Cosmologia e transformação de si: o caso de Platão e Plotino – Reedição
*Artigo publicado pela primeira vez em 15 de fevereiro de 2013.
Teodoro – Que queres dizer com isso, Sócrates?
Sócrates – Foi o caso de Tales, Teodoro, quando observava os astros; porque olhava para o céu, caiu num poço. Contam que uma decidida e espirituosa rapariga da Trácia zombou dele, com dizer-lhe que ele procurava conhecer o que se passava no céu, mas não via o que estava junto dos próprios pés. Essa pilhéria se aplica a todos os que vivem para a filosofia.
O objetivo deste trabalho, num primeiro momento, é analisar uma passagem famosa do Teeteto de Platão que defende que o correto estudo dos astros implica necessariamente uma transformação de si. Trata-se do trecho ao redor da história de Tales, o primeiro filósofo, caindo em um buraco ao contemplar os astros. A partir da apresentação deste texto, num segundo momento, iremos compará-lo com o pensamento de Plotino, um dos primeiros neoplatônicos, do século III d.C. A ideia principal é mostrar como nos dois autores, o estudo dos corpos celestes, com suas dimensões gigantescas e seus movimentos matemáticos, tem uma função ética, uma função de formação do homem para viver melhor. Pois ambos afirmam, à sua maneira, que o estudo contínuo dos seres celestes gera na alma do investigador uma transformação dos critérios para se avaliar e valorar o mundo sublunar. Assim, busca-se mostrar como a cosmologia tem, por fim, uma consequência ética.
Em primeiro lugar, vamos analisar o famoso trecho sobre Tales. Estamos aqui em plena Digressão (párerga) do Teeteto, termo que Platão utiliza para descrever essa breve divagação sobre quem são e como são os filósofos. Sendo um diálogo eminentemente sobre o conhecimento, já causou estranheza de alguns comentadores a função especifica que teria esta divagação dentro do esquema mais amplo do diálogo, mas não vamos nós mesmos divagar sobre isto.
Um dos temas centrais desta Digressão fala sobre a importância do ócio (scholèn ágomen) para o filósofo. Para apresentar essa importância, faz-se no diálogo uma oposição com o negócio (ascholía) daquele que passa a vida a cuidar do tempo da clepsidra (relógio de água) dos julgamentos da Ágora (Teeteto 172d-e). Os filósofos, ao contrário, têm ócio e podem divagar, pois são os argumentos que estão ao seu dispor, isto é, existem para dar conta do desejo de investigação do homem, e não o contrário, como na Ágora com seus negócios, os homens subordinados aos argumentos, na busca de defender este ou aquele ponto de vista.
É muito interessante como a descrição sobre o estado de espírito do filósofo frente às coisas dos tribunais surge em meio à própria argumentação que vinha sendo realizada e se reflete no próprio método de investigação conduzido pelo personagem Sócrates. É como se, em meio a outras discussões, Sócrates convidasse seus leitores a também ter ócio e não deixar-se levar pelas regras rígidas de uma sociedade artificial.
O Teeteto é um diálogo sobre o que é o conhecimento. No trecho imediatamente anterior ao de nosso interesse, eles estavam discutindo a tese supostamente defendida por Protágoras, a tese sobre a relatividade de qualquer opinião, e as diferentes consequências a que esta tese pode chegar. Afirma-se que em cada cidade, os homens julgam a partir de um acordo feito sobre o justo e o injusto, o pio ou o ímpio, e tal acordo se faz valer como verdade enquanto o acordo durar para aquela cidade em questão. Então, Sócrates indica que estão prestes a esbarrar numa questão maior do que aquela do diálogo até aqui (a saber, “o que é o conhecimento, epistéme?”), ao que Teodoro o incentiva a continuar com esta outra questão maior, já que eles dispõem de ócio suficiente. Então, Sócrates aponta a ambiguidade dos filósofos frente aos homens dos tribunais com seus negócios: são como homens livres frente a escravos, apesar de parecerem ridículos.
Sócrates – Parece que temos ócio, sim. Por vezes, meu admirável amigo, tal como agora e em outras circunstâncias, me tem ocorrido como é natural revelarem-se oradores ridículos as pessoas dadas a especulações filosóficas, sempre que se apresentam nos tribunais. Teodoro – Que queres dizer com isso? Sócrates – Parece-me que os indivíduos que desde moços vivem a rolar nos tribunais ou quejandos ajuntamentos, em confronto com os educados na filosofia e estudos correlatos são como escravos comparados a homens livres. Teodoro – E qual é a razão? Sócrates – A que apontaste agora mesmo: o tempo de que sempre dispõem (scholé), por terem folga para conversar em paz, tal como se dá neste momento conosco, pois agora mesmo mudamos de assunto pela terceira vez. É o que eles fazem quando um novo tema lhes agrada mais do que o debatido, sem se preocuparem se a conversa dura muito ou pouco. O que importa é atingir a verdade. Os outros, ao revés disso, só falam com o tempo marcado, premidos a todo instante pela água da clepsidra, que não os deixa alargar-se à vontade na apreciação dos temas prediletos.
Como indicamos acima, Sócrates aqui aproveita a própria liberdade que os filósofos possuem para fazer uma digressão, e é exatamente sobre essa característica mesmo que ele quer falar, isto é, da liberdade para digressões, ou seja, da predisposição do filósofo para assuntos que não necessariamente têm relação imediata com a “ordem do dia”, e por consequência, com o mundo da prática e do negócio. Os filósofos podem se dar ao luxo de, quando julgarem conveniente, se voltar para questões mais profundas ou de outra natureza, no curso de qualquer questionamento. Por possuírem o ócio típico daqueles que são livres e não escravos, os filósofos podem colocar para si mesmos as prioridades dos assuntos a serem tratados, divagando quando sua própria avaliação das argumentações lhe indicar necessário.
Por outro lado, o retórico do tribunal precisa se subordinar aos ditames das regras de conduta dos locais de julgamento, assim como se ater a defender ou atacar o ponto