Giordano Bruno
“Em cada homem, em cada indivíduo, contempla-se um mundo, um universo…”
Giordano Bruno, universo infinito e finitude humana.
No contexto histórico e intelectual que costumamos designar como revolução copernicana, o filósofo Giordano Bruno (1548-1600) oferece argumentos decisivos para a transformação conceitual da cosmologia na Renascença. Suas posições representam uma crítica radical ao pensamento cosmológico aristotélico-ptolomaico, ainda vigente na segunda metade do século XVI. Associada às observações e aos cálculos astronômicos de Ptolomeu e Manílio, a cosmologia de Aristóteles estava, também do ponto de vista conceitual, firmemente ancorada nas ideias da imobilidade e centralidade da terra, da heterogeneidade e da hierarquia entre o mundo sublunar (terrestre) e supralunar (celeste), bem como da esfericidade e da finitude do cosmos. Essa concepção cosmológica havia se estabelecido desde a Antiguidade e se mantido hegemônica durante toda a Idade Média; por um lado, porque fundava-se numa física que se baseava quase que exclusivamente nos dados da observação sensorial – o que justificava em parte os argumentos em favor da imobilidade da terra e da finitude do mundo – e, por outro, também porque coadunava-se perfeitamente com as concepções astronômicas, matemáticas, metafísicas e teológicas antigas e medievais, cuja escatologia assumia a existência de um mundo finito, com um início e um fim. É a partir de uma perspectiva de interpretação metafísica e cosmológica completamente diversa – para a qual convergem múltiplas tradições intelectuais como, dentre outras, a filosofia natural de Lucrécio, a metafísica neoplatônica de Plotino e Pletão, a nova lógica e a arte da memória de Raimundo Lúlio, a metafísica e a matemática de Nicolau de Cusa, bem como as “hipóteses” heliocêntricas de Nicolau Copérnico – que o filósofo Giordano Bruno pode desenvolver suas reflexões sobre a unidade, a infinitude e a eternidade do universo, propondo assim a substituição daquele modelo de mundo fechado pela concepção de um universo infinito.[1]
Desse modo, para a construção de suas reflexões filosóficas e de sua concepção cosmológica, Giordano Bruno realiza um amplo percurso intelectual que tem início com o questionamento radical da ontologia aristotélica e com a crítica aos pressupostos teológicos do cristianismo, cuja exposição aparece de modo brilhante primeiro em seus diálogos italianos, publicados em Londres no ano de 1584, La cena de le Ceneri, De la causa, principio et uno e De l’infinito, universo et mondi (A ceia de Cinzas, A causa, o princípio e o uno e O universo, o infinito e os mundos) e se conclui com a apresentação elaborada de sua ontologia e de sua cosmologia nos escritos latinos, publicados em Frankfurt no ano de 1591, De monade, numero et figura, De triplici minino et mensura e De immenso et innumerabilibus, seu de universo et mundis. É no conjunto desses escritos latinos, também conhecidos como a Trilogia de Frankfurt, mas especialmente em De immenso, que Bruno reforça suas teses em favor da nova cosmologia, que ele já havia esboçado em seus diálogos italianos. Ao escrever os poemas latinos, Bruno realiza aquela que seria na verdade, por vicissitudes da história, a última etapa do seu inacabado percurso filosófico.
Formado pela tradição escolástica, leitor atento de Tomás de Aquino e Alberto Magno, Bruno conhecia muito bem as bases da filosofia aristotélica, mas também conhecia as discussões já seculares que haviam posto em xeque o aristotelismo e que faziam emergir com força as concepções neoplatônicas e herméticas. Num contexto de efervescência e proliferação teórica, como já mostraram os resultados das investigações de numerosos estudiosos da obra bruniana, o filósofo de Nola discute com propriedade também as teorias astronômicas vigentes em sua época, o que pode ser evidenciado não somente em seus escritos, mas também nas referências que faz aos cursos que ministrou sobre o assunto, tratando em especial o De sphera de Sacrobosco.
