Elisa Frota-Pessoa, suas pesquisas com emulsões nucleares e a Física no Brasil
Entrevista com Elisa Frota-Pessoa – por Maria Borba
O estabelecimento do ensino e pesquisa em física no país se confunde com sua carreira. Através de seu depoimento, podemos vivenciar em detalhes como se deu esta construção, desde a extinção da Universidade do Distrito Federal (UDF), à criação do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), assim como o modo pelo qual se fazia ciência naquela época .**
1 – Antecedentes e a Universidade do Distrito Federal (UDF)
Para entender como era uma luta desde quando comecei a entrar na física, veja o seguinte: meu pai era advogado e, evidentemente, achava que física não era profissão de mulher. A vontade dele era que eu fosse para a Escola Normal, e eu não queria saber da Escola Normal coisa nenhuma. Queria ir para uma escola do governo, o Paulo de Frontin – já que o colégio Pedro II não aceitava mulher naquela época. Por fim, ele deixou me matricular nas duas e, por sorte, saiu naquela época uma lei daquelas idiotas, que passam de repente dizendo que uma pessoa não podia se candidatar a duas escolas do governo ao mesmo tempo, e que caso se candidatasse, seria punida e o exame não seria aceito para nenhuma das duas escolas.
Quando papai foi me matricular na Escola Normal, disseram-lhe que não era permitido porque tinha saído esta lei e diziam que eu já estava inscrita na Paulo de Frontin. Como ele sabia que eu não queria ficar lá, não insistiu muito e foi direto conversar com a diretora do Paulo de Frontin na época, a Dra. Andrea Borges. Ela disse a ele que sabia da lei, mas que não me perderia como aluna de forma nenhuma, porque tinha visto as minhas provas. Perguntou a ele se, como advogado, aceitaria brigar por isso e ele disse que sim. Ao fim ele conseguiu. Foram dois meses de luta para eu ser aceita.
Enquanto o resultado não saía, eu não podia assistir às aulas. Então, perguntei para uma colega que estava fazendo o curso, o que estava sendo dado. Nesta época o Plínio Sussekind era professor e passou uns exercícios para casa, os quais ela me repassou. Mesmo sem estar assistindo o curso, estudei bastante e fiquei esperando até o dia em que papai venceu a questão judicial e eu pude entrar na escola.
Assim, fui para o terceiro ano ginasial, para uma turma que já estava com dois meses de aulas. Ao chegar à nova turma, a maioria das colegas me falou com entusiasmo sobre o físico do professor de Física. Mas desde a primeira aula, o que me encantou foi a Física do Professor Plínio Sussekind Rocha.
Já começamos brigando. Quando ele corrigiu meus primeiros exercícios perguntou: “Quem é Elisa?” Respondi: “Sou eu”. Ele disse que os exercícios estavam muito bem feitos e perguntou quem, na minha casa, gostava de Matemática, se era meu pai ou meu irmão mais velho. Pedi que me chamasse ao quadro, para esclarecer se eu sabia ou não o que tinha apresentado. Fez uma longa arguição (ele estava meio desiludido com a turma, porque ela de um modo geral não se interessava por física) e disse: “Foi você mesma que fez?”. Ele deu uma de machão, queria saber se meu irmão mais velho ou meu pai que tinham feito os exercícios. Não imaginava que pudesse ter sido feito por uma mulher.
Um mês depois, ele arranjou com a diretora Andrea Borges (uma mulher de muita fibra e valor) uma sala para mim, com um horário, para eu repetir as aulas dele para minhas colegas que estivessem com dúvidas. Fiz isso por todo o ginásio e para mim foi formidável, porque ensinando, a gente aprende muito mais do que assistindo simplesmente as aulas.
A questão é que o Plínio era professor assistente na UDF no Rio de Janeiro (Universidade do Distrito Federal), anterior à Faculdade Nacional e Filosofia (a FNFi surgiu a partir da UDF). Era uma das grandes universidades que tínhamos no Brasil idealizada por Anísio Teixeira, mas que em 1935 foi queimada pelo governo militar e, em seguida, eles a fecharam. Era ótima, porque preparava professores para o ginásio, faziam motivações para eles, coisas assim. A UDF era a universidade do governo, assim como a UFRJ é agora. Foi ele quem me disse: “Você não vai fazer Engenharia coisa nenhuma, você vai fazer Física!”. E eu perguntei: “Mas existe curso de Física?”. Ao que ele respondeu afirmativamente. Eu não sabia que tinha curso de física. Eu sabia que gostava de física e matemática, mas naquela época tinha a ilusão de que a engenharia tratava destas coisas. Não tinha muita gente voltada para física e foi ele quem me chamou a atenção para isto.
Depois, tive uma outra sorte, porque foram nomeados para a minha escola, para serem professores, os melhores alunos da UDF. Antônio Houaiss foi meu professor, Oswaldo Frota-Pessoa (que foi meu primeiro marido), Alcides Caldas e Raimundo Paesler (que assumiu a Física no lugar do Plínio, quando este foi para a França). Essa turma falava muito da UDF e eu fiquei com verdadeiro fascínio por ela.
Tinha professores como Bernhard Gross, em Física; Lélio Gama e Luiz Freire, em Matemática; Lauro Travassos, em Zoologia e Miguel Osório de Almeida, em Fisiologia. Como assistentes, estavam entre outros, Costa Ribeiro, Herman e Hugo Souza Lopes.
O Professor Gross pode ser considerado como o pai da Física no Rio de Janeiro, se considerarmos que, desde 1935, ele publicou em revistas internacionais e nos anais da Academia Brasileira de Ciências vários trabalhos com diversos jovens, inclusive com Plínio. Não podemos nos esquecer, no entanto, que o pai da Física no Brasil foi o Professor Gleb Wataghin, que começou a formação de físicos em São Paulo a partir de 1934 e teve influência sobre quase todos os físicos de minha geração.
