O infinito e as formas físicas
Quando perguntado sobre se preferia ter nascido ou não, Anaxágoras respondeu, sem hesitar, que preferia ter tido essa experiência de vida. E por quê? “Para poder admirar o cosmos.”
Preâmbulo
Em uma série de palestras, organizada ao longo de 2014 pelos professores Ana Luisa Nobre e Antonio Sena no Departamento de Arquitetura da PUC/RJ e chamada Limites Incertos, desenvolveram-se seis temas:
- Crítica
- Topologia
- Contemporaneidade
- Infinito
- Diagrama
- Futuro
Quando recebi o convite para tratar da proposta de número 4, eu estava lendo um texto que, por sincronicidade, consistia igualmente de seis palestras. Italo Calvino, em seu belíssimo livro Lezione americane (seis propostas para o próximo milênio), escolheu seis temas que desenvolveu e que constituiriam suas Charles Eliot Norton Poetry Lectures a serem apresentadas sob forma de lições na Universidade de Harvard no ano acadêmico de 1985-1986, o que nunca aconteceu. Essas lições incluíam
- Leveza
- Rapidez
- Exatidão
- Visibilidade
- Multiplicidade
- Consistência
Não tenho nenhuma informação que me permita imaginar alguma conexão entre as conferências Limites Incertos e as lições americanas de Calvino. Ao contrário, parece-me que esses seis temas foram escolhidos porque cada um deles possui um alcance tal que permite uma ruptura de visões convencionais e, assim, a possibilidade de produzir uma abertura que conduz naturalmente a aceitar que suas fronteiras não estão rigidamente pré-estabelecidas. Isso lhes garante uma unidade que nos envolve e que está associada a cada um desses temas pela ausência de limites rigorosos, precisos, definitivos, certos.
No entanto, curiosamente, me pareceu por breve momento que cada uma dessas nossas conferências pudesse se relacionar às Lições Americanas. Não tenho a pretensão de propor essas conexões às demais conferências, mas a proposta 4, o tema que me foi sugerido apresentar, o infinito, parece sim ter uma representação nas propostas de Calvino. Assim, espero mostrar ao longo desta palestra que na questão infinito encontramos a necessidade da exatidão no rigor matemático; a visibilidade, na observação da totalidade do que existe além de qualquer horizonte limitador; a multiplicidade, nas incontáveis formas que constrangem de referir ao mundo como uno; a consistência, na forma de inserir o infinito no corpo completo das matemáticas e de suas leis e formas para delas não se afastar nem colidir; a rapidez, nos modos pelos quais o infinito penetra todo discurso aberto sobre o mundo; e, finalmente, a mais importante das lições de Calvino, a leveza, pois o peso dessa quantidade de coisas e eventos reais e imaginários – descritos com conceitos que requerem uma infinidade de representações e intenções – deve ser diminuído para que a carga da existência não retire o encantamento e a beleza da poesia que a investigação do universo, de todos os universos, deve conter.
Introdução
Este texto estava destinado a ser lido durante minha palestra. Entendi em um primeiro momento, logo após ter aceitado o convite de participar desse Seminário, que sim, é possível comentar sobre o infinito em uma aula, embora isso reduza e muito sua análise, como também não permite colocar as questões que eu gostaria de apresentar a meus colegas. Porque, creio eu, é precisamente para adotarmos essa atitude de diálogo que fomos reunidos, para realizarmos uma discussão aberta, propor perguntas e procurar respostas que podem ser encontradas de diversos modos e confrontá-las harmoniosamente, mesmo quando se trata de posições que se qualificam como opostas e irreconciliáveis. Assim, mesmo que nosso trabalho tenha que ser provisório e fragmentado, proponho começar nossa caminhada pela enumeração das questões a que uma análise do infinito nos conduz.
As várias faces do infinito
Minha formação de cientista, me induz a tratar a questão do infinito sob o olhar de um físico, de um matemático e de um cosmólogo. No entanto, fui levado a aceitar que escutássemos outras análises e perseguíssemos outros caminhos, mesmo que eu não me sinta totalmente à vontade neles. Não consegui evitar que algumas questões fora dessa análise técnica se infiltrassem e me levassem para esses territórios. Devo confessar, no entanto, que eu poderia ter resistido a essa tentação, mas alguma coisa me impediu induzindo-me a percorrer esse desvio. Aproveito então este momento para sintetizar alguns desses diferentes modos que podemos usar para nos aproximar do infinito, mesmo sabendo a priori que nunca o alcançaremos, que faltará sempre um passo para alcançarmos a compreensão que nos satisfaça. E por que isso? É o que tentarei esclarecer.
Em um primeiro momento, distinguimos alguns territórios naturais para esse exame: a matemática e a lógica, a física e a cosmologia. Há uma outra vertente, de caráter psicológico e, enfim, a investigação filosófica e os filósofos do infinito. Uma tal análise deveria exibir as variadas formas de aparição do infinito envolvendo uma multiplicidade de tópicos dentre os quais podemos particularizar os seguintes:
- A aparição fantasmagórica, imprecisa, do infinito no começo da ciência moderna;
- O infinito, o universo e os mundos: Giordano Bruno;
- Deus e o infinito;
- Sísifo e a eternidade da angústia;
- Um só infinito? A entrada em cena de um visionário maravilhoso. Georg Cantor e os transfinitos;
- O horror metafísico do infinito na física do século XX;
- Exaltação do zero: a produção do que existe a partir do que não existe nas lições da física do século XX (mundo quântico e gravitação);
- Sobre o infinito, o que diz a cosmologia?
- Catástrofes cósmicas;
- Caminhos que não levam a lugar algum;
- Bifurcação no cosmos: como construir somente um cosmos?
- U-topia e U-chronos (fora do espaço e fora do tempo)
- A representação infinita.
Eu me limitarei aqui a visitar alguns desses tópicos. Para começar nossa caminhada escolhi recorrer a Giordano Bruno. Eu poderia procurar muito lá atrás, em Euclides, nos filósofos gregos que refletiram sobre o uno e o múltiplo e consequentemente tiveram que enfrentar o zero e o infinito. No entanto, minha escolha se deu porque Bruno encara fortemente o destino trágico que permeia o pensador que ousa ser diferente, pensar contra o establishment, se opor ao que a sociedade dos sábios consagrou como verdade. E porque Bruno simboliza esse caminhar inevitável para o fogo que consome.
Infinitos mundos
Giordano Bruno, no século XVI, antes de ser queimado vivo no Campo dei Fiori em Roma se dedicava, entre outras coisas, a entender como conciliar a multiplicidade dos infinitos mundos que constituía uma das bases de sua cosmogonia e a unidade de Deus. Em seu texto O infinito, o universo e os mundos encontramos um longo discurso envolvendo duas afirmativas: o homem é finito. Deus é infinito.
Da aceitação da infinitude espacial conclui que o universo é eterno e, a partir daí, baseando-se nessas certezas, encontra o estofo com que constrói sua religiosidade. Identifica Deus com esse universo múltiplo e institui seu discurso de exaltação divina usando as propriedades do infinito, dando origem ao estabelecimento de um modo bem distante do sistema religioso então no poder e que acarretará sua desgraça.
Bertrand Levergeois, seu tradutor para o francês, argumenta que Bruno não sonhou esses outros mundos, não os colocou como uma forma de proposição fantasiosa, como uma ficção científica, mas sim apresentou-os como consequência de um pensamento racional a partir de premissas e conhecimentos que tinha à sua disposição e cujo discurso obtinha validade graças à sua coerência interna. Giordano Bruno não se deixava levar como alguns de seus contemporâneos a apoiar-se em propostas fantasiosas para reformar a sociedade – como encontramos em Thomas More e sua Utopia (1518), A Nova Atlântida de Francis Bacon (1620) ou A cidade do Sol de Campanella (1623).
O projeto de Bruno não se restringe a propostas de mudanças, pequenas ou grandes, que poderiam ser produzidas na sociedade, provocando o aparecimento de um novo homem. Ao inverter o procedimento convencional, a ambição de Giordano Bruno vai muito além: ele propõe, ao reformar o céu, gerar uma nova visão do mundo e consequentemente adaptar o destino humano à sua cosmologia. E somente então, a partir dessa grandiosa reforma, tomando como ponto de partida uma visão da multiplicidade do que existe, apoiando-se na certeza apriorística e para ele evidente de uma profunda conexão entre a finitude do mundo terrestre e o Cosmos infinito, só então seguiria daí uma natural, consequente e profunda reforma da sociedade. São a abertura e o conhecimento dos mundos infinitos que permitirão que compreendamos a nós mesmos. Levergeois conclui afirmando que o caminho escolhido por Bruno permite imaginar que para ele é a lógica do infinito que determina, em última análise, toda a história social. Ao invés de construir um cosmos a partir da racionalidade da ordem social que lhe era oferecida por seus pares, inverte os fundamentos desse modo, preferindo atribuir ao universo a imagem a ser perseguida na estruturação da sociedade humana. Posto manu militari a decidir sobre seus propósitos terrestres e seu futuro, sendo-lhe imposta a questão da escolha entre render-se aos processos que a cidade lhe cobra com ênfase na tragédia da finitude da vida ou no esplendor do cosmos infinito, Giordano Bruno não hesita. E como prêmio, como se lhe fosse dado servir como exemplo para aqueles que não comungam da ordem exercida pelo poder do Estado, foi queimado vivo em 1600.
Finitude do homem, infinitude divina
A evidência da finitude humana e a hipótese da infinitude de Deus foram reconhecidas como verdades estabelecidas ao longo da história da humanidade desde seus primórdios. Uma tal relação, simples, ingênua mesmo, produziu-me intuitivamente uma associação – que ao primeiro momento me pareceu estranha, esdrúxula – que desembocou em uma analogia inusitada entre arcaicos mitos e algumas propostas recentes da ciência. Fui levado, nessa divagação, a imaginar que seria possível associar o destino de Sísifo, herói grego, ao matemático Georg Cantor a partir de certezas matemáticas por ele formuladas no século XIX. Como essa conexão me apareceu? E como dar sentido a essa relação? É o que farei no texto que segue. Antes, porém, alguns comentários preparatórios se fazem necessários.
Tratar a questão do infinito me fez pensar nos meandros pelos quais o sentimento de finitude humana é entendido como um problema. É a partir desse ponto de análise, centrado em uma preocupação humana convencional e cotidiana que posso começar a investigar a seriedade da solução que levou à necessidade de introduzir essa aparição, o infinito.
Não quero tocar a questão do horror gerado pela angústia da finitude da vida. Essa não é minha função. Deixo essa tarefa para meus colegas filósofos e psicólogos que podem cuidar desse tema com propriedade, como Kierkegaard e outros, desesperados com essa finitude. Não posso me furtar, no entanto, a comentar mesmo que brevemente essa questão que identifico como associada ao sentimento trágico da existência que percorre nossa civilização (como descrito por Sartre e outros), mesmo se me limito às questões que a ciência colocou a esse respeito.
Vivemos um modo finito. Para nos livrar dessa limitação, avançamos sobre nossos desejos e produzimos o infinito. A aceitação do infinito transforma essa angústia e expande os caminhos por onde procurar o significado da existência.
Esse discurso me conduz para um território que se assemelha mais a um labirinto do que a uma estrada a ser seguida, mesmo que ela não me conduza ao imprevisível, mas sim a uma angústia. Não é esse meu intuito aqui. Não pretendo situar minha análise no centro de uma discussão existencial, mas sim enumerar umas poucas propostas que construímos para dar sentido a essa estrada que não termina. Para isso organizei uma lista das questões que a análise do infinito em um contexto científico produziu. Vamos então começar com um comentário envolvendo um mito grego e um matemático alemão do final do século XIX.
Sísifo e a eternidade da angústia
Talvez uma das imagens mais dramáticas da angústia associada ao sentimento da eternidade seja o castigo a que Sísifo foi submetido por sua ofensa aos deuses gregos. Ele deveria arrastar uma pedra do sopé até o alto de uma montanha e ali chegando, deixá-la rolar montanha abaixo, para em seguida conduzi-la novamente ao alto, deixá-la rolar novamente e assim sucessiva e eternamente. Segundo Camus, os deuses haviam pensado, com alguma razão, que não existe castigo mais terrível do que um trabalho inútil e sem esperança.
Essa sequência infindável de uma ação inútil é, sem dúvida, de um trágico terrível. E, no entanto, esse esforço continuo, esse castigo que requer um trabalho físico superior e que impõe um desgaste formidável do corpo, seria pequeno, menor mesmo, se sua ênfase se limitasse ao corpóreo. O destino de Sísifo só é verdadeiramente trágico ao compreendermos que associado ao castigo de seu corpo se encontra um não acabar mais de sua consciência. É essa infinitude consciente que lhe dá seu caráter dramático e infeliz.
Mas nós, humanos, não vivemos no encantamento dos mitos. Para interromper esse destino e encerrar o castigo, o homem encontrou a morte. Essa ruptura de uma sequência única e pessoal, intransferível, que amedronta e encanta, permite explicitar que afinal a eternidade nada mais é do que uma expressão vazia e sem sentido, que amedronta e persegue. Para esvaziá-la de seu mal-entendido existencial tentamos domá-la pela razão e, isso aceito, não parece existir forma mais eficiente para isso do que controlá-la pelos aparelhos impessoais ofertados pela lógica.
Sim, fizemos isso. E mais até, pois os matemáticos não se limitaram a produzir uma forma racional para pensar a noção de infinito a partir da teoria dos conjuntos, foram bem além: produziram uma infinidade de infinitos!
A proteção máxima ou Cantor, esse Sísifo moderno
Assim como os antigos, mergulhados em um modo místico, identificavam o infinito como a qualidade que permite definir a grandeza divina por excelência, podemos também, sem incorrermos em erros ou desvios, reconhecer uma outra vertente, de natureza psicológica, que se insere insistentemente no imaginário coletivo associada à noção de infinito.
Assim como limita, o infinito concede a máxima proteção e controle. O domínio que ele cerca e que transforma uma fronteira de passagem em portas intransponíveis de uma prisão não pode ser penetrado por invasores de fora, como também não permite dali sair. A analogia com nosso corpo é evidente, mas pode ser mais do que isso: se exploramos essa conotação linguística, indo além da superficialidade de uma metáfora, acabamos por penetrar em uma dimensão nova e construir uma ponte entre a alma humana e uma questão que aparece ao primeiro momento de natureza científica e impessoal, típica de sua pertinência ao território da matemática ou da física.
