemente, a imaginação formal e a imaginação material. Estes últimos conceitos, expressos de forma abreviada, parecem-nos essenciais para um estudo filosófico completo da criação poética.
Naturalmente, não intenciono, de modo algum, aqui analisar a inventividade poética na pré-história. Minha intenção resume-se a tentar lançar uma luz, por um lado, sobre a imaginação formal, ligada à causa formalis, essencial à produção de ferramentas e igualmente à artística, como já cogitado; por outro, destacar o quanto a interação transformadora experimentada por várias espécies do gênero Homo nas paredes de pedra das cavernas, da qual resultam ilustrações que adquirem um caráter mágico, depende da imaginação material, por meio da qual o mundo é visto como uma provocação concreta e como uma resistência, a solicitar a intervenção ativa e modificadora do homem.[20] Este ponto fica ainda mais claro com a explicação de André Vinicius Pessôa, professor de Teoria Literária e Literatura Brasileira [PESSÔA, 2008]:
Centrada no sentido da visão, a imaginação formal resulta no exercício constante da abstração. Algumas de suas características são: a simplificação psicológica, a desmaterialização e a intangibilidade. O homem nesse domínio atua como um mero espectador do mundo que o rodeia. Sua contemplação é ociosa e passiva. O contrário desse formalismo vem a ser a imaginação material e dinâmica, na qual o homem é um ativo interventor da matéria. Sua ação é a de um demiurgo, um artesão, um manipulador, e o seu mundo se converte numa constante provocação concreta e concretizante. Bachelard contrapõe à consagrada filosofia passiva da visão uma filosofia ativa das mãos, a que pertence aos artistas, aos alquimistas, aos obreiros e a todos os que enfrentam a matéria para transformá-la.
A esse esclarecimento, acrescenta-se outro pertinente de José Américo:[21]
[A imaginação material] não opera a partir do distanciamento da pura visão, não é contemplativa. Ao contrário, afronta a resistência e as forças do concreto, num corpo-a-corpo com a materialidade do mundo, numa atitude dinâmica e transformadora. Pois outra é a reação da mão. Não da mão ociosa a serviço da visão ociosa, mas da mão operante, instrumento da vontade de poder e da vontade de criar, mão artesã, mão trabalhadora.
Criando, essa mão vai além do visível, abrindo caminho para uma ontologia do fantástico, na concepção da filósofa, poeta e crítica de artes brasileira, Mirian de Carvalho (n. 1943) [DE CARVALHO, 1995]:
O objeto criado é mais do que uma coisa visível; é um ser autônomo, pulsante, ritmado. Funda no mundo um espaço e um tempo inusitados. Tem sentidos só seus.
[…]
O espaço e o tempo são, nesse processo, seres imagéticos. Neles interagem simultaneamente o ato e o elemento, a mão e a matéria, o instante poético e a espacialidade da poesia.
Concretiza-se, portanto, a representação artística de um espaço-tempo mítico/sobrenatural, eu diria, criado por uma mão sonhadora guiada por uma imaginação material dinâmica, que encontra confirmação nos dois exemplos anteriormente mencionados, ocorridos há, pelo menos, 40 mil anos. E quanto aos naledi?
A propósito, nosso pintor maior, Candido Portinari (1903-1962), perguntou uma vez ao fotógrafo brasileiro Flávio Silveira Damm (1928-2020) [DAMM, 2007]: — Você sabe que as mãos também enxergam?} Parafraseando Vinícius Pessôa, é essa mão artesã a mão que trabalha e cria, intervindo na matéria, em busca da felicidade e da liberdade.
E, nesse exemplo, a mão habilitada a enxergar e criar tinha olhos azuis. O sentido dessa praxis não escapou ao grande poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), quando a imortalizou ao dedicar a Portinari, alguns dias após sua morte, o poema “A mão” [DE ANDRADE, 2015], do qual são reproduzidos, a seguir, os trechos inicial e final:
Entre o cafezal e o sonho
o garoto pinta uma estrela dourada
na parede da capela,
e nada mais resiste à mão pintora.
A mão cresce e pinta
o que não é para ser pintado
mas sofrido.
[…]
E por assim haver disposto o essencial
deixando o resto aos doutores de Bizâncio,
bruscamente se cala
e voa para nunca-mais
a mão infinita
a mão-de-olhos azuis de Candido Portinari.
Por fim, todo o cuidado, que imagino ter havido envolvido no ato de alguém colocar uma ferramenta relacionada ao fazer artístico exatamente na mão do corpo inerte do jovem naledi, como se habilitando-o a utilizá-la num mundo imaginário, sugere um reconhecimento tácito e emotivo daquela mão artesã, que trabalhou a matéria tentando oferecer felicidade e um sentido para a vida ao seu grupo. Em suma, hoje estou metafisicamente convencido de que as mãos do Homo naledi enxergavam e se deixavam conduzir livremente por uma imaginação material e, assim, fizeram arte!
- Do humano
Depois de refletir bastante, tomei a decisão de não cair na armadilha de entrar aqui na discussão acadêmica sobre o humano. A origem dessa escolha reside, por um lado, na intrínseca complexidade do assunto e na convicção de ser improvável conseguir, em uma pequena Seção, traçar qualquer perfil preciso, completo e sem ambiguidades do que é ser humano e, por outro lado, foi ditada pelo desejo de não me afastar demais do objetivo do ensaio.
