GEOSAMBALIDADE: As máquinas de guerra do espaço racial
Filosoficamente; – por onde estamos quando pensamos? O que há por traz das ideias filosóficas na cunhagem do tecido histórico da cidade? Pensar é tomar decisões de um lado da história? Uma sociedade pode ser lida por novas gramaticas conceituais na produção do espaço urbano vinda dos debaixo e interditados de existência? Do que se trata quando lemos as camadas do tempo presente pelos interditados de existência?
Este ensaio abrirá novos clarões no caminhar das ideias de uma cidade desafricanizada ao longo tempo-espaço, portanto, é preciso pensar o samba enquanto um origami conceitual nas fronteiras e brechas das estratégias espaciais da então conhecida Pequena África de Tia Ciata e suas margens móveis presente na literatura histórica dos anos oitenta. Assim, como é possível pensar em um único “nascimento do samba urbano” durante a conjuntura de 1890 a 1930, ocorrendo em lugar fixo, cristalizado e determinado? Tal expressividade possui uma delimitação geográfica concreta, sólida e acabada? Uma vez que suas representações giram em torno de reinvenções numa rede simbólica presente nas praças negras da cidade do Rio de Janeiro produzindo uma nova geografia negra na cartografia modelar e espacial dos atores negros em rede.
A GEOSAMBALIDADE: As linhas do problema aberto
Os negros
Trazidos lá do além-mar
Vieram para espalhar
Suas coisas transcendentais
Respeito
Ao céu, à terra e ao mar
Ao índio veio juntar
O amor, à liberdade
A força de um baobá
Tanta luz no pensar
Veio de lá
A criatividade
Tantos o preto velho já curou
E a mãe preta amamentou
Tem alma negra o povo
Os sonhos tirados do fogão
A magia da canção
O carnaval é fogo
O samba corre
Nas veias dessa pátria – mãe gentil
É preciso altitude
De assumir a negritude
Pra ser muito mais Brasil
Luiz Carlos da Vila (Nas Veias do Brasil)
Abertura da questão
Por que, há 519 anos, as elites no Brasil mantêm o mesmo currículo espacial e histórico sobre a ideia de cidade? A propósito: como escrever uma filosofia bélica e espacial do negro na cidade pensada pela sua própria cabeça? Aprendendo a falar sua própria linguagem, signos, conceitos e códigos culturais constituidores do mundo-favela e oriundos de um sotaque filosófico comum da experiência do pensamento original brasileiro? Platão aponta no livro A República, no intenso diálogo com os sofistas, que a filosofia seria a vertigem do pensamento, lugar onde os conceitos estariam em disputa pela pólis grega.
Antes de qualquer coisa, os temas espaço, cidade e território sempre formaram um subtema na história da filosofia ocidental. As ideias filosóficas produzidas pela cidade nunca tiveram causas e atores sociais diletantes de formas esvaziadas de ideias e de ideias sem forma – um jogo sem comprometimento com a matéria da forma-cidade e suas disputas internas pelo poder. Entretanto, a cidade como problema filosófico foi retratada ao longo de séculos como ideia, mas nunca enquanto uso das ideias na produção epistêmica do espaço. Num cenário como este, da filosofia ocidental, foi deslocada dos problemas de ordem concreta e material, escamoteados para aliená-la em sua forma totalizada. Em resumo, filósofos tratam de coisas sem materialidade e concretude, mas, e as ideias, como elas conduzem os problemas da cidade?
Enquanto uma questão prévia, tais temas foram evidenciados pela tradição filosófica de modo tímido e distanciados da concretude do real. A filosofia por séculos ficou aprisionada num dualismo formal entre coisas e ideias, num convencimento alienado entre seus falantes, cegos de realidade. A cidade, por sua vez, foi apenas idealizada pelos estetas da metafísica tradicional – como na república perfeita de Platão: negligenciada, apartada e sem um profundo entendimento da pólis grega ou da urbs romana como modelo societário, onde o filósofo era figura central do passeio socrático das ideias. Isso o atesta o velho Sócrates em seu percurso no mercado da cidade evocando espanto, problemas e questões do universal, desde o tecido banal em que todos estavam inseridos, aos problemas emergenciais da pólis em movimento.
Para o drama dos filósofos, como a cidade das ideias (nuvens) se confrontou com a cidade das questões materiais e históricas se os conceitos instauram um campo bélico e problemático de ideias fora de lugar? O seu lugar, o território, e as condições geo-históricas subjetivam a produção filosófica na invenção de uma família de conceitos? Para cada conceito teríamos um mapa de problemas e questões espaciais oriundas do seu mundo próprio? De outro lado, como vertiginar o objeto samba, que foi aprisionado enquanto gênero, identidade nacional, modinha e estilo?
A partir dessas interrogações, assumo que pensar é provocar questões bélicas para invenção de um novo espaço filosófico de questionar o próprio estranho: que é o Brasil, com problemas e sem soluções sociológicas, se nem respondemos o que faz o Brazil se tornar Brasil? Há como responder, se os filósofos brasileiros, alienados cognitivos de espaço histórico, apenas reproduzem conceitos, como um download de ideias esquizofrênicas, apartadas de realidade, no esvaziamento do debate de cidade, tanto local como regional? Se a filosofia é filha da cidade, por que os filósofos não retomam seu debate originário? Seria por falta de comprometimento com seu povo apartado de história, ou porque fizemos a opção estratégica por golpes cognitivos na história do pensar, para os quais foi necessário o distanciamento intelectual de uma sociedade burguesa que nasce sem povo? Da mesma forma, o que faz um doutorando favelado da Rocinha defender uma tese sobre a crise da razão em Kant ou o gelo da paisagem nórdica da Rússia?
Tudo isso tem um caráter servil de uma herança escravocrata com o propósito alienante de reproduzir sistemas fechados de pensamento sem comprometimento bélico de pôr as ideias na emergência da história. Como denuncia Lima Barreto, adoecido por uma sociedade racializada e esquizofrênica, “o Brasil não tem povo, tem público”. Assim, nada contra os gregos e Kant, mas os falantes de filosofia no Brasil precisam ser mais generosos ao investigar questões de ordem originária e tentar entender o forjamento da escravidão como modelo espacial à promessa da ideia de um povo. O fato é extremamente estranho e imoral contra a inteligência pública das cortes intelectuais no Brasil: como a cidade, o território, o povo e o espaço foram desmaterializados da história da filosofia no Brasil? Isso se dá porque somos frutos do trauma do tronco constituído por um golpe cognitivo que nos interditou daquilo que possamos pensar enquanto próprio – totalidade. Nada mais significativo do que não encontrarmos o parto de um povo, enquanto nascimento epistêmico, na ideia mentirosa de nação forjada nos fins do século XIX por cabeças racialistas.
A filosofia, o pensamento e os filósofos deveriam estar sempre mergulhados num estado bélico em que as questões interrompam o alienamento natural das formas aprisionadas pelo banal. O adjetivo bélico vem do latim, românico e ibérico, bellicus e do substantivo bellum, que significa guerra. Assim, um conflito bélico é o mesmo que uma guerra. O exercício do pensar aberto é mostrar como as ideias se disfarçam no tecido material da história camuflada de banalidade no tecido geral do senso comum, e, portanto, é necessário voltar ao pensamento e elaborar novas perguntas do/no presente em curso na cidade.
Assim, de que maneira sobreviver ao holocausto permanente e atualizado de um povo negro exterminado espacialmente? A memória histórica, corpórea e espacial conseguiria narrar brechas de extremidade da ausência do humano? Se conseguir, os negros no Brasil obtiveram privilégios da ideia de humano? Se sim, como existir e resistir numa história de interdições? O corpo, a ginga, a gira, as rezas e os patuás podem criar textos sobre uma cidade desafricanizada por quatro séculos em curso? Por outro lado, será que investigamos profundamente as consequências reverberadas pelo acúmulo das chagas da escravidão no corpo negro na cidade? Onde estava a subjetividade racional e ocidental diante dos fatos?