Há na verdade uma dupla função: o infinito protege e castra, como todo limite que não pode ser ultrapassado. Mas se trata de uma ilusão, como um tigre de papel, não é real, não está ali como um verdadeiro animal a defender seu território. Trata-se de uma invenção, da produção de uma imagem, nada mais do que isso. O infinito assim pensado deve ser temido ou desejado?
Afinal, estamos em face de uma vertente psicológica (devemos procurar proteção e esquecer o mundo do lado de lá dessa fronteira de muro infinito?) ou de uma postura lógica (consequência do estabelecimento rigoroso de uma razão matemática e de regras não autocontraditórias completas?) ou, ainda, se trata de imposição que a natureza, os fenômenos do mundo que a ciência observacional detecta e horroriza os cientistas com a possibilidade de situações limites que envolveriam valores infinitos de forças a requerer uma alteração na descrição desses processos ou a limitar o alcance da observação – de uma vez para sempre?
Essa proteção que os lógicos organizaram ao desenvolverem o conceito de infinito permite que a angústia do além, do inalcançável, possa ser gerida. Quando ao final do século XIX essa proteção já se estabelecera formalmente na razão matemática, quando a noção de infinito ocupava já um lugar convencional na ciência, eis que chega Cantor que produz uma reforma profunda e destrói essa paz.
E fez-se então de novo o desespero com Cantor. Não porque ele negou o infinito e nos expôs novamente a um território sem limites, sem proteção absoluta, mas sim porque ele alargou desmesuradamente essa função na formação de vários infinitos, multiplicando seu alcance a um nível jamais visto e que uma vez mais anuncia a chegada de uma angústia cósmica, desta vez a mais absoluta. Muito além da figura de um deus com poder infinito, a matemática reconheceu que a representação dos poderes envolvendo processos de intensidade infinita e que foram tradicionalmente associados a uma função divina podem ser menores, bem menores, infinitamente menores do que novos e múltiplos infinitos que a razão, pelas mãos de Cantor, conseguiu produzir. Como consequência natural, essa estrutura formal que passou a permitir realizar operações com esses infinitos gerados por Cantor produziu no imaginário transcendental a diminuição da função do deus infinito que até então pairava absoluto sobre o mundo.
O matemático Georg Cantor, esse Sísifo dos tempos modernos, produziu uma reforma na natureza jamais vista. Ele mostrou, pelos caminhos da razão, como essa qualidade infinita que havia sido associada aos deuses pode ser diminuída, exibindo o modo pelo qual podemos ir muito além dessa infinitude graças à criação de distintos infinitos, em verdade de um número ilimitado de infinitos. Reduziu assim a visão tradicional de infinito pela qual havia-se concedido aos deuses uma disponibilidade espaço-temporal sem limite, posto que poder-se-ia ir muito além desse “simples infinito de primeira ordem” do qual o pensamento religioso se apoderara. A novidade da constituição de um imaginário capaz de lidar e gerenciar inumeráveis configurações múltiplas sem limite possível permitiu pensá-las muito além da eternidade divina, para além de qualquer ação infinita até então organizada.
Ao associar a infinitude do mundo à morada de deus, os antigos aceitavam que essa extensão não requer um corpo, mas se alimenta da ideia de que a multiplicidade de coisas e processos que é identificada ao uno representa a estrutura da divindade. Cantor transformou essa situação que permanecera imutável por milhares de anos no imaginário coletivo.
Roubar a formação do infinito, uma prerrogativa exclusiva dos deuses, torna Cantor o Sísifo dos tempos modernos? Essa ousadia de desafiar a grandiosidade divina merece igualmente o castigo eterno dos deuses? Afinal, esse trabalho inútil e sem esperança – a produção dessa multiplicidade de infinitos – modifica e amplia a grandiosidade de nossa reflexão sobre isso e aquilo ou provoca uma nova angústia face à nossa finitude?
Deveríamos aceitar que aquele – nós – que produz esses mundos infinitos é superior a seu destino limitado e trágico e não precisa se esconder por reconhecer que esse caminho não requer conceder nem mesmo propor um sentido à existência?
Sísifo rouba aos deuses e os ofende. Na tradição, a finitude humana se confronta com a infinitude da morada divina. Ao mostrar que existe mais de um infinito, exige-se dos deuses que sejam transferidos para outros mundos, para infinitos maiores. Essa ofensa de Cantor poderia ser resolvida pela saída divina para infinitos maiores ou de modo definitivo, empurrando os deuses para um novo imaginário absoluto: o maior dos infinitos. Assim, atingido aquele espaço mais abrangente, alcançável somente por eles, pelos deuses, continuaria a ser possível açambarcar tudo que existe e impor sua presença embebido em uma totalidade maior. Mas instala-se aqui precisamente a maior das crises ao perguntarmos a Cantor sobre a estrutura do maior-dos-infinitos e, em um segundo momento, em como alcançá-lo. E, finalmente, a mais terrível das questões: existe verdadeiramente um tal incomensurável infinito que possa ser apontado como o maior-dos-infinitos?
Cantor nos surpreende uma vez mais ao responder com um imenso não! a essa questão, empreendendo assim um trabalho gigantesco que o transforma no maior desafiante dos deuses, reduzindo o ato simbólico de Sísifo por sua ofensa aos deuses contada pelos mitos, como nada mais do que uma pequena, uma quase infantil transgressão. Resta enfim a tarefa individual e angustiante de decidir se a Cantor – a nós? – deveria ser aplicada a mesma sorte de Sísifo.
É preciso primeiro esclarecer uma questão e precisar o que fez realmente Cantor. Que sentido dar a essa multiplicidade de infinitos que ele produziu? Sob qual manto simbólico devemos situar esse caçador de infinitos, esse construtor de estruturas inesperadas que contêm mais coisas do que a totalidade das coisas do mundo? Tratam-se somente de ilusões forjadas em um território distinto onde se debatem verdades matemáticas, distantes de nosso mundo? E qual a alternativa àquela pergunta anterior que permitiria reconstruir o poder dos deuses de dominar e controlar o mundo apoderando-se do maior-dos-infinitos? Antes de decretar seu destino simbólico devemos entender um pouco o que o matemático Cantor realizou.
Sobre o infinito: o que diz a matemática e a lógica?
Georg Cantor alterou tão profundamente a questão do infinito e de um modo tão completo que eu ousaria dizer que essa tenha sido a proposta mais estranha e vertiginosa que jamais um matemático ousou fazer. E mais, de um modo tão simples – característico das ideias fundamentais – que podemos discursar sobre ela até mesmo sem que seja indispensável penetrar nos formalismos matemáticos exotéricos com que só uns poucos – aqueles que se dedicam ao exercício dessa ciência – sabem lidar.
Vamos visitar essas ideias de Cantor e deter nosso exame em três questões:
- Existe um só infinito?
- Existe uma hierarquia desses diferentes infinitos?
- Existe um infinito maior do que todos os outros?
A teoria matemática dos conjuntos é certamente o instrumento mais adequado para entendermos a noção de infinito na matemática moderna. Um conjunto M contém elementos {a, b, c,…}. Podemos contar a quantidade desses elementos de M fazendo uma contagem um a um e associando a cada elemento de M um número. Por exemplo, o conjunto {a, b, c} possui três elementos.
Com esse conjunto M de três elementos podemos fazer vários outros conjuntos a partir de seus subconjuntos. Assim, o conjunto N = {a, b} é um subconjunto próprio de M pois todos os elementos de N são também elementos de M. Descobrimos assim, até mesmo por contagem e construção direta, que existem oito subconjuntos que podem ser criados a partir de M. Em verdade, mostra-se que se um conjunto possui n elementos, então podem ser construídos subconjuntos. No nosso caso, n=3, então podemos construir aqueles oito que comentei acima. O notável é que os matemáticos mostraram que o número de subconjuntos é sempre maior que o número de elementos do conjunto. Surge então a pergunta: e quando o número de elementos do conjunto for infinito? Uma vez mais os matemáticos espantam o senso comum ao mostrar que é sempre maior que n mesmo que n seja infinito!
Mas isso requer antes que esclareçamos como decidir que um dado conjunto tenha um número infinito de elementos sem que sejamos obrigados à impossível tarefa de contá-los. Um método bastante simples e eficiente consiste em utilizar o mapeamento de um conjunto em outro. Suponhamos dois conjuntos A= {a, b, c} e B = {m, n, k}. Façamos uma correspondência arbitrária entre A e B de tal modo que a cada elemento de A corresponda um e somente um qualquer elemento de B. Assim, por exemplo associamos
a→m
b→k
c→n.
Vemos que todos os elementos dos dois conjuntos estão relacionados, isto é, não sobra nenhum elemento nem de A nem de B ao fazermos essa aplicação entre os dois conjuntos. Dizemos assim que A e B têm o mesmo número de elementos.
De outro modo, os conjuntos A = {a, b, c} e C= {m, n} não possuem o mesmo número de elementos e podemos induzir que o conjunto A possui mais elementos do que o conjunto C.
Pois bem, consideremos agora dois conjuntos especiais bem conhecidos:
O conjunto dos números inteiros
N= {1, 2, 3, 4, 5, …}
e o conjunto dos números pares
P= {2, 4, 6, 8, 10, …}
Façamos a mesma operação de mapeamento que construímos anteriormente e a cada número inteiro do conjunto N façamos corresponder o número par correspondente de P. Assim, temos
1→ 2
2→ 4
3→ 6
4→ 8
5→ 10
E assim sucessivamente. Podemos induzir que todo elemento de N terá um elemento correspondente no conjunto dos pares P. E, vice-versa, todo elemento de P terá um correspondente em N. Concluímos assim, pelo que definimos anteriormente, que os dois conjuntos N e P possuem o mesmo número de elementos. Note, entretanto, que o conjunto P é um subconjunto próprio de N, pois todos os elementos de P estão contidos em N mas nem todos os elementos de N estão contidos em P.
Ou seja, a operação de mapeamento permitiu mostrar que é possível existir um conjunto que pode ser posto em correspondência biunívoca com um seu subconjunto. É essa propriedade que os matemáticos usam para definir um conjunto que possui um número infinito de elementos. Ou seja, um conjunto é dito infinito (isto é, possui um número infinito de elementos) se ele pode ser posto em correspondência biunívoca com um seu subconjunto.
Essa definição permite imaginar uma possibilidade até então escondida e referente à questão que vimos examinando: é possível existir mais de um infinito. Ou melhor, é possível construir ou somente imaginar dois conjuntos infinitos que não tenham o mesmo número de elementos? Suponhamos que dois conjuntos A e B sejam infinitos e que todos os elementos de A possam ser relacionados de um modo biunívoco a uma parte do conjunto B mas não à sua totalidade. Isto é, sobram elementos do conjunto B nessa operação de mapeamento entre A e B. Dizemos então que o conjunto A é menor do que o conjunto B, embora ambos conjuntos possuam um número infinito de elementos.
Cantor estabeleceu essa profusão de infinitos a partir da noção de correspondência que introduzimos acima e conseguiu então responder à questão que havíamos proposto anteriormente, a saber: existe um conjunto que possa ser considerado como o maior de todos os demais? Existe um infinito maior do que todos os infinitos? É nesse momento, quando Cantor demonstra que a resposta é não, que aparece a dúvida: o que fazer com isso? Como conciliar a finitude humana com esses infinitos sem limite? Podemos tranquilamente continuar com essa análise formal, simbólica, e abdicar de transformar com ela nossa realidade? Pode essa verdade matemática servir para imaginar universos que escapam a nosso controle?
Para que possamos elaborar respostas um desvio nessa análise se faz necessário para comentarmos como a questão do infinito aparece no mundo da física.
Sobre o infinito: o que diz a física?
Embora o zero e o infinito estejam intimamente relacionados – define-se o inverso do zero como sendo infinito – a atitude dos físicos face a esses dois números extremos é distinta. Enquanto o infinito produz horror aos físicos, o zero não provoca essa reação. Ao contrário, um procedimento bastante generalizado entre os físicos, o zero – que tradicionalmente representa o vazio, ausência de quantidades físicas – é utilizado como ponto de partida para uma descrição completa de tudo-que-existe. Como foi isso possível?
Construindo o que existe a partir do que não existe
Hans Blumenberg argumenta que o homem lida com objetos que não percebe. O ponto máximo disso seria propor à física que ela iniciasse um programa completo de sua ciência por construir o que existe (os objetos, os corpos materiais, os campos de força) a partir do que não existe (os conceitos que irão nortear as funções dos objetos e lhes permitir existir).
Por mais estranho que isso possa parecer, ao longo do século XX, e sem que isso fosse entendido como um verdadeiro procedimento metafísico, as duas mais fundamentais teorias da física (Teoria Quântica dos Campos e Relatividade Geral) propuseram construir o que existe a partir do que não existe. Como foi isso possível e por que esse procedimento não produziu nenhuma dificuldade de princípio no arcabouço positivista da física é o que me interessa comentar aqui.
A matemática produz uma simplificação na descrição das propriedades formais do mundo da física que permite uma formidável amplidão de consequências formais. Em vários momentos essa produção remete a questões que transcendem a experimentação e fazem apelo a configurações não observáveis. Até o início do século XX essa ausência de uma visão positivista da física era considerada inaceitável. A situação mudou completamente ao longo daquele século.
Ao contrário do que poderia imaginar um físico positivista do início do século passado, a ideia de que somente observáveis devem fazer parte do arcabouço formal de qualquer teoria é hoje entendida como ultrapassada. Eu não diria que ela é inaceitável, mas está-se muito próximo disso. Conceitos que não possuem exemplos de uma realidade fazem parte do instrumental hodierno da física ou a situações que podem ser consideradas como parte desse real somente através de uma abstração de influências de diversos tipos e que devem ser especificadas em cada exemplo.
Uma dessas situações envolve o que parece familiar a qualquer físico: a estrutura do espaço-tempo de Minkowski. Essa estrutura é uma idealização que se realiza ao abstrair o campo gravitacional, sempre presente.