Havia algo muito interessante na UDF: sua sede ficava na antiga Escola Pública José de Alencar, utilizada para aulas teóricas, pois não havia laboratórios. Mas como os professores eram praticamente todos pesquisadores (grande vantagem para os alunos), eles levaram os alunos para o local de trabalho deles. Quer dizer, as aulas eram dadas em Manguinhos, no Museu Nacional, no Instituto de Tecnologia, onde eles tinham aparelhagem. Assim, os alunos tinham contato com pesquisadores o tempo todo e isso fazia muita diferença na formação dos estudantes.
Em meados de 1939, acabaram com a UDF, porque ela estava funcionando bem demais, consideravam-na subversiva. A UDF foi fundada no Governo do Pedro Ernesto por um grupo liderado por Anísio Teixeira “para encorajar a pesquisa científica, literária e artística, e propagar as aquisições da ciência e das artes pelo ensino regular de suas escolas e pelos cursos de extensão popular, pretendendo não apenas produzir profissionais, mas formar os quadros intelectuais do país”. Quando passou para a FNFi, piorou muito.
Com a extinção da UDF, os alunos passaram automaticamente para a FNFi, mas os professores, se não saíram por motivos políticos, saíram porque a Faculdade de Filosofia pagava muito pouco e não permitia a acumulação em empregos federais.
2 – A Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) e o início do trabalho com pesquisa
Fiz exame para a Faculdade Nacional de Filosofia, em 1940, e entrei para a Física. E todos me diziam assim: “Isso não é profissão para mulher. Você vai ter o trabalho de fazer o exame e ser reprovada.” E eu disse: “Então eu quero ser reprovada.” Só entramos eu e mais um rapaz. Como éramos somente dois para física, eles nos juntaram na turma de matemática, porque nos dois primeiros anos ambos os cursos tinham o mesmo currículo. Lá encontrei colegas de valor como Leite Lopes, que tinha feito vestibular para Matemática, mas passou para Física.
Naquela época, já tinha me casado justamente com o Professor Oswaldo Frota-Pessoa, que foi meu professor de Biologia no colégio, e foi o melhor professor que eu já conheci. Ele estava sempre pensando em entusiasmar os alunos para que eles ensinassem também.
Quanto aos professores da Faculdade, com algumas exceções, tive uma grande decepção. Ao contrário de São Paulo, em que mandaram o Teodoro Ramos para a Itália escolher professores, aqui no Rio, na época em que o fascismo estava florescendo, pediram ao governo de lá que mandassem professores para cá. Então eles mandaram professores como o Dalberto Faggiani, por exemplo, que foi meu professor de Física no primeiro ano. Era um fascista completo, não dava propriamente Física ou dava muito mal. Ele dava ‘lições patrióticas’ e inclusive se metia na vida dos alunos.
Quando passei para os segundo ano na Faculdade, peguei o Costa Ribeiro, pois o pessoal italiano já estava indo embora por causa da guerra. Em meados do ano, fui convidada para trabalhar com ele em pesquisa. Começamos a trabalhar no mesmo esquema da UDF. Ele conseguiu com o Carlos Chagas uma salinha e montamos lá nosso laboratório de pesquisas em radioatividade com aparelhos da Medicina e da FNFi. Começávamos a trabalhar às seis horas da tarde e acabávamos geralmente às nove horas. Descíamos já sem luz e passávamos pela sala de dissecação carregando vela. O laboratório era na Praia Vermelha, a gente via os cadáveres todos, vínhamos com uma luzinha na mão. Uma época muito dura. Durante todo este tempo eu tive dois filhos –Roberto Frota-Pessoa e Sônia Frota-Pessoa Valadão de Barros, que neste ano faz 70 anos. Eu levava as crianças para o laboratório, colocava no berço e dava de mamar na hora necessária.
Naquela época conheci também o Jayme Tiomno (que mais tarde veio a ser meu segundo marido). Éramos nós dois assistentes do Costa Ribeiro – Jayme, em 1942, e eu, em 1944. Trabalhamos assim até nos mudarmos para a Casa d’Itália.
Nesta época, cheguei a terminar um trabalho, mas não publiquei. No Laboratório de Produção Mineral, havia uma porção de minerais que precisavam ser dosados. Pedi para que me dessem um mineral que eles estivessem interessados em dosar, e me deram. Fiz a dosagem e os resultados mostraram que era o mais radioativo conhecido no mundo. Naquele tempo, o mundo todo estava ‘de olho’ em minerais radioativos. Quando voltei ao Laboratório e apresentei o resultado, pedi a ficha do mineral com o número que eles haviam me passado, mas ninguém mais sabia nem de onde ele tinha sido retirado. A ficha tinha sido perdida! Como todos os países estavam interessados em saber onde havia minerais radioativos, eles tinham espiões para roubar informações deste tipo.
O Laboratório queria que o trabalho saísse, mas foi uma questão política – o mineral sumiu por algum espião. Sabíamos que ele existia, mas não conseguimos localizá-lo mais.
Os Seminários Avançados
Quando aluna na Faculdade Nacional de Filosofia, tivemos um diretor que foi sem dúvida o melhor da Faculdade: Santiago Dantas, muito amigo dos alunos. Uma pessoa excepcional. Naquela época se fazia muita injustiça, achando que todos os alunos eram subversivos, havia muita perseguição e ele terminava logo com a injustiça, não dava confiança e defendia os alunos. Além disso, assistia aos seminários da gente – era incrível.
Durante o curso, no segundo ano, por proposta do Leite Lopes, começamos a organizar um “Seminário dos Alunos”, estimulados pelo Sobrero e com a adesão do Costa Ribeiro, Oliveira Castro e Gross. Esse Seminário era frequentado por Nachbin, Maurício Matos Peixoto, Leite Lopes, Jayme Tiomno e eu. O Seminário era organizado do seguinte modo: escolhíamos os artigos mais novos das revistas que estivessem ao nosso alcance e fazíamos uma exposição – era uma outra época.
Física Moderna, por exemplo, nós não tivemos na Faculdade. Começamos a vê-la nestes seminários que organizávamos.