Não imaginadas as proporções de tais crimes históricos contra a possibilidade de memória inscrita no corpo negro, retomamos o início desta tese: afinal, como resistir e criar uma Grande África móvel? Se o Sertão está em todo lugar, como o diz, revelando o Brasil profundo, o personagem Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, por que não pensar africanidades em descolcamento no tempo-espaço, já mencionadas pelo poeta Luiz Carlos da Vila: Os negros/ Trazidos lá do além-mar/ Vieram para espalhar/ Suas coisas transcendentais. Trata-se, portanto, de refletir, uma vez que transcendência significa ascender, ultrapassar, transpor e ir além. À luz dos pressupostos ainda não narráveis pelo seu horror, de que maneira as linhas, as transcendências negras, os fluxos e os signos poderiam formar novas paisagens do pensamento em redes de sociabilidade na construção de um agenciamento territorial diante de um povo escravizado espacialmente? África não está em todo lugar? Cada negro, em suas diversas realidades históricas e culturais, não seria sua própria territorialização e desterritorialização na produção de um novo espaço móvel? Por fim, e para a construção da sequência didática proposta ao pensar aberto, seria possível encontrar uma unidade espacial, ontológica, territorial e histórica para o acontecimento originário do samba enquanto um fenômeno socioespacial no tecido orgânico da sociedade carioca em plena pós-abolição em curso, mas cristalizada no tempo-espaço?
É evidente que o que está em jogo aqui é uma mudança de paradigma metodológico na Geofilosofia, em direção a procedimentos de pesquisa transdisciplinares que priorizem experiências de autonomia, nos termos colocados por Cornelius Castoriadis (1983), ou de solidariedade, nos termos colocados por Maria Adélia Souza (2006). Uma Geografia assim deve estar atenta às experiências do fazer e do agir solidários, às experiências de autonomia e aos seus desdobramentos futuros numa sociedade atlântica recém-inaugurada no Ocidente moderno racial.
Para analisar tais experiências é oportuno considerar a sugestão de Certeau (2003), de proceder a uma análise fenomenológica e praxeológica das trajetórias culturais dos grupos que produzem e reproduzem ideias de cultura alternativas à cultura dominante, apreendendo a composição dos lugares onde estes grupos atuam, bem como a inovação que modifica estes lugares ao atravessá-los, por sua abrangência de atuação. Saber quem faz uso dessas formas de expressão cultural de oposição e de que maneira elas são utilizadas deve se constituir, portanto, no cerne das pesquisas em Geografia do espaço, vislumbrando futuros imaginados e, quem sabe, possíveis.
Como movimento do pensar aberto das provocações empreendidas, gostaria de seguir essas reflexões de tese de modo original, pondo as relações étnico-raciais enquanto campo de produção de conhecimento geográfico que inaugure o samba como matriz epistêmica de novos saberes na cunhagem do espaço urbano carioca constituído por saberes negros no uso de resistência coletiva do espaço. Assim, a presença de conhecimentos advindos do samba nos conduz à possibilidade da existência de descentralidades, de epistemologias que foram apartadas e interditadas do discurso oficial da cidade do Rio de Janeiro no contexto de pós-abolição em curso (1890-1930).
Antes, porém, é necessário elucidar melhor o passo a passo da sequência didática do macroproblema e seus subitens. Saberes, técnicas e poder cunharam os interesses estratégicos do uso do espaço urbano a partir de teorias raciais embrionadas no DNA da morfologia urbana do século XIX em diversas praças negras no Rio de Janeiro, gerando em si âmbitos de negociações e conflitos na instauração de redes insurgentes aglutinadas pelo exercício da liberdade. Tal contexto criou elos afetivos em busca desse exercício da liberdade; desse modo, como não pensá-lo também como forjado por canto, lamento, festa, reza e dor profunda de minoritários de mundo?
Refletindo sobre essa pergunta – se o samba não poderia ser uma estratégia pedagógica dos atores-negros aliados na rede em disfarçar uma oração/mantra, o modo como um povo jamais pode esquecer-se de sua liberdade, como exercício pleno de mundo –, será que realmente se trata de um estilo ou gênero musical oficializado pela literatura cristalizada dos anos oitenta? Se fosse gênero ou modinha, como poderia ter instaurado uma oração profunda, transbordada em forma de reza ou ladainha, que possibilita a liberdade ontológica de sermos maiores do que o nosso próprio holocausto histórico conduzido pelas elites? Não se trata apenas de um gênero musical que agregue dias festivos, e, sim, uma oração de guerra de corpos escravizados por um sistema estrutural racializado e sofisticado ao longo dos séculos.
É também importante notar que o racismo no Brasil é um edifício com muitos andares e labirintos, onde os intelectuais negros não podem centralizar suas análises estruturais deste fenômeno raciológico (raça-razão) em apenas num único andar epistêmico, elucidado como um objeto estático, paralisado no tempo-espaço e sem sofrer alternâncias operacionais do biombo entre capitalismo e racismo. Urge, portanto, refletir como esse jogo foi incorporado à morfologia da condição racional-racial urbana impregnando modos de vida do agir coletivo dos atores-negros na cidade.
Notadamente é preciso ir além, transcender, mesmo ainda em caráter fundamentalmente introdutório: a Geosambalidade é a oração profunda de um povo que foi escravizado no empenho de se reconectar, territorializar, espacializar e de se educar mediante a falta de existência imposta ao longo dos séculos. Tendo em vista sua relevância, é um ativador de Axé (totalidade e memória ancestral), gerando no corpo negro enfraquecido e escravizado toda potencialidade usurpada pela lógica racial dominante. A Geosambalidade reconfigura um novo território mental rearticulado com a Grande África, representada pela totalidade que se universaliza pela falta de unidade, criando uma experiência universal, local e regional mediada pelos atores-negros em práticas compartilhadas na evocação de um arquétipo ancestral comum, recortada nos guetos negros na cidade.
Ainda possibilitando pensar de uma forma condicionalmente territorial, a Geosambalidade permite que os atores-negros não incorporados pela lógica do “mundo da mercadoria escravizada” construam sistemas de espaços livres, como, por exemplo, a roda de samba e os terreiros de uso coletivo das periferias metropolitanas. Tornando-se o espaço potencial integrador para o surgimento de novas centralidades sem centros hierarquizados, são lugares adequados à festa renovada da vida sem aprisionamentos espaciais, essencialmente ligados à reinvenção de uma Pequena África própria, corporificada no texto-acervo do corpo negro e codificada em práticas territorializadas no espaço comum e banal do cotidiano da cidade desafricanizada. Desse modo, se o racismo na condição estrutural fragmenta as ações dos atores-negros no espaço, a Geosambalidade as reúne no entorno de unidades móveis na cidade criando geografias corporais e singulares para não se perderem nem esquecerem o horizonte do exercício pleno e integral da liberdade. Portanto, isso nos exige uma pausa para uma breve indagação: ─ Se o sistema racial desintegra e fragmenta as formas de existência negra na cidade, por que a Geosambalidade ressignifica o corpo escravizado e o aglutina em outras geografias espaciais?
O território mental da cultura é construído por canais e práticas de subjetividades; na dimensão do corpo negro, coisas se tornam humanos a partir da experiência do comum totalizada nas práticas cotidianas, fabricando um plano material e mental; ou seja, se as ideias criam espaços, a Geosambalidade constrói modelamentos de espaços de convivência e de troca coletiva. Assim, juntemos essa noção de plano imaterial e mental, configurando um território do mental articulado por escalas subjetivas no concreto, por sua vez, realizado em ações coletivas e individuais do atores-negros no agir da cidade. O samba, por assim dizer, costura um elo de humanidade, usurpado pela lógica racial, produzindo um sentido de (re)existência no elã vital de uma consciência minoritária em que os desiguais de existência compartilham uma experiência maior da mesma, cunhada por um território do mental que a interliga aos valores estruturais de sua paisagem epistêmica e aos valores éticos construídos em roda do fazer poético do samba.
É possível pensar, então, que a Geosambalidade é atravessada por arcabouços originários de formas geométricas singulares que compõem uma grande missa negra e constituem saberes circulares, inscritos na forma-corpo e geografizados na forma-espaço, gerando o círculo espiral aberto oriundo da reza epifânica de evocar cânticos, ladainhas e o segredo da liberdade forjada no território-corpo do dançante. O Axé é entendido nas culturas negras de terreiro como força motriz, geradora de vida (ato criativo e original). A forma do círculo espiral é um ativador do Axé, potencializado pelo ritual circular do samba-roda; é ali que o corpo-escravizado compartilha lamento, experiências, poética, estética, ética, proteção, luta e estratégias políticas da existência. O círculo espiralado revela que o centro é móvel e gira, impedindo qualquer forma hierárquica de saberes que não sejam compartilhados pelo todo em sua multiplicidade enquanto princípio anímico e xamânico do mundo que fora divido e fragmentado.