Não devo entrar em detalhes que desviariam a atenção do leitor por serem específicos do formalismo dos físicos. Devo somente dizer que no começo do século XX fez-se uma modificação profunda nos conceitos newtonianos de espaço absoluto e tempo absoluto com os quais se representava o pano de fundo que servia para situar e apontar os fenômenos do mundo. Ao final da primeira década daquele século, uma nova estrutura (igualmente apriorística e absoluta) apareceu: o espaço-tempo, uma união formal daquelas duas estruturas absolutas com as quais os físicos representavam todo território possível.
Na década seguinte, e graças à interpretação dos processos gravitacionais como modificações na estrutura da geometria do espaço-tempo, aquela configuração formal – o espaço-tempo de Minkowski – deixou de constituir uma estrutura fundamental e passou a ser nada mais do que uma idealização associada à ausência de forças de gravitação.
Ora, isso é certamente um inobservável, posto que por definição do que existe, todo corpo material e toda forma de energia provocam inevitavelmente uma alteração, por menor que seja, na geometria do mundo. Costumo mesmo afirmar em minhas aulas no CBPF que uma definição da palavra existir pode ser obtida a partir da universalidade do campo gravitacional. Com efeito, todo corpo material ou energia sob qualquer forma possui interação gravitacional. Não é possível, assim pelo menos os físicos acreditam, que um corpo material ou energia não produza ou não sinta os efeitos da interação gravitacional. Costumo enfatizar essa propriedade afirmando “caio, logo existo!” Ou seja, tudo-que-existe sente a atração gravitacional.
Pois bem, embora esse absoluto vazio de matéria, energia e qualquer campo de forças, esse espaço-tempo de Minkowski, seja uma idealização, uma abstração associada a uma configuração especial, ele passou a ser entendido como o estado fundamental dessa estrutura unificada, o espaço-tempo. Assim, toda geometria associada a um corpo material (ou energia) ao provocar um processo de interação gravitacional é interpretada como uma perturbação sobre esse estado ideal, absoluto e inobservável: a geometria de Minkowski. (O leitor interessado em detalhes sobre a evolução dessa ideia pode consultar algumas das referências.)
A partir da identificação da universalidade da gravitação com a geometria do mundo, imediatamente se classificou que a estrutura idealizada da geometria de Minkowski deveria ser entendida como um acessório, definido por oposição negativa a partir da ausência do campo gravitacional. Entende-se então porque somente em situações especiais pode-se afirmar esse espaço de Minkowski como real, pois do que vimos acima, ele deveria constituir não uma estrutura base da teoria, mas sim um estado limite, idealizado, realizado somente assintoticamente.
No entanto, a prática da ordem científica inverteu esse processo e passou a tratar o espaço-tempo de Minkowski como ontologicamente mais fundamental e de tal modo a inverter o modo de pensar: o campo gravitacional (abstraindo de sua universal influência) passou a ser entendido como uma perturbação (maior ou menor) desse estado puro, a ausência de matéria e energia sob qualquer forma, ou seja, como um ente matemático transcendental.
Reservatório inesgotável
Assim, o estado do vazio da geometria do mundo passou a ser considerado como uma espécie de fundamento do real. Essa situação se generalizou quando a microfísica deu origem a um modo de pensar tudo-que-existe, as partículas elementares que compõem todo corpo material ou energia, a partir de um estado fundamental que não se identifica com nenhum corpo material nem nenhuma forma de energia conhecida: aquilo que dificilmente um físico dos séculos passados aceitaria atribuir a esse estado a palavra existe.
Uma elaboração matemática permitiu construir no domínio da microfísica um formalismo que representa a matéria – todos os corpos – a partir de um agrupamento interativo de partículas elementares, como se fosse gerada a partir de um estado fundamental contendo zero partículas, zero energia. Ou seja, tudo-que-existe, os corpos materiais, nada mais seriam do que perturbações desse estado de vazio, que constitui assim um verdadeiro reservatório de toda a matéria. O zero passou a ser entendido como o conceito a partir do qual se elaboraria qualquer descrição material do mundo. Devemos reter que não se trata de uma questão linguística, mas sim ontológica, pois esse estado representado pelo zero teria uma realidade e é a partir dele, de perturbações de diferentes formas, que tudo-que-existe irrompe no mundo.
E quanto ao infinito?
O horror metafisico do infinito na física do século XX
Em 1968 recebi de meu orientador de tese de mestrado, o físico José Leite Lopes, o seguinte tema: examinar os modos de eliminar os infinitos das teorias que descrevem os campos clássicos da física e, em particular, da interação eletromagnética. Nem por um breve momento ele achou necessário satisfazer minha curiosidade e apresentar argumentos que justificassem empreender essa investigação e impulsionar os físicos a se dedicarem à tarefa de eliminar os infinitos de toda teoria física.
Em verdade, ele estava simplesmente fundamentado na aceitação geral da comunidade dos físicos de que nenhuma ciência da natureza pode admitir como verdadeira uma teoria na qual algum processo possa assumir o valor infinito. Ou seja, o aparecimento do valor infinito em uma situação física é a prova de que a validade dessa teoria se esgota ali. De modo semelhante à atitude dos físicos em relação ao eletromagnetismo, Einstein no começo dos anos cinquenta sugeria que, para evitar os infinitos que podem aparecer em certas situações descritas por sua teoria da relatividade geral, as equações dinâmicas dessa teoria deveriam ser alteradas quando a intensidade do campo gravitacional ultrapassasse certo valor, com a única justificativa de que o infinito não é uma quantidade aceitável em uma configuração real. Essa autocrítica de Einstein deveria ter servido para evitar a propagação da ideia superficial e irrealista da proposta de que o universo em que vivemos teria tido um começo singular a um tempo finito de nós. Infelizmente, não foi assim que os físicos trataram o modelo mais comum do universo, o chamado big bang, como veremos a seguir.
No caso do eletromagnetismo, o infinito aparece ao examinarmos o campo gerado por uma carga elétrica. Mais grave ainda: esse infinito ocorre continuamente ao longo de sua trajetória. Devemos notar que essa característica não é exclusiva da força eletromagnética, mas igualmente ocorre no outro tipo clássico de forças conhecido, a interação gravitacional. Essa dificuldade admitia duas alternativas: ou se mudava a teoria de Maxwell que descrevia a dinâmica do campo eletromagnético permitindo o aparecimento de processos não lineares ou então se procurava uma solução no interior dessa teoria capaz de contornar essa dificuldade.
O modo mais simples seria alterar a dinâmica quando a intensidade do campo crescesse acima de um certo valor. Como esse valor muito possivelmente nunca seria atingido por experiências realizadas em laboratórios, essa solução tinha a vantagem de não modificar nada da teoria conhecida e fartamente corroborada pela experimentação ao longo dos tempos. No entanto, havia uma outra possibilidade, menos convencional e que despertou interesse de alguns, como do físico inglês Paul Andre Maria Dirac.
Dirac adquirira notoriedade na comunidade científica por seus importantes trabalhos na organização da teoria quântica e, em particular, por sua sugestão da existência de antimatéria, comprovada mais tarde. Ele levantou a suspeita de que o aparecimento do infinito ao longo da trajetória do elétron (em verdade, de qualquer corpo carregado) estava relacionado a certos pré-conceitos causais. Segundo ele, essa dificuldade estaria sendo introduzida pelo modo como os físicos têm lidado com exemplos práticos da teoria de Maxwell do eletromagnetismo. Para mostrar a coerência e a razoabilidade de seu argumento, elaborou um modo de descrever o movimento convencional do elétron a partir da hipótese de que a ação do campo eletromagnético sobre essa partícula consistia em dois termos, sendo que um deles havia sido negligenciado e desaparecido dessa descrição. Havia o efeito convencional do campo sobre o elétron por influência causal na qual a fonte do campo envia um emissor (fótons) do passado do elétron que o influenciam; mas além dessa ação haveria uma outra que consistiria em fótons carregando mensagens vindas do futuro do elétron. Isso coloca em questão o sacrossanto princípio de causalidade. Não é esse o lugar para desenvolver as questões técnicas que envolvem essa proposta de Dirac. O que sim devemos reter é o resultado dela: como em um milagre formal, os infinitos desaparecem. O preço a pagar seria trocar os infinitos e suas dificuldades por uma violação da causalidade clássica.
Se cito brevemente essa formulação é porque quero retirar dela uma consequência que tem permanentemente perseguido os físicos, a saber, para evitar e inibir o aparecimento de infinitos em uma teoria devemos sacrificar alguma forma de apriorismo que tenha sido travestida em lei universal. No caso em questão, dever-se-ia abandonar o princípio causal de que somente ações do passado podem influenciar um corpo. Embora tenhamos cotidianamente e sempre exemplos de que a causalidade local é um princípio bem fundamentado, não podemos ignorar que – como Godel irá nos alertar mais adiante – a estrutura causal global associada ao universo pode não ser uma consequência da causalidade local e vice-versa, ou seja, a causalidade global pode não impor restrição intransponível à estrutura causal local. Antes de passarmos à questão cosmológica, um comentário sobre a representação dos corpos materiais como estruturas altamente localizadas.
A delta de Dirac ou a localização extrema
Paul Andre Maria Dirac foi um dos cientistas mais imaginativos do século XX. Depois de formular a versão quântica moderna do elétron, construindo uma teoria que levou à descoberta da antimatéria, ele se voltou para o exame do modo clássico (isto é, não quântico) de descrever o elétron. (Esse comentário se aplica a qualquer partícula elementar; se me detenho em especial na partícula elétron é para simplificar minha exposição e porque se trata de uma partícula estável, isto é, que não se transforma espontaneamente em outra).
Todo corpo, toda matéria elementar, o que costumamos chamar uma partícula, é tratado classicamente como um objeto puntiforme, isto é, altamente localizado e praticamente sem dimensão. Isso, claro está, é uma simplificação que a física sempre fez. A questão que nos interessa aqui é menos as propriedades dessa estrutura sem volume, mas sim sua descrição formal; dito de outro modo: como descrever em linguagem matemática uma tal ideia? Como representar um corpo que tem a propriedade de estar localizado em um volume de raio zero?
As dificuldades formais para essa descrição são conhecidas de há muito. O professor Dirac propôs uma nova forma matemática de lidar com esse tipo de configuração, inventando um conceito hibrido, à semelhança de um animal mítico, metade homem, metade cavalo à qual chamou de função delta. Essa delta é definida pela inesperada propriedade: ela tem o valor zero em todo o espaço exceto em único ponto onde assume o valor infinito. Ou seja, é certamente um conceito matemático esdrúxulo. Com efeito, mais tarde se reconheceu que não se tratava propriamente daquilo que os matemáticos consideram ser as propriedades típicas para receber o nome de função, mas sim um caso particular de uma nova figura matemática que veio a receber o nome de distribuição. No entanto, a delta de Dirac serviu para que os físicos exibissem um modo prático e convencional de realizar operações formais capazes de serem aplicadas ao que os físicos chamam de partícula elementar puntiforme. Ou seja, embora o infinito não seja uma figura aceita pelos físicos, ele pode aparecer nos instrumentos formais que usam. Tudo se passa como se o infinito devesse ser colocado sob a proteção de uma configuração matemática de tal forma que ele não apareça em nenhum observável, podendo, no entanto, ter um papel importante nos procedimentos formais intermediários. Dito de outro modo: o infinito é aceito na linguagem formal mas deve ser banido da experiência realizada em qualquer medida física; pode-se falar do infinito, não se pode procurar observá-lo.
Sobre o infinito: o que diz a Cosmologia?
A cosmologia moderna se baseia na teoria da relatividade geral de Einstein que nada mais é do que uma forma especial de descrever a força gravitacional. Antes de examinar a questão do infinito na Cosmologia precisamos responder à questão: por que podemos afirmar que uma teoria da gravitação fundamenta uma Cosmologia? Por que somos levados a aceitar que uma modificação da descrição dos fenômenos gravitacionais, isto é, a construção de uma nova teoria da gravitação, permite fundar uma Cosmologia? Por que não podemos dizer, por exemplo, que uma modificação na descrição de fenômenos eletromagnéticos cria uma nova Cosmologia? Por que o conhecimento das forças nucleares não cria uma Cosmologia? Essas questões admitem uma mesma resposta simples, mas que, como veremos mais adiante, não as esgota completamente. Vamos aqui tratar somente de uma resposta imediata, deixando para outro lugar uma análise mais completa. Essa resposta simples, vamos encontrá-la na própria caracterização e divisão das forças que existem na natureza. Quantas e quais são as forças que os físicos identificaram no mundo?
Um dos grandes sucessos da Física no século XX foi a unificação de todos os processos, da dinâmica de todos os fenômenos a partir de uma combinação de somente quatro forças fundamentais. Não deixa de ser notável a eficiência mostrada pelos físicos na demonstração de que todos os processos do mundo observável que fazem parte de seu território de competência possam ser explicados como consequência da luta entre quatro e somente quatro forças fundamentais: eletromagnética, gravitacional, fraca e forte. Há vários modos de distinguir entre essas forças e de classificá-las. Vamos nos limitar aqui a dois modos de classificação que são suficientes para permitir-nos responder à questão que nos interessa. Para realizar essa divisão devemos nos concentrar em duas propriedades: o alcance e as respectivas intensidades dessas diferentes forças.
A física anterior ao século XX e que, genericamente se costuma chamar de física clássica (querendo, com esta terminologia, explicitar que ela é não relativista e não quântica) conhecia somente forças de longo alcance: as forças gravitacionais e as eletromagnéticas. Por essa denotação, entende-se que seus efeitos se estendem por todo o espaço conhecido, uma região tão grande que tem-se tendência a afirmar, simplificadamente, que possuem alcance infinito ou, melhor, sem limite sensível. Isto é, não há nenhuma evidência de que exista uma distância limite, um raio crítico, para além do qual elas não se fariam sentir, a partir do qual não teriam mais uma ação efetiva sobre os corpos. Além dessas duas, no interior da matéria, no nível atômico e, mesmo mais intimamente, no nível intra-atômico, duas novas forças foram reconhecidas que receberam os nomes de forças nucleares fraca e forte. A primeira é responsável pela desintegração da matéria e a segunda por sua estabilidade e persistência. São forças de curto alcance, de dimensões extraordinariamente pequenas, imperceptíveis para nossos sentidos: elas se fazem sentir somente no mundo microscópico, no interior dos átomos. Essa propriedade das forças nucleares está relacionada ao fato de que partículas que intermedeiam essas interações possuem massa diferente de zero. Em verdade, pode-se mostrar que o alcance de uma interação é inversamente proporcional à massa da partícula trocada. Explico-me. Segundo o modo moderno ou, melhor, quântico, de interpretar e/ou explicar o fenômeno de interação – aquilo que tradicionalmente chamávamos de “ força ” entre dois corpos – tudo se passa como se esses corpos trocassem partículas extremamente leves e típicas de cada interação ou força. O caráter misterioso que revestia este conceito “força” foi, assim, substituído pela nova forma encontrada para descrever a interação: a troca de um número de agentes ativos, os “emissários da interação” ou os quanta, isto é, os grãos de energia da “força” correspondente. Embora isso possa parecer para os não físicos como sendo igualmente misterioso, devemos reconhecer que foi um progresso na descrição de como se dá efetivamente a interação, ao se visualizar, através dessa troca energética dos quanta da respectiva interação, o efeito da ação de uma força sobre um dado corpo. Nós voltaremos a essa questão mais adiante.