A quem esperava mais, posso sugerir a leitura de O Macaco Nu [MORRIS, 1967], de Desmond Morris (n. 1928), zoólogo inglês. Um texto cativante, no qual o autor analisa o ser humano, do ponto de vista biológico e evolucionista. Lembre-se, a evolução biológica dos humanos foi, desde sempre, paralela à sua evolução cultural [CARUSO & XAVIER DE ARAÚJO, 2020]. Assim, sem subterfúgios, Morris discute a biologia e o comportamento humano, tecendo paralelos provocativos entre o Homo sapiens e outros primatas. Seu leitmotif é a percepção de que só é possível alcançar uma compreensão crítica e equilibrada do Homo sapiens sapiens, ao lançar um olhar crítico em relação às origens da espécie, estudando os aspectos biológicos de seu comportamento. Em minha opinião, ele teve êxito no que se propôs a fazer, expondo diversas camadas da cultura e da civilização nas quais, ao longo do tempo, identificam-se as origens primatas do Homo sapiens.
De toda maneira, muitas das características essenciais do gênero Homo foram apresentadas e comentadas ao longo do ensaio. Preferi abordar, nesta Seção, apenas alguns pontos postergados, com a finalidade de não quebrar o ritmo da narrativa, mas que não devem ser desconsiderados em uma reflexão mais ampla acerca do tema aqui examinado, ou seja, o que é ser humano?
Um desses pontos, de natureza muito geral, diz respeito à constatação de que o Homem construiu tantas e tão variadas concepções a respeito de si próprio, ao longo da História, a ponto de inviabilizar qualquer tentativa prática de sintetizá-las [WOLFF, 2012; STEVENSON &HABERMAN, 2005].
Há, no entanto, algumas interrogações constantemente revisitadas, desde sempre, as quais, dadas suas relevâncias, creio oportuno trazer aqui: – É o homem marcado por sua própria personalidade ou é ele fortemente influenciado pela vida em comum, pela sociedade? – É o homem essencialmente bom, como quer o filósofo iluminista genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), ou, conforme tanto se debateu no mundo cristão, traz a “marca de Caim” do pecado capital, da maldade?
O naturalista e biólogo britânico Charles Darwin (1809-1882), por exemplo, esboçou uma interessante resposta, filosoficamente provocativa, a essa última pergunta, em um de seus notebooks da juventude.[22] Com efeito, depois de perceber, com ironia, que aquele que entender o babuíno faria mais pela metafísica que Locke, afirma [DARWIN, 1987.]
Nossa descendência se encontra na raiz de nossas paixões más!! – O diabo, sob forma de babuíno, é nosso avô.
Outro ponto, a se destacar, tem a ver com a imagem que o homem tem de si mesmo, quando se vê como um ocupante distinto do Mundo, em decorrência da vontade e determinação divina.
Na sociedade medieval, eminentemente teocêntrica, o homem estava convicto de ser um ocupante privilegiado do centro do Universo, posto que, criado à imagem e semelhança de Deus, não poderia ser diferente. Com o advento da Revolução Copernicana [KUHN, 2017], aquele homem se vê, de repente, um ser periférico do Mundo, a partir do momento no qual o astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543) compreende ser o Sol, e não a Terra, onde ele habita, a ocupar, imóvel, o centro do Universo, colocando em xeque a unidade da Física Aristotélica [CARUSO & OGURI, 2016]. O Cosmos Medieval não é mais geocêntrico! Tem origem, assim, uma nova Cosmovisão, por meio da qual a visão do homem sobre si mesmo se degrada. Sua autoestima é fortemente abalada, com enorme impacto sobre o imaginário coletivo da época, causando o que ficou conhecido, mais tarde, como a primeira das três feridas narcísicas de Freud [FREUD, 2014].[23]
A segunda ferida narcísica é provocada pela Teoria da Evolução de Darwin [DARWIN, 1959], pois abala a crença do homem como filho de Deus e derruba a ideia, largamente até então aceita, de uma providência divina a guiar todos os detalhes da existência humana. O homem deixa de ser uma criatura especial, à imagem e semelhança do Pai, para ser fruto do acaso, guia da evolução dos demais seres vivos. Com esses dois baques em seu ego, ele se aferra à sua racionalidade, a qual passa a ter seu status ameaçado pelas ideias psicanalíticas de Freud, segundo as quais a consciência é meramente uma parcela de nossas atividades e capacidades psíquicas. O Eu, afirma Freud, “não é nem mesmo senhor de sua própria casa, mas tem de satisfazer-se com parcas notícias do que se passa inconscientemente em sua psique” [FREUD, 2014]. Eis aí a terceira ferida. Como conviver com elas?
A pergunta, agora, é – Para onde vai esse homem, abandonado por Deus e sem a mesma confiança que tinha na razão como responsável pelas decisões mediante as quais pauta sua vida?
Os humanos, incapazes de continuarem se vendo como seres situado entre Deus e os animais, e, do ponto de vista social, imersos agora em uma modernidade líquida [BAUMAN, 2001], não sabem mais quem são. Esse vazio existencial leva, frequentemente, à corrosão do caráter [Sennett, 2005] e, pelo lado esperançoso, faz com que novas utopias surjam. Depois de ponderar sobre o passado evolucionista de nossa espécie é hora de meditar e devanear aonde se quer ir. Três dessas possíveis utopias são criticamente analisadas pelo filósofo francês, Francis Wolff (n. 1950), no livro citado na Ref. [Wolff, 2018], o qual ainda não tive oportunidade de ler, mas separei na pilha de próximas leituras, finda essa história.