É imprescindível notar que o conceito de razão/raça ao longo do século XIX funda uma ideia de mundo, assumindo extremidades totalitárias e subjugando todos aos conceitos universalizados e aderidos de maneira inflexiva pelo racismo totalitário no espaço recortado. Sendo assim, a categoria espaço-fragmento foi construída e alternada no jogo do logos ocidental atlântico por uma pragmática racial no Brasil nos últimos duzentos anos. Representação racializante da totalidade recortada em geografias do poder dominante, cristaliza formas totalitárias do uso da experiência interditada da ideia de cidade no plano social e político do espaço urbano. Em resposta a isso, na tentativa de marcar o ponto de separação entre espaço e totalidade pelo filtro racional impregnado por ideologias raciais totalitárias, a Geosambalidade reúne as partes de um todo fragmentado nas diversas escalas de subjetividades no corpo, espaço e território.
Assim responde o pensamento sobre o samba como cerne do diálogo transdisciplinar nos currículos acerca do espaço; o pensar geográfico espacializa enunciados espaciais onde o uso do samba põe o próprio ator-negro como protagonista de sua espacialidade inaugural de geografias minoritárias dos de baixo que sempre reinventaram o seu lugar, uma vez desmundificados de mundo. Desse modo, geosambalizar é enegrecer uma nova geografia, a do espaço habitado por práticas negras de resistência, na refundação do espaço pela (re)existência de minoritários de mundo.
Nessa direção, pela ausência de um território corporal, cultural, político e social, interditado pelo raciototalitarismo mencionado no primeiro capítulo, a Geosambalidade também se manifesta a partir do desdobramento material-imaterial na forma de rede solidária dos atores-negros escravizados na condição física e espacial. O reconhecimento da história das mentalidades no mundo ocidental implica apontar que o desejo por liberdade ultrapassa qualquer dimensão física e territorial. Uma vez que os propósitos estruturais racializantes impedem a produção espacial, libertária e emancipatória do povo negro na cidade, o mesmo se articula em rodas e guetos, criando-se uma dimensão subjetivada acionada por uma rede múltipla que configura a geografia no plano das mentalidades, desdobrando-se em signos de um território de escala mental. Ou seja, qualquer impossibilidade física e concreta se desmaterializa na forma de roda que evoca as unidades fragmentadas da Pequena África gerando uma Grande África onde as diferenças são somadas e multiplicadas nas práticas individuais, no corpo de todos os negros subjetivando sua leitura própria na realização do espaço. Nesse contexto, a cidade é negra, o espaço é negro, o território é negro e o processo de comunicabilidade se faz nos olhos, bocas, nos açoitamentos públicos de uma rua habitada por mulheres negras que transitam entre todas as escalas móveis da cidade. Tal ambiência é considerada como modo de organização de espaços negros onde o samba é epicentro do texto espacial das trocas de informação e conhecimento daquilo que não possa ser tido e lido nos jornais. A roda de samba publica os saberes não escolares da cidade, espacializados pelo texto via corpo em roda.
Observaremos sob este parâmetro a Geosambalidade: como elo espacial aglutinador de existências minoritárias em um mundo racializado e desafricanizado que exige ser reinventado de modo único e original pelos minoritários de existência. É somente desse modo que é possível estabelecer uma geografia dos minoritários de mundo: postulando o samba enquanto laço geográfico que reconecta os atores-negros ao todo inacabado de suas totalidades ancestrais, numa relação dialética com as partes fragmentadas de uma Pequena África mitológica evidenciada anteriormente na literatura vigente.
Se há uma Pequena África é porque estamos inseridos num grande Rio de Janeiro africano. A parte e o todo se integram em totalidades espaciais na ocupação negra do espaço urbano dividido por lógicas raciais totalitárias no agir enunciativo de gramáticas racializadoras. Ora, continuando, cada negro na cidade do Rio de Janeiro, instaurado em redes/praças com seu grupo linguístico e étnico, produz novas realidades e regras de uso do espaço habitado, aí modelando novas naturezas morfológicas. É neste espaço do corpo em movimento, entrelaçado pela convivência coletiva, que se faz a educação geográfica, filosófica e étnico-racial da Geosambalidade, ultrapassando os limites disciplinares demarcados pela lógica racial no espaço. Não há Pequena África em termos mitológicos centralizados na antiga Praça Onze. Contradizendo o consenso, nenhum negro na cidade está perdido ou com orfandade de essência, pelo contrário: cada escravizado está ciente de seus “limites” históricos e espaciais dentro do modelo de sociedade construído sob a égide da escravidão espacial e estrutural no aprisionamento projectal e matricial do corpo negro despacializado de sentido. Entretanto, ao não se adequar, supera a cidade e a si próprio. Todo negro no Brasil, aprisionado na condição espacial na cidade, sabe que é sua própria África em movimento, pois ela se desloca e espacializa mediada pelo jogo estratégico dos atores-negros na forma construída de cidade.
É nesta qualidade da realidade, vista de um aspecto de realidades prismas da paisagem do espaço habitado, que enfatizo que cada negro é sua Pequena África reinventada a partir de seus códigos culturais registrados no corpo-espaço-território (umbigada), onde nada se aparta da totalidade reinstaurada nos encontros afetivos dos atores-negros na forma cidade. Com efeito, o encontro na forma de roda produz a prática política dos atores-negros na educação vigente, que se traduz no corpo por meio de experiências empíricas somadas por currículos espaciais de vivência coletiva e integral no uso plural do espaço habitado e relacionado por acúmulos de tempo no espaço vivido. O subterrâneo da ideia de cultura afro-brasileira nos remete aos subterrâneos e extratos geológicos de uma memória registrada em escoriações da cidade desafricanizada pela junção de técnica e raça.
No rastro da análise introdutória, a realização da forma cidade abdicou do e interditou o corpo negro enquanto protagonista de sua forma idealizada esteticamente, expropriando-o como constructo de materialidade histórica do espaço urbano e retirando as marcas negras do tecido morfológico estrutural da cidade moderna e racializada. Portanto, enquanto a natureza racial e a gênese da cidade encontram sua visibilidade em estruturas fixas e permanentes, por trás de suas muralhas, de sua forma urbana e estratificada, se escondem elementos subterrâneos do racismo totalitário, pois, em meio aos tipos de aglomeração social que ali se encerram, se entrevê uma inclinação a compartilhar a totalidade de meio natural com a vastidão da natureza, do orgânico ao inorgânico do mundo recortado. Sob esse traçado, se o raciototalitarismo nos retira qualquer possibilidade de nos inferirmos participantes da ideia de condição humana, a Geosambalidade nos integra enquanto constituintes insurgentes de mundos transdisciplinares de conhecimentos universalizados pelo todo, aberto a partir de uma educação étnico-racial dos saberes oriundos do samba e seus atores configurados e posicionados em condições espaciais distintas.
Dados os pontos de convergência que assinalamos anteriormente, vale ressaltar que estamos num Rio de Janeiro onde as ruas e suas mobilidades urbanas e econômicas são produzidas pelo ator-negro em diversas escalas. Isso nos permite uma melhor explanação da Geosambalidade tendo o samba como base de questões passíveis de ser examinadas numa longa duração que escapam a uma perspectiva linear e cronológica dogmática: Por que fixarmos apenas uma única Pequena África mitológica na cidade do Rio de Janeiro? Se tivesse havido uma Pequena África no tempo-espaço cristalizado, o racismo de Estado não a teria destruído por ser um território perigoso e de gente perigosa? Teríamos de fato a mesma narrativa universal para o samba enquanto fenômeno histórico-espacial? E por que não se permitir pensar em um grande Rio de Janeiro africano sem recorte de fronteiras? As ruas são negras, não precisamos medir esforços para tal evidência cognitiva e imagética. O óbvio empírico nos assusta, mas recusar tal evidência seria não entender os extratos e camadas geológicas da cultura afro-ameríndia no Rio de Janeiro. O drama é reduzir a expressão de Heitor dos Prazeres a um diminutivo de grandeza matemática e geométrica dos espaços em disputa.