Uma tal construção nos levaria a esperar, por exemplo, que o fóton, o encarregado de transmitir a interação eletromagnética, tenha massa nula. Quanto à gravitação, a situação é um pouco mais complexa. Em um primeiro momento, e de modo simplista, poderíamos afirmar que, dado ao seu caráter de força de longo alcance, como a eletromagnética, os responsáveis grãos elementares (que chamamos de “grávitons”) também deveriam ter massa nula. Essa questão, no entanto, deve ser examinada mais cuidadosamente, e deixaremos para fazê-lo quando analisarmos as propriedades da constante cosmológica. Do que vimos, podemos fazer o seguinte quadro representativo dessa hierarquia: as forças eletromagnéticas e gravitacionais são de longo alcance; as forças nucleares forte e fraca são de curto alcance.
Um outro modo de caracterizar e de realizar um ordenamento entre essas forças pode ser feito através da utilização do conceito de intensidade. Em situações semelhantes, essas forças produzem, como resultado de suas respectivas ações, respostas distintas. É possível identificá-las através de certas constantes fundamentais que constituem a impressão digital de cada uma delas. Para cada força existe um correspondente valor da constante que determina a diferença de suas intensidades. Usando esse critério, pode-se colocar uma segunda ordem hierárquica que, começando pela mais forte, é representada pela sequência: nuclear forte – nuclear fraca – eletromagnética – gravitacional. Reconhecemos assim que a força gravitacional é a mais fraca interação conhecida. Só para dar uma ideia desta diferença: entre duas partículas de mesma carga e mesma massa – por exemplo, dois elétrons – a força gravitacional é, aproximadamente, da ordem de 10-40 vezes mais fraca que a eletromagnética. E, se é assim, por que então ao tratarmos da questão cosmológica, é através dela que começamos nossa análise, é a partir dela que estruturamos um modelo cosmológico? Por que podemos afirmar que uma nova teoria da gravitação funda uma Cosmologia? A resposta vem das propriedades dessas forças. Vimos que as forças nucleares são de curto alcance, da ordem das dimensões do átomo. É razoável aceitar que, qualquer que seja a definição de cosmologia que consideremos, ela deve tratar de grandes dimensões de espaço e de tempo. Assim, forças localizadas certamente não deveriam desempenhar papel importante ao longo de sua história.
Sobram as duas forças de longo alcance. O eletromagnetismo tem a propriedade de admitir forças de sinais opostos, isto é, ela pode ser atrativa ou repulsiva, dependendo das características dos corpos que interagem segundo esse modo. Em um universo composto de corpos neutros, como átomos e radiação, as diferentes ações eletromagnéticas se cancelam, eliminando qualquer papel importante que essa força poderia desempenhar, pelo menos em condições convencionais, no universo. A força gravitacional é a mais fraca de todas, mas é universal, isto é, tudo que existe sente a força gravitacional. Não existe nenhum corpo material ou energia que não seja influenciada por um campo gravitacional – nem mesmo a própria energia gravitacional. Ademais, ela tem uma outra propriedade notável que é a chave para entendermos a questão que colocamos: é somente atrativa. Isto é, não existe repulsão gravitacional. Em outros termos, não existe massa negativa na natureza. Assim, mesmo sendo a mais fraca, essas duas propriedades – universalidade e atração sempre positiva – determinam a importância maior da força gravitacional sobre as demais, quando se trata de pensar grandes porções de espaço-tempo ou até mesmo a totalidade do mundo que chamamos Universo. Torna-se então compreensível a afirmação de que uma teoria da gravitação funda uma cosmologia.
A questão do infinito no espaço e no tempo
Vamos separar duas questões (somente para simplificar nossa análise) – embora isso seja feito artificialmente como os cosmólogos fazem em geral para efeitos de simplificação formal – e descrevamos o universo à moda newtoniana separando espaço tridimensional e tempo. Assim podemos tratar separadamente dos dois infinitos. O espaço tridimensional pode exibir uma estrutura finita ou infinita; e, de modo independente, mas complementar, a duração desse universo pode ser finita ou infinita.
O espaço é finito ou infinito?
Eternidade estática: Camus e o mito de Sísifo. Para impedir a evolução, Einstein produz um modelo de universo fora do tempo. Sem dinâmica. Fora da engrenagem do movimento. Estático. Eterno. Um universo finito, mas ilimitado. Altera a topologia euclidiana, plana, sem contorções que os físicos haviam aceito desde o estabelecimento da física newtoniana e encontra na topologia uma forma matemática para descrever um universo estático, independente do tempo, contendo planetas, estrelas, galáxias separadas dinamicamente umas das outras, sem que haja nenhuma interação entre esses componentes desse mundo. Trata-se, como se pode perceber, de uma idealização; não diz respeito ao nosso universo.
Criação finita no tempo, infinitude no espaço: modelo do big-bang
O cientista russo Friedmann elaborou um cenário mais realista de um universo dinâmico. É dele que quero tratar. Nesse modelo o universo é representado como tendo origem há um tempo finito no qual tudo-que-existe estaria concentrado em uma região singular, que é um eufemismo para substituir uma completa ignorância sobre o que ela significa. Embora tenhamos visto que os físicos têm um verdadeiro pavor por teorias que permitam o aparecimento do infinito, uma atitude oposta apareceu a partir dos anos 1970 no contexto da cosmologia. Não vou me alongar aqui nessa descrição, encaminhando o leitor interessado aos livros citados na bibliografia. Cito somente uma situação onde o comportamento da comunidade dos cientistas vai em oposição a tudo que vimos ocorrer quanto à atitude dos cientistas face ao infinito e que seria interessante de ser examinada com mais detalhes, mas não aqui.
Nesse modelo, tudo-que-existe, toda a matéria e energia teriam aparecido em um momento singular onde todas as quantidades físicas relevantes, como a densidade total de energia existente, teriam assumido o inaceitável valor infinito. Ao serem perguntados por Fred Hoyle sobre como, abandonando a tradição do horror ao infinito que permeia toda a física, eles aceitaram pacificamente a existência de um infinito naquela situação mais fundamental, a própria origem desse universo associada à presença desse começo irracional, ao invés, por exemplo, da proposta de criação continua de matéria que ele, Hoyle, advogava, a maioria dos cientistas respondeu que é certamente menos desagradável conviver com a ideia de que toda a matéria tenha sido criada em um único momento do que a alternativa segundo a qual ela estaria sendo criada de modo continuo ou até mesmo, mais limitado, em diversos momentos especiais. Ou seja, nesse caso, os físicos preferiram aceitar a ideia de que a origem do universo poderia ser associada a um momento mágico, único, distinto de todos os demais momentos no qual se teria dado sua criação. Aí e somente aí se pode aceitar a aparição única e inacessível do infinito. Essa disposição a uma tal crença encontra-se igualmente em todos os mitos cosmogônicos de criação que as diversas civilizações construíram.
Eternidade dinâmica
A partir do final dos anos 1970, cenários cosmológicos representando universos sem singularidade inicial foram elaborados. Um modelo típico exibe aquilo que os cosmólogos chamam de bouncing, significando eternidade para trás e eternidade para frente. Isto é, enquanto o modelo big-bang descreve um universo que inicia um processo de expansão de todo seu volume espacial, a partir de um ponto singular, no modelo com bouncing o universo possui uma fase de colapso anterior na qual a totalidade do volume diminui com o tempo cósmico, atinge um valor mínimo diferente de zero e passa a seguir a uma fase de expansão que é identificada à atual expansão do universo.
O modelo de um universo com bouncing elimina a dificuldade associada a uma singularidade que se caracteriza pelo valor infinito que algumas de suas variáveis associadas à matéria (como a densidade total de energia existente no universo) poderiam assumir a um tempo finito em nosso passado. Isso é feito estendendo o tempo de existência desse universo que então não teria um começo em um tempo finito. Ou seja, podemos prolongar a história do universo por um tempo infinito no passado. Estaríamos assim trocando um infinito espacial por um infinito temporal. Haveria a possibilidade de entender por que então um processo de colapso teria se iniciado? Sim é possível produzir uma explicação para isso.
A biologia, uma ciência diferente das outras?
O biólogo Ernst Mayr examina em seu belo livro What makes Biology unique? a dissensão da biologia entre as demais ciências, em especial a física, ao rejeitar algumas das principais orientações tão populares entre os físicos como o reducionismo e a unificação. Em sua versão francesa, o livro adquiriu um título mais explícito: Après Darwin: la Biologie, une science pas comme les autres.
Mayr elabora a síntese de vários de seus trabalhos e procura mostrar por que a biologia merece um lugar especial entre as ciências e, principalmente, as razões pelas quais ela não pode ser considerada como uma consequência da aplicação reducionista da física aos seres vivos, como muitos pretendem. O subtítulo desse livro já mostra sua intenção ao informar que a biologia não é uma ciência como as outras. Mayr organiza seus argumentos a partir de duas afirmações:
i) Certos princípios da física não são aplicáveis à biologia;
ii) Certos princípios biológicos não são aplicáveis à física.
Dentre os primeiros, Mayr cita quatro que lhe parecem evidentes a partir da revolução realizada por Darwin:
i) A tipologia;
ii) O determinismo;
iii) O reducionismo;
iv) A ausência de leis universais em biologia.
A tipologia ou essencialismo pretende que a diversidade dos fenômenos se estrutura a partir de certas essências fundamentais. As variações se constituem de forma acidental. Segundo Mayr, esse modo de pensar levou ao conceito errôneo de raça humana, acarretando argumentos que se pretendiam de natureza científica e dando espaço para o desenvolvimento do racismo.
O determinismo, em desuso na física moderna, através de críticas internas violentas produzidas tanto pela mecânica quântica quanto por processos termodinâmicos fora do equilíbrio, manteve-se em alguns setores da biologia. Sua crítica abriu caminho para que nesta ciência se desenvolvesse o estudo das variações e fenômenos aleatórios.
Enquanto a maioria dos físicos aceitou e aceita o reducionismo, Mayr argumenta que um tal princípio é por demais inibidor e deve ter seu papel bastante diminuído. Certamente não deve estar à frente dos geradores de inúmeros projetos globais estudados na biologia.
Finalmente, o mais criticado dos princípios geralmente aceitos pelos cientistas é a afirmação da ausência de leis gerais, deterministas e aplicáveis a todos os componentes biológicos – uma situação oposta à estrutura convencional da organização do mundo como prescrito pela física.
Segundo Mayr, “… a demonstração de que esses quatro princípios, que desempenham um importante papel na física, não são aplicáveis à biologia, foi uma etapa maior – e talvez a mais difícil – na tomada de consciência de que a biologia não é a física. Não se reduz a ela.”
O que chama a atenção no desenrolar da análise que Mayr faz dessas questões – e que demonstram o distanciamento da biologia da física – é a espantosa semelhança com a atitude da vanguarda dos cosmólogos que tem evidenciado nos últimos anos um igual distanciamento da cosmologia em relação à física. Ou seja, a argumentação de Mayr para a posição da biologia tem uma grande e até certo ponto surpreendente analogia no interior dessa outra ciência, a cosmologia. Parece que os caminhos empreendidos pela cosmologia e a biologia das últimas décadas possuem uma orientação única, envolvem um olhar comum, em particular em suas críticas ao reducionismo. No caso da cosmologia, isso aparece claro ao reconhecermos que ela desempenha papel semelhante ao dos astrônomos do século XVI, permitindo a refundação da física.
Assim como a biologia, a cosmologia carrega também uma componente histórica como iremos comentar ao tratarmos da possibilidade de existência de processos de bifurcação no cosmos. Com esse exemplo sobre as novidades que o cosmos pode ainda esconder entra-se novamente no território encantado entrevisto por Giordano Bruno.
A cosmologia e a física
Em meu livro O que é cosmologia? examinei a ideia de que a cosmologia não se identifica com a física. Isso se deveu, em particular, ao reconhecimento de que a física, estabelecida graças a experiências e observações realizadas nos laboratórios terrestres e em nossa vizinhança, não poderia ser aplicada indiscriminadamente a todo o universo e em todas as situações. Ou seja, sua extrapolação para todo o universo deveria sofrer mudanças na escala global.
Mesmo sem poder determinar com rigor as propriedades – associadas a intensidades bastante superiores às observadas em nossa vizinhança – das forças gravitacionais e eletromagnéticas que existem além de nosso sistema solar, quer em regiões compactas – como na vizinhança de certos corpos massivos, no que se convencionou chamar de candidato a buraco negro – quer em regiões para além de nossa galáxia, envolvendo enormes quantidades de espaço e tempo, havia até bem pouco tempo uma espécie de fé animal, resquício de um antropocentrismo arcaico, de que a ciência não precisaria fazer nenhuma alteração nas leis da física conhecidas para produzir uma história completa do universo. O conhecimento local dessas leis seria suficientemente abrangente para produzir um relatório preciso e completo sobre todo o cosmos.
Essa hipótese se consubstanciou na expressão astrofísica extragalática, cunhada para se referir à ciência que se dedica ao exame das características globais do universo. Com esse nome rotulava-se a ideia de que, ao aceitar a universalidade das leis físicas descobertas na Terra e sua aplicação inalterada ao universo, se estaria organizando uma versão do mundo a partir daquelas leis e somente daquelas leis. Claro está que, como método de trabalho, essa extrapolação deveria ser realizada em um primeiro momento, pois ela permite inclusive delimitar o alcance da aplicabilidade daquelas leis. Entretanto, ao adquirir um caráter dogmático, ela se transfigurou em um conceito reacionário e inibidor, gerando dificuldades para o surgimento de novas ideias igualmente simples e capazes de exibir maior abrangência e melhor adequação às observações.