O curso
Quanto ao curso em si oferecido pela FNFi, para mim não correspondeu ao que eu esperava, principalmente na parte referente aos italianos. Mas eu já estava na linha (indicada pelo Oswaldo Frota-Pessoa) de estudar por livro e, então, procurava livros para complementar as notas de aula. Assim, entusiasmos durante o curso eu tive, mas não pelo curso, e sim pela matéria dada.
Quando chegou a parte de licenciatura, pensei: “Pelo menos agora vou poder dar aula” – e dei uma aula. Eles me dispensaram dizendo: “Você deu aula muito bem, e não precisa dar mais”. Dar aula era a única coisa que eu queria daquele curso! Da parte teórica eu não aproveitei praticamente nada. Talvez alguém tenha aproveitado. Eu vivia justamente num meio muito interessado em educação: o pai do Oswaldo, José Getúlio Frota-Pessoa, foi Secretário de Educação e era daquela turma do Anísio Teixieira, do Fernando Azevedo. Então, eu ouvia falar em educação o tempo todo e muita coisa do curso eu achava ultrapassada.
O que torna o professor interessante é dar uma certa liberdade aos alunos no sentido de deixá-los desenvolver sua criatividade, dar bastante exercícios e corrigi-los, fazer pesquisas e transmitir entusiasmo.
3 – Depois da graduação – a formação como pesquisadora
Não se falava tanto em pós-graduação naquela época, não havia uma coisa formalizada. Bernhard Gross foi o primeiro, aqui no Rio, que publicou trabalho de pesquisa em Física e publicou também com alunos. Ele começou a formar uma escola. Podemos dizer que foram os estrangeiros que trouxeram a pesquisa em Física para o Brasil.
O pessoal aqui era muito autodidata, até mesmo o Costa Ribeiro, que teve uma certa orientação do Gross em seus primeiros trabalhos. Ele citava livros, mas não acompanhava as revistas. Era um camarada fantástico! Se tivesse ido para o estrangeiro, seria um Físico dos melhores internacionalmente, já que, entre os brasileiros, era o maior que nós tínhamos no Rio. Ele é membro fundador do CBPF. Descobriu o fenômeno termo-dielétrico, mas, só dois anos mais tarde, nós soubemos que existiam outros trabalhos sobre o mesmo assunto, independentes do dele. Isso ocorria porque não se obtinham revistas com facilidades – foi o Plínio que começou a montar uma biblioteca de Física em 1944. Ele pegava os livros dele e guardava lá para quem quisesse consultar. Hoje a biblioteca, creio eu, tem seu nome – e se não tiver, deveria ter!
O Costa Ribeiro, se nós não perguntássemos, não criava condições para questionamentos, não por falta de interesses, mas como ele tinha dado duro sozinho, achava que os outros também deviam dar. Hoje, quando vem um aluno trabalhar com você, tem que lhe dar uma orientação, dizer o que deve ler. A primeira vez que fui trabalhar com ele, me disse: “A senhora anota de dois em dois minutos o que estiver marcando esse aparelho aqui, entendeu?”. “Não senhor”, eu respondi. E ele disse: “Não entendeu D. Elisa?”. E eu retruquei: “Que é para anotar eu entendi, mas não sei porquê devo anotar”. Só aí ele viu que tinha que começar a me dizer o que ele estava fazendo, para eu poder partir dali. Ele era um dos camaradas que mais se interessavam por nossa formação: nos ajudou muito.
Formar uma escola é dar uma orientação de pesquisa a diversos alunos, publicar o resultado das pesquisas com eles; e depois esses alunos, também orientando outros alunos – após um certo treino – e assim por diante.
Na FNFi, havia um ‘curso de Doutorado’, que consistia na elaboração de uma tese para defesa posterior, porém não existia curso como hoje. Para fazer o doutorado, você escolhia um tema e fazia sua tese. Havia um caderno, aonde você ia escrevendo suas atividades. Pensei em fazer a minha em radioatividade, que era o meu campo de trabalho. Terminei publicando vários trabalhos em radioatividade no CBPF e nunca fiz a tese. Achava muito melhor ir publicando os meus trabalhos, pois naquele tempo o pessoal não fazia tese, apenas publicava trabalhos. O primeiro Doutorado em Física no Rio de Janeiro foi feito na década de 60, no CBPF.
O Frota-Pessoa, por exemplo, fez o doutoramento na Faculdade de Filosofia. Mas ele já fazia pesquisa há muito tempo, inclusive na cadeira de Biologia, da qual era assistente. Achou que valia a pena apenas pegar um dos trabalhos seus e fazer o doutoramento e fez. Creio que o primeiro curso de doutoramento mesmo, o primeiro curso de pós-graduação que foi criado no Rio foi no CBPF, criado pelo Jayme quando já havia um bom volume de pesquisas no Centro.
1948-1949: São Paulo
Assim, depois de assistentes do Costa Ribeiro, Jayme e eu estivemos com bolsas em São Paulo e ele nos deu todo apoio. Já naquela época, Jayme e eu éramos muito amigos. Quando Jayme voltou de São Paulo, eu fui.
Foi lá, por exemplo, que Gleb Wataghin juntou Marcelo Damy e Mário Schenberg, um experimental e outro teórico, e outros foram chegando. Damy ficou com alguns alunos, Mário com outros e ele supervisionando; assim o grupo foi crescendo e surgiu o Departamento de Física da Universidade de São Paulo (USP).
Quando estive em São Paulo, trabalhei com o Damy, mas conversava mais com Wataghin. Mario Schenberg era muito do trabalho, mas era muito do trabalho dele. Quer dizer, ele dava pouco para os alunos, mas se a gente quisesse, tirava coisa dele. Ele era muito bom.
O Wataghin era formidável. As vezes eu ficava até meia noite no laboratório e ele aparecia para bater papo, saber o que estávamos fazendo, dar ideias, conversar. Era de um entusiasmo contagiante pela pesquisa!