- Epílogo
Do prólogo do ensaio, deixei claro ser a emoção o fio condutor da narrativa e procurei ser fiel a esta escolha. Tendo em vista a perspectiva de eventualmente dar continuidade a ele, ou seja, partir para uma reflexão mais detalhada, com maior rigor científico a respeito do tema, é imperativo pautá-la não só na teoria darwiniana da evolução, bem como em suas críticas e limitações. A propósito, comecei a ler o instigante livro do cientista político e editor brasileiro César Benjamin (n. 1950) dedicado a isso [BENJAMIN, 2024] com uma abordagem bem distinta da aqui utilizada, mas com motivações, de fundo, bastante semelhantes. É necessário, igualmente, considerar algumas limitações da própria Paleontologia, e o impacto delas sobre a Teoria de Darwin, assunto também tratado nesta referência. Como nossa história tem início “entre ossos, terra e sonhos”, tais limitações importam e, por isso, reproduzo aqui um trecho do livro de Benjamin [BENJAMIN, 2024, p. 101-102] explicitando uma dessas restrições:
Os estratos geológicos onde há depósitos fósseis significativos são como arquivos que guardam o passado da vida no planeta. Essa informação é parcial, pois só revela as partes duras dos organismos e de forma sempre incompleta. A imperfeição desse registro é tamanha que a quantidade e a importância das informações obtidas dele são quase milagrosas, só comparáveis ao estudo, em filosofia, dos fragmentos deixados pelos pensadores pré-socráticos […].
E continua:
A paleontologia precisa ser complementada com informações vindas da diversidade biológica atual, a partir de disciplinas variadas. Fósseis e organismos vivos só podem ser compreendidos quando estudados conjuntamente.
E como essa restrição, em princípio, impacta a teoria da evolução darwiniana? Eis o ponto de vista desse mesmo autor, de uma perspectiva geral [BENJAMIN, 2024, p. 101-102]:
Há um desacordo importante entre a teoria de Darwin e o registro fóssil, pois este combina estase [estagnação] duradoura e aparição abrupta de novas espécies, sem formas transicionais, mesmo nos períodos em que os ambientes do planeta experimentavam grandes mudanças. Em vez de aparecerem em um contínuo, com transformações mais ou menos uniformes, as espécies aparecem como entidades prontas, completas, estáveis, que depois desaparecem. Tal predominância do binômio estase-extinção é uma anomalia para uma teoria que afirma que a evolução se dá por mudanças graduais.
Tal comentário, sem dúvida, em minha opinião, é corroborado pela evidenciação da existência do Homo naledi. Parecem faltar elos nessa cadeia evolutiva!
Gostaria de fazer uma última ponderação relativamente à soberba do homem contemporâneo de classificar seus antepassados, de remotos tempos, como seres “selvagens” e “atrasados’” Para isso, recorro, mais uma vez, a Lévi-Strauss, pois ele acredita que[24]
A etnologia não é nem uma ciência à parte, nem uma ciência nova; é a forma mais antiga e mais ampla do que designamos pelo nome de humano.
Lévi-Strauss compartilha, além disso, da ideia de que “nenhuma civilização pode pensar em si mesma sem dispor de outras como termo de comparação”[25] e pondera: “a única diferença entre a cultura clássica e a etnográfica diz respeito às dimensões do mundo conhecido nas respectivas épocas”. Nunca havia meditado sobre isso, mas admito, ora, depois de contar essa história do Homo naledi e tentar engendrar paralelos com a do Homo sapiens, compreender perfeitamente a acepção dessas palavras do antropólogo franco-belga. Aprendi, além disso, a reconhecer e respeitar melhor as diferenças da Weltanschauung de culturas tão díspares, uma vez entendido o quanto suas diferenças dependem muito mais da dimensão do mundo acessível ao conhecimento de uma determinada cultura do que propriamente de uma primitividade a ela associada.
Tomei esses pontos como lições ao refletir sobre as implicações das descobertas sobre o Homo naledi na História da Humanidade, naquilo que se convencionou chamar de humano, e no contador de histórias. O primeiro corolário dessa postura, confesso, foi de natureza pessoal e subjetiva. Uma enorme sensação, muito vivaz, de pertencimento, de não estar sozinho, de orgulho de ser humano. Não por estar certo do que, afinal, é “ser” humano, mas por partilhar traços sociais, culturais e civilizatórios com raízes se estendendo e se emaranhando numa escala de tempo muito maior do até então concebido, legado esse que trouxe a Humanidade até aqui, com todos seus prós e contras. O segundo foi adquirir uma visão muito mais abrangente, menos arrogante e mais complacente no tocante à pré-História, na qual o conceito de primitivo ganhou outra acepção.