Não podemos dizer que essa atitude, que hoje pode parecer simplista, tenha sido completamente abandonada, mas creio ser correto aceitar que ela não possui mais, na comunidade científica, a força e a arrogância que demonstrava até bem pouco tempo. E, certamente, não tem mais a grande maioria dos cientistas a seu lado. Somente para mostrar essa mudança podemos citar dois pesquisadores ingleses, Roger Penrose e Steve Hawking, que se tornaram conhecidos do grande público por suas intervenções na mídia internacional ao desempenharem um importante papel na divulgação da ideia de que o big-bang deveria ser considerado como o início inevitável do universo. Hoje, passados quase trinta anos, ambos aceitam a ideia de que o universo é bem mais complexo do que imaginavam e certamente a ideia de um big-bang clássico e singular não deve ser considerada como uma proposta vitoriosa.
A noção de que a Cosmologia está produzindo a refundação da física começou a ser aceita e difundida. Isto é, aspectos globais do universo começaram a adquirir importância entre os cientistas. Para que isso pudesse ocorrer, foi necessária a mudança de atitude levando a uma autocrítica que, no entanto, tem encontrado enorme dificuldade em ser institucionalizada.
A principal questão envolve o status do princípio reducionista, tão importante para os físicos. Esse princípio, que ao longo do século XX teve um sucesso extraordinário, pretende que qualquer processo na natureza, qualquer sistema, independentemente do grau de sua complexidade, pode ser explicado a partir da redução a seus elementos fundamentais, conforme, por exemplo, aqueles descritos pela física microscópica. Aplicado esse princípio ao Universo, concluiu-se, de modo simplista, que não poderia haver nenhum efeito novo capaz de modificar as leis da física a partir da análise global do universo. A única alteração, se houvesse, poderia ser quantitativa, mas não seria qualitativa. Esse princípio dito “do microcosmos para o macrocosmos” foi usado como um guia para o tratamento das questões cósmicas.
Por outro lado, sabemos do sucesso que teve o alcance da compreensão das propriedades das diferentes substâncias a partir do reconhecimento e da exploração de seus constituintes, de seus átomos fundamentais. A tabela de Mendeleiev trouxe notáveis avanços na compreensão de propriedades comuns a diferentes substâncias. Sem a noção de átomos, de elementos fundamentais a todos os corpos, as dificuldades de dar sentido e de compreensão para um grande número de processos com que nos deparamos no cotidiano ou em experiências programadas seriam certamente menos eficientes.
Esse sucesso, no entanto, foi levado a um extremo que passou a ser não mais um instrumento útil de análise da realidade, mas, ao contrário, um conceito inibidor do pensamento. Passou-se das moléculas aos átomos, e desses aos componentes mais elementares, prótons e elétrons. E, continuando esse procedimento, aos quarks e possivelmente outros constituintes fundamentais. O reducionismo a componentes elementares foi entendido não como uma tentativa de compreensão baseada em observações, mas sim como uma prática de pensamento que deveria desempenhar o papel de uma superlei, à qual toda e qualquer proposta científica deveria se submeter: como se fosse uma verdade isenta de crítica ulterior.
Descartar a importância da ação de processos de natureza global que não podem ser compreendidos pela justaposição de processos elementares foi certamente um retrocesso no caminho desbravador dos astrônomos que desde o século XVI iniciaram a revolução científica e estabeleceram a ciência moderna. No século XXI, graças ao aperfeiçoamento de poderosos instrumentos capazes de aprofundar um novo olhar para os céus, pode-se produzir modos inesperados de compreender e reestruturar as leis da natureza. Assim, astrônomos e cosmólogos estão uma vez mais criando condições para o surgimento de uma profunda mudança no modo científico de descrever a natureza.
A. Lautman, em seu belíssimo livro Essai sur les notions de structure et d´existence em mathématiques, ao examinar a dicotomia local-global propõe uma alternativa extremamente interessante, referente à possibilidade de uma síntese orgânica entre diferentes teorias matemáticas que escolhem o predomínio de uma sobre a outra. Lautman argumenta que é preciso estabelecer uma ligação poderosa entre a estrutura do todo e as propriedades das partes de modo a que se manifeste de modo claro e preciso nessas partes a influência organizadora do todo ao qual elas pertencem. Esse ponto de vista, que parece adotar ideias e programas retirados seja da biologia seja da sociologia, pode aparecer na matemática como um procedimento de síntese. Para isso deve-se abandonar o programa de Russel-Whitehead de reduzir a matemática a estruturas lógicas atomísticas; como também a visão de Wittgenstein e Carnap segundo a qual as matemáticas nada mais são do que uma linguagem indiferente ao conteúdo que elas exprimem. Não é meu propósito aqui percorrer esse caminho que Lautman propôs. Se o cito, como um exemplo de análise semelhante ao que estamos desenvolvendo aqui no território da física e da cosmologia, é para apontar que essa questão transcende nosso plano de exame e constitui uma área de reflexão em diversos territórios do conhecimento. Ou seja, uma vez mais, nos deparamos com limites incertos de uma questão bem definida em um território que permite uma análise especial em outro território. Embora distintas, parece-me que elas estão tratando de algo que as aproxima enormemente.
Talvez fosse importante lembrar que o reducionismo vai a par com outro princípio que tomou conta da ciência de modo bem menos racional do que é comumente apresentado e que podemos chamar de modo simplificado de princípio unificador. A ideia de unificação dos processos observados na natureza está associada a um movimento do pensamento que requer simplificações. Nos níveis em que ela funciona, essa unificação traz uma economia de pensamento que não pode ser desprezada. Por exemplo, a enorme quantidade de conhecimentos acumulados ao final do século XIX permitiram tratar os efeitos elétricos e magnéticos como um só processo, como duas faces da mesma moeda. A influência de efeitos elétricos sobre magnéticos e vice-versa adquiriu então uma formulação que os uniu em uma só estrutura formal, o campo eletromagnético. Desde então, e por diversas razões, esse conceito unificador – herança de épocas anteriores à revolução científica e cujas origens vamos encontrar em seus antecedentes em movimentos religiosos – se alastrou na física, tornando-se em alguns setores uma prática de pesquisa extremamente perseguida. Em uma formulação mais impessoal e racional, com uma roupagem lógica que o torna bastante atrativo, ele prescreve que a função máxima do cientista, sua meta utópica e altamente desejável, a finalidade maior da caminhada científica, consiste em poder descrever todos os processos da natureza a partir de uma só estrutura formal. Será?
Não vou estender essa análise nesse momento, mas deveríamos voltar a ela em outro lugar para examinar com mais detalhes a revolução do pensamento que Mayr explicita em seu texto. Essa breve descrição serve para apresentar aqui, mesmo que superficialmente, o ambiente na ciência da física que conduziu à formação de certos apriorismos que, ao invés de produzirem mais conhecimento, geram em verdade mais restrições ao pensamento.
Termino essa incursão inspirada no livro de Mayr com um comentário envolvendo as críticas que biólogos e cosmólogos têm feito ao despotismo da física. A introdução da história na compreensão dos fenômenos biológicos é a mais contundente das características dessa ciência em oposição à formulação da imutabilidade apriorística das leis da física. Curiosamente, há também uma interpretação da cosmologia segundo a qual haveria igualmente esse fenômeno de evolução das leis físicas – o que se costuma chamar de dependência cósmica das interações – e ele requer, por coerência interna, a introdução da historicidade na compreensão dos fenômenos naturais de modo análogo ao que reconhecemos existir na análise dos fenômenos da vida. Assim, a cosmologia histórica poderia caminhar junto com a biologia histórica em seus questionamentos da rigidez e perenidade das leis físicas.
De modo análogo a como os astrônomos fundaram a ciência moderna – a ciência da natureza, isto é, a física – seus companheiros de hoje, ao olharem para os céus, estão criando um movimento de reflexão que abriu a caixa de Pandora onde os físicos pretendiam (res)guardar suas Leis eternas e imutáveis. Nas últimas décadas os cosmólogos começaram a investigar essa evolução, mostrando que, assim como na biologia, essa análise pode ser empreendida sem que tenhamos que enfrentar o fantasma da teleologia.
Nós iremos ver no capítulo dedicado à presença de bifurcação no universo como essa historicidade é mais do que uma simples analogia e se estabelece como um eficiente modo de descrever o cosmos a partir das próprias equações com as quais se estabeleceu um determinismo seguro e radical na versão simplista e conservadora da cosmologia do século XX.
Antes, um comentário adicional sobre a relação entre a microfísica e a cosmologia.
O aumento inesperado dos estudos da cosmologia das últimas três décadas permitiu reduzir o impacto do reducionismo atomista sobre os físicos. Passou-se então a uma outra forma de simplificação formal apoiada na hipótese de que existiria uma interação natural entre o micro e o macrocosmos. Essa simplificação, embora tenha contribuído para diminuir a ênfase ingênua de produzir um cosmos a partir de elementos microscópicos elementares, resultou em uma nova forma de generalização desprovida de embasamento maior que a tornou, na prática, inócua.
Com efeito, afirmar a interação local-global sem que a essa hipótese esteja associada uma forma de entender essa conexão não produziu nenhum avanço em nosso conhecimento (da natureza), mas deu origem a um novo dogma.
Um método eficaz e completo de esclarecer essa questão pode ser conseguido seguindo os passos esclarecedores que Lautman produziu em uma questão análoga no território da matemática. Não é minha intenção aqui reproduzir seu exame, que envolve uma posição bastante esclarecedora e competente sobre a filosofia da matemática, mas simplesmente utilizá-lo como um guia para nossa questão envolvendo a natureza da física.
Na matemática nos deparamos igualmente com uma dicotomia local e global, como comentei acima. Os matemáticos reconhecem, por exemplo o ponto de vista adotado pelos geômetras, como Riemann, que pretendem construir uma geometria a partir de operações envolvendo funções localizadas da métrica. Trata-se do ponto de vista local. Por outro lado, a topologia cuida de aspectos de natureza não local dedicando-se a estudar um conjunto de elementos em sua qualidade global.
Ao longo dos últimos séculos, a atividade matemática conseguiu produzir o estudo de propriedades locais e globais capazes de serem compatíveis, isto é, de gerarem configurações que ao caminharem num crescendo do ponto elementar e de sua vizinhança atingem uma fronteira, uma superfície, um volume, um elemento matemático global, sem que esse encontro local-global crie um monstro matemático, isto é, de tal modo que não sejam incompatíveis.
Isso é o que se espera de uma bem-sucedida convergência local-global. Pois bem, Lautman argumenta, e apresenta diversos exemplos na matemática, que esse casamento local-global não é independente das propriedades específicas e características individuais desses dois aspectos. Segundo seus próprios termos, não devemos aceitar como natural a existência de uma solidariedade entre as propriedades locais e as propriedades globais de um ser (matemático), posto que a demonstração, na maior parte dos casos dessa compatibilidade, só é possível quando os seres (matemáticos) em questão gozam de certas propriedades especiais que permitem esse casamento. Em outros termos, conclui, nem sempre essa união local-global pode ser realizada de modo contínuo e sem que alguma forma de um indesejado monstro matemático apareça.
Eu deixaria aqui nesse ponto a análise de Lautman, desejando ao leitor um mergulho em suas ideias na obra citada, para retornar à minha questão anterior da dicotomia micro-macrocosmos que viemos examinando. A argumentação de Lautman é bastante geral para poder ser adaptada a toda ciência matematizada envolvendo a interação local-global e ser aplicada mesmo a outros seres que não sejam definidos na matemática. Por exemplo, eu irei aplicá-lo aos seres da física.
O que essa análise da matemática nos ensina, ao ser empregada de modo consistente à física, é que podemos afirmar que as leis da microfísica, bem como as do universo, descritas na cosmologia não são estruturas independentes. Não pertencem a dois mundos que por acaso estariam se encontrando e sendo levados a interagir. Ao contrário, são agenciadas por princípios coerentes. Ou seja, o atomismo (que pretende construir tudo-que-existe a partir de alguns poucos elementos fundamentais como quarks e léptons), assim como a cosmologia (que propõe reconhecer nas propriedades atômicas a influência determinante das propriedades globais do universo) não são naturalmente interdependentes, mas sim estão ligados por uma solidariedade do tipo que Lautman demonstrou existir entre propriedades locais e globais na matemática.
Isso não significa o estabelecimento de uma ordem que lhes é imposta, mas sim constituem um exemplo bem-sucedido de uma interpenetração de informações locais-globais produzindo formas consistentes e duráveis, capaz de manter a existência desse universo por um tempo significativo, permitindo a produção de uma história.
Infinito temporal: a eternidade de Godel e as atribulações causais da teoria da relatividade geral
Vimos a questão do infinito espacial. Comentamos também a possibilidade de o universo ter uma existência em um tempo ilimitado no passado, ou seja, infinito. Mas há uma outra possibilidade que os físicos criaram e que envolve a noção que podemos chamar de infinito causal ou, com mais propriedade, de infinito não causal. O que devemos entender por isso?
Para mostrar sua amizade a Einstein e seu enorme respeito pela sua obra, em uma conferência em 1949 o lógico Kurt Godel enveredou por um caminho para além de suas contribuições usuais e nos ofereceu uma belíssima síntese dos efeitos atribulados que a teoria da gravitação como descrita na relatividade geral provoca sobre o tempo.
Godel construiu no interior dessa teoria uma configuração inusitada e extremamente difícil de ser entendida e mais ainda de ser aceita pelos físicos: a possibilidade de existir, em algum lugar em nosso universo, uma curva capaz de se contorcer temporalmente sobre si mesma. Essas curvas, chamadas genericamente pela sigla CTC (tirada da expressão inglesa closed time-like curves), permite a um viajante cósmico passar pelo menos duas vezes pelo mesmo ponto na estrutura espaço-tempo gerada por corpos em rotação. E, logo podemos concluir, pode retornar inúmeras vezes a esse mesmo ponto no espaço-tempo.
Assim, um caminhante etéreo que tivesse sua trajetória controlada por essas curvas godelianas poderia reproduzir a eternidade a que o mito se refere. Seria sua sorte igualmente trágica, mesmo sem ter-lhe associado um castigo divino? Essa eternidade que não se esgota e que parece se identificar a um sonho não pode ser entendida como um pesadelo, mas dele não podemos escapar.