4 – 1949 – A fundação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF)
Quando acabei minha bolsa em São Paulo, em 1949, Wataghin me convidou para ficar lá, mas nesse tempo ficou estabelecido que o CBPF seria fundado no Rio, então resolvi voltar para cá. Jayme estava nos Estados Unidos e eu ia para a França depois de fundado o Centro, o que não aconteceu, porque se perdia o cargo na universidade se fossemos trabalhar fora – eles não auxiliavam muito na nossa progressão.
Nesta época de muitas dificuldades, César Lattes encontrou Nelson Lins de Barros na Califórnia e falou na possibilidade de criar o Centro (coisa que Leite Lopes, Jayme Tiomno, eu, e vários outros, desejávamos ter). Estava-se naquela onda da descoberta e da produção em laboratório de méson-pi com a participação do Lattes. Nelson, que era irmão do João Alberto Lins de Barros, uma criatura de muita visão, telefonou para o João Alberto que conhecia bem o pessoal da indústria e perguntou se eles ajudariam a formar o Centro. E eles contribuíram, sim! Contribuíram com a construção do galpão e algumas aparelhagens, mas eram coisas que não podiam durar muito.
Nós queríamos muito o CBPF dentro da Faculdade (FNFi), mas não conseguimos porque lá não se tinha dinheiro nem para contratar um assistente. Tinha-se inclusive dificuldades para receber doações de dentro da própria FNFi. A papelada era tal que, às vezes, você recebia uma doação e não podia ficar com ela.
Depois de fundado o CBPF, conseguimos mandato universitário da Reitoria e os cursos do Centro passaram a ser reconhecidos pela Faculdade, mas nunca conseguimos ligar as duas coisas. O que eu consegui, e foi uma das coisas que mais adorei fazer na vida, foi trazer meus alunos de lá para o Centro.
Em 1951 casei com o Jayme e trabalhávamos os dois na Faculdade e no Centro. Lutávamos muito em conjunto para trazermos estes alunos da FNFi para o Centro, com apoio do Costa Ribeiro, que era o diretor da Física na FNFi naquela época. Em 1960 ele morreu e tudo ficou mais difícil, embora tenhamos continuado a levar os estudantes até 1964, ocasião do golpe militar.
Eu dava as aulas teóricas na Faculdade e as aulas práticas eram no Centro. Lá os alunos viam a pesquisa andando e quando terminavam o curso eles queriam fazer pesquisa. Se for efetuado um levantamento da percentagem de alunos de minha turma que ficou em pesquisa e que são bons pesquisadores hoje em dia, verão que é de 70% a 80%. Simplesmente porque estavam num ambiente de pesquisa. Isso é essencial, senão o aluno fica isolado.
A criação e a importância do Conselho Nacional de Pesquisa – O CNPq
O que salvou realmente o Centro foi uma coisa que nós lutamos para conseguir também: o Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq).
Além disso, o CNPq foi ótimo para os alunos da Faculdade. Tive uns trinta e cinco alunos com bolsa de orientação científica dada pelo Conselho durante o tempo em que eu ensinei na Faculdade. Eu convidava os dois melhores alunos da minha turma, para me ajudarem na próxima turma. Eles me auxiliavam e depois eu os passava adiante. Alguns vinham a ser contratados pelo Centro, sem ligação com a Faculdade.
Na Faculdade o aluno, de um modo geral, ficava isolado da pesquisa. Na época em que eu trabalhava como estudante com o Costa Ribeiro e ele pesquisava, eu só o ajudava em local e horário que nada tinha a ver com os cursos. Ele dava aulas teóricas e às vezes dava aulas práticas. Os aparelhos que Gross tinha conseguido na UDF eram mais orientados para pesquisa dele mesmo e foram usados pelo Costa Ribeiro. Eram aparelhos caríssimos e não apropriados para estudantes. É a mesma coisa da aula dele que era uma beleza, mas que escondia as dificuldades. Os aparelhos escondiam a Física, porque eram aparelhos em que se regulava o botão, seguindo as indicações. Então, quando se dava aula, explicava-se qual o princípio do aparelho, mas era tudo escondidinho, fechadinho numa caixa de botões. Os alunos faziam a aula prática, mas tinham um acesso limitado aos aparelhos. No CBPF, ao contrário, era tudo descoberto, as coisas eram improvisadas, o aparelho era montado pelos alunos com improvisação. Eles sentiam a Física ali, porque tinham que pensar como é que iam fazer o aparelho. Tinha que ser uma coisa mais simples para ver a física.
Com as bolsas os alunos davam as aulas de exercício fazendo com que a turma, além do contato comigo, tivesse também contato com o pessoal mais novo. Isso foi uma das coisas que sempre achei ótimo poder fazer, o intercâmbio entre os alunos do Centro e da FNFi.
A entrada da política no Centro
Fazer do Centro uma Universidade era uma coisa que eu achava necessária, porque o melhor tempo do CBPF foi justamente aquele em que a gente formava o material humano que iria trabalhar lá. Mas nunca conseguimos isso, mesmo em 1964, quando o Carlos Lacerda visitou o Centro e disse que iria transformá-lo no Instituto de Física da UERJ e que em duas semanas estaria tudo decidido e não apareceu mais.
O Centro não era benquisto em lugar nenhum. Por que a UERJ, o Alcântara Gomes e seu grupo iriam querer que lá chegasse o Centro com todo mundo fazendo pesquisa? Ele, que era o dono da Física lá, não estava fazendo pesquisa. Então, a coisa toda sempre foi pessoal.
Quando morria um membro fundador do CBPF, eles elegiam um membro efetivo, como chamavam, para substituí-lo. A partir de um certo momento, o pessoal achou que devia colocar gente com força política dentro da Assembléia do Centro. Pediram-me para votar no pessoal que estava bem no meio da política para participar das assembleias e eu dizia que não iria votar, porque achava que essas pessoas vinham para atrapalhar. Mas as pessoas em geral achavam que elas trariam dinheiro – e eles viraram membros. O Lattes votou neles.
A questão é que, ninguém tem força política sempre e isso mudava aproximadamente de quatro em quatro anos. Mas eles teimaram e foram entupindo a Assembleia Geral do CBPF com ‘pessoal de força política’.