Enfim, essa história não termina com o tradicional “… e foram felizes para sempre”, mas com muitas interrogações, esperanças e perguntas sem resposta. E, no meu entendimento, nos lega algumas lições a serem aprendidas com humildade. A primeiríssima delas é que nós, somente nós, considerados os mais evoluídos do gênero Homo, somos a única espécie capaz de, deliberadamente, causar sua própria extinção. Logo, só a nós cabe lutar para apagar essa possibilidade dos horizontes de nossa espécie. Seremos capazes de evoluir nesse sentido? Devemos, portanto, construir um futuro do qual nossos filhos possam se orgulhar. O segundo ensinamento é que necessitamos viver o melhor possível para honrar nossos ancestrais com suas culturas e heranças, desde os mais longínquos como, em especial, o Homo naledi, que vem nos obrigando a repensar a definição de humano. Somos seus eternos devedores; a todos do gênero Homo, pelos esforços notáveis, alguns dos quais inimagináveis, que fizeram, permitindo que chegássemos a esse ponto da evolução. Se vamos ter êxito, não sei.
De todo modo, desejo encerrar meu relato compartilhando o prazer experimentado ao contar essa fascinante história e a felicidade de me ver, de várias formas, nela inserido.
Agradecimentos
É um prazer agradecer de público aos amigos Stella Maris Amadei, Roberto Moreira Xavier de Araújo, Alessandra Balbi, Mirian de Carvalho, Ismar de Souza Carvalho, Marcia Chame, Sérgio Cunha, José Ribamar Bessa Freire, Alberto Santoro, João Candido Portinari, José Augusto Rodrigues, José Alexandre da Silva (in memoriam), Felipe Silveira e Henrique Garcia Sobreira, pela generosa paciência em ouvir fragmentos de uma história inacabada, que muito me estimulou, e também pela troca de experiências, ideias e sugestões; por fim, em alguns casos, pela leitura crítica de trechos do manuscrito.
Referências bibliográficas
NIÉSTURJ, M.F. El Origen del Hombre. Moscu: Editorial Mir, tercera edición, 1984. Apresenta uma comparação entre os cérebros de humanos e de símios no Capítulo III, p. 183 e segg.
FOLEY, Robert. Os humanos antes da humanidade: uma perspectiva evolucionista. Tradução de Patrícia Queiroz Carvalho Zimbres. São Paulo: Editora Unesp, 1998, p. 52. Mais especificamente sobre o cérebro e a importância do seu tamanho veja pp. 198-207.
ARMSTRONG, David F. & WILCOX, Sterman E. The Gestual Origin of Language. Oxford: Oxford University Press, 2007.
GOULD, Stephen J. A falsa medida do homem. Tradução de Valter Lellis Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
DE WAAL, Frans. O último abraço da matriarca. Tradução de Pedro Maia. Rio de Janeiro: Zahar, 2021a.
DE WAAL, Frans. Somos inteligentes o bastante para saber quão inteligentes são os animais? Traduzido por Paulo Geiger. Rio de Janeiro: Zahar, 2021b.
LAKATOS, Imre. O falseamento e a metodologia dos programas de pesquisa científica. In: Imre Lakatos & Alan Musgrave (Orgs.). A crítica e o desenvolvimento da Ciência. Tradução de Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix, 1979, p.165.
LAKATOS, Imre. La metodologia de los programas de investigación científica. Madrid: Aliança, 1989, p. 230.
STROSBERG, Eliane. Art and Science. New York: Abbeville Press. 2nd edition, 2013.
CARUSO, Francisco. Arte e Ciência: dois exemplos singulares de aproximação. Vitruvian Cogitationes, Maringá 2, n. 1, p. 14-44, 2021.
CARUSO, Francisco. Arte e Ciência: convergências renascentistas a partir de Giotto. Revista Ensino em Debate 3, e2024018, 2024.
ALBERT, Bruce & KOPENAWA, David. O Espírito da Floresta. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.
CAVERNA DE OSSOS. Documentário dirigido por Mark Mannucci. Parte da série “Explorando o desconhecido”, disponível na Netflix a partir de 2023.
BERGER, Lee et al. Homo naledi, a new species of the genus Homo from the Dinaledi Chamber, South Africa. eLife 4, e09560, 2015.
VAN HOOFF, Jan visits chimpanzee “Mama”, 59 yrs old and very sick. Emotional meeting. <https://www.youtube.com/watch?v=INa-oOAexno>. Acesso em 10 de julho de 2024.
RONEN, A. The oldest burials and their significance. In: S.C. Reynolds; A. Gallagher (Eds.). African Genesis: Perspectives on Hominin Evolution. Cambridge Studies in Biological and Evolutionary Anthropology. Cambridge University Press, pp. 554-570, 2012.
TAYLOR. Berni. Rising Star Cave Engravings – Part I: The Underworld, September 2023. Disponível no site <http://beforeorion.com/homo-naledi-art-at-the-rising-star-cave-in-south-africa/>. Acesso em 7 de julho de 2024. O número de fotografias das gravações nas paredes da caverna divulgadas nesta publicação é bem maior que no documentário.
ENCYCLOPEDIA BRITANNICA (online). Last Updated: Aug 8, 2024. Disponível em <www.britannica.com/science/human-evolution>, acessado em 3 de abril de 2024.
HUBLIN, J.-J. BEN-NCER, A.; BAILEY, S. et al. New fossils from Jebel Irhoud, Morocco and the pan-African origin of Homo sapiens. Nature 546, p. 289–292, 2017.