Esses caminhos colocam de imediato uma dificuldade à qual não se pode dar as costas, não pode ser ignorada. Seria possível, nesse retorno ao mesmo ponto espaço-temporal, alterar um evento que ali ocorreu? Não estaríamos assim trazendo à tona uma questão de princípio e que fundamenta todo e qualquer discurso sobre a ordem do mundo?
Pois essa é a questão que devemos enfrentar. E se não tivermos condições para apresentarmos uma resposta que seja entendida como adequada e satisfatória, deveríamos ao menos limitar as consequências desse fracasso. Para evitar essas dificuldades, os físicos, em sua grande maioria, aceitaram o ponto de vista simplista de que as curvas de Godel são somente fantasias matemáticas associadas a uma teoria da gravitação e que não possuem realidade em nosso universo. Um dos físicos mais mediáticos, S. Hawking, enfatizando essa posição conservadora da comunidade dos físicos, ousou apresentar como argumento contra a possibilidade de viagens não convencionais a sentença: “afinal, não vemos muitos turistas vindos do futuro passeando por aqui, não é mesmo?” Ou seja, adotou a solução da Rainha de Vermelho de Alice no país das maravilhas: “vamos mudar de assunto!”
Nesse ponto, talvez fosse conveniente para evitar atritos maiores fingirmos adotar a atitude da maioria dos físicos e com uma voz bem baixa, apenas audível – mas gritante em nossas ações e em nosso íntimo – adaptar a famosa frase de Galileu para acrescentar, ao nos referirmos a essas curvas godelianas, aceitando essa simplificação conservadora que as rejeita e até mesmo inibe sua análise ulterior, sussurrar “… e no entanto, elas existem…”.
Causalidade local e global
Em verdade, devemos distinguir dois aspectos da questão causal e que pode fazer-nos entender que a visão newtoniana convencional de que “só podemos caminhar para o futuro” envolve o que entendemos por causalidade local. Uma outra estrutura, envolvendo o comportamento do universo em larga escala, consiste na causalidade global.
Embora os caminhos CTC de Godel gerem uma dificuldade causal, podemos dizer que ela é limitada, ou seja, não produz uma anomalia causal completa. Isso porque localmente, em cada ponto de nossa vizinhança, tudo se passa como se a causalidade convencional, newtoniana, da física clássica fosse preservada. É globalmente que as dificuldades causais aparecem. Isso se deve porque causalidade global é uma característica do espaço-tempo, associada àquilo que os matemáticos chamam de topologia, e pode ou não coincidir com a estrutura causal local. Estamos acostumados a reconhecer uma impossibilidade de violação causal em nossa vizinhança. No entanto, não podemos negociar a estrutura causal global pois a física ainda não conseguiu entender os possíveis modos de selecionar dentre as infinitas possibilidades uma topologia para o universo em que vivemos.
Isso se deve ao reconhecimento de que os físicos não conseguiram associar a topologia do universo a alguma interação conhecida. Por exemplo, a teoria da relatividade geral que propõe descrever os processos de interações gravitacionais e que determina a geometria do espaço-tempo não tem muito a dizer sobre propriedades globais do universo. Isso permite imaginar ser possível existir uma estrutura causal regular em nossa vizinhança e, no entanto, que caminhos tipo CTC, violando a separação apriorística de passado e futuro, possam existir em escala cósmica.
Do ponto de vista prático pareceria que os viajantes que podem reconhecer essas propriedades estriam hibernando em uma repetição interminável e repetindo os mesmos gestos e efeitos. Repousam, poderíamos dizer, para que Chronos possa ditar as normas e regras a serem obedecidas e com as quais construiu-se a civilização moderna.
E, no entanto, esses caminhos CTC colocam uma questão à qual não se pode dar as costas, que não pode ser ignorada. Seria possível, nesse retorno ao mesmo ponto espaço-temporal, alterar um evento que ali ocorreu? Essa repetição indefinida que apontamos acima poderia ser alterada? Uma tal situação traz à tona uma questão de princípio e que fundamenta todo e qualquer discurso sobre a ordem do mundo.
Na natureza reconhecemos que tudo aquilo que não for proibido de acontecer, acontece. Assim, enquanto a teoria da relatividade geral continuar sendo o paradigma de construção de uma explicação dos fenômenos gravitacionais não podemos deixar de afirmar que esses caminhos CTC, possíveis de existirem em nosso universo, contribuem de modo muito especial e singular para que o incluamos na lista de processos que não têm fim, em uma análise dos diversos modos de aparecimento do infinito.
Bifurcação no cosmos
Um fluido perfeito é representado por uma densidade local de energia (ou matéria sob qualquer forma) e uma pressão que em geral – pelo menos assim ocorre no modelo padrão da cosmologia – está linearmente relacionada à sua densidade. Outro tipo de comportamento constitui fluido dissipativo, uma configuração da matéria associada, por exemplo, a processos viscosos que possuem uma conexão não linear entre a pressão e a densidade, podendo depender também de outras variáveis, algumas delas associadas a uma natureza geométrica.
Processos dissipativos existentes em alguma fase do universo podem provocar o aparecimento do fenômeno de bifurcação no universo e a consequente indeterminação em sua evolução que altera radicalmente a versão simples e convencional que os cosmólogos se acostumaram a aceitar. Essa bifurcação não é consequência de nenhuma proposta esdrúxula, nem aparece como consequência da violação de alguma lei física. Em verdade, nada mais é do que uma consequência natural do caráter não linear das equações da relatividade geral quando aplicadas a certas situações envolvendo a matéria responsável pela evolução do universo e que podem ter acontecido em épocas remotas.
É bem conhecido que certas reações químicas podem ser descritas pelo que os matemáticos chamam de sistemas de equações não lineares autônomos, isto é, equações que não possuem uma dependência explicita do tempo. A partir do exame dessas equações e da análise das propriedades de estabilidade dos estados fundamentais de equilíbrio de alguns sistemas químicos, Ilya Prigogine e sua colaboradora Isabelle Stengers escreveram um belo livro (La nouvelle aliance) onde apresentam uma reflexão sobre as consequências dinâmicas envolvendo configurações de fluidos viscosos em distintas fases do processo de evolução de sistemas físicos localizados. O que eles não ousaram – e isso é compreensível, pois os cosmólogos também demoraram a aceitar isso – foi imaginar que esse tipo de processo de bifurcação pode acontecer em processos mais complexos envolvendo como elemento fundamental o próprio universo.
Um dos aspectos mais surpreendentes dessa configuração se refere ao caráter da perda explícita das características determinísticas do sistema de equações descrevendo processos irreversíveis. Dito de outra forma: esses processos contêm um germe de indeterminação. Prigogine conclui que devido a essa propriedade o mundo se torna encharcado de historicidade e perde assim o caráter determinista que lhe havia sido imposto pela tradição como natural e absoluto. Essa historicidade de processos físicos, compreensível quando se trata de processos limitados, compactos, produzidos em laboratórios, como os que Prigogine examinou em seu texto, foi extrapolada de modo inesperado com a demonstração (Novello e Rodrigues) de que uma situação semelhante pode ocorrer em escala cósmica gerando a historicidade do universo.
Essa propriedade ocorre naquilo que os matemáticos chamam de sistemas dinâmicos e pode se referir a variados processos, desde interações entre corpos materiais como descritos na mecânica, evolução de um modelo de expansão do universo, processos de crescimento populacional ou até mesmo a questões de trânsito em uma cidade. Todos esses distintos fenômenos podem ser descritos por um conjunto de equações especiais, não lineares e que em geral não admitem simples soluções analíticas. Para poder prosseguir na análise do sistema em questão, diversos métodos foram desenvolvidos que permitem encontrar propriedades gerais dessas soluções mesmo que não tenhamos um modo fechado para descrevê-las.
No entanto, um caminho no mundo não é somente uma trajetória contínua ou não, regular ou não, quebrada ou não, no espaço-tempo, uma estrada por onde algum corpo se move, se desloca, se esgueira. Um caminho, lato sensu, é uma orientação, um guia, a direção de um processo que vai desembocar naquilo que simplificadamente chamamos lei física.
Na organização do mundo que a ciência tradicional fornecia, a característica mais fundamental, que lhe concedia então um caráter muito especial, consistia na univocidade daquele caminho. Cada estrutura, cada evento possuía sua particular rede de pontes sucessivas, reais ou imaginadas, que deveriam ser atravessadas antes de chegar à sua causação. Esse caminho, projetado para além das particularidades fortuitas e desnecessárias, permitia de um modo unívoco e rigoroso chegar-se ao mundo real, às origens causais dos processos no mundo, sujeito então de análise e investigação. O momento supremo desse ponto de vista se consubstancia na afirmação, incontestada, de que existe um só mundo. Com base nesse esquema, se organizou o Programa Cosmológico de Einstein, produzindo uma ordem fechada a partir da qual se estruturou um modelo de universo: uma porção imensa de espaço e de tempo onde, graças à sua regularidade, a unidade do mundo é invocada. Em outras palavras, existiria um e somente um mundo de leis físicas bem definidas e ao cosmólogo competiria orquestrar essas leis na imensa harmonia das esferas celestes. Infelizmente, os últimos acordes sinfônicos parecem soar longe na história e um grande ruído cacofônico parece melhor representar os sons que vagamente conseguimos distinguir no cosmos. É J. F. Lyotard quem, enfatizando uma nova orientação na física, afirma que “la science postmoderne fait la théorie de sa propre évolution comme discontinue, catastrophyque, indéterministe, paradoxale”. Os argumentos que induzem a essa orientação são retirados da prática científica, através de críticas que se tornaram possíveis graças ao crescimento de correntes de ideias vindas de diferentes setores. Para isso, bastante concorreu o sucesso da sistematização da termodinâmica de sistemas fora do equilíbrio, bem como as críticas ao determinismo clássico na ciência da mecânica que, hoje, pretende afirmar a negação do mundo fixo, rígido, que outrora lhe era outorgada, ao ser conduzida a contabilizar os efeitos de processos físicos não lineares, acarretando, ambas, uma orientação peculiar onde a novidade, o evento não programado, se forja na prática do mundo, localmente, e não segundo os rigores de leis físicas que pairavam inexoravelmente longe de qualquer contato com mundos causais compossíveis. Assim podemos entender o aparecimento de uma nova aliança capaz de distinguir por um lado o comportamento estável, regular, bem-comportado das leis físicas naquelas situações em que o fenômeno ocorre longe de seus múltiplos pontos de equilíbrio; e, por outro lado, as peculiares propriedades desses sistemas quando próximos daqueles pontos, acarretando a particularização de seu comportamento, sua não submissão a leis estruturais gerais, amplas e deterministas, num exemplo do que chamaríamos a historicidade do processo: a dependência da sequência lógica do mundo ao fenômeno, à ocorrência não predeterminada, inesperada. Em outras palavras, veríamos o afastamento, a quase negação da lei física (considerada, dentro do espírito tradicional da ciência, como estrutura rígida), quando flutuações genéricas passam a dominar o comportamento evolutivo de um sistema físico, nas vizinhanças daqueles pontos especiais de equilíbrio. Essa mudança de atitude na física foi possível graças, entre outros, à utilização, sem restrições, do método matemático de análise de sistemas dinâmicos, de processos representados por configurações que possuem bifurcações.
