Friedmann e a descoberta da expansão do universo
“I shall speak of the theoretical work of Einstein of Germany, de Sitter of Holland, Lemaitre of Belgium. For observational data I turn to the Americans Slipher, Hubble, Humason, recalling however that the vitally important datum of distance is found by a method which we owe to Hertzsprung of Denmark. …
My subject disperses the galaxies, but it unites the earth. May no “cosmical repulsion” intervene to sunder us”
Arthur Eddington na abertura da palestra pública proferida no encontro da “União Astronômica Internacional”, realizada em setembro de 1932, em
Cambridge (Massachusetts).
Uma das grandes questões da astronomia no início do século XX era saber a natureza das nebulosas espirais. Alguns astrônomos argumentavam serem elas um sistema de estrelas que nos circundam enquanto outros defendiam a tese de que as nebulosas espirais eram sistemas semelhantes à nossa própria galáxia e situadas bem mais distantes que as estrelas usuais. A existência de nebulosas já era conhecida há centenas de anos.
Em abril de 1920 ocorreu um debate entre dois grandes astrônomos da época, Herbert Curtis e Harlow Shapley, que entrou para a história da cosmologia. Uma das questões do debate era a natureza das nebulosas espirais. Curtis dizia: “A evidência hoje aponta fortemente para a conclusão de que as espirais são galáxias inviduais ou universos ilhas, comparáveis em dimensão e número de componentes individuais à nossa própria galáxia.” Enquanto que Shapley defendia um outro ponto de vista: “Me parece que a evidência é oposta a que as espirais sejam galáxias de estrelas comparáveis à nossa própria galáxia. Até o presente não há razão para modificarmos a hipótese tentativa de que as espirais são simplemente objetos nebulosos. “A disputa não foi resolvida então. O que faltava? Dados precisos sobre a nossa distância até as nebulosas.”
Em 1923, o astrônomo americano Edwin P. Hubble inicia no Observatório de Monte Wilson (EUA) uma série de observações de Andrômeda, a mais famosa das nebulosas espirais. No início de outubro ele observa em Andrômeda duas novas e uma estrela variável do tipo cefeida. Cefeidas são estrelas instáveis, com aproximadamente dez vezes a massa do Sol e cujo brilho, devido a variação de sua opacidade, oscila periodicamente. Existe uma correlação entre a luminosidade absoluta (energia por unidade de tempo emitida pela fonte) média dessas estrelas e o período entre dois máximos. Assim, estimando a luminosidade absoluta e medindo a luminosidade aparente (energia por unidade de tempo, por unidade de area recebida pelo detector) Hubble pode determinar a nossa distância à Andrômeda e concluir que essa nebulosa é uma galáxia espiral semelhante a nossa Via Láctea e que, sabemos hoje, encontra-se a uma distância aproximada de 2,9 milhões de anos luz.
Em 1901, Vesto M. Slipher, um jovem astrônomo, então com 25 anos, foi constratado para trabalhar no Observatório Lowell (Arizona, EUA). Em 1912, ele percebeu que as linhas espectrais de Andrômeda estavam no lugar errado, elas estavam deslocadas para o azul, isto é para a região do espectro de menores comprimentos de onda. Medindo o deslocamento espectral ele conseguiu determinar a velocidade de Andrômeda em relação à Terra. Isso foi possível devido ao fenômeno denominado efeito Doppler, nome dado em homenagem à Christian Doppler cientista austríaco que em 1842 o descobriu. No caso de uma onda que propaga-se em um meio material (uma onda sonora por exemplo), esse efeito manifesta-se em uma mudança na frequência observada sempre que o detector ou a fonte movem-se em relação ao meio.
Observamos que o som vindo da sirene de uma ambulância torna- se mais agudo, maior frequência, quando esta aproxima-se de nós e mais grave quando ela se afasta. O efeito ocorre não apenas com ondas sonoras mas com ondas eletromagnéticas, como a luz vinda de uma galáxia, também. A distância entre duas cristas de uma onda (comprimento de onda) medida por um observador, é menor (deslocamento para o azul, som agudo) quando a fonte emissora aproxima-se do observador do que quando a fonte está parada.