Em 1956, o Lattes me perguntou: “Você não gostaria de ser reunir com o pessoal?” E eu respondi: “Eu não tenho tempo!”. Na verdade acho que se em todas as instituições que conheço se fizesse um décimo das reuniões, suas questões seriam bem discutidas caso as reuniões fossem bem feitas. Ele disse: “Eu queria que você pelo menos almoçasse com o Eremildo Viana (Diretor da FNFi na época) para conhecê-lo, porque ele é a salvação dessa Faculdade. É um camarada novo, entusiasmado, é disso que precisamos”. Fomos almoçar juntos, no bar da Filosofia. Quando acabou o almoço eu disse ao Leite: “Se o Eremildo entrar para a direção vai ser o fim. Esse homem é convencido, tem é sede de poder”. Eu não suportei o Eremildo – aliás, o Leite Lopes depois mudou radicalmente de ideia.
Em 1964, após o golpe, o Presidente do Centro era o Almirante Octacílio Cunha, eleito quase por unanimidade, com um voto contra, que foi meu. O vice dele era um político bem conhecido: Lopo Coelho. Ambos procederam como ‘políticos’.
5 – Os primeiros anos do CBPF
Comecei no CBPF em 1949, montando um laboratório. O Lattes chegou na linha de frente em emulsões nucleares, e poderia continuar o trabalho aqui, porque a pesquisa estava no auge; mas não quis mais trabalhar com isso porque queria ser chefe geral. Ele ficava contente de estar funcionando, mas não deu nenhuma ajuda.
Tive que refazer tudo quase sozinha. Com esse negócio de muda para cá, muda para lá, montei três ou quatro laboratórios.
Uma vez Lattes me pediu que falasse com Jayme, porque estava sendo muito chamado para jantares e todo mundo queria conhece-lo. Ele queria fazer uma quadra – um casal amigo que acompanhasse ele e a mulher nos compromissos. Eu agradeci muito, mas disse que não sabia para que – porque eu tinha muita coisa para fazer.
O primeiro trabalho do Centro – 1950
O primeiro artigo de pesquisa do CBPF é meu [1]. Foi publicado em 1950 e falava sobre a desintegração do méson-pi, tendo como colaboradora Neusa Margem, que foi minha aluna e auxiliar, e que chamei para trabalhar comigo na época.
Sempre fui de ficar muito no meu trabalho e o Lattes me dizia: “Sua egoistazinha, vamos discutir problemas do CBPF”. Eu respondia: “Já estou me preocupando com problemas do CBPF”. Já estava fazendo um trabalho e achava muito importante que o Centro começasse a publicar. Ele não nos auxiliava, dizendo que não poderíamos abandonar a discussão política para fazer pesquisa. E eu disse: “Eu estou fazendo mais pelo Centro, porque precisamos de trabalhos.” E este foi o primeiro trabalho do CBPF.
E foi assim: Lattes trouxe umas chapas expostas dos Estados Unidos e tinha que fazer um determinado estudo nelas. Eu me encarreguei disso, e ele dizia: “Suspende esse trabalho, vem discutir outros assuntos, porque esse trabalho os americanos não conseguiram fazer.” Eu teimei: “Não faz mal, eu vou tentar”.
Naquela época havia uma discussão muito grande na comunidade sobre o modo como se desintegrava o méson. Eu tinha visto que empregando um outro método junto com o dos americanos, possivelmente eu iria conseguir fazer o trabalho.
Se ele se desintegrasse de um modo, era uma teoria de campos que valia, se ele se desintegrasse de outra forma, era outra teoria que valia. Fiz um estudo com uma estatística muito grande e mostrei o que eles estavam querendo saber. Acabei o trabalho e, assim, ficou determinado e pôde-se escolher entre as teorias.
Ia mandá-lo para publicação em uma revista americana. Cheguei a mandá-lo e foi aceito, mas pediram uma pequena alteração no texto. Como era o primeiro trabalho do Centro, Lattes entusiasmou-se e pediu-me para fazer a comunicação logo e publicá-lo na Academia Brasileira de Ciências.
Na época, o Roberto Salmeron me disse: “Você está louca de publicar este trabalho no Rio?” E eu disse: “Escuta, deixa isso para lá. O negócio é que o Centro precisa de um trabalho.” De fato, o CBPF precisava de alguma coisa que o animasse naquele momento. O trabalho saiu, mas não foi conhecido no exterior. Só mais tarde ficou conhecido, mas já não tinha a importância que poderia ter no momento em que saiu. Achei chato, porque era um trabalho importante e que não figurou como tal. Agora, muito tempo depois, começou a haver muitas citações dele. Mas era um negócio para ter saído logo. O Jayme também não gostou, mas a questão era que o Centro precisava publicar pelo menos um trabalho, e como era este que estava pronto – este foi.
O Prêmio Nobel
Nesta mesma época, Jayme estava no doutorado em Princeton com J. A. Wheeler fazendo um trabalho de grande importância que indicava um caminho teórico sobre as leis de paridade dos campos das partículas elementares, resposta que mais a frente deu o Prêmio Nobel a C. N. Yang e T. Lee em 1957.
A resposta final de sua investigação dependia de um resultado experimental sobre o qual físicos experimentais no mundo estavam trabalhando, entre eles, eu, aqui no CBPF.
Ele sabia que eu estava estudando isso porque o escrevi dizendo o que estava fazendo, mas ainda não tinha resultados.
Para confrontar sua teoria com a experiência, ele chegou nos EUA e procurou dados para poder escolher entre uma teoria e outra, e usou o resultado de uns craques da física experimental da época, com toda a razão. Quando terminei, meu resultado tinha dado o contrário, e era o correto, mas ele já havia publicado [2,3,4].
A historia foi que quem acertou isso ganhou o premio Nobel de 1957.
Ele e eu ficamos muito chateados, mas entendemos ao mesmo tempo que são coisas da vida, embora tenha havido a decepção, pois a gente poderia ter ganhado este prêmio juntos.