Ainda possibilitando pensar de uma forma condicionalmente territorial, teríamos diversas Áfricas na cidade, em rede-móvel, aglomeradas em bairros da antiga Praça Onze, como pontos não fixos da rede em movimento. Ou seja, não ser percebido e notado também faz parte da estratégia de resistência e sobrevivência para não revelar o texto da liberdade escamoteado pelo samba. Todavia, memórias e escrituras negras no espaço foram interditadas da experiência singular de sua existência, que foi, por sua vez, soterrada pela normativa do progresso racional e racial imperado pela mega-máquina das reformas urbanas com caráter eugenista, mas disfarçado de modernidade e progresso. Não há modernidade se os atores sociais não conseguem pensar sua condição original sem ser modernos, pois apenas replicamos de modo limitado não os avanços de ideias iluminadas e ditas modernas, e, sim, seu atraso bárbaro, obsoleto e excludente filtrado pelo signo da racialidade ocidental constituída por golpes cognitivos.
A cultura, por ser o elemento social mais próximo de uma comunidade, pode ser considerada dos processos onde mais é possível demonstrar por onde uma desterritorialização pode ser engendrada por golpes no cognitivo do imaginário absoluto moderno. Diante de condições muito favoráveis para as mudanças que a sociedade branca ocidental sempre almeja, experimentamos um racismo-cinderela: dormimos império e acordamos república. É fácil, assim, o nascimento de uma nova sociedade, do dia pra noite? E as sequelas histórico-espaciais e matriciais desta sociedade branca ficcional sem origem? Entretanto, em menos de vinte quatro horas uma sociedade altera sua condição histórica e matricial no espaço como se fosse uma alusão ao conto de fadas da personagem Cinderela. Dormimos abóbora e acordamos carruagem mesmo?
O historiador e cientista político José Murilo de Carvalho, na obra Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi (1987), traz para luz o drama de uma sociedade recém-inaugurada frente à concepção de alguns pensadores, contemporâneos do início da República brasileira, de que não existiria um povo brasileiro no dito período. Carvalho identifica, por um lado, um preconceito e um exagero destes em relação à sociedade brasileira – uma vez que para eles não havia povo político nem cidadania no país –, por outro, o Brasil como importador de ideias europeias, cujos intelectuais, antes monarquistas e, então, republicanos, não entendiam o nascimento vespertino de uma república de improviso, nascida da noite para o dia. Também analisa a exclusão das chamadas massas do direito ao voto, detectando – além da política de exclusão – um fenômeno de abstenção eleitoral pelos que possuíam direito ao voto. Segundo J. M. de Carvalho, o processo, além da mínima participação, era completamente deturpado, alvo de constantes fraudes e carente da construção de um imaginário coletivo.
A fim de reforçar essa metáfora dos bestializados já inaugurada pelo pensador Murilo de Carvalho, evidencio e nomeio, enquanto mímesis da realidade raciológica brasileira, o racismo-cinderela como efeito imagético, sintomático e caricato de uma sociedade em que o retrato da forma não muda as ideias dos valores forjados de república, não modifica a estrutura cognitiva dos efeitos da ação do pensar, mas dita modelos excludentes propagados por políticas espaciais do medo disfarçadas de coisa pública. Nasce a coisa, porém sem público; o disfarce de todas as facetas dos positivistas e suas teorias do progresso racional e nacional não consegue superar os quatro séculos de escravidão na emergência de uma sociedade moralmente equipada da polidez da aparência teatral.
Ao produzir o efeito imagético de uma sociedade moderna e banhada por ideias positivistas, o racismo-cinderela é o sintoma de uma mímesis perversa do nascimento do socius-brasileiro, em que imitação, representação, mímica, imitativo, a receptividade, o ato de se assemelhar, o ato de expressão e a apresentação do eu vazio formalizado de aparência retórica sem povo, em resumo, a forma vazia da imagem assume o lugar do discurso oficial de sociedade. No entanto, o racismo-cinderela revela a retórica de uma sociedade que se baseia no emprego do discurso direto e, essencialmente, na imitação do gesto, voz e palavras de outrem. Imitação verossímil da natureza que constitui, segundo a estética aristotélica e clássica, o fundamento de toda a arte. Como exemplo, o discurso de que somos modernos, mas não racistas.
Dessa maneira, no racismo-cinderela, aparência, forma e conteúdo se fundem para o construtor das ideias de beleza estética da convivência superficial da coisa urbana e da coisa política sem caráter público. O nascimento da cidade moderna efetivou processos excludentes, criando os excluídos de espaço pela “mágica da razão dominante” de um Estado que nasce de modo artificial e sem nenhum processo ritualístico, apartado da totalidade. Além disso, o cenário conjectural eleito para resolver o problema dessas formas totalitárias na condição histórico-espacial do Ocidente do fim do século XIX e início do XX é também o resultado das teorias raciais camufladas de modernidade que arrasaram e devastaram o ocidente europeu moderno como um todo. Tais teorias forjadas na forma de coisa pública produziram ideias de unidades totalitárias que constituíram formas universais de um projeto iluminista de homem e de sociedade eugenista e racialista.
Recapitulando, a ideia de Europa foi devastada por teorias raciais que buscavam unidades totalitárias que destruíram singularidades, multiplicidades e pluralidades étnicas. No caso brasileiro, é interessante observar que a Geosambalidade se geografiza na tentativa de impedir que unidades totalitárias de ideia de identidades fechadas assumam uma única forma de sociedade advinda de uma origem matricial comum silenciando multiplicidades em movimento que não foram cristalizadas. Torna-se um combate epistêmico dos atores-negros interditados pela ideia de única origem e unidades totalitárias. Em torno do núcleo da Geosambalidade giram singularidades e é a partir destas diferenciações do em si ao todo que o samba se faz promotor de uma nova matriz epistemológica negra de uma experiência humana e coletiva. Tudo isso, vale ressaltar, em meio à lógica ocidental dominante de que o diferente de mim mesmo deveria ser destruído e exterminado, discurso que assume conjunturas radicais do ódio, construindo ideias de um Ocidente fechado e totalitário.
No fim do século XIX, pela primeira vez, foi possível ver um mundo em que o passado, inclusive o passado no presente, se cristaliza na duração de narrativas totalitárias nas extremidades de uma sociedade radicalizada por identidades fechadas em si mesmas: aceleramentos históricos conduzidos por grupos totalitários na condução da matriz ocidental, ou seja, uma única forma até então de ocidente absoluto e fechado aos interesses desse novo ocidente estruturado por velhos hábitos. Dessa forma, as extremidades evocadas pelas identidades nacionais criaram naquele período barreiras identitárias forjadas por ideias absolutas e, sobretudo, raciais. O resultado desse cenário foi o sufocamento de identidades minoritárias e o extermínio de povos. De outro lado, a forma Estado enquanto ethe-político cria uma noção de identidade nacional de modo isolado, incorporando ideologias raciais no projeto de sociedade.
Em vista disso, como sobreviver e criar redes estratégicas diante de um mundo forjado de novo? Ainda é possível ler as gramáticas conceituais de modo isolado diante de uma sociedade que emerge com novos adventos espaciais? Como ler, compreender e gerar análise do imediatismo do imediato? Como ler o Ocidente a partir do dentro para fora? Somos realmente ocidentais (ou quase ocidentais) nesta formação societária?
Passada essa breve apresentação do problema, é de extrema importância o posicionamento ideológico do filósofo-historiador (espaçólogo) ao ler novas cicatrizes do presente que emergem de modo totalitário no tecido urbano como desdobramentos da história espacial do tempo presente, sempre escolhendo o caminho do pensamento diante das armas conceituais do território das ideias ao longo do tempo histórico e suas questões permanentes no uso do espaço. O exercício do pensar nos revela não só diversas encruzilhadas e modelamentos de montagem do teatro das ideias ocidentais em curso no campo de batalha, mas também como abrir novos clarões, problemas e investigações acerca de um cenário epistemológico que exige o refinamento conceitual e transdisciplinar do filósofo-historiador (espaçólogo). Este, para isso, precisa lidar com ferramentas conceituais e curriculares de outras arenas do pensar na busca de evidenciar novos fenômenos histórico-espaciais na produção cultural do uso do espaço. A narrativa será pô-lo como protagonista e objeto das ações do pensar dialogando com matrizes de conhecimento que já o pensaram.