Quando a fonte se afasta do observador o comprimento de onda medido por ele é maior (deslocamento para o vermelho, som grave). Para a radiação eletromagnética temos:
onde C é a velocidade da luz, λobservado é o comprimento de onda observado, λemitido é o comprimento de onda no referencial da fonte, V é a velocidade da fonte em relação ao observador, e Ζ é o desvio para o vermelho. Velocidades positivas indicam afastamento da fonte em relação ao observador e correspondem a positivo.
A velocidade de Andrômeda estimada por Slipher foi da ordem de -300 km/s. Em 1915 ele já tinha 40 medidas de espectro de nebulosas com 15 velocidades radiais estimadas, número que sobe para 25 em 1917. Contrariamente ao observado para Andrômeda, a grande maioria apresentava velocidades positivas. Por exemplo, das 41 nebulosas com redshift medido em 1923, apenas 5 (incluindo Andrômeda) aproximavam-se da Terra. A velocidade das nebulosas era considerada muito alta, em média mais de 20 vezes as velocidades típicas encontradas para estrelas.
A Cosmologia moderna iniciou-se com Einstein, em 1917, pouco tempo após ele haver publicado seu trabalho sobre a teoria do campo gravitacional, a Relatividade Geral. O primeiro modelo cosmológico relativista proposto por ele, além de espacialmente homogêneo, isotrópico e finito (com curvatura espacial constante e positiva), possui a propriedade de ser estático. Acreditava-se naquela época ser esta uma característica do universo. Sendo a gravitação atrativa, para obter um universo estático, Einstein modificou as suas equações originais do campo gravitacional introduzindo um termo repulsivo, a chamada constante cosmológica (Λ). Einstein acreditava que seu modelo possuía as seguintes virtudes: 1) podia relacionar a massa do universo com a constante cosmológica, o que estava em acordo com o princípio de Mach; 2) mostrou ser possível construir um modelo cosmológico consistente com a Relatividade Geral; 3) acreditava ser este o único modelo com essas características.
Nesse mesmo ano, o astrônomo holandes Willem de Sitter publicou trabalhos nos quais obteve uma nova solução da Relatividade Geral, com constante cosmológica, estática, porém, sem matéria. De Sitter mostrou que em seu universo a velocidade de afastamento de objetos (partículas teste) aleatoriamente espalhados aumentaria com a distância. Esta propriedade, que passou a ser conhecida como “efeito de Sitter”, podia explicar o desvio no espectro de nebulosas espirais observado pelo astrônomo americano Vesto M. Slipher alguns anos antes. Einstein não apreciava muito a solução de de Sitter, entre outras razões, por ela apresentar um horizonte de evento, isto é, uma distância além da qual raios luminosos não poderiam chegar ao observador. O fato de o universo de de Sitter ser desprovido de matéria foi visto também por Einstein como uma característica indesejável desse modelo. Contudo, isso não impediu que ele fosse investigado, à época, como uma possível descricão do universo real. Como a densidade do universo é baixa, a soluçãao de de Sitter era considerada como uma aproximação de densidade zero.
Essa era a situação em 1917, quando a recém-criada teoria da Relatividade Geral ainda não era muito aceita. A Relatividade Geral ganhou notoriedade internacional somente após os resultados de medidas do desvio da luz, observadas durante o eclipse solar de 1919 pelas expedições britânicas à ilha de Príncipe (Guiné) e Sobral (Brasil). Como vimos, nessa época a existência de galáxias ainda não era conhecida. Estas só foram descobertas com Hubble, um pouco mais tarde, em 1923. Sabia-se que a velocidade típica de estrelas é baixa e este fato sustentava a idéia de um universo estático. É interessante salientar que, não apenas Einstein, como também de Sitter não acreditava então em um universo em expansão.
A possibildade teórica de um universo em expansão só surgiu em 1922 com Friedmann. Filho de artistas (o pai era bailarino e a mãe professora de piano), Aleksander Aleksandrovich Friedmann, nasceu em junho de 1888 na cidade de São Petersburgo e desde cedo mostrou um grande talento para a matemática. Em 1906, ele ingressou na Universidade de São Petersburgo para estudar matemática pura e aplicada. Nesse mesmo ano publicou seu primeiro trabalho científico com Jacob Tamarkin, conhecido matemático russo-americano, seu amigo e colaborador. Após formar-se, iniciou uma pós-graduação em meteorologia em Leipzig (Alemanha). Durante a Primeira Guerra Mundial serviu na Força Aérea e esteve envolvido em missões na frente austríaca. Após a guerra foi transferido para a Estação Aeronáutica Central de Kiev e um ano depois conseguiu uma posição na Universidade de Perm.