A teoria matemática das bifurcações se desenvolveu há mais de um século e de Poincaré até hoje conseguiu formalizar a ideia de que no mundo ocorrem situações em que um processo que chamaríamos catastrófico induz uma opção de trajetórias, bastante sensíveis a perturbações locais, eventualmente aleatórias. Assim, um caminho de comportamento de um sistema físico não está univocamente determinado por condições pré-fixadas, mas depende de pequenas e eventuais flutuações que ocorrem nas vizinhanças de pontos especiais de sua trajetória, reconhecidos e precisados pelo exame estrutural das equações que descrevem processos físicos e que chamamos precisamente de pontos de bifurcação. Assim, nas fronteiras desses pontos, seríamos obrigados a abandonar uma descrição causal e ceder o papel à descrição casual do mundo, uma vez que a opção efetiva do trajeto a ser percorrido é impossível de ser fixada deterministicamente. Uma cadeia de eventos dessa natureza conduz a introduzir a história do processo no mundo físico e à limitação de um pensamento cientificista que se acreditava fechado em si, na elaboração de um programa de descrição minuciosa de tudo-que-existe, através da diligente aplicação de uma ordem inexorável antecipadamente inflexível e eterna, imanente no mundo. A tradicional função precípua do cientista de explicitar aquela ordem, revelando as leis da causação do mundo, ficaria assim abalada. É importante citar aqui que o fenômeno da bifurcação não é do ponto de vista matemático, fantasioso, nem provoca nenhuma desordem no pensamento lógico. É na física, na aplicação dessa estrutura matemática à natureza, que algumas de nossas injustificadas convicções sobre o papel da lei física na ordem do mundo parecem se abalar e conduzir a uma nova reflexão sobre ele. Nesse aspecto, a teoria da bifurcação desempenha um papel semelhante ao das curvas quebradas, geradoras do indeterminismo browniano, e dos processos quânticos. Todos eles apresentam o futuro como um processo, cuja irrupção no real provoca espanto ao invés da indiferença que a ordenação por lei conhecida impõe. Que consequências ocorreriam em nossa representação do mundo, na visão que chamamos einsteiniana do cosmos, se fôssemos levados a uma descrição do Universo por meio de equações que admitem pontos de bifurcação? De um só golpe, o mundo organizado da cosmologia tradicional desmoronaria e o cosmos, enquanto unidade de exame, cederia vez a um programa de ocorrências múltiplas causalmente desconectadas. Não poderíamos então referirmo-nos a um só mundo, posto que sua descrição se transfiguraria em múltiplas trajetórias compossíveis, em múltiplos universos. Para podermos continuar essa análise sem que estejamos violando as leis da boa convivência científica, deveríamos poder exibir uma argumentação convincente o suficiente para permitir a elaboração de um modelo factível, capaz de assegurar ao Universo características típicas do comportamento acima sugerido, conduzindo à possibilidade de um processo de bifurcação. Vimos anteriormente como o campo gravitacional pode criar matéria, quer sob forma de matéria ponderável, quer sob forma de radiação, gerando em ambos os casos energia não gravitacional. Essa energia modifica a estrutura do espaço-tempo, sua geometria. Resta então a questão: qual a forma de distribuição do conteúdo energético dessa matéria recém-criada? Como pode ela ser descrita matematicamente? Embora uma teoria definitiva sobre o comportamento dessa matéria não seja ainda acessível à física, podemos hoje afirmar – baseados principalmente nos trabalhos de cosmólogos russos – que uma boa descrição fenomenológica trataria aquela matéria nova recém-criada como uma estrutura clássica, contínua, identificável a um fluido viscoso. Isso nos conduz para além da descrição da distribuição de matéria-energia da cosmologia convencional onde ela é identificada a um fluido perfeito. Nessa nova descrição, entre outras propriedades marcadamente diferentes, a entropia do sistema não se conserva. Uma orientação do tempo consequentemente aparece, graças à segunda lei da termodinâmica, identificando uma privilegiada direção de evolução do mundo, associada ao crescimento daquela entropia. O mundo perde, assim, uma possível simetria temporal, ganhando, em contrapartida, uma ordenação temporal intrínseca dos fenômenos. Seria talvez importante notar que o processo viscoso é gerado pela alteração provocada no vazio (quântico) graças ao comportamento dinâmico do campo gravitacional. Este último excita certos estados virtuais da matéria que, de outro modo, restariam em quietude para sempre, projetando-os no real. Em resposta a essa excitação que organiza a transmutação de energia gravitacional em matéria, essa reage sobre a estrutura do espaço-tempo, gerando modificação na geometria do mundo, em um processo em cascata, de realimentação ao mecanismo de criação da matéria. Num universo em evolução, as variáveis fundamentais com as quais podemos descrevê-lo podem ser reduzidas a duas: a densidade de energia E e a variação com o tempo de seu volume V. A dinâmica do mecanismo de criação da matéria, descrito nessas variáveis possui estrutura semelhante às equações que identificamos acima, constituindo um sistema que pode conter o fenômeno de bifurcação. Assim, podemos compreender que em um gráfico planar contendo aquelas duas variáveis E e V, cada caminho, nesse gráfico a duas dimensões, descreve uma trajetória de evolução do mundo, um possível universo. Assim, nosso Universo, aquela totalidade que pretendíamos única e fechada, está representado por uma curva, chamemos C. É possível então que em algum ponto – chamemos ponto Z – ocorra o fenômeno de bifurcação a que nos referimos. Se remontamos essa curva anterior a Z, que identificamos, neste esquema, como a fase anterior de existência do universo, vemos que atravessar Z, o ponto de bifurcação[1], é escolher um caminho: ou C ou um outro, digamos B. A apresentação espaço-temporal do mundo que identificaríamos como o universo atual (trajetória C) pode ser estendida para além do ponto de bifurcação pelo exame detalhado do comportamento do sistema físico que descreve a matéria e o espaço-tempo, a interação dos corpos com a gravitação. Passar através de Z equivale a participar da realização de um mundo, à escolha aleatória de um caminho com propriedades específicas distinguindo-o, basicamente pela sua realização, de outros caminhos compossíveis (por exemplo, B). Tal exame equivaleria, no caso do modelo-padrão, a ir além da singularidade, ao estudo do pré-universo identificado como pré-friedmanniano, o que – a ser verdadeira a singularidade – seria aí impossível.
Esse salto de imaginação, a que aqui somos conduzidos pelo exame da dinâmica da interação matéria-campo gravitacional, isto é, do vazio com o espaço-tempo, e a existência do ponto de bifurcação mostram que a era do Universo em que vivemos não está ligada deterministicamente a um processo físico anterior. Embora possamos propor a identificação de uma trajetória de evolução do universo, como ocorre no modelo-padrão de Friedmann, onde a existência de uma singularidade apaga completamente a memória de uma possível etapa anterior, aqui também, ao levarmos em conta processos viscosos, nos deparamos com a mesma impossibilidade de organizar uma cadeia lógica determinista que seria atribuída, então, a processos físicos compulsoriamente sequenciais. Passar através do ponto Z é um fenômeno que deve ser aceito como um dado, sem uma causação legítima, sem previsão possível. Nesta descrição da matéria viscosa, geradora das propriedades do espaço-tempo, a escolha de um caminho, isto é, das características do Universo atual, não está nele marcada. Isso implica na impossibilidade de podermos retraçar suas origens e processos de causação a partir de princípios ou estruturas primárias que poderiam estar nele contidas: as causas do mundo não estão no mundo. Assim, nosso universo parece mais aberto a uma configuração que Cantor trataria com cuidado em seus algoritmos, permitindo uma inesgotabilidade vertiginosa e ao mesmo tempo rica e aberta ao invés desse cenário pobre, triste e determinista que é o que herdamos da cosmologia de Einstein.
Essas bifurcações seriam caminhos que o universo deveria escolher e seguir por sendeiros que estariam em nosso futuro supondo que possamos ainda representar esse cosmos a partir de uma separação, construindo um espaço tridimensional e um tempo global. Resta então aceitar as diversas propriedades como compossíveis em um mundo ainda em formação.
U-topia e U-chronos
A motivação para introduzir em uma conversa sobre o infinito, estruturas que estão fora do espaço (utopos) e fora do tempo (uchronos) é para enfatizar que todo o uso do infinito na física passa por situações que envolvem não somente aquilo que é entendido como um fato físico, mas especialmente a arena desses fenômenos, o território onde no espaço e no tempo eles são descritos.
É possível imaginar um universo onde o tempo “não passa”, isto é, um universo sem dinâmica, estático, fora da contabilidade temporal. Pura configuração espacial congelada no tempo ou, mais rigorosamente, sem referência temporal. Esse foi precisamente o modelo inventado por Einstein para obter a primeira aplicação cosmológica de sua teoria da relatividade geral.
No entanto, de natureza bastante diferente e mais difícil consiste a tarefa de imaginar uma configuração fora do espaço, mesmo que não lhe imponhamos nenhuma restrição temporal. Isso significa que, de fato, pensamos a descrição do tempo intimamente dependente do espaço. Como diz JM Salim, o tempo descrito na física moderna nada mais é do que um disfarce de uma configuração espacial. Pode ser diferente? O filósofo Henri Bergson propôs uma alternativa (ver in JM Salim ou H Bergson). No entanto, por várias razões, os físicos não a levaram seriamente em conta, embora aqui e ali alguns comentários sobre a crítica bergsoniana ao uso da forma newton-einsteiniana do tempo tenha aparecido.
A separação espaço e tempo não pode ser completada enquanto as bases da ênfase local que funda a geometria permanecerem. Isso porque a construção na física dessas configurações espaço-tempo é realizada no interior da visão einsteiniana de que a geometria do mundo deve ser identificada com os processos gravitacionais. Mesmo sem reconhecer essa limitação, vários cientistas, inclusive Einstein, se lançaram à tarefa de incluir outras forças na constituição da geometria. As razões para essas tentativas são várias, mas creio que podemos unificá-las somente com uma motivação maior: a hipótese apriorística da unidade do mundo.
Da análise de Lautman que comentei acima retiro a certeza de que existe uma solidariedade conciliadora dos diferentes níveis envolvendo tudo-que-existe. Isso não pode ser entendido como gerando uma necessidade ou obrigatoriedade formal de exibir uma unidade no mundo, a menos que a consideremos como uma ideia conveniente e simplificadora. E por quê? Creio que o melhor modo de entender essa dificuldade é apresentar um exemplo de como poderia ser diferente e, para isso, devemos abandonar a visão estritamente local da construção de uma geometria que privilegia uma visão atomística a partir de propriedades locais.
Antes um pequeno desvio para fixar o contexto de meus comentários. Alguns físicos, que se autoproclamam idealistas, argumentam, como por exemplo Roger Penrose, que o trabalho de Einstein ao erigir sua teoria da relatividade geral revelou algo que já estava presente. Segundo ele, Einstein não teria somente descoberto como descrever uma parte da física, a teoria da gravitação, mas, mais fundamental: teria revelado a natureza do espaço-tempo. Creio que essa afirmativa não é somente idealista – o que não seria um grande pecado – mas ela é perniciosa para a evolução de nossos conceitos sobre o mundo, como o exemplo a seguir poderá esclarecer.
Unicidade do espaço, unicidade do tempo
A física clássica, a partir de Newton, estruturou a arena onde os fenômenos ocorrem a partir da ideia universal de que existe um espaço absoluto e um tempo absoluto. Essas duas configurações são a priori e não podem dar origem a uma análise que destrua esse caráter. Essa hipótese não criou nenhuma grande dificuldade prática entre os físicos, embora um certo desconforto pudesse ocorrer em algumas situações especiais. De qualquer modo, ela consistia em uma poderosa e útil hipótese de trabalho, mesmo que se tenham empenhado em várias ocasiões em negar que essa arena pudesse aceitar outra configuração, o que faz-nos entender a boutade “hipothesis non fingo”.
Multiplicidade do tempo (uma para cada corpo)
No começo do século XX, a partir de uma série de avanços notáveis realizados por Poincaré, Fitzgerald, Lorentz, Einstein e outros sobre a dinâmica dos corpos em movimento, surgiu a proposta de associar a cada observador um tempo próprio. Isso implicava um afastamento das noções newtonianas de espaço absoluto e tempo absoluto a partir da hipótese de que diferentes observadores em repouso ou em movimento uniforme uns em relação aos outros possuem uma lei especial de correlações entre esses tempos, determinada pelo que se chamou de transformações de Lorentz. A aceitação dessa multiplicidade temporal pelos físicos só foi possível porque ela veio travestida da solução da incompatibilidade de duas teorias físicas solidamente estruturadas, no campo da dinâmica dos corpos materiais e na propagação da radiação eletromagnética. Os físicos só aceitaram aprofundar o conceito newtoniano do tempo porque conseguiu-se operacionalizar esses tempos através de uma ordem construída pela comparação de relógios espalhados entre diferentes observadores. Foi a solução daquela incompatibilidade a razão para a aceitação dessa mudança radical na configuração temporal da física newtoniana. O resultado final foi a criação de uma nova estrutura absoluta, o espaço-tempo que culminou com a síntese einsteiniana na teoria da relatividade especial. As antigas configurações espaço absoluto e tempo absoluto foram diluídas e transformadas na unidade absoluta espaço-tempo, que passou a ser o novo fundamento a priori com a mesma propriedade fundamental de não ser ulteriormente desintegrado.
Podemos simplificadamente reter que a relatividade especial fundamentou a hipótese de que cada corpo material, cada observador possui um tempo próprio, individual, que o caracteriza. Perdeu-se o contexto comum que unia todos os corpos materiais através dessa profusão de tempos. O espaço, associado a cada observador através dessa particularização temporal, seguiu a mesma sorte.
Retorno à unificação: a geometria única
Essa perda de um território comum, de uma unidade que poderia servir como uma realidade comum a todos, foi compensada quando, na década seguinte, a construção da teoria da Relatividade Geral produziu uma nova unidade, a partir da hipótese de que um espaço-tempo comum a todos os observadores poderia ser construído ao aceitarmos a existência de uma mesma e única geometria. Essa geometria variável, dependente dos corpos materiais e energia sob qualquer forma, mudaria de ponto a ponto, mas deveria ser identificada ao campo de forças da gravitação.
Pois bem, estamos chegando ao momento em que a liberação dessa submissão à unicidade da geometria parece ser a condição necessária para irmos além da limitação desse espaço universal comum e darmos um novo passo na desconstrução do absolutismo sub-repticiamente instalado nos fundamentos da relatividade geral.
Multiplicidade de geometrias (uma para cada corpo)
Esse novo passo retém memória dos dois grandes movimentos que comentei acima, a relatividade especial e a relatividade geral. Da primeira extraímos a individualidade de cada observador ou corpo material e da segunda herdamos a possibilidade de utilizar a estrutura da geometria para empreender uma nova operação.
Na base dessa conjectura encontramos a hipótese de que cada observador, cada corpo material, carrega consigo uma sua geometria especificada pela totalidade das interações que atuam sobre ele. Assim como na relatividade especial, cada observador carregava um seu tempo próprio, aqui se dá um passo além e se institui, ou melhor, se associa a cada observador uma geometria. A partir do reconhecimento desse emaranhado de geometrias, que tipo de ordem espaço-temporal pode ser construída?
Aqui devemos uma vez mais nos reportar a Lautman e sua proposta de entender a conciliação entre o local e o global a partir da hipótese da construção de solidariedade. No entanto, como esse texto está se tornando muito técnico, isso me impõe que ele deve parar aqui. Se deixei-me comentar essas questões foi para enfatizar a dualidade local-global que persiste em toda consideração sobre a arena do mundo. Em outro lugar deste livro irei comentar com detalhes como aparecem essas múltiplas geometrias que são associadas a cada corpo.
Ultrapassando a repetição ou elogio à imaginação
Esse capítulo pretende ser uma incursão em um território inexplorado e desconhecido através de uma ideia utópica, a partir da hipótese de que a atitude extremamente negativa dos físicos em relação ao infinito pode ter contribuído para a ausência de outras interpretações/representações da natureza e limitado em vários aspectos a contribuição dos cientistas na função de construção do real. O que segue é uma idealização de como seria possível gerar um operador capaz de ultrapassar essa barreira através de um exemplo específico. Para isso devemos nos preparar para produzir uma proposta para além do dialeto newtoniano (ver apêndice) que controla ainda hoje o modo dominante de pensar a natureza.
Vimos como a ênfase, seja no atomismo, seja na declaração da dependência completa das leis físicas locais à estrutura global do universo, pode produzir limitações que Lautman muito bem apontou ao considerar a relação entre propriedades locais e globais.
Depois do longo caminho que percorremos, podemos negociar uma possível síntese e ir além do que foi construído e associado a uma restrita visão científica dos fenômenos quando diversos infinitos se interpõem mediando e restringindo uma descrição formal. Podemos ir além dessas limitações? Podemos ter outro caminho que não seja aquele que os físicos aceitaram como única solução possível: a eliminação completa do infinito?
Ou, alternativamente, excluir arbitrariamente o infinito do corpo de situações possíveis pode ser entendido como o impedimento de um modo específico de acesso ao real? Afinal, devemos evitar o infinito, como fizeram até aqui os físicos? Ou devemos usá-lo como elemento de extensão em uma situação crítica?