Enquanto constructo humano, as epistemologias modernas ocidentais aprisionaram de modo dogmático o conceito de espaço. Logo, os geógrafos positivistas brasileiros, na sua soberba cognitiva, paralisaram e se aprisionaram em uma única forma de entendimento problemático da ideia de espaço operacionada por lógicas eurocentradas. Se os negros e ameríndios deste país são produtores de espaço no mundo das ações estruturais e concretas, por que não fundarmos uma endografia (dentro/ interno) do ser, local, regional e espacial? Se os que produzem espaço foram exterminados do processo espacial externo, da condição de realidade do espaço, como há uma geografia humana? O espaço também não seria uma relação dialética entre o dentro e o fora? Se não há o endo (dentro), como há o de fora? As qualidades funcionais determinam as estruturas do interno imposto por realidades espaciais de estrutura racional e racial do de fora? Por sua vez, as formas do espaço não possuem uma natureza concreta apenas, mas uma natureza concreto-abstrata; tornam-se concretas a partir do uso das coisas habitadas por ideias filosóficas em disputa no campo epistemológico, na produção da realidade em disputa em que as coisas se inserem. Tais são os problemas atualizados nas formas condicionais e instrumentos de análise da história social dos homens.
A geografia, história, sociologia, literatura, economia, antropologia, física, dança, teatro, cinema, arquitetura, planejamento, já possuem seus objetos, signos, conceitos e ações curriculares do espaço; agora chegou a vez de o espaço pensar suas próprias questões espaciais de maneira própria e singular. Milton Santos, no livro A natureza do espaço (1987), assinala que, no final do século XVIII, tivemos uma revolução epistemológica em que todas as áreas de conhecimento se libertaram da filosofia hegeliana, construindo disciplinas de conhecimento com objetos próprios de sua espacialidade. O espaço torna-se objeto de análise de todas as disciplinas, mas sem criar um lugar próprio de perguntas insurgentes e inaugurais do próprio espaço. Dessa maneira, seria uma categoria transdisciplinar lida e entendida por todas as zonas do conhecimento, porém nunca investigada por si mesma, havendo, assim, a necessidade de criarmos uma espaçologia, com problemas, objetos, conceitos, métodos, atores, processos e ações do próprio espaço.
As ciências ditas modernas e modernizadas cunharam seus conceitos fundadores do espaço por diversas matrizes e escalas demarcadas por ações disciplinares detidas em uma única forma epistemológica. A espaçologia é uma ferramenta transdisciplinar que torna o espaço objeto dialógico atravessado por todas as disciplinas que o investigam, evidenciando-o enquanto ator central no ultrapassamento de barreiras isoladas e epistêmicas; portanto, analisa seus fenômenos como evento curricular em todos os campos de conhecimento de modo autônomo. A história, a geografia, a sociologia, a arquitetura, a economia e o planejamento urbano produziram ao longo dos séculos aprisionamentos espaciais e epistêmicos de uma única forma de entender o espaço como objeto categórico estático, porém este ainda não se tornou uma ferramenta autônoma de ler-se a partir de conceitos próprios, oriundos de si mesmo. A espaçologia traria para o núcleo de questões formas autônomas dos indivíduos espaciais que recriam suas matrizes epistêmicas e propõem novas lógicas de rede.
No final do século XX, o espaçólogo Milton Santos evidencia que as ferramentas metodológicas filhas do século XIX detiveram uma única concepção matricial, universal e totalitária da categoria de espaço na qual a globalização se tornaria globalitarismo: uma única forma universalista de entendimento do mundo a partir de única concepção de espaço e sociedade, criando, desse modo, formas perversas e desiguais do recorte da totalidade. O espaço para Milton precisaria se libertar das demarcações geográficas e disciplinares, operando uma nova ontologia do espaço, assim chamada de espaçologia: a categoria de espaço para criar conceitos não a partir do olhar das disciplinas recortadas isoladamente, mas como sendo problema e questão de si mesmo, cunhando problemas e questões do que é o próprio contido nele mesmo. Os conceitos, categorias, objetos e problemas não estariam isolados e reféns de qualidades epistemológicas de outras disciplinas. Assim, o espaço se libertaria enquanto campo autônomo e criador de problemas originais oriundos de sua matriz conceitual, não havendo demarcações e prisões dogmáticas ratificadas em lógicas estruturais prontas, delimitadas, lineares e servis, já introduzidas no movimento espaçológico de Milton Santos. Dessa forma, teríamos, no final do século XX, explosões epistemológicas do conceito de espaço emergidas pelos de baixo, o que ele evidencia como uma outra globalização vinda de lógicas não binárias e não correspondentes aos modelos globalitaristas.
Tal questão já encontra abertura de horizonte no filósofo Michel Foucault (1926-1984), que escreveu, em sua estadia na Tunísia, em 1967, um texto denominado “Outros Espaços”, publicado sob a sua autorização apenas em 1984. Nesse escrito, o autor desenvolve um conceito inteiramente original: o de heterotopia. Esta ideia consiste em explicar a confluência dos espaços na sociedade, isto é, uma proposta de se pensar o entorno a partir das diferentes residências temáticas (hospitais, escolas, bibliotecas, etc.) que são alicerçadas nele e que descrevem uma relação, em que estes mesmos lugares predominam uns sobre os outros e sobre a vida dos indivíduos. Assim, nesse texto, ele mostra que o espaço do outro foi esquecido pela cultura ocidental.
A palavra heterotopia é composta do prefixo heteros, que tem origem no grego e significa “o diferente” e está ligada à palavra alter (o outro). Já a palavra topia significa “lugar”, “espaço”. Então, heterotopia significa o espaço do outro. Em busca do uno, do universal e do mesmo, a razão ocidental afastou o outro, a diferença, a multiplicidade. Desse modo, o empreendimento filosófico de Foucault foi resgatar os espaços do outro, os quais o exercício do poder pela racionalidade ocidental buscou suprimir em prol do espaço do mesmo. Para isso, estudou espaços onde se exerciam relações de poder com vistas à objetivação, como as prisões, a escola, o corpo, a loucura, a sexualidade, etc. Foucault enfatiza que:
A época atual seria talvez de preferência a época do espaço. […] Estamos em um momento em que o mundo se experimenta, acredito, menos como uma grande via que se desenvolveria através dos tempos do que como uma rede que religa pontos e que entrecruza sua trama com problemáticas de ordem espacial. (FOUCAULT, 2006, pág. 241)
Igualmente, a Geosambalidade e a Espaçologia são espaços de alteridades na produção de conhecimentos próprios localizados no corpo espacial dos indivíduos relacionados com suas realidades históricas. Portanto, teríamos um século de explosões espaciais e de novos eventos transescalares em realidades singulares e em rede, pensando com Michel Foucault e Milton Santos. Sobre o novo problema, Foucault pensa o espaço como uma forma de relação de posições, onde a vida é comandada por espaços sacralizados. Também diferencia utopia de heterotopia. A primeira diz respeito a lugares que não são reais, sem lugar fixo. Já a segunda, refere-se a lugares reais, mas que estão fora dos lugares aceitos (o mesmo). Para o autor, a sociedade produz heterotopias. Ainda, chama estes outros lugares com a denominação de heterotopia de desvio, ou seja, aqueles comportamentos que estão fora do que a sociedade aceita e impõe às condutas. São nestes espaços que, para Foucault, estão contidos os conflitos e tensões que se exercem pelas relações de poder de uma sociedade determinada.
Ao pensar sobre o final do século XIX, Michel Foucault problematiza que no Ocidente moderno tivemos grandes revoluções epistemológicas das matrizes de ordem ocidental, quando a totalidade do pensamento, até então contida na filosofia, se fragmentou criando ontologias, campos e ferramentas próprias. Deste modo, revela a possibilidade de um novo conceito para entender os novos fenômenos do espaço geográfico, nomeando-o heterotopia, um conceito da geografia humana que descreve lugares e espaços que funcionam em condições não hegemônicas. Ele usa o termo para descrever espaços que têm múltiplas camadas de significação ou de relações com outros lugares e cuja complexidade não pode ser vista imediatamente. De igual modo, por que não pensarmos a Geosambalidade como espaço autônomo e inaugural dos atores-negros reinventarem condições ontológicas de sua existência?