Em A ceia de Cinzas,[2] por exemplo, ao mencionar o percurso histórico e filosófico que o leva a rejeitar as posições cosmológicas geocêntricas e a assumir as posições heliocêntricas, Giordano Bruno afirma com as seguintes palavras a validade do conhecimento astronômico do seu tempo: “Somos mais velhos e temos mais idade que nossos predecessores, considerando certas questões com as quais nos ocupamos agora. Eudoxo, vivendo logo após o renascimento da astronomia, que supostamente também renasceu com ele, não pôde ter um juízo tão maduro quanto Calipo… Hiparco deveria saber mais que Calipo… É lógico que Menelau… soubesse mais que Hiparco. Vivendo mil e duzentos e dois anos mais tarde, mais deveria ter visto Maomé Aracense. Muito mais viu Copérnico, praticamente em nossos dias…” (2012, p.36). E avaliando particularmente a contribuição do astrônomo polonês, Bruno acrescenta: “Ele [Copérnico] tinha um espírito grande, elaborado, diligente e profundo; um homem que não foi inferior a nenhum dos astrônomos que o precederam, a não ser pelo fato de viver num outro tempo; um homem que, no que diz respeito à capacidade natural de pensar, foi muito superior a Ptolomeu, Hiparco, Eudoxo e a todos aqueles que seguiram os caminhos traçados por eles. Superior por ter-se libertado de alguns falsos pressupostos, para não dizer da cegueira, da filosofia comum e vulgar”. (2012, p. 25). A referência e a avalição à filosofia aristotélica são diretas e negativas. Bem diversa, no entanto, é a apresentação de Copérnico. Ao apresentá-lo como “a aurora daquele que deveria preceder a saída deste Sol da antiga e verdadeira filosofia”, Bruno mostra que o alcance da visão de Copérnico só não foi maior porque, de algum modo, suas concepções ainda permaneciam vinculadas ao pensamento comum e vulgar do aristotelismo.[3]
Único filósofo do século XVI a aderir formal e declaradamente à cosmologia copernicana, Giordano Bruno considera um equívoco a filosofia aristotélica e a teologia cristã que servem de fundamento e de justificação à concepção cosmológica geocêntrica. Por isso, empreende sua tarefa de “reformar os céus”, apresentando-se ele mesmo como “aquele que atravessou o ar, penetrou o céu, descreveu as estrelas, ultrapassou os limites do mundo, fez desaparecer as fantásticas muralhas das primeiras, oitavas, nonas, décimas e outras esferas que se tivessem podido acrescentar pelas descrições de vãos matemáticos e pelo olhar cego de filósofos vulgares”. (2012, p.30). No entanto, sua nova concepção de cosmos necessita não somente de uma nova matemática. Também não pode prescindir de uma nova fundamentação filosófica. Por isso, Bruno realiza seus primeiros movimentos tendo presente uma dupla tarefa: por um lado, opera um exercício de descontrução conceitual, pondo abaixo as bases pseudofilosóficas que mantêm a cosmologia geocêntrica; por outro, lança as novas bases da ontologia sobre a qual pode ser edificada uma nova concepção cosmológica. Seu esforço intelectual se inicia pela refutação do modelo aristotélico-ptolomaico, adotado pelo pensamento escolástico medieval, e avança para a construção de um novo modelo que assume as propostas copernicanas. No entanto, seu movimento não se limita a assumir as ideias copernicanas. Nelas ele não se detém. Quer ir além, pretende superá-las, pois afinal o modelo cosmológico do astrônomo polonês ainda está circunscrito a um universo finito. Nem por isso deixa de considerar as observações, os cálculos e as reflexões copernicanas a aurora que precede o surgimento do sol da filosofia nolana. Por isso, sua atividade inicial enquanto filósofo parece mesmo ser a do cosmólogo, que se dedica a interpretar racionalmente as observações e as descrições do mundo que o cerca. Disso dá provas, quando escreve: “conhecemos tantas estrelas, tantos astros, tantos numes, que são aquelas tantas centenas de milhares que assistem ao ministério e à contemplação do eficiente primeiro, universal, infinito e eterno. […] Conhecemos que não há mais que um céu, uma imensa região etérea, onde esses magníficos lumes mantêm suas próprias distâncias, pela comodidade da participação da vida perpétua. Esses corpos flamejantes são os embaixadores que anunciam a excelência da glória e da majestade de Deus.” (2012, p. 32)