Os anos na Inglaterra (1958-1959) e a volta ao Brasil
Durante os primeiros anos do Centro (1949-1964), passei dois anos na Inglaterra como professora visitante. Trabalhei na London University College e gostei imensamente. Eles nos davam todo o apoio. Quando eu tinha acabado de chegar lá, o professor dividiu algumas turmas e me colocou de responsável por uma delas – ele mal me conhecia.
Mas eu tive um azar enorme. Como disse, eu tinha montado um Laboratório de Emulsões Nucleares no Centro completamente equipado e antes de sair do Brasil, pedi um microscópio especializado, pedido esse que eu vinha fazendo ao Conselho Nacional de Pesquisa há seis anos, pois era muito importante para o meu trabalho. Quando estava na Inglaterra, escreveram-me avisando: “chegou o microscópio”. Fiquei toda contente. Mas, três dias depois, recebi outra carta: “a biblioteca pegou fogo”. O laboratório ficava embaixo e todos os microscópios acabaram.
Fiquei horrorizada com isso. Quando voltei, trouxe o trabalho em colaboração com os ingleses, mas encontrei o Lattes com todo o pessoal que eu tinha formado trabalhando no meu laboratório que o Conselho tinha reposto (com exceção do microscópio a que me referi). Nessa ocasião ele ainda reclamou: “Você nunca trabalhou comigo. Você sempre trabalhou independentemente”.
Observo que no começo queria trabalhar com ele, mas ele não quis. Comecei independente e depois fiquei sempre independente, embora fôssemos amigos. Contou-me, então, que estava fazendo um trabalho sobre a desintegração do méson-pi e estava encontrando um resultado que, se fosse verdadeiro, poderia revolucionar muita coisa na Física. Estava entusiasmado, pois seu método estava sendo experimentado nos Estados Unidos e na Europa, mais precisamente na Romênia. Todas as pesquisas em desenvolvimento chegavam aos mesmos resultados. Lattes propôs-me em troca de poder trabalhar e ter um pedaço do Laboratório, entrar no trabalho dele.
Pensei sobre a oferta do Lattes e fiz-lhe uma contraproposta: fazer o trabalho dele independentemente. Isso porque eu pretendia mudar o método que estava sendo usado. Ele resolveu assentir. Dessa forma, primeiro eu levei meses usando o método dele, para mostrar que os resultados eram idênticos ao que ele achava. E, depois, com o mesmo material e as mesmas microscopistas, mudei o método de procura dos eventos e achei exatamente os resultados que se esperava: nada de novo.
Publiquei esses trabalhos em revista internacional, com Neusa Margem. Mas, esse negócio levou anos rolando pelo mundo. A questão só ficou resolvida internacionalmente quando eu publiquei o último trabalho sobre o assunto na Physical Review, em 1979.
É evidente que fui obrigada a perder a colaboração com os ingleses, que me interessava grandemente por sua atualidade e possibilidade futuras.
Ditadura militar
Além disto, na minha volta, Costa Ribeiro faleceu e pediram-me muito para assumir sua Cátedra na FNFi. Eu não estava a fim de Cátedra, de congregação, daquelas reuniões e tudo mais, mas resolvi pegar, porque sabia que se ficasse com o Armando, talvez houvesse ainda alguma dificuldade para trazer os alunos para o Centro.
Depois, fui denunciada pelo Diretor-Geral Eremildo Viana e afastada da Faculdade pelo AI-5, como fazendo parte de uma Célula Comunista, que teria quarenta e um membros.
Foi uma época muito desagradável para nós, sobretudo por que os alunos começaram a querer coisas e tinham várias reivindicações, muitas delas perfeitamente razoáveis e que eram nossas também.
A partir de um certo ponto, a questão era de mostrar vitória. Os vários grupos políticos, a Ação Popular (AP), o ‘Partidão’ (PCB), todos eles queriam mostrar as suas vitórias. Eles não iriam conseguir tirar essas vitórias dos reacionários, então, caíram em cima da gente querendo mais, mas chegou a um ponto em que isso era impossível.
Houve um tempo em que nós apanhávamos dos dois lados. Na Congregação, o pessoal parecia que tinha tal aversão a aluno que a gente tinha que estar sempre defendendo. Acontece que os meus alunos, que eles atacavam porque diziam que eram “alunos profissionais”, eram os melhores alunos que nós tínhamos. Hoje, são bons físicos.
Depois Eremildo ainda fez uma outra denúncia contra mim, dizendo que estava dando aulas demais. Eu tinha combinado com os alunos aulas de exercício – mas aquilo era combinação minha com os eles diretamente. O Departamento travou meu processo.
Sempre fizemos, Jayme e eu, muita questão de formar pesquisadores e entusiasmá-los para seguir em frente. Pouco antes de nossa aposentadoria forçada e, logo depois, muitos ex-alunos nossos foram para a PUC para desenvolver o Departamento de Física de lá.
Fomos afastados também do CBPF, porque o Almirante presidente achava que não podia receber dinheiro do governo e ficar com pessoas aposentadas pelo AI-5. Isso não era verdade, porque o CBPF não pertencia ao Governo. Já tínhamos travado algumas lutas com o Almirante por ele querer se intrometer nos cursos de pós-graduação, o que não aprovávamos. Após o AI-5, a primeira coisa que fez foi demitir o Leite Lopes, o Jayme e eu. Assim, saímos também do Centro.
Nesse momento, nossos ex-alunos se espalharam pelo país. Tem muita gente no Rio, Pará e em São Paulo. Em quase todos os estados onde há Física, achamos ex-alunos.
6 – A Universidade Nacional de Brasília (UNB)
Em 1965, Roberto Salmeron tinha voltado de Paris para ir para Brasília a convite do Darcy Ribeiro e queria que eu e Jayme fôssemos também. Assim, fomos para lá porque a universidade tinha sido recém-fundada e tínhamos esperança de que desse certo.