RICHTER, D.; GRÜN, R.; JOANNES-BOYAU, R. et al. The age of the hominin fossils from Jebel Irhoud, Morocco, and the origins of the Middle Stone Age. Nature 546, p. 293–296, 2017.
CALLAWAY, E. Oldest Homo sapiens fossil claim rewrites our species’ history. Nature (2017), disponível em <https://www.nature.com/articles/nature.2017.22114>. Acesso em 7 de julho de 2024.
WONG, Kate. The Oldest Homo sapiens? Scientific American Magazine 317, n. 3, September 2017, p. 13-14.
ESTEVES, Bernardo. Admirável Novo Mundo: uma história da ocupação humana nas Américas. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.
MARTINÓN-TORRES, María; GARATE, Diego; HERRIES, Andy I.R.; PETRAGLIA, Michael D. No scientific evidence that Homo naledi buried their dead and produced rock art. Journal of Human Evolution, 103464, 2023. <https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0047248423001434>. Available online 10 November 2023.
BLUMENFELD, Remy. How A 15,000-Year-Old Human Bone Could Help You Through The Coronacrisis. Forbes, 2020. Disponível online in: <https://www.forbes.com/sites/remyblumenfeld/2020/03/21/how-a-15000-year-old-human-bone-could-help-you-through-the-coronavirus/?sh=51760da337e9>. Acesso em 15 de julho de 2024.
LASCO, Gideon. Did Margaret Mead Think a Healed Femur Was the Earliest Sign of Civilization? Sapiens – Anthropology Magazine (2022), disponível online in <https://www.sapiens.org/culture/margaret-mead-femur/>. Acesso em 4 de abril de 2024.
BERGER, Lee R. et al. Evidence for deliberate burial of the dead by Homo naledi. <https://elifesciences.org/reviewed-preprints/89106}>, 2023. Link acessado em 24 de agosto de 2024.
MARSHALL, Michael. As descobertas que mudam o que sabemos da importância do tamanho do cérebro para inteligência humana. BBC Future, s/d. <https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgl6ylnm206o#:~:text=Na\%20verdade\%eC\%altera\%C3\%A7\%C3\%B5es\%20do\%20diagrama,do\%20c\%C3\%A9rebro\%20n\%C3\%A3o\%20\%C3\%A9\%20tudo>. Acessado em 26 de junho de 2024.
MARSHALL, Michael. Human intelligence: it’s how your brain is wired rather than size that matters. BBC Future. https://www.bbc.com/future/article/20231204-human-intelligence-its-how-your-brain-is-wired-rather-than-size-that-matters, 2023. Acessado em 26 de junho de 2024.
BACHELARD, Gaston. L’Eau et les Rêves. Paris: Librairie José Corti, 1981, p. 98.
NIETZSCHE, Friedrich. The Will to Power, Edited, with Commentary, by Walter Kaufmann, with Facsimilies of the Original Manuscript. New York: Vintage Books, 1968, p. 822. Disponível online em https://ia803205.us.archive.org/27/items/FriedrichNietzscheTheWillToPower/Friedrich\%20Nietzsche\%20-\%20The\%20Will\%20to\%20Power.pdf. Acesso em 7 de julho de 2024.
GULLAR, Ferreira. Depoimento dado em “A vida não Basta” – trailer, 2014. Disponível em <www.youtube.com/watch?v=zUbU1AFtMmE>. Acesso em 7 de julho de 2024.
BINFORD, Lewis R. Mortuary Practices: Their Study and Their Potential. Memoirs of the Society for American Archaeology, 25, 1971, pp. 6–29. Available at JSTOR, <http://www.jstor.org/stable/25146709>. Accessed 10 July 2024.
ARONSON, Elliot & ARONSON, Joshua. O animal social. Tradução de Marcello Borges. São Paulo: Goya, 2023.
TOMASELLO, Michael. The ultra-social animal. European Journal of Social Psychology 44, p. 187–194, 2014. Disponível em <onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/ejsp.2015>. Acesso em 8 de julho de 2024.
WRANGHAM, Richard W.; JONES, James Holland; LADEN, Greg; PILBEAM, David; CONKLIN-BRITTAIN, NancyLou. The Raw and the Stolen: Cooking and the Ecology of Human Origins. Current Anthropology 40, n. 5, pp. 567-594, 1999.
LEWIS, Roy. Porque almocei meu pai. Tradução de Celso Nogueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Traz uma visão romantizada e bem-humorada sobre esse assunto.
BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. Tradução de Maria Isabel Braga. Lisboa: Estúdios Cor, 1972, p. 33.
BACHELARD, Gaston. La psychanalyse du feu. Paris: Éditions Gallimard, 1949, p. 44 e sgg.
OAKLEY, Kenneth. Man the toolmaker. London: British Museum (Natural History), 1959.
CLARK, Wilfrid Le Gros. Apud Oakley, op. cit., p. 2, 1959.
VYGOTSKY, Lev S. A Formação Social da Mente: O Desenvolvimento dos Processos Superiores. Tradução de José Cipolla Neto, Luis Silveira Menna Barreto e Solange Castro Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
VYGOTSKY, Lev S. El problema del desarrollo de las funciones psíquicas superiores. In: L.S. Vygotsky. Obras Escogidas: Problemas del desarrollo de la psique. Madrid: Visor, 1995, T. III.