Por outro lado, se tomarmos a geografia a partir de um conjunto de escrituras na produção espaço – nas raízes geo (terra) e grafia (escrita) – por que não partirmos do próprio espaço para pensarmos suas outras grafias (escritas/escrituras) na filosofia, física, economia, sociologia, arquitetura, política, antropologia, arte, biologia, teatro, cinema e, até mesmo, o samba? Se os geógrafos se detiveram sobre os fenômenos geográficos no tecido do espaço, por que os espaçólogos não se dedicaram a pensar os fenômenos espaciais do próprio espaço em si, e correlacionados a todas as disciplinas, questionando, por exemplo, quais os impactos do conceito de espaço do cubismo geométrico e analítico na pintura de Pablo Picasso? Picasso seria um espaçólogo ao introduzir uma nova categoria geométrica de espaço tridimensional na pintura contemporânea moderna ocidental do século XX, assim como Aleijadinho, com seus anjos distorcidos no Barroco singular brasileiro? O problema central não estaria em pensar os diversos currículos espaciais aglutinados numa ciência do próprio espaço ao ler seu diálogo transdisciplinar com acervo conceitual já postulado e construído em todas as disciplinas?
O espaço é autônomo e relacional, sendo cercado por uma multiplicidade dimensional da realidade fenomênica e histórica dos homens na sua produção social, política, econômica e cultural da realidade enquanto um todo representado. Não se trata neste momento de inventar uma nova ciência, mas de ter o entendimento de conteúdos espaciais que produzem currículos e formas na condição habitada pelo fenômeno homem em suas práticas existenciais fazedoras de espaço, que, de sua parte, abrem novos problemas fenomênicos da origem do espaço racial. É esta perspectiva que nos apresentam o professor Milton Santos e Ana Clara Torres Ribeiro: é preciso revistar o todo em suas partes totalizadas de espaço ao entendimento da totalidade. Creio que sob este enfoque o pensamento precisaria urgentemente voltar ao pensamento, elaborando novos problemas investigatórios por uma filosofia do espaço brasileiro de modo próprio e original.
Por sua vez, os “filósofos acadêmicos brasileiros”, alienados de sua condição espacial-histórica por pensarem como europeus, reproduzem espaços psíquicos de paisagem do pensamento fora do todo sem totalidade; exemplo disso é nunca terem colocado como questão ontológica o fato de um povo negro, escravizado por 400 anos em uma matriz espacial excludente, ter sido capaz de criar saídas estratégicas e de narrar sua própria história na construção epistêmica de outras de espacialidades. Fenômeno que tem o samba como matriz ontológica de saberes espaciais e corpóreos e como outro modo de pensar o Ocidente – o do Atlântico-negro protagonizado por atores interditados e silenciados. É notório ver o Ocidente, assim entendido pelo uso radical da razão instrumental de Kant e Weber, não conseguir iluminar todos os objetos trazidos pela hiperluminosidade do raciototalitarismo, inibindo outras matrizes epistêmicas apartadas da totalidade.
Como um jovem filho de favela, conheço os impactos da escravidão como proposta de aprisionamento e conclave espacial, mas temos de avançar no problema, embora com muitas dificuldades pela falta de estrada e maturidade intelectual. Por isso, este capítulo nos colocará em um esforço tremendo de pensar de modo próprio uma Geosambalidade enquanto uma nova escala espacial e territorial da história da cultura negra na cidade do Rio de Janeiro, como uma alternância do discurso não vigente – alteridade por alteridade (diferenças por diferenças). Tais são as razões da emergência epistemológica de se pensar a Geosambalidade como uma nova interpretação do mundo do samba, no que tange ao fluxograma de encontros e desencontros, territorializações, desterritorializações, enfim, enquanto uma categoria transdisciplinar do espaço das relações étnico-raciais dentro do planejamento urbano e regional, por via de uma reflexão filosófica a partir do espaço negro ainda não evidenciado na tradição literária atual.
Em contrapartida, depois de tanto tempo de predominância literária de uma alternativa histórico-espacial de pensarmos a origem do samba nas culturas negras no ocidental Atlântico-móvel, cristalizada por uma ideia de identidade fixa e determinista (origem, meio e finalidades), e na qual estamos inseridos, acredito que seja impossível evitar que continuemos a lastimar as perdas de sentido originário e histórico. Há que se abrir uma nova dimensão de sentido espacial que suscite investigações filosóficas de novas geografias. Portanto, é possível pressupor que esta espacialização do pensamento produza um grande choque, mas não se trata de um desastre, e, sim, de uma variação que admite novas concepções, culminadas em novas fronteiras, necessárias para uma nova partida, um novo reinício com acidentes escandalosos, aquém e além de uma nova territorialização. Não como se simplesmente pudéssemos nos opor à dimensão imóvel do espaço em relação ao movimento e ao avanço do tempo e da história, mas considerando que aí existe uma demanda de reflexão sobre a realidade que precisa ser sanada a partir de nossa própria cultura (ethos – lugar próprio), vista por dentro no jogo de fora. Sendo assim, convido-os a nos aventurarmos nos limites tolos da razão instrumental racional para pensar uma nova antropologia espacial-geográfica e filosófica do samba.
A Geosambalidade: antropologia filosófica do problema
Os negros / Trazidos lá do além-mar / Vieram para espalhar/ Suas coisas transcendentais (…)
Luiz Carlos da Vila
Toda transcendência transcende e ultrapassa os limites da ordem material contida no recorte espacial da totalidade. A totalidade, por sua vez, um dia já foi entendida e perdida, ao longo da tradição ocidental das ideias concretas e sólidas, enquanto natureza (physis), filosofia e espaço. Entretanto, é nesse ultrapassamento das coisas materiais, que um dia já foram ideias imateriais e absolutas, que se geram possibilidades do (des)limite entre matéria e ideias. Em suma, nessa tradição ocidental platônica e aristotélica as coisas não podem burlar suas ideias perfeitas e absolutas. Pois bem, no nosso caso, qual seja, a estrutura racial brasileira, os escravizados racialmente – os negros – não podem pensar aquilo que seja de ordem do próprio (pensamento), pois estão aprisionados epistemologicamente a uma matriz de estado de coisas e não de ideias.
Dessa maneira, o filtro cognitivo racial das ideias da totalidade fragmentada impediu que seres interditados racialmente compartilhassem da ideia de humanos e de humanidade. A natureza epistêmica da geografia não partiu de concepções espaciais e matriciais do corpo negro e ameríndio enquanto protagonistas da produção do espaço urbano, gerando, assim, escravizados espaciais, cujo referencial de mundo, espaço, território e lugar não evidencia aquilo que parta do corpus (conjunto de coisas materiais e imateriais), pois, docilizados, doutrinados, castigados, usurpados, foram colonizados por sentidos existenciais de lógicas raciais eurocentradas no fazer urbano que agiram também na escala do corpo.
Podemos dizer que tal escala do corpo produziu corpos espacializados e condicionados por uma lógica da estrutura racial da escravidão como ordem fragmentária dos atores-negros, retirando questões do próprio e colonizando o espaço urbano com novos sentidos por estratégias do imaginário. Por outro lado, quando se fala naquela transcendência, vale restringi-la ao movimento de ideias corporificadas na ação de cada ator que, em sua Pequena África em deslocamento, instaura novos acervos de mundo, tradições, ritos e imaginários coletivo, remodelando códigos culturais ao reinventar uma Grande África que fora aculturada e introjetada na ideia de um novo mundo atlântico-ibérico. Por isso, nenhum negro escravizado espacialmente na condição física e estrutural teve totalmente seu imaginário local desafricanizado pelo brutalismo do apartheid da colonização do imaginário. É na relação entre memória, afeto, corpo, rezas e ritos que os escravizados espacialmente recriam um território mental referenciado ao mundo de que foram raptados, instaurando novos códigos culturais ao codificarem elos de existência e unidade para sobreviveram sua falta de mundo e espaço – enfim, configurando uma geografia de um território de escala mental e de alteridades.
Tal questão remete-nos, ao aplicar o pensamento na ordem territorial, à dinâmica dos atores-negros reunidos em rodas, mandalas e cirandas, pois as manifestações culturais no espaço inauguram possibilidades de territorialização e desterritorialização do agir coletivo na cidade. Assim, os pontos, encruzilhadas, zungus, terreiros e becos de favela estão conectados na produção de uma rede móvel, fluida e híbrida na cunhagem de ações coletivas e libertárias, criando alternâncias de ações territoriais e efetivas do pensamento no espaço.