Saímos em licença da Faculdade, em 1965, e fomos para lá levando mais de 30 estudantes que deixaram o curso no meio e partiram com a gente.
Levei mais da metade da minha turma de alunos, que tinha desistido de ficar aqui e foi embora comigo para Brasília, entre eles: Carlos Alberto da Silva Lima, Mário Novello, Sérgio Joffily, José Carlos Valladão de Matos, Marcelo Gomes, Maria Helena Poppe de Figueiredo e Miguel Armony.
Lá conseguimos o seguinte para que eles pudessem se sustentar: como havia muitas escolas do governo que não tinham professores, a UnB fez um arranjo para eles ensinarem nas escolas públicas e ganhavam para isso. Os alunos do ginásio de Brasília recebiam aulas destes estudantes. Era um tempo bonito esse.
Em Brasília, conheci o pessoal das artes plásticas, de música, e outros. Tínhamos todos o mesmo espírito. A gente se sentia como uma família. Na FNFi, eu nunca me senti assim.
Na UnB todo mundo tinha o mesmo entusiasmo para botar o pessoal novo para frente. O oposto do que acontecia aqui na FNFi. Na Universidade de Brasília estava todo mundo que queria justamente fazer uma coisa diferente no Brasil. E, de fato, lá a gente conseguiu fazer. Foi um ano de sonho aquela Universidade. Acabou porque era vista como subversiva. Portanto, fomos para sair logo: o AI-5 tirou todos de lá.
Lembro-me do coronel Lázaro – agora deve ser general ou marechal, ou qualquer coisa assim, se já não morreu – encarregado de fechar a Universidade, dizendo: “Eu fecho essa Universidade, com lágrimas nos olhos, porque o meu filho, antes dessa Universidade, antes de vocês chegarem aqui, vivia numa turma muito mal encaminhada. Hoje em dia, ele estuda e gosta de estudar, mas eu não posso admitir subversão”. Então ele fechou a Universidade, mas fechou com lágrimas nos olhos. Puseram um reitor que trabalhava junto com o regime militar e demitia quem eles quisessem, a partir de listas. Além disso, dissolveu os colegiados dos institutos e das faculdades. A partir daí não haveria mais condições para manter o espírito renovador da Universidade. Quem objetasse seria demitido.
Neste momento, os professores se reuniram, e entre 230 e 250 se demitiram da noite para o dia. A UnB acabou! Estava tudo indo tão bem, mas por causa da ditadura que tinha muitas outras coisas, além do AI-5, tudo acabou (até hoje fico triste quando penso nisso).
Ficamos com o problema de trazer todos os alunos de volta e colocá-los em outras Universidades. Não deixamos ninguém perder o ano. Como eu sempre fui muito decidida, não perguntava muito, dizia o que queria e de um modo geral, dava certo. Assim foi.
Calcule o que foi trazer alunos para a Faculdade, para terminar o curso, tendo como Diretor o ‘nosso amigo Eremildo’. Foi uma dificuldade, mas nós conseguimos. Eu nunca ia pedir uma coisa sem levar o resultado. Essa era uma boa técnica, que funcionava.
Todos voltaram e terminaram o curso aqui ou ali.
7 – Os anos seguintes com Jayme
Depois disso, estivemos trabalhando na Itália, em Trieste, por um ano. O Jayme, no Instituto de Física Teórica de Trieste, e eu, no Instituto Nacional de Física Nuclear.
Como ele era físico teórico e eu física experimental, eu tinha os meus trabalhos e ele tinha os dele, mas às vezes a gente discutia um o trabalho do outro. Nunca houve nenhuma coisa que me favorecesse ou desfavorecesse por ser casada com ele. Nós éramos muito amigos mesmo antes de ficarmos juntos e tínhamos muitos amigos em comum. Eu tinha mais coisas de observações e ele o lápis, o papel e os trabalhos sobre campos.
O período 1975-77
Quando voltamos ao Brasil, Jayme resolveu fazer concurso para Cátedra de Física Superior em São Paulo. Ganhou o concurso e eu fui convidada pelo Ernst Hamburger, da USP, para reorganizar e orientar o laboratório de Espectroscopia Nuclear que eles tinham e onde usavam emulsões como detectores. Fui para São Paulo e organizei o laboratório.
Em 1977, voltamos para o Rio quando tivemos grande apoio da PUC-RJ. O Padre Collins era o diretor do Departamento de Física naquela época e nos convidou. Apesar de nós não termos nada de católicos, eles nos ajudaram muito – pensavam como gente. E para eles não era mal, porque os trabalhos saiam como da PUC. Lá me deram uma sala e me deixaram usar o computador e tudo que eu quisesse. Montei um laboratório para mim nessa sala, com pessoal pago pela USP e material de lá. Um laboratório que pertencia a USP e a PUC. Eu recebia pela USP, pois o Ernst Hamburger conseguia verba para me pagar.
A anistia
Quando veio a anistia, nós tínhamos que pedir para voltar para a UFRJ (antiga FNFi). Resolvi não pedir porque achava um absurdo esse pedido. O CBPF teve uma atitude completamente diferente, nos convidou com todas as honras, para voltar. Não é questão de querer honras, mas é muito deprimente, depois de injustiçada, você pedir para voltar. Além disso, havia uma porção de condições. Entre elas, não se podia ter tempo integral – que acabaram dando. Não se podia ser um professor igual aos outros. Seria sempre um professor com restrições. Foi um absurdo, principalmente, porque o pessoal que lutou mais pela Faculdade é que foi afastado. Na época em que fomos afastados, pensávamos: “Vamos voltar!”. Mas depois da anistia, pensei: “Não. Eu não volto”. Escrevi uma carta, dando as razões pelas quais eu não voltava.
Apesar de tudo, reconheço o importante papel da FNFi na vida universitária do Rio. Uma grande coisa, no entanto, foi a UDF que destruíram, mas que pelo menos deixou a ideia de se ter um curso de Física, um curso de Matemática e outros. Foi uma pena acabarem com a UDF. Ela é que devia ter continuado.