BERGER, Lee R.; HAWKS, John; FUENTES, Agustin; VAN ROOYEN, Dirk; TSIKOANE, Mathabela; RAMALEPA, Maropeng; NKWE, Samuel; MOLOPYANE, Keneiloe. 241,000 to 335,000 Years Old Rock Engravings Made by Homo naledi in the Rising Star Cave system, South Africa. <https://www.biorxiv.org/content/10.1101/2023.06.01.543133v1.full.pdf>, 2023. Acessado em 7 de abril de 2024.
HENSHILWOOD, Christopher S.; D’ERRICO, Francesco; WATTS, Ian. Engraved ochres from the Middle Stone Age levels at Blombos Cave, South Africa. Journal of Human Evolution 57, pp. 27-47, 2009.
CASSIRER, Ernst. Antropologia filosófica. Traduzido por Vicente Felix de Queiroz. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1972, p. 349 e sgg.
ARISTOTLE. Politics. Translated by B. Jowett. In: The Complete Work of Aristotle. The revised Oxford translation. Edited by Jonathan Barnes. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, volume 2, pp. 1986-2129, 1985.
LUKÁCS, György. Estética: A peculiaridade do estético, volume 1. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2023, p. 393-424.
GREEN, John. Antropoceno: Notas sobre a Vida na Terra. Tradução de Alexandre Raposo e Ulisses Teixeira. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.
WILSON, Thomas. Prehistoric Art; or the Origin of Art as Manifested in the Works of Prehistoric Man. Whashington: Governement Pronting Office, 1898.
LORBLANCHET, Michael. The origin of Art. Diogenes 54, n. 2, pp. 98-109, 2007.
HERDER, Johann Gottffired. Ensaio sobre a origem da linguagem. Tradução de José M. Justo. Lisboa: Antígona, 1987.
EVERETT, Daniel L. How Language Began. The Story of Humanity’s Greatest Invention. New York: Liveright/Norton, 2017.
ASHWOR, James. Oldest evidence of Homo sapiens in northern Europe discovered. Natural History Museum. First published 31 January 2024 and available in <www.nhm.ac.uk/discover/news/2024/january/oldest-evidence-homo-sapiens-northern-europe-discovered.html>. Acessado em 7 de julho de 2024.
D’ARCY, Patrick. What the mysterious symbols made by early humans can teach us about how we evolved. Available at <https://ideas.ted.com/what-the-mysterious-symbols-made-by-early-humans-can-teach-us-about-how-we-evolved/>, Jun 7, 2017. Accessed July 15, 2024.
VON PETZINGER, Genevieve. The First Signs: Unlocking the Mysteries of the World’s Oldest Symbols. New York: Atria Books, 2017.
FISHER, Steven Roger. A História da Escrita. Tradução de Mima Pinsky. São Paulo: UNESP, 2009.
KOOPS, Matthias. Historical account of the substances which have been used to describe events, and to convey ideas from the earliest date to the invention of paper. London: Jaques & Co., 1801.
CARUSO, Francisco Caruso & XAVIER DE ARAÚJO, Roberto Moreira. O livro, o espaço e a natureza: ensaio sobre a leitura do mundo, as mutações da cultura e do sujeito. São Paulo: Livraria da Física, 2ª edição, 2020.
McMURTRIE, Douglas C. O Livro. Segunda edição, com tradução de Maria Luísa Saavedra Machado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1982.
KELLER, Olivier. Préhistoire de la Géométrie: Premiers éléments d’enquête, premières conclusions. Science et Techniques en Perspective 33, Nantes: Université de Nantes, 1995.
KELLER, Olivier. Questions ethnographiques et mathématiques de la préhistoire. Revue de Synthèse, 4e, 4, oct.-déc. 1998, p. 545-573.
KELLER, Olivier. Éléments pour une préhistoire de la géométrie. L’Anthropologie 105, p. 327-349, 2001.
KELLER, Olivier. Elements of a Prehistory of Geometry. In: Proceedings of HPM2004 & ESU4 – ICME10 Satellite Meeting of the HPM Group: International Study Group on the Relations between the History and Pedagogy of Mathematics & the Fourth European Summer University, History and Epistemology in Mathematics Education, Edited by Fulvia Furinghetti, Sten Kaijer and Constantinos Tzanakis, 2004, p. 82-98. Available at <https://www.mathunion.org/fileadmin/ICMI/docs/HPM2004Proceedings.pdf>, access July 6, 2024.
KELLER, Olivier. La Figure et le monde: Une archéologie de la géométrie. Peuples paysans sans écriture et premières civilisations. Paris: Vuibert, 2006.
HOURUP, Jean. Préhistoire de la Géométrie: Premiers éléments d’enquête, premières conclusions by Olivier Keller. Isis 87, p. 713-714, 1996.
KANT, Immanuel. A Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuel Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª edição, 1989.
STANFORD ENCYCLOPEDIA FOR PHILOSOPHY. Kant’s Philosophy of Mathematics.
August 11, 2001. Available at <https://plato.stanford.edu/entries/kantmathematics/#KanCriMat>, access July 8, 2024.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural dois. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Ubu Editora, 2017.
LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Tradução de Mariano Ferreira. Petrópolis: Editora Vozes, 1982.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 12ª edição, Campinas, SP: Papirus Editora, 2012.