Seria possível construir uma linguagem, alguma forma de procedimento formal que permita torná-lo um instrumento que permita a passagem de uma configuração – que chamaríamos então de nível ou fase – a uma outra? E como se daria essa passagem e que fases seriam essas que se distinguiriam por uma porta de entrada/saída à qual estaríamos atribuindo esse papel singular e especial ao infinito? No que segue procurei apresentar como um instrumento matemático pode ser construído, embora não tenha a pretensão aqui de exibir todas as etapas que levariam consistentemente a produzir uma álgebra que contribua para uma resposta afirmativa, mas sim dar um primeiro passo nessa direção.
Projetores
Os pescadores reconhecem pelo tamanho Ω dos buracos de uma rede os peixes que podem obter como resultado de a jogarem no mar. Os peixes grandes, maiores que as dimensões da trama da rede são retidos, os menores escapam pelos buracos e não podemos apanhá-los com esse instrumento. Repetir essa operação, com essa mesma rede, não muda em nada o resultado.
Os matemáticos chamam ao procedimento formal que simboliza essa operação da rede de projetor. Assim, projetor é um operador que separa nítida e universalmente dois tipos de configurações complementares. No caso acima, essas duas configurações estão representadas pelos conjuntos A e B assim definidos:
A é o conjunto dos peixes maiores que Ω; B é o conjunto dos peixes menores que Ω, sendo Ω o projetor.
Uma característica notável do projetor é sua eficiência. A operação de um projetor é absoluta, isto é, depois de realizada, a operação separa inequivocamente em duas classes os objetos sobre os quais ela operou. Uma segunda aplicação desse projetor não muda o resultado da primeira. Isso é representado formalmente pela simbologia
Ω2 = Ω
Ou seja, o quadrado da operação Ω, o resultado de sua realização repetida duas ou mais vezes seguidas é idêntico ao de uma única operação.
Ou seja, podemos escrever
Ωn = Ω
qualquer que seja n, pertencente ao conjunto dos números naturais. Essa propriedade do projetor ocorre em sucessivas operações finitas. Devemos aceitá-la como um procedimento universal cuja estrutura se mantém ao ser transportada para o território dos transfinitos, quando n for identificado com um transfinito?
Para tentar responder a essa questão, para que ela faça sentido, devemos nos libertar da hipótese de que o infinito, assim como pretendem os físicos e como até aqui viemos considerando neste texto, nada mais é do que uma imagem, um procedimento formal, que se instaura no território da matemática, mas que não possui realidade no mundo. Podemos abandonar essa restrição? Vamos por momentos ir além e deixarmo-nos guiar pela fantasia, permitindo que a imaginação possa ir além da representação do real que os físicos impõem e, para construir uma metodologia seguindo os cânones da matemática, escolhemos dotar essa fantasia de um procedimento formal preliminar, deixando que sua interpretação e eventual aplicação ao mundo seja tarefa para uma etapa ulterior. Ou seja, concentremo-nos aqui na utopia.
Operadores transfinitos
Começamos por construir um operador que depois de um número finito de repetições produz sempre, e em cada uma de suas aplicações, o mesmo resultado: trata-se de um projetor, digamos Ω.
Em seguida aparece a questão: o que aconteceria se repetíssemos essa operação um número infinito de vezes? Espera-se, é natural imaginar, que coerentemente com as propriedades que seguem de sua definição, nada mude. Poderíamos obter um resultado diferente ao aplicarmos essa operação um número transfinito de vezes? E, se isso fosse possível, saberíamos localizar onde se passou a transformação?
No mundo quântico os físicos mostraram que nem sempre um elétron excitado em uma órbita em torno de um núcleo contendo prótons e nêutrons pode retornar a seu estado anterior e emitir sua energia de excesso. Para que isso seja possível, é preciso que o elétron seja excitado com uma energia bem determinada ou, pelo menos, que permita a passagem da órbita excitada para uma outra órbita não excitada. Isso se deve precisamente ao processo de existência de quantum específico de energia: trata-se do mundo quântico, com propriedades distintas da física clássica que nos cerca e à qual estamos cotidianamente acostumados.
De modo semelhante, Marie Curie mostrou que existem elementos na natureza que exibem o fenômeno de radiação, gerando a desintegração da matéria. Sabemos que um certo número de elementos de um corpo radioativo irá se desintegrar através da alteração em alguns de seus átomos. No entanto, não sabemos especificar quais se desintegrarão no próximo momento. Podemos imaginar interpretar esse fenômeno argumentando que alguma forma de processo coletivo desemboca em um movimento local. Podemos até mesmo imaginar que um certo estado que chamaríamos de latente percorre essa substância. Seria esse modo de entender o que se passa em um processo como o que estamos imaginando?
Se isso fosse possível, se pudéssemos efetivamente construir uma tal repetição transfinita criadora, que simbologia deveríamos lhe atribuir? E, mais ainda, como associar uma tal operação a um componente físico? Ou deveríamos abdicar de construir um só cosmos e aceitar outra possibilidade, como alguns cosmólogos querem nos fazer crer ser possível?
De qualquer modo, o que se produz nessa operação transfinita é a novidade, aquilo que não se encontrava no corpo de propriedades da fase anterior, a não ser que consideremos essa transfiguração existindo na fase anterior como “latente”. Sim, trata-se da passagem de uma fase a outra e que não a contém, pois exige que aceitemos que o túnel transfinito que permite esse salto seja dotado de propriedades esdrúxulas. Seria necessário passar por esse caminho do infinito para saltar de uma fase a outra? Sabemos que diversas configurações permitem a passagem de uma fase a outra, como acontece no túnel do operador de temperatura entre fases líquida e gasosa, por exemplo. Poderíamos ser guiados por essa analogia? Embora os físicos costumem empregar esse método, a analogia, em suas hipóteses, ele não deve ser aceito como gerador de um procedimento eficiente se não pudermos acrescentar realizações menos especulativas.
Não me estenderei mais nesse caminho que mais parece levar a lugar algum, como um holzwege heideggeriano. No entanto, parece-me que é nesse território, nesse inacessível recanto onde construímos a realidade – e a compartilhamos com outros animais e coisas – que devemos perguntar sobre a aparição do infinito.
Conclusão ou as fronteiras incertas do infinito
Infinito, literalmente in finito, o que não tem fim, é o inacabado. Aquilo que não terminou, não pode terminar, o que persiste e continua – como essa nossa análise, onde apenas começamos um diálogo. Não deve provocar incômodo nem insatisfação se não conseguimos completar os detalhes da tarefa que nos propusemos. Faz parte de nosso tema. Todo final de um discurso é abrupto, embora algumas vezes ele tenha uma aparência tranquila por ter alcançado uma síntese e encerrado um capítulo. Somente ilusão, espaço para ganhar fôlego e voltar mais adiante ao mesmo tema.
Nesse caminho para entender as múltiplas faces do infinito, espero ter conseguido estimular algumas ideias ao comentar olhares distintos da física, da matemática e da cosmologia. Minha formação de físico e cosmólogo foi a principal responsável pela escolha dos atalhos que percorremos. E dessa nossa conversa, dessa proposta de diálogo, o que devemos reter?
Sem pretender empreender um balanço exaustivo para exibir até onde conseguimos penetrar, podemos, ainda que superficialmente, revisitar esses caminhos percorridos.
Em verdade eu estaria satisfeito e com missão cumprida se pudesse me identificar com um personagem de um romance que narra as peripécias de um viajante que foi acolhido nessa casa e a quem se pediu para contar uma história sobre o infinito. Ele escolheu relembrar passagens conhecidas de enredo conhecido, para não causar surpresas, mas fazendo isso de um modo especial, com uma ênfase particular, própria, uma história articulada entre diferentes saberes e, se fosse possível, cheia de sentidos novos – enquanto uma tempestade o impede de ir embora e reencontrar seus companheiros de estrada.
Por isso tentei seguir, sempre que possível, caminhos convencionais. A razão é que como este não é o lugar para considerações técnicas exclusivas de um saber matemático, procurei adaptar minha narração a conceitos usuais, universais, com os quais lidamos com frequência, independentemente de um conhecimento específico. Embora tenha conseguido seguir essa estratégia em quase toda minha análise, não me foi possível evitar deparar com uma surpresa, uma exceção, vinda de um personagem que me impôs um roteiro inesperado: Cantor.
Certamente quando ele entra em cena não podemos ficar insensíveis. O que diz a física, a cosmologia, a ciência em geral, produz admiração, respeito e algumas vezes, encantamento e alegria. Mas nada se compara às propostas de Cantor. O que ele nos diz, o que ele sugere em sua chegada ao inexplorado domínio dos transfinitos é mais do que nos será dado a conhecer pelos territórios dos deuses, sejam eles os encantados cenários celestes de Zeus, sejam as lúgubres regiões dos infernos de Plutão (Hades).
Lautman critica Russel e Whitehead por quererem atomizar a matemática e retirar-lhe o componente histórico. A historicidade do cosmos é de outra natureza? O capítulo anterior, de aparência fantasiosa, é uma tentativa de mostrar como a atitude extremamente negativa dos físicos em relação ao infinito pode ser um simples instrumento de dominação de um pensamento que se pretende manter e impedir outras interpretações de processos em situações-limite que exigem a mudança de paradigma.
Como entender a relação do infinito no mundo? Os físicos criaram teorias e leis que contêm inexoravelmente infinitos em suas descrições. Usam-se elaborados artifícios para evitá-los e as próprias leis da física são alteradas para isso. Esse empenho hercúleo mostra o desconforto que ele provoca em todo modo de descrição dos fenômenos que se identificam com a realidade. Isso nada mais é do que a impossibilidade de obter em um processo de medida, com qualquer instrumento real, um número que não seja finito. Assim, nenhum observável pode representar esse estado infinito, e como o infinito não é o que segue de uma observação de um aparelho de medida, ele deve ser jogado fora, atirado para além das descrições científicas; ou, no máximo, aceitá-lo como uma estrutura assintótica, isto é, um estado inalcançável, impossível de ser explorado. Poderia ser diferente?
Em alguns importantes e singulares momentos na história da física do século XX, os positivistas tiveram que aceitar que investigações consideradas de natureza metafísica fossem empreendidas no interior de sua ciência. Um exemplo notável é a teoria quântica e sua incompreensível dependência ao princípio de incerteza de Heisenberg.
Para isso, no entanto, para que a análise metafísica pudesse estar presente até o momento no qual a teoria quântica fosse efetivamente aceita, mesmo que provisoriamente, foi necessário exibir uma eficiente instrumentalização desses conceitos metafísicos, permitindo a presença de representações materialistas incidindo no real. Ou seja, conseguir, a partir desses conceitos, construir uma explicação convincente gerando previsões e resultados capazes de serem observados.
Podemos então conjecturar que uma sorte semelhante esperaria o infinito? Para que ele não seja banido pelos físicos e possa entrar pela porta da frente no templo da ciência deverá estar associado a uma instrumentalização que permita realizar operações convencionais, nem que seja uma álgebra especial negociando relações entre observáveis?
Não é possível, nesse momento, fazer previsões sobre se e quando isso ocorrerá. No entanto, podemos aceitar que qualquer linguagem que permita ao infinito se tornar um conceito utilizável e prático deverá estar intimamente ligada às propriedades dos transfinitos. Ou seja – e essa é minha única certeza nesse território – somente através de Cantor podemos empreender esse formidável e singular salto.
Apêndice: Reproduzo aqui um trecho de meu livro Do big bang ao universo eterno sobre o dialeto newtoniano
Até o final do século XIX, as verdades científicas que a física exibia pareciam compreensíveis para os não cientistas, o que não ocorreu com as explicações contidas nas mais importantes teorias do século XX. Com efeito, tanto a Teoria da Relatividade Restrita ou Geral quanto a Teoria Quântica cercaram-se de uma aura quase transcendental junto à intelligentsia devido às dificuldades de sua compreensão para aqueles que não dominam suas formulações. Essa característica tem a mesma origem: essas teorias tratam de situações que não são facilmente observadas no cotidiano. A física newtoniana tratava de propriedades capazes de serem explicadas por considerações do dia a dia. Isto é, tratavam fenômenos envolvendo corpos em baixas velocidades, submetidos a pequenas pressões e temperaturas não elevadas. Ou seja, características associadas à dimensão humana. Por outro lado, a nova física se erguia sobre experiências produzidas, sofisticadas e de difícil acesso. Elas tratavam, por exemplo, do que ocorre quando se atinge velocidade fantasticamente grande, próxima da velocidade da luz – trezentos mil quilômetros por segundo; de corpos extremamente pequenos (da ordem de um átomo ou inferior) ou de situações envolvendo estruturas enormes como galáxias que contêm centenas de bilhões de estrelas. Passou-se assim de estruturas que envolviam a dimensão humana para muito além ou muito aquém dela. Costumo chamar essa situação de a questão do Dialeto Newtoniano, querendo com essa expressão explicitar as fronteiras do que tratava a física clássica (até o início do século XX) para a nova física, relativista e quântica, surgida nas primeiras décadas do século passado. Neste novo território de explicação, fenômenos que parecem impossíveis de serem realizados no mundo efetivamente ocorrem. Por exemplo, como entender, com nosso modo cotidiano, usando nossa experiência corpórea, produzir explicações newtonianas para dar sentido a sentenças como: para ir de um ponto do espaço a outro, no nível quântico, não é preciso passar por todo os pontos intermediários; embora, a cada momento, caminhe para meu futuro, estou ipso facto me aproximando de meu passado. O leitor não acostumado com essas afirmações da física do século XX certamente terá dificuldades de fazê-las entrar em seu sistema lógico construído com suas experiências próprias em seu cotidiano. Essa dificuldade se dá porque essas propriedades não são comuns, não estão ao acesso de nosso dia a dia; ao contrário, são propriedades da matéria em circunstâncias muito especiais, que só podemos acessar através de um embasamento formal sofisticado que é no que se transformou a física moderna. E, no entanto, elas formam a teia que sustenta a ciência e que devemos entender como constituindo a realidade subjacente que ela está revelando.
Bibliografia
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Hans Blumenberg: Teoria da não conceitualidade (tradução, comentários e introdução de Luiz Costa Lima).
[1] Note que Z não representa necessariamente uma singularidade do espaço-tempo.