Voltemos ao conceito; Geosambalidade aglutina as diversas manifestações da roda móvel do samba não enquanto um evento isolado dos atores-negros, e, sim, como dinâmica mental /espacial em rede constituindo uma oração ou mantra maior de um povo escravizado em busca de sua liberdade, totalizada e cantada por aprendizados múltiplos. A forma da rede fluida e híbrida não se cristaliza no espaço justamente porque se articula diante do jogo de poder que se realiza no tecido cultural e histórico da sociedade desafricanizada. Portanto, a Geosambalidade reconecta o todo repartido e fragmentado pela lógica racializada da escravidão como base fundante da epistemologia do espaço urbano carioca.
Em relação ao território do mental, a história das mentalidades, percorrida pela Escola dos Annales por Lucien Febvre e Marc Bloch (1929), nos revela que pensamentos, ideias, ideologias, segmentos morais, atmosferas de compreensão científica, entre outros, estariam dentro da esfera das mentalidades, isto é, formas duradouras de pensamento que caracterizam longos espaços de tempo. Além disso, podemos notar sua importância como uma modalidade historiográfica que privilegia os modos de pensar e de sentir dos indivíduos de uma mesma época. Seguindo a mesma perspectiva, a história das mentalidades está centrada nas visões de mundo, ou ainda, segundo Roger Chartier, uma história do sistema de crenças, de valores e de representações próprios a uma época ou grupos que podem conviver e narrar o fenômeno histórico a partir de experiências próprias, singulares e eventos coletivos. O fenômeno histórico passa a evidenciar micronarrativas que escapam dos grandes modelos arquitetônicos da grande história, dando claridade à longa duração dos processos espaciais – história e geografia se fundem na compreensão total do objeto tempo-espaço.
Visando o intenso diálogo transdisciplinar, a Geosambalidade aglutina o que foi fragmentado pela cultura racializada no espaço, reinstaurando a totalidade enquanto elo da physis originária realizada por cada homem e mulher negra na cidade em suas pequenas Áfricas móveis. Assim, quando reunidas suas partes, estes atores-negros reinventam totalidades na longa duração: o todo se reencontra com a totalidade, repartida e fragmentada pelo racismo na condição fundadora da episteme urbana que os interditara dos fenômenos histórico-espaciais do todo repartido – a roda retoma a ideia de todo universal desde eras priscas enquanto forma arquetípica.
A roda de samba: geometrias de ação do espaço no corpo
E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música.
Nietzsche
O samba é que molda o espaço. Como visto antes, a Geosambalidade se constitui enquanto espaço matricial da forma estrutural e relacional no modelamento construtor da cenografia poética da geografia da roda, postulado fundador do princípio originário do pensar o próprio corpo atravessado de movimentos do centro para fora e vice-versa. Mas também o corpo espacializado pela roda de samba é um veículo de representatividade interior e exterior, cercado de repertórios do cotidiano ou, em termos artísticos, criados a partir de uma subjetividade singular e coletiva, configurada no ritual moldado pelo espaço do samba, este agindo como fio, teia e rede da Geosambalidade.
Isso significa que a forma roda é uma experiência coletiva e plural de elementos arquetípicos evocados por cada vigilante da cidade (sambista). A roda retoma o uso coletivo da forma totalizada para uma experiência estética do espaço recortado pela lógica racializada do uso do território. De tal maneira a Geosambalidade se faz: no encontro de cada ator-negro espacializando suas experiências próprias e curriculares do uso singular de seus sentidos topográficos, na maneira de conceber uma cidade material e imaterial que se realiza nas experiências libertárias. Cabe lembrar, o filósofo Candeia, em entrevista em 1968 ao canal Cultura, ressalta o samba como uma necessidade do espírito, ou seja, ele mora na filosofia porque o samba é a matéria do espírito.
Neste diálogo, evidencio o elemento religioso e transcendental do samba como dono do corpo, ativado, por sua vez, pela oração profunda deste corpo em roda. Trata-se de se considerar que o corpo religioso em transe é afetado pela espacialidade modelar da geografia da roda de samba, é estruturado em impressão/expressão, percepção, internalização/ externalização e ação/ reação, e então o corpo se traduz em movimento. Assim, os corpos físicos e psíquicos dos sambantes (aqueles que bailam o movimento espacial da linguagem samba) estão totalmente interligados quando o corpo se coloca como intérprete durante a dança.
O sambante, ou, mais genericamente, o atuante, por definição comum, é um artista do corpo. Isso significa, em primeira instância, que ele usa, como território primeiro de trabalho (currículo espacial), seu corpo – corpo físico-celular-nervoso-fisiológico-mental inserido em seu cotidiano, que chamo de corpo-cotidiano – em toda sua potencialidade artística, transformando-o em suporte estético de sua arte – um corpo artístico, que chamo de corpo-multidão. A roda espacializada constrói, a partir de corpos enfraquecidos pela lógica racial do trabalho, corpos potencializados pelo agir do samba na forma de mantra e oração, ativando todas as potências dos chacras do samba.
Com efeito, a palavra chacra, segundo a cultura hindu, significa roda, centro, giro ou algo cíclico, e é descrito por muitos como uma roda de fiar à luz, que conecta o corpo à totalidade (physis – natureza). A roda do samba, espacializada em forma de mandalas, cirandas, infinito e espiral, retoma formas matemáticas da origem antropológica da geo (terra)-grafia (escritura) das culturas humanas ao se geografizar no espaço. É importante esclarecer que no meio, enquanto chacra do samba, está a forma da roda espacializada por sua capacidade de concentração gerada pela meditação corpo, espaço e afeto, desempenhada pela educação estética dada pelo giro da roda como elã vital de uma oração/ mantra de um povo necessitado de se libertar de uma matriz operacional racista e escravocrata que instaurou no corpo negro formas e somas de opressão. O canal aberto pelo giro do dançar da umbigada (samba) em roda abre canais de uma afectoesfera de relações humanizadas no canto/ oração da roda que se geometriza na duração ritmada no espaço estético, cenográfico e antropológico da dança ao desenhar o próprio espaço em si.
Desse modo, atingindo aquilo que seja próprio, demarca-se o regime do samba ao modelar suas formas geométricas que se matematizam no uso integral do espaço estético e epifânico, da mesma forma que se congregam rodas religiosas em mesquitas islâmicas, templos budistas, terreiros de candomblé e no uso das rodas de samba. O uso estético da forma congrega o sagrado em um rito aberto e popular ao se manifestar aquilo que seja profundo num rito cantado em forma de oração e cântico de guerra.
A Geosambalidade pode ser entendida também por desdobramentos dessas modalidades do uso integral do samba enquanto estruturador estético da forma. O canto/oração/mantra faz com que o corpo do negro escravizado se torne um templo de experiências estéticas evocadas pela roda cunhada pela epifania de um canto mágico e religioso. Sabe-se que na medievalidade ocidental do século X, cada abade do deserto erguia sua ermida à luz da forma circular (que retoma a forma espiralar), cada abade tinha no seu horizonte religioso que seu corpo era considerado o templo da alma. Expandindo tal alusão, cada experiência de uma roda de samba constitui novas mesquitas e templos da alma contidas no ser negro na cidade. A Geomsabalidade congrega, portanto, uma grande missa negra a céu aberto, cotidianamente, no rito estético da poética do espaço. É no labor de cada dia que esses currículos espaciais da epifania poética do samba em forma de roda cantam uma oração profunda ao lamento estrutural da escravidão.
Ao se libertar do corpo estrutural da escravidão, a Geosambalidade pode, enfim, ser pensada; enquanto território do samba e dos sambantes, torna-se um atentar para as possibilidades de o corpo se mover e a intencionalidade que subjaz em cada gesto, como um investimento necessário para que o sambante/ator comunique sua arte. O caráter libertário do corpo por ele perseguido cria espaços para cultivarmos uma educação aberta à instauração de novos modos de ser e estar no mundo, que religam o lúdico e o estético, o pensar e o sentir, como dimensões da nossa existência corpórea e que devem perpassar o ensino e a criação em dança. É neste lugar que habita a construção de uma afectoesfera, o território sonoro dos afetos ritmado pelo uso estético do samba na forma-corpo. Portanto, teríamos os afectos como o canal primeiro de realização da missa negra, que, ao utilizá-los como linguagem poética, pode dizer muito mais do que descrições verbais, pois trazem um simbolismo evocado por meio de sequências específicas dotadas de ritmos e formas peculiares, em que cada gesto dançado se estende para além de si, numa continuidade que não se esgota e na qual o sambante funda o espaço com seus gestos, abrindo-o ao infinito no giro de cada baiana ao emanar seu axé.