DE CASTRO, Eduardo Viveiro. O pensamento em estado selvagem do pensamento científico. ConCiência, Campinas, 46, janeiro de 2011. Disponível em <http://comciencia.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-76542009000400013&lng=e&nrm=iso#:~:text=O\%20\%22pensamento\%20selvagem\%22\%20n\%C3\%A3o\%20\%C3\%A9,da\%20obten\%C3\%A7\%C3\%A3o\%20de\%20um\%20rendimento.>, acessado em 13 de julho de 2024.
RUBINGER, Marcos Magalhães. Pintura rupestre: algo mais do que arte pré-histórica. Belo Horizonte: Interlivros, 1979.
TESOUROS ARQUEOLÓGICOS 1. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=grzFJ-B73d0>. Acesso em 16 de julho de 2024.
JUNG, Carl G. (Org.). O homem e seus símbolos. Tradução de Maria Lúcia Pinho. Edição especial brasileira, 11ª edição. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1992.
JAFFÉ, Aniela. O simbolismo nas artes plásticas. In: O homem e seus símbolos, op. cit., p. 230-271.
BULCÃO, Marly. Bachelard: a noção de imaginação. Revista Reflexão, Campinas, n. 83/84, p. 11-14, jan./dez., 2003.
PESSANHA, José Américo Motta. Bachelard: as asas da imaginação. In: Gaston Bachelard. O direito de sonhar. Tradução de José Américo Motta Pessanha e outros. São Paulo: Difel, 1986.
PESSÔA, André Vinicius. Gaston Bachelard e a imaginação material e dinâmica. Atas do XI Congresso Internacional da ABRALIC – Tessituras, Interações, Convergências, realizado na USP, São Paulo, de 13 a 17 de julho de 2008. Disponível em <https://abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/044/ANDRE_PESSOA.pdf>. Acesso em 7 de julho de 2024.
DE CARVALHO, Mirian. O que é Gravura: um estudo sobre o trabalho da mão sonhadora. In: Heloísa Pires Ferreira & Maria Luiza Luz Távora (Orgs.). Gravura Brasileira Hoje. Depoimentos. Rio de Janeiro: Sesc, p. 116, 1995.
DAMM, Flávio. Depoimento em um trecho do Programa “Mundo da Fotografia”. In: <https://www.youtube.com/watch?v=_y_4sTu5rs4>, 2007. Acesso em 7 de julho de 2024.
DE ANDRADE, Carlos Drummond. Nova Reunião: 23 livros de poesia. São Paulo: Companhia da Letras, 2015, p. 344-5.
MORRIS, Desmond. O Macaco Nu. São Paulo: Círculo do Livro, 1967.
WOLFF, Francis. Nossa humanidade de Aristóteles às neurociências. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora da UNESP, 2012.
STEVENSON, Leslie; HABERMAN, David I. Dez teorias da natureza humana. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 2005.
DA COSTA, Palmira Fontes. In the intimacy of thought: Darwin’s notebooks on the moral sense of man. Antropologia Portuguesa, 26-27, p. 137-147, 2009-2010.
DARWIN, Charles. Charles Darwin’s Notebooks, 1836-1844. Geology, Transmutation of Species, Metaphysical Enquires. Transcribed and edited by Paul H. Barret, Peter J. Gautrey, Sandra Herbert, David Kohn & Sidney Smith. Cambridge: Cambridge University Press and British Museum (Natural History), 1987. Notebook M: 84e, p. 539.
KUHN, Thomas A Revolução Copernicana: A Astronomia Planetária no Desenvolvimento do Pensamento Ocidental. Tradução de Marília Costa Fontes. Lisboa: Edições 70, 2017.
CARUSO, Francisco& OGURI, Vitor. Física Moderna: Origens Clássicas e Fundamentos Quânticos. 2ª edição. Rio de Janeiro: LTC, 2016.
FREUD, Sigmund. Obras Completas, volume 13. Conferências Introdutórias à Psicanálise (1916-1917), Terceira Parte: Teoria Geral das Neuroses (1917). Tradução de Sergio Tellaroli. Primeira edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 380-381.
DARWIN, Charles. On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life. London: John Murray, 1859. Só a partir da sexta edição a obra teve seu título resumido para apenas A Origem das Espécies. Há uma edição brasileira de luxo, contendo a tradução integral do texto original sem corte, com tradução de Daniel Moreira Miranda, publicada em São Paulo, pela EDIPRO, em 2018.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Traduzido por Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Ed. Record, 10ª edição, 2005.
WOLFF, Francis. Três utopias contemporâneas. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Editora UNESP, 2018.
BENJAMIN, César. Além de Darwin: Ensaio sobre Ciência e Vida. Rio de Janeiro: Contraponto, 2024.
* * * * *
[1] Aspectos biológicos (anatômicos) e comportamentais (culturais), combinados, de uma maneira imbricada e complexa, constituem os elementos principais para compor o perfil definidor do “ser” humano. Entretanto, esses mesmos aspectos, em determinadas circunstâncias, podem tornar esse perfil nebuloso. O termo “humano”, do latim humanus, designa tudo relativo ao Homem. Quando usado na Biologia, mais especificamente na classificação zoológica, diz respeito ao Homo sapiens, espécie considerada sem-par no gênero Homo. Diferencia-se de outros primatas – ditos não humanos – e de qualquer outro membro do reino animal por possuir linguagem complexa, raciocínio abstrato, cultura, religião, ter consciência de si mesmo e capacidade de planejamento a longo prazo. É também capaz de provar sentimentos antagônicos, tais como amor/ódio, bondade/maldade, piedade/crueldade etc. No entanto, parece que os humanos não são os únicos animais a terem algumas dessas aptidões emocionais [DE WAAL, 2021a; 2021b].