Como é possível perceber, o abandono do geocentrismo por parte de Bruno não tem a ver somente com a adoção e a reafirmação das teses copernicanas; está vinculado também ao desenvolvimento de suas próprias ideias sobre a infinitude do universo. Por outro lado, sua cosmologia está plenamente de acordo com as suas próprias concepções ontológicas e metafísicas, de acordo com as quais vem afirmada a existência de uma substância única, associada a um princípio único que anima todo o universo e que se manifesta de múltiplos modos (na natureza). Essa é a ideia básica da metafísica bruniana apresentada em A causa, o princípio e o uno.[4]
Para Bruno, “ o universo é tudo o que pode ser”, enquanto “uma coisa particular qualquer jamais é tudo o que ela pode ser” (2014, p.121-122). A desproporção entre o universo infinito e a finitude humana começa a ser justificada a partir da relação entre o primeiro princípio, a causa infinita que produz todas as coisas, e a multiplicidade pela qual esse mesmo princípio se manifesta. O cosmos que conhecemos e do qual participamos é, portanto, um todo, uno e infinito.
Apesar de sua crítica violenta às doutrinas aristotélicas e cristãs, Bruno reafirma aqui a validade do princípio da infinitude divina, fazendo confluir para sua cosmologia tanto as concepções copernicanas quanto suas próprias ideias sobre a unidade e a infinitude do universo. Assim, após criticar radicalmente a cosmologia geocêntrica (aristotélico-ptolomaica) e justificar a cosmologia heliocêntrica (copernicana), em Sobre o infinito, o universo e os mundos, Giordano Bruno apresenta uma primeira versão daquele que será o núcleo duro de sua concepção cosmológica baseada na homogeneidade da natureza, na infinitude do universo e na pluralidade dos mundos.[5]
Para realizar seu propósito, também aqui Bruno começa por mostrar como o aristotelismo e a cosmologia geocêntrica estão assentadas sobre bases epistemológicas falsas, na medida em que os sentidos não podem se constituir em princípio de certeza e conhecimento. Por outro lado, como ele mesmo escreve já na introdução desse diálogo, “nenhum dos sentidos nega o infinito, visto que não o podemos negar, pelo fato de não compreendermos o infinito com os sentidos; mas, como os sentidos são compreendidos por ele e a razão vem confirmá-lo, somos obrigados a admiti-lo. Aliás, se considerarmos mais atentamente, os próprios sentidos o põem infinito, porque sempre vemos uma coisa compreendida por outra e jamais perceberemos, nem com os sentidos externos nem com os sentidos internos, uma coisa não compreendida por outra, ou algo parecido” (1972, p. 11). E conclui: “Finalmente, pelo que se passa à nossa vista, cada objeto parece limitar outro objeto: o ar limita as colinas, os montes limitam o ar, e a terra o mar, e, por seu turno, o mar delimita todas as terras; mas, na verdade, nada há, para além do todo, que lhe sirva de limite. Efetivamente, por todo o lado, abre-se às coisas, em toda direção, um espaço sem limites.” (1972, p. 11). Como é possível perceber, trata-se de indicar aqui não somente que a compreensão humana, pela atividade dos sentidos e da razão, pode se acercar do conhecimento do infinito, mas de indicar também que nem os sentidos nem a razão podem negar o universo infinito. Dessa primeira operação resulta a defesa que Bruno fará da razão, agora já não mais aprisionada aos grilhões da filosofia aristotélica e cristã e da cosmologia geocêntrica e finitista.