No que se refere ao surgimento do movimento, o sambante traz o conceito de endografias (geografias internas) como seu ponto de emergência, como impulso, como desejo, como força vital que se manifesta pela movimentação visível do corpo. O esforço, compreendido então como expressão externa da energia vital interior, apresenta características (fatores) que, quando combinadas nas suas qualidades, geram tipos de vocabulários de movimentos infinitos e aprendizagens diversas do uso no espaço.
É interessante perceber que no giro da roda em forma de mandalas cênicas ressalta-se uma visão de movimento como algo que não se restringe a um fato físico, sendo compreendido como um fato de significação, centro da experiência e construtor de sentidos ao estar imbuído de uma intenção. Encontramos uma ressonância desse compreender em Merleau-Ponty (1994), quando diz que o movimento não é algo meramente mecânico, mas carregado de uma intencionalidade, que lança o sujeito no mundo para atribuir sentidos ao vivido.
A proposta da roda de samba como forma educacional do uso do espaço se personifica nos gestos do corpo negro, que é, em si, um espaço expressivo, origem do próprio movimento de expressão, projetando e fundando as significações no exterior. Assim, a roda, o sambista e o sambante compartilham um olhar comum ao entender o movimento como instância indissociada do pensar e sentir, de modo não hierárquico; ou seja, todo movimento é indissoluvelmente movimento e consciência de movimento; ambos, momentos de uma totalidade única e aberta.
O corpo negro espacializado em forma de roda é tratado como uma consciência indecomponível e presente inteira em cada uma das suas manifestações . Neste sentido, a Geosambalidade reafirma que o corpo é o pensamento em ação e, não sendo possível separar conceitos e pensamentos da experiência corporal, unifica-os. Com isso, o corpo em roda move-se para mostrar-se, sente-se dançar, vê-se pela multiplicidade de imagens que o movimento produz. Revela seus sentimentos, que é o próprio movimento em transformação ininterrupta de uma nova geografia no espaço.
A Geosambalidade, ao denunciar o aprisionamento do corpo a movimentos padronizados, evoca a beleza do dançar em roda que cada um é capaz de descobrir em si a partir dos repertórios advindos das experiências pessoais daqueles que dançam, como também preconiza uma relação democrática para o dançarino, em que todos são valorizados. De modo geral, esses são princípios que devem integrar as relações de ensino-aprendizagem como forma de reconhecimento e respeito às individualidades na educação espacial do negro na cidade.
A PAUSA DO PENSAR
Foram me chamar
Eu estou aqui, o que é que há
Eu estou aqui, o que é que há
Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho
Mas eu vim de lá pequenininho
Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho
Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho
Sempre fui obediente
Mas não pude resistir
Foi numa roda de samba
Que juntei-me aos bambas
Pra me distrair
Quando eu voltar na Bahia
Terei muito que contar
Ó padrinho não se zangue
Que eu nasci no samba
E não posso parar
Foram me chamar
Eu estou aqui, o que é que há
Alguém me avisou / Dona Ivone Lara
Pensar sua condição histórica, geográfica, cultural e espacial na vida na cidade talvez seja o ato mais aventuroso no mergulho de zonas, regiões e territórios do pensamento enquanto lugar de perguntas inaugurais que ponha sua ideia de existência em contextos absurdos e contraditórios. Tais questões; exigem do pensante da condição espacial o diálogo (trans) disciplinar de lidar com conceitos, categorias e ferramentas na tentativa de nos explicarmos num contexto de uma história oficial da cidade recortada, manipulada e montada por interesses estratégicos no modelamento do uso do espaço total. Por outro lado, evocar perguntas originais não seja apenas tarefa do filósofo, historiador, sociólogo ou geografo; e sim de uma militância inacabada da existência; onde sua bagagem cultural estoica da bios na pólis e da pólis da bios, constituindo relações na construção de novas paisagens do pensamento que insira o pensamento enquanto força motriz no que se refere o exercício de tecer novas brechas do pensar o modelamento epistêmico da ação dos atores negros na cidade.
Deste modo, a geosambalidade cria espaços alternados onde os atores-negros não estão fragmentados ao reduzidos apenas um nome indenitário chamado de Pequena África; e, sim a geografias internas de cada ator agindo e sua rede. Essas geografias internas de cada ator-negros criam elos e significados de africanidades moveis; sendo reinventadas por necessidades de uma memória africana coletiva brasileira.
Os sambistas (tias / poetas/ filósofos); são os vigilantes da cidade; são com eles que aprendemos a ler uma cidade esquecida e interditada na literatura oficial e vigente nos livros idiotas da vida escolar. Os vigilantes do samba nos últimos 100 anos de cidade nos contataram todas as estratégias do poder local e regional de uma cidade desafricanizada. A cidade é o lugar da disputa desde Platão; logo os sambistas não criam samba por moda ou estilo; e sim, o registro cartográfico do pensar e do agir na cidade. São eles; os vigilantes da difusão do saber em bares, prostibulos, rodoviárias, becos de favela na produção de sentido de uma cidade apartada da totalidade, pois neste vigilante os saberes espaciais tornam exigência curricular de sua bagagem cultural cantada e sambada na formação de novas rodas e aglutinação geográfica da muvuca-humana da Central do Brasil que habita em todos nós no fazer territorial do tecido da cidade. Em suma; para cada vigilante do samba temos um acervo curricular que se desteritorializa na educação espacial de novos corpos ainda não libertados pelo poder metafisico do feitiço do samba; – a oração máxima de um povo em busca de sua liberdade. Esta oração máxima de um povo; põem o samba no postulado da congregação de uma missa negra que se forma nos lugares mais desérticos da vida; – o corpo escravizado se liberta de sua condição estrutural imposta pelo sistema racial do racismo espacial.
Sem deixar sombra de dúvida; se o samba; é móvel e construtor de território; em cada bairro da cidade os seus vigilantes (sambistas/ tias do samba); estão atentos ao exercício estético de contar e narrar seu texto próprio para as futuras gerações. Assim, esses vigilantes estetas da cidade agem em redes como terreiros de candomblé; casas de umbanda, rodas de samba e no cotidiano da cidade apostos e atentos na roda geográfica de problemas do currículo espacial da cidade articulados pela rede de tias, pois nas naguas de suas saias tinham textos perigosos que escapavam do saber oficial do regime do espaço racial.
Este currículo espacial da cidade age em rede desempenhada por cada sambista vigilante conectado em sua rede espacial de um território móvel assim nomeado de geosambalidade enquanto território do uso do mental do espaço. A geosambalidade agrega esses diversos currículos espaciais configuradas por seus vigilantes revelando um território multiescalar no ultrapassamento de barreiras epistêmicas no combate ao genocídio negro na cidade. O samba desempenhou ao longo do século XX; o papel de uma escola educativa do uso material do espaço na constituição de uma africanidade urbana carioca na cidade do Rio de Janeiro.
Estes exércitos de vigilantes e das Tias da cidade se educam por meio desta geosambalidade como fundidora de saberes coletivos do uso espaço; produzida por afetos e ato profundo de uma religiosidade estética constituída pela forma da roda de samba. De Madureira a Pedra do sal; todos falam samba; porem com ginga e sotaques diferentes; porem o currículo espacial do samba é o mesmo. Logo; ao aglutinar esse exercito de vigilantes com os sambantes se cria uma GRANDE MISSA NEGRA que constitui uma oração profunda e de entendimento de mundo. Assim; para cada rede do samba; os sambistas trocam seus currículos espaciais de seu acumulo de tempo no espaço e saberes sobre a cidade; tornam-se vigilantes destes saberes urbanos produzindo geografias negras de resistência na produção do espaço.
A geosambalidade; não é estilo, gênero, identidade ou moda; ela é um platô matricial da forma da roda em modelar novas epistemologias de saberes coletivos deste povo negro que foi usurpado de existência. É neste lugar; que este povo escravizado se torna humano diante de sua humanidade que foi interditada.
Por fim; a GEOSAMBALIDADE; é uma grande missa negra ao constituir uma oração profunda de um povo escravizado ao se tornar livre mediado pela sua falta de condição humana imposta pela escravidão estrutural e cognitiva; portanto; a geosambalidade junta àquilo que nunca poderá ser fragmentado; – A TOTALIDADE DE UM POVO NEGRO; assim então defino; – o samba enquanto portador desta totalidade matricial de existência.
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