[2] Estimou-se, inicialmente, sua origem em cerca de 2 milhões de anos por conta da morfologia, mas análises dos restos, concluídas em 2017, indicam terem os exemplares estudados vivido entre 236 mil e 335 mil anos, em coincidência com o período no qual, acredita-se, o Homo sapiens teria evoluído na África subsaariana.
[3] Isso indica que o Homo sapiens teria aparecido há mais de 100 mil anos de quanto se imaginava. Até então, a maioria dos investigadores situava as origens da nossa espécie na África Oriental, há cerca de 200 mil anos.
[4] Como uma primeira leitura sobre a ocupação do planeta pelos diversos ancestrais, sugiro o Capítulo 2, intitulado “A conquista do globo”, da Ref. [ESTEVES, 2023].
[5] Alguns cientistas da área foram bastante críticos com relação a este trabalho, reclamando da disseminação das conclusões anteriormente à análise do artigo por pares. Apontaram, outrossim, que as pesquisas não atendem certos padrões de qualidade e ainda faltam informações relevantes para conduzirem a certas conclusões [MARSHALL, s/d; 2023].
[6] Com essa conquista, o indivíduo pré-histórico, obviamente, se protege do frio, mas, mais do que isso, começa a trocar experiências e a criar fortes laços sociais com seu grupo, a partir de reunião de vários indivíduos em torno de uma fogueira.
[7] Se a conquista do fogo é uma conquista primitivamente sexual (Bachelard) ou se a perícia de o conservar é de natureza anti-sexual (Freud) é uma discussão apresentada na Monografia Psicanálise da Conquista do Fogo, de David José Gonçalves Ramos, Belo Horizonte: Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, 2014. Disponível em <www.academia.edu/25612881/Psicanálise_da_conquista_do_Fogo>. Acesso em 8 de abril de 2024.
[8] Esse ato, por hipótese, é uma homenagem às habilidades do falecido, o que, no fundo, comprovaria uma interação entre vivos e mortos.
[9] No sentido vygotskiano do termo.
[10] É natural que as descobertas feitas na Caverna Estrela Nascente levem à uma revisão das origens dessa invenção, assim como se questione o quanto ela realmente depende de determinadas expertises cognitivas até então atribuídas apenas a humanos.
[11] A escrita feita com desenhos rudimentares chama-se pictografia; do latim pictus, cujo significado é pintado, e do grego graphé, significando escrito. Essa tentativa de expressão escrita foi a base da escrita cuneiforme e dos hieróglifos.
[12] A escrita ideográfica se constitui em uma representação da linguagem, através do uso de ideogramas ou símbolos que representam ideias. É originalmente atribuída aos sumérios da Mesopotâmia. Exemplos mais conhecidos são os caracteres chineses e japoneses.
[13] Genevieve parece não concordar com a rígida caracterização de que haja uma arte figurativa, baseada em objetos ou entidades encontradas no mundo real, em contraste com uma arte não figurativa, tradicionalmente interpretada como abstrata, no sentido de não haver uma nítida correspondência com a realidade mundana [VON PETZINGER, 2017, p. 160 e segs.]
[14] Para se ter uma ideia, em que se pese a enorme diferença cultural (e temporal), a língua chinesa possui mais de 70 000 ideogramas, embora uma grande maioria deles não seja utilizada hoje. Um estudante chinês, em sua adolescência, precisa ter conhecimento de aproximadamente 3 000 ideogramas.
[15] A menos de novas datações com novas técnicas.
[16] O caso improvável de semelhanças que Lévi-Strauss analisa na Ref. [LÉVI-STRAUSS, 2017] envolve, simultaneamente, a costa noroeste da América do Norte, a China, a Sibéria, a Nova Zelândia, incluindo, quiçá, até a Índia e a Pérsia.
[17] Foi calcado nesse paralelo que mencionei, anteriormente, que os dois caminhos, embora partam de concepções ontológicas distintas, podem levar ao entendimento do desejo/impulso de gravar símbolos no interior de cavernas e, porventura, não são excludentes. Um foca no saber individual, inato; o outro, no coletivo, baseado nas práticas sociais.
[18] Uma outra função admissível dessas imagens seria a de evocar os espíritos dos animais retratados, muitos dos quais representavam ameaça, com os quais os xamãs interagiriam.
[19] Cf. p. xiii da Ref. [PESSANHA, 1986].
[20] Cf. p. xv, Ref. [PESSANHA, 1986].
[21] Ver p. xix da Ref. [PESSANHA, 1986].
[22] A questão crucial da existência de um sentido moral próprio ao ser humano foi tema de interesse do jovem Darwin, registrado, muitas vezes, em seus Notebooks. A este respeito, veja a Ref. [DA COSTA, 2009-2010].
[23] Expressão cunhada pelo médico neurologista, de origem austríaca, criador da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), assim chamadas por ferirem o ego humano.
[24] Cf. p. 285 da Ref. [Strauss, 2017].
[25] Ver p. 286, Ref. [Strauss, 2017].