Editorial
Chegamos a mais uma edição de Cosmos & Contexto.
Seguindo o objetivo fundador desta revista, o de criar um ambiente de diálogo entre diferentes áreas conhecimento (ver em: A Revista), apresentamos neste número textos de autores de origens distintas: um antropólogo, um historiador e um cosmólogo.
Começamos pela conferência Dois ou três platôs de uma antropologia de esquerda, proferida pelo antropólogo Marcio Goldman na IV Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia, onde discute acerca do que poderia delinear a prática de uma antropologia de esquerda. Em seguida, damos continuidade à publicação dos contos Jogos da Natureza, de Mário Novello, com os capítulos 9 e 10 – Jogos da Dicotomia e Jogos dos Paradoxos; por fim, o texto Não sou rei de consciências humanas, do advogado e historiador polaco Konstanty Grzybowski.
Embora Cosmos e Contexto não se balize pelo imediatismo e por ações cotidianas de conteúdo politico, não podemos esconder que vivemos um importante momento que são as eleições em um sistema democrático. Todos podem e devem comentar propostas que serviriam para orientar decisões dos governantes — e é bom que se faça isso. No entanto devo confessar que me sinto extremamente desconfortável quando argumentos de natureza científica são colocados como definitivos e superiores em uma causa política.
A chamada do texto do físico Rogerio Cerqueira Leite de 31 de agosto na Folha de São Paulo é significativa e pretende ser definitiva e emblemática. Diz ela, referindo-se à candidata Marina Silva do PSB:
“não me sinto confortável em ter como presidente uma pessoa que acredita que o Universo foi criado em sete dias há apenas 4.000 anos.”
Todo cientista tem o direito, como qualquer cidadão, para expressar seu apoio a esta ou aquela agremiação política. No entanto, apresentar-se como cientista e dar argumentos pretensamente científicos para sustentar um argumento político é, pelo menos, inadequado – para dizer o mínimo.
Cosmos e Contexto em seu primeiro número trouxe trechos do filósofo Ortega y Gasset contidos em sua belíssima obra “La barbárie del especialismo” onde termina sua crítica a um certo tipo de cientista da era moderna argumentando que ao longo do século XX criou-se uma casta de homens sobremodo estranhos:
“O investigador que descobriu um fato novo da Natureza tem por força que sentir uma impressão de domínio e de segurança em sua pessoa. Com certa justiça se considerará ‘um homem que sabe. E, com efeito, nele se dá um pedaço de algo que, junto com outros pedaços não existentes nele, constituem verdadeiramente o saber. O especialista ‘sabe’ muito bem seu mínimo rincão de universo; mas é radicalmente ignorante de todo o resto. E, no entanto, se comporta em todas as outras áreas como se ‘soubesse’. Em política, em arte, nos usos sociais, nas outras ciências, tomará posições de primitivo – e ignorantíssimo; mas as tomará com energia e auto-suficiência.”
Ortega y Gasset ensina que devemos distinguir entre uma certeza cientifica daquilo que nada mais é do que uma opinião, principalmente quando enunciada por um cientista.
Ademais, entrando no mérito da questão das origens do universo, entendo a dificuldade de um físico em lidar com questões cósmicas. Em sua grande maioria eles parecem estar mais próximos (nas questões cósmicas) de Ptolomeu do que de Copérnico. Enquanto pensava-se que a Terra era o centro do universo, vivia-se uma ilusão de grandiosidade do homem. Copérnico produziu um primeiro e eficaz golpe no orgulho da espécie humana ao comentar que talvez não ocupássemos lugar central no universo.
Os físicos extrapolam suas leis descobertas em laboratórios terrestres e em nossa vizinhança argumentando a partir do princípio da unidade das leis da natureza, que elas deveriam ser válidas em todo o universo. Essa hipótese constitui parte de um método de trabalho aceitável e coerente.
No entanto, não é isso que os cosmólogos estão revelando. Alterações das leis físicas ingenuamente extrapoladas para todo o universo têm sido uma sistemática de análise dos últimos anos.
E, por fim, as crenças individuais sobre as origens do universo dificilmente serão eliminadas da sociedade porquanto os cosmólogos ao explicitarem sua autocrítica, reconhecem que dificilmente conseguirão apresentar argumentos definitivos e conclusivos capazes de assegurar o direito de possuir a correta descrição das origens do universo.
A crença (cientifica) de que o universo teria tido um começo explosivo a uns poucos bilhões de anos foi propagada por boa parte da comunidade cientifica e praticamente toda a mídia nacional e internacional, como uma verdade cientifica a partir de alguns poucos fatos teóricos e observacionais que ocorreram nos primeiros anos da década de 1960. No entanto, hoje, a comunidade internacional dos cosmólogos está dividida. Há ainda uma maioria que, desanimada, acredita que não é possível ir além do misterioso fenômeno explosivo, o bigbang, que teria dado origem à expansão do espaço-tempo, por um lado; e por outro, cientistas que apresentam argumentos igualmente consistentes mas ainda não definitivos, de que o universo poderia ter tido uma fase anterior colapsante, atingido um valor mínimo para o volume total do espaço e a partir daí iniciado a atual fase de expansão de seu volume. Em novembro de 2010 o Instituto de Cosmologia Relatividade e Astrofísica (ICRA/CBPF) um órgão do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, hospedou uma Conferência internacional intitulada Bouncing Models onde esses modelos cosmológicos que pretendem dar ao universo um tempo de existência muito maior do que os poucos bilhões de anos proposto pelo cenário big-bang mostrou que ainda estamos engatinhando no que diz respeito às grandes e fundamentais questões que a cosmologia colocou. Ou seja, qualquer pessoa pode argumentar sobre o tempo de existência desse nosso universo, seja ela um cientista ou não. Trata-se de uma opinião.
Ademais, só por curiosidade, vale a pena notar que a distância que separa o modelo bigbang que fixa o começo da existência de nosso universo em pouco mais de uma dezena de bilhões de anos e, digamos, a data histórica de 4 mil anos apontada por Cerqueira Leite é bastante inferior àquela que separa o modelo cientifico do bigbang e o modelo científico do universo eterno com bouncing, como nos cenários cosmológicos descritos naquela Conferência internacional. Trata-se de comparar um número finito com uma configuração infinita, que é o tempo de duração do universo nesses modelos cosmológicos com bouncing.
Ou seja, votar ou não em Marina Silva não tem nada a ver com o tempo de existência do universo, o que, é bom que seja dito bem claramente, nem Cerqueira Leite, nem nós outros, cosmólogos, sabemos verdadeiramente seu valor.
Mario Novello