Primeiramente, foi criada a USP, em 1934. Em seguida, em 1935, a UDF que se transformou na FNFi. Na USP, eles mandaram escolher os professores no exterior que ser revelaram ótimos. Na FNFi, havia gente de muito nome e que, dentro da época deles e do que existia no Brasil, foram bons professores (pesquisadores não, porque não havia pesquisa).
Na UDF havia pessoas de tipos diferentes, gente que fazia pesquisa, estrangeiros que vieram e que também faziam pesquisas. O resultado disso é que ela foi criada para a formação de professores secundários e acabou dando grandes pesquisadores.
O Centro para nós foi uma coisa formidável. A Universidade de Brasília também foi. O que nós conseguimos fazer com os alunos da Faculdade foi uma coisa que nos deu muito prazer. Mas foi uma luta imensa.
8 -Reflexão final
Fiz um curso de Física porque sempre gostei de Física. Todo mundo dizia: “Não há futuro aí, vai passar miséria”. Eu pensava: “Gosto de Física”.
Quando o Costa Ribeiro me convidou para ajudá-lo em pesquisa nem pensei em perguntar se ele me arranjaria um salário. Hoje é a primeira coisa que nos perguntam. O Leite Lopes estava ensinando na Lafayette e me indicou para dar suas aulas quando foi para os Estados Unidos. Lá eu recebia.
Além disso, havia a oposição dos pais. Geralmente os pais estavam contra. Os meus, duplamente, porque Física “não era profissão de mulher” e por que Antônio Houaiss gostava das minhas poesias – quando eu namorava o Oswaldo, a gente se escrevia em poesia, mas depois tive filho e ficou difícil de continuar. Papai, advogado e poeta na mocidade, achava que eu devia fazer literatura.
Havia muita gente que estava fazendo Medicina ou Engenharia, mas que, na verdade, queria era fazer Matemática ou Física e quando viu surgir a UDF, foi para lá correndo. Então o pessoal que foi para a Física, de início, era o pessoal que realmente queria fazer o curso e isto fez muita diferença. O Leite Lopes já era formado em Engenharia Química, o Nachbin veio da Engenharia, e também era do nosso grupo, que o Leite Lopes chamava de ‘Os Três Mosqueteiros’ – Jayme, ele e eu. O Nachbin era o D’Artagnan. Nós quatro andávamos sempre juntos. Era um grupo que realmente queria, antes de tudo, fazer Física.
É engraçado como, geralmente, as coisas se modificam para pior. É difícil retomar uma coisa! É muito mais fácil começar. A gente viu isso aqui no Centro, por exemplo. Quando nós fomos afastados do CBPF, eles colocaram muita gente que nós não deixaríamos entrar.
Quando voltamos, o Jayme resolveu que ia melhorar o CBPF e conseguiu muita coisa. Muitas vezes quando o achava sobrecarregado, dizia: “Olha, já formamos muita gente. Muitos alunos estão no CBPF. Ou a gente fracassou ou eles vão endireitar isso aqui. Vamos deixar isso com eles”. Eles de fato ajudaram. Melhorou. Mas é difícil, sabe?
Eu trabalhei em radioatividade, em Física Aplicada à Biologia, em Partículas Elementares e depois acabei em Física Nuclear. Fui mudando de campo e adaptando-me às novas circunstâncias.
Quando comecei no Centro, após a Anistia, pensei: “Eu volto para o Centro, mas agora só quero saber do meu trabalho”. E eles aceitaram. Não estou em comissão nenhuma, estou aquela “egoistazinha”.
Na FNFi, infelizmente, participei durante três anos da Congregação. Nunca fui catedrática. Era contra a Cátedra e resolvi que não me inscreveria em concurso para catedrático. Quando dizia ao Costa Ribeiro que nunca iria me inscrever, ele ficava triste: “Mas como?” E eu dizia: “Não, não vou professor. Eu sou contra a Cátedra. Não sou contra o senhor, não. Eu sou contra a Cátedra e vou ser coerente”.
O catedrático era senhor absoluto. Para nomear gente, só se ele quisesse e eu não concordava com isso. Tinha em todas as universidades, mas no Centro não. É o que hoje corresponde ao professor titular, mas com a diferença que ele mandava em tudo o que ele quisesse dentro daquele setor.
Não participei do regime de Institutos.
Existe hoje no Brasil muita gente que sabe o que é uma universidade e acredito que estamos caminhando, em muitas universidades, para situações cada vez melhores. Depois que Jayme e eu nos aposentamos, ao completar 70 anos, continuamos a fazer física no CBPF, mesmo que pouco.
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*Elisa Frota-Pessoa nasceu no Rio de Janeiro em 17 de janeiro de 1921. É física e autora de trabalhos internacionalmente importantes a partir de seus estudos com emulsões nucleares. É uma das desbravadoras do ensino da física no Brasil e uma das fundadoras do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). É membro da Academia Brasileira de Ciências e professora emérita do CBPF.
**Texto baseado em depoimento de Elisa Frota-Pessoa à Ana Elisa Gerbasi da Silva e Lizete Castro Pereira Nunes para o Projeto de Estudos de Educação e Sociedade da UFRJ, em 29 de Março de 1990, complementado com entrevista realizada em junho de 2012 por Cosmos e Contexto. No texto, as perguntas e as respostas foram incorporadas ao corpo único do depoimento.
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Referências
[1] E. Frota-Pessoa; N. Margem. Sobre a desintegração do méson pesado positivo. Anais da Academia Brasileira de Ciências, vol. 22, p. 371-383 (1950).
[2] J. A. Wheeler; J. Tiomno. Energy spectrum of electrons from meson decay. Reviews of Modern Physics, vol. 21, p. 144-152 (1949).
[3] J. A. Wheeler; J. Tiomno. Charge exchange reaction of the m-meson with the nucleus. Reviews of Modern Physics, vol. 21, p. 153-165 (1949).
[4] J. Tiomno. Non conservation of parity and the Universal Fermi Interaction. Il Nuovo Cimento, vol. 6, p. 912-916 (1957).