Nessa época a Rússia estava mergulhada em uma guerra civil. Em 1920, quando a revolução russa ainda não havia terminado, ele retornou à São Petersburgo para trabalhar em hidrodinâmica no Observatório Geofísico de Main. Foi nesse período que surgiu o seu interesse pela Relatividade Geral (que devido à guerra e à revolução era pouco conhecida na Russia). Possivelmente a confirmação do valor previsto pela Relatividade Geral para o desvio da luz provocado pelo campo gravitacional do Sol, obtida após o eclipse de 1919, estimulou esse interesse. Em 1925, Friedman já era considerado um dos principais físicos teóricos de Leningrado (como era então chamada a cidade de São Petersburgo). Nesse mesmo ano, realizou um vôo de balão para estudar a alta atmosfera que atingiu 7400 m, recorde soviético da época. Pouco tempo depois contraiu tifo e faleceu, precocemente, aos 37 anos.
Apesar de haver publicado seu artigo de 1922 na prestigiosa revista “Zeitschrift für Physik”, o trabalho de Friedmann não recebeu a devida atenção. Nesse artigo em que considerou espaços com curvatura constante e positiva, Friedmann obteve pela primeira vez soluções expansionistas (com e sem constante cosmológica) das equações de Einstein. É curioso que Eddington, em suas palavras reproduzidas no início deste texto, não tenha se referido a ele. É difícil entender essa omissão. Alguns autores atribuem o pouco interesse despertado, à época, ao trabalho de Friedmann à abordagem eminentemente matemática por ele empregada nesse artigo e no seguinte, publicado em 1924 na mesma revista, onde ele analisa as soluções com curvatura espacial constante e negativa. De fato, nesses trabalhos ele extraiu poucas consequências físicas de suas soluções. Por exemplo, em nenhum momento ele fez referência à questão do desvio para o vermelho, que é uma propriedade fundamental desses modelos. Friedmann, ao que parece, estava mais interessado em obter soluções expansionistas que generalizassem as soluções de Einstein e de de Sitter. Não devemos, contudo, deixar de enfatizar a enorme e fundamental contribuição dada por ele à Cosmologia. Einstein após 1930, quando finalmente aceitou a idéia de que o Universo está em expansão, sempre citou os trabalhos pioneiros de Fridmann.
Sem dúvida Friedmann foi um transgressor. Transgressor no sentido de um cientista que sugere novos caminhos para o pensamento, alargando nossa visão que até então viajava por vielas estreitas. De fato, em seu trabalho de 1922, foi ele quem pela primeira vez considerou a possibilidade de um universo em expansão. Foi ele também quem pela primeira vez, em seu trabalho de 1924, considerou a possibilidade de um universo com um volume infinito. É interessante que a possibilidade de um universo em expansão tenha sido questionada por Einstein, que, curiosamente, talvez tenha sido o maior transgressor científico do século passado. Einstein rejeitava a idéia de um universo em expansão e chegou a publicar uma nota, em 1922, onde afirma que o trabalho de Friedmann estava matematicamente incorreto.
Contudo, um ano depois admitiu seu erro e reconheceu a existência de soluções variáveis no tempo, como sugerido no trabalho de Friedmann, sem contudo reconhecer, então, sua relevância. O universo descrito pelo modelo de Friedmann, além de expansionista, é espacialmente homogêneo, isotrópico em relação a qualquer ponto e, em alguns casos, possui uma origem no passado em que a densidade da matéria diverge. Esse modelo tornou-se a base do modelo padrão da Cosmologia. É lamentável que a morte prematura de Friedmann nos tenha privado de novas e importantes contribuições que ele provavelmente faria ao desenvolvimento da Cosmologia.
Finalizamos este texto reproduzindo as palavras de Ekaterina Petrovna Dorofeyeva, primeira esposa de Friedmann, que assim o descreveu em suas memórias: “Sempre pronto a aprender com todos que sabiam mais do que ele, percebeu que em seu trabalho estava abrindo novos caminhos, difíceis e inexplorados por qualquer um. Ele gostava de citar as seguintes palavras de Dante: L’acqua ch’io prendo giammai non si corse’’ (As águas em que estou entrando ninguém jamais cruzou).