As teses sobre a infinitude do mundo ganham consistência especialmente no terceiro diálogo de Sobre o infinito, quando Bruno apresenta em detalhes seus argumentos contra a “fantasia tola sobre a forma, as esferas e os diversos céus” e afirma “ser único o céu, que é um espaço geral que abarca os infinitos mundos” (1972, p.14). Depois, seguindo em sua tarefa pedagógica de ilustrar sua proposta, ao discutir com precisão as teorias astronômicas do seu tempo, mostra o equívoco sobre o qual se assentam as explicações cosmológicas do geocentrismo, com seus mais variados movimentos em torno de eixos e deferentes, excêntricas, elípticas e eclípticas… para ao final indicar as consequências funestas que atingem desde os filósofos e matemáticos até os astrólogos, que considera “papagaios aprisionados” saltitando na gaiola conceitual do geocentrismo.
Embora os conceitos da física bruniana ainda estejam impregnados de significado teológico – o que poderia nos levar a aceitar a interpretação de A. Ingegno (1978, p. 100) sobre a prova teológica e a prova física da existência de um mundo infinito –, a ideia de um universo infinito e homogêneo constitui certamente uma ruptura radical tanto com a cosmologia aristotélica quanto com a teologia cristã. Para Bruno o universo tem a mesma composição e obedece às mesmas leis em toda sua infinita extensão temporal e espacial. Cai, portanto, toda “aquela bela ordem e hierarquia da natureza”, consideradas por Bruno “um sonho ingênuo e um gracejo de velhas decrépitas”. (1972, p. 15). Cai, com isso, também toda divisão entre o mundo sublunar e o mundo supralunar, distinção tão difundida pela filosofia tradicional e pelo pensamento escolástico, bem como a correspondente diferença entre mecânica celeste e mecânica terrestre. Assim, no entender de Bruno, no universo infinito as mesmas leis governam o cosmos, a natureza, o homem. Por isso, o próprio homem pode ser compreendido como um mundo no qual se espelha o universo inteiro.
Como bem sintetiza Granada (2007, p. 279), na cosmologia bruniana cada corpo no universo é formado por quatro elementos onipresentes: fogo, ar, água e terra. Esses corpos diferenciam-se entre estrelas (sóis) e planetas (ou cometas) de acordo com sua composição elementar. Desse modo, quando predomina o fogo, temos uma estrela (sol) que brilha de acordo com esse elemento; quando predominam a terra e a água, temos um planeta opaco que brilha somente porque reflete a luz de sua estrela (sol). Além disso, todas as estrelas estão em constante movimento, impelidas por sua própria alma intelectual, por uma força intrínseca, sem que seja necessário qualquer tipo de movente inteligente externo. Como se percebe, essas considerações já não podem mais se coadunar com a cosmologia aristotélico-ptolomaica e fazem mesmo avançar as reflexões brunianas em relação ao modelo copernicano, propondo o rompimento total com a visão geocêntrica de um mundo limitado, fechado e finito.
As teses da infinitude do universo e da pluralidade dos mundos ganham uma elaboração ainda detalhada no poema latino De immenso et innumerabilibus, no qual Bruno retoma a ideia da animação universal, que já havia sido discutida em A causa, o princípio e o uno. Em De immenso, um poema de forte inspiração lucreciana, o Nolano reafirma que a natureza é o princípio vital que anima intrinsecamente todas as coisas; é a potência divina intrínseca que move toda a matéria.[6] Vê-se, portanto, como Bruno articula de modo magistral a construção de sua cosmologia com argumentos metafísicos, ao afirmar que o universo é necessariamente uno, infinito, homogêneo e eterno, pois foi criado por um poder infinito, uma divindade permanente e efetivamente presente em todas as coisas. Desse modo, para Bruno, o universo infinito acaba por coincidir com totalidade do Ser (o Todo-Uno).
Não há dúvida de que a transformação operada pela obra bruniana, considerando especialmente os escritos De la causa, De l’infinito e De immenso, constitui um dos mais ilustrativos casos de mudança conceitual da cosmologia no pensamento ocidental. No entanto, como já se havia antecipado acima, a filosofia nolana não pretende ser unicamente uma redescrição ontológica e cosmológica. Bruno entende que uma de suas mais significativas contribuições filosóficas consistiria em mostrar que suas reflexões sobre a ontologia e a cosmologia têm consequências imediatas tanto para a epistemologia, quanto para a ética e mesmo para a estética. Ou seja, o processo de transformação atinge a todos os âmbitos da reflexão filosófica e muda radicalmente a compreensão em todas as áreas da filosofia. Disso dão prova os outros diálogos italianos, Cabala del cavallo pegaseo [A cabala do cavalo Pégaso], Spaccio de la bestia trionfante [A expulsão da besta triunfante] e De gli eroici furori [Os furores heroicos], também publicados em Londres em 1584 e 1585, bem como seus inúmeros outros escritos latinos. Mas será especialmente em A expulsão da besta triunfante que Bruno apresentará suas reflexões sobre o vínculo entre a cosmologia, a antropologia e a ética.[7]
Cabe, portanto, perguntar agora em que medida essa mudança da concepção cosmológica também pode alterar o modo de compreender a imagem que o homem faz de si mesmo. Teria a grande mudança conceitual operada por Bruno no âmbito da revolução copernicana também realmente modificado a concepção antropológica vigente na Renascença?
Já nas páginas introdutórias do diálogo Sobre o infinito, o universo e os mundos Bruno aponta para um vínculo explícito entre a transformação da cosmologia e a mudança no campo da ética e da filosofia moral. No entender de Bruno, se consideramos a validade das afirmações sobre a infinitude do universo, “não devemos temer que coisa alguma deflua, que nenhum elemento particular se disperse ou caia em verdadeira inanição, ou se espalhe no vácuo […]. Eis a razão do revezar-se das mutações do todo, pelas quais não há mal do qual não se consiga sair, nem bem no qual não incorra, enquanto pelo espaço infinito, devido à perpétua mutação, toda a substância permanece uma e sem alterações” (1972, p. 17). Realizado o percurso de transformação conceitual da ontologia e da cosmologia proposto pela filosofia nolana, pode-se passar agora a conhecer “um mundo em que uma coisa sucede sempre a outra coisa, sem que exista uma força última, profunda, pela qual, como da mão do artífice, irreparavelmente se converta em nada. Não existem fins, termos, margens, muralhas que nos defraudem e roubem a infinita abundância das coisas” (1972, p. 18). As consequências dessa nova filosofia também se farão sentir, portanto, no campo da ética. Por isso, antecipando as teses centrais dos diálogos A expulsão da besta triunfante e Os furores heroicos, acrescenta: “Se estivermos atentos a essa contemplação, nenhum acidente estranho nos afastará por dor ou temor, nem nenhuma fortuna nos distrairá por prazer ou esperança, pelo que conseguiremos a verdadeira via para a verdadeira moralidade, seremos magnânimos, desprezando aquilo que só pensamentos infantis apreciam. Certamente nos tornaremos maiores do que aqueles que o vulgo cego adora, porque seremos os sinceros contempladores da história da natureza, que está escrita em nós mesmos, e metódicos executores das leis divinas, que estão esculpidas no centro do nosso coração.” (1972, p.17). Desse modo, a filosofia nolana nos leva a compreender de outro modo o significado da natureza e o sentido do humano. Com a conquista do conhecimento do universo infinito, sabedores do processo de mutação intrínseco a todas as coisas, passamos a formar uma nova imagem de mundo.
Em A expulsão da besta triunfante, onde afirma lançar “as sementes de sua filosofia moral”, Bruno pretende tirar as consequências da sua nova cosmologia do universo infinito para a âmbito da ética, da moral e da política. Fábula moral inscrita na tradição literária da sátira, esse diálogo relata uma assembleia de deuses que discutem uma reforma celeste na qual os vícios deveriam ser substituídos pelas virtudes. Presidido por Júpiter, o conselho dos deuses examina cuidadosamente as quarenta e oito constelações que constituem a cosmologia aristotélica-ptolomaica atribuindo-lhes vícios e virtudes. Embora o cenário permaneça fortemente influenciado pela visão tradicional do cosmos, toda a ação se passa como sobre o pano de fundo da transformação conceitual em parte já realizada (Sobre o infinito) e em parte ainda em curso (De immenso). O tom jocoso e satírico da reunião do conselho de deuses não deixa dúvida quanto ao significado crítico que cada intervenção adquire no conjunto do diálogo.
Aqui Bruno discute um dos temas mais importantes da ontologia clássica, a relação entre a permanência e a mutação. Sua tese básica é de que “o princípio, o meio e o fim, o nascimento, o aumento e a perfeição de tudo aquilo que vemos resultam de contrários, pelos contrários, nos contrários, para os contrários. E onde há contrariedade, há ação, há reação, há movimento, há diversidade, há pluralidade, há ordem, há graus, há sucessão, há vicissitude” (Spaccio, p. 573). Agora não se trata, portanto, de considerar somente uma perspectiva cosmológica, mas de extrair as consequências das reflexões filosóficas já apresentadas anteriormente para os campos da epistemologia, da ética e da estética.
Assim, no decurso da conversação é a vida humana que assume o primeiro plano do debate. Nas palavras de Sofia, Bruno afirma: “Vemos que todo deleite não consiste senão em certa passagem, caminho e movimento. Dado que fastidioso e triste é o estado da fome, desagradável e pesado é o estado da saciedade, mas o que deleita é o movimento de um para outro. O estado do ardor venéreo atormenta, o estado do desejo saciado entristece, mas o que satisfaz é a passagem de um estado a outro. Em nenhuma situação presente encontra-se prazer, se o passado não se tornou fastidioso … A quem esteve sentado ou recostado, agrada e convém o caminhar; e quem andou a pé encontra alívio ao sentar-se. Sente prazer no campo quem ficou muito tempo em casa; anseia pelo quarto quem enjoou do campo. Repetir um alimento, ainda que saboroso, no fim causa náusea. Tanto é assim que o que traz satisfação é a mutação de um contrário a outro através das coisas que deles participam, o movimento de um contrário a outro através de seus intermediários; e, finalmente, vemos tamanha familiaridade entre um contrário e outro que um convém mais ao outro do que o semelhante ao semelhante.” (Spaccio, p. 571-572). A diferença não pode residir, portanto, na repetição, nem depender dela. Fosse assim, a própria ação humana estaria limitada e não poderia vivenciar a liberdade.
As consequências da filosofia que assume o movimento da contradição e da mutação também são evidentes para o campo da ética. De acordo com o discurso de Sofia, “não há justiça senão onde há erro, a concórdia não se realiza senão onde há contrariedade; o esférico não descansa no esférico, pois se tocam em um ponto, mas o côncavo repousa no convexo; e moralmente o soberbo não pode conviver com o soberbo, o pobre com o pobre, o avarento com o avarento, mas um se compraz com o humilde, outro com o rico, este com o esplêndido. Assim, considerando física, matemática e moralmente vê-se que não foi pouco o que descobriu aquele filósofo que chegou ao princípio da coincidência dos contrários.” (Spaccio, p. 573). A estrutura da ação humana se define assim pela oposicionalidade, característica que possibilita a identidade do todo.
Como se pode perceber, opera aqui a influência daquela tese fundamental para o pensamento neoplatônico que permite conciliar a pluralidade e a mutabilidade de todas as coisas com a unidade da natureza infinita e de que o universo se reflete em todas as coisas. É a partir desse pressuposto que Giordano Bruno poderá estabelecer os estreitos vínculos que, como resultado de um jogo de oposições entre vícios e virtudes, reúnem a natureza e a moralidade. Isso indica claramente que a filosofia bruniana é construída a partir de uma pressuposição sobre uma íntima conexão entre cosmologia e filosofia moral, entre natureza e ética. Nesse sentido, opera também no campo da ética e da moral aquele mesmo princípio que havia permitido a Bruno superar os limites da cosmologia aristotélico-ptolomaica e estabelecer a tese da infinitude do universo. Agora também os limites da finitude humana podem ser rompidos pelo encontro no infinito.
Referências Bibliográficas
BRUNO, Giordano. Opere complete/Œuvres completes (Yves Hersant e Nuccio Ordine), Paris: Les Belles Lettres, 1993-1999 (7 vols.)
___. Sobre o infinito, o universo e os mundos. Trad.de Helda Barraco e Nestor Deola, São Paulo: Abril Cultural, 1972 (Os pensadores).
___. Expulsión de la bestia triunfante. Trad., int. e notas de Miguel A. Granada, Madrid: Alianza Editorial, 1989.
___. A ceia de Cinzas. Trad. de Luiz Carlos Bombassaro, Caxias do Sul: Educs, 2012.
___. A causa, o princípio e o uno. Trad. de Luiz Carlos Bombassaro, Caxias do Sul: Educs, 2014.
GRANADA, Miguel A. ‘New visions of the cosmos’. In: HANKINS, James (Ed.). The Cambridge Companion to Renaissance Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 170-286.
INGEGNO, Alfonso. Cosmologia e filosofia nel pensiero di Giordano Bruno. Firenze: La Nuova Italia, 1978.
MONDOLFO, Rodolfo. Figuras e ideias da Filosofia da Renascença. São Paulo: Mestre Jou, 1967.
PAPI, Fulvio. Antropologia e civiltà nel pensiero di Giordano Bruno. Firenze, La nuova Italia, 1968.
ORDINE, Nuccio. O umbral da sombra. Literatura, filosofia e pintura em Giordano Bruno. São Paulo: Perspectiva, 2006.
[1] Uma extensa bibliografia sobre o tema pode ser encontrada nas investigações filosóficas e historiográficas de Alexander Koyré, Miguel A. Granada, Nuccio Ordine, Newton Bignotto, Wolfgang Neuser e Pietro Omodeo, dentre outros.
[2] Giordano Bruno, A ceia de Cinzas. Trad. de Luiz Carlos Bombassaro, Caxias do Sul, Educs, 2012.
[3] Uma análise da avaliação bruniana sobre a contribuição de Copérnico encontra-se em A. Ingegno, Cosmologia e filosofia nel pensiero di Giordano Bruno, Firenze: La Nuova Italia, 1978 (especialmente no cap. II, Copernico come segno divino, p. 26-63.
[4] Giordano Bruno, A causa, o princípio e o uno. Trad. de Luiz Carlos Bombassaro, Caxias do Sul: Educs, 2014.
[5] Giordano Bruno, Sobre o infinito, o universo e os mundos. Trad. de Helda Barraco e Nestor Deola. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
[6] De immenso, I, 2, p. 193; I, 1, p. 307.
[7] Ver especialmente as interpretações de Miguel A. Granada (na introdução de Expulsión de la bestia triunfante, Madrid, Alianza, 1989, p. 11-78) e Fúlvio Papi (em Antropologia e civiltà nel pensiero di Giordano Bruno, Firenze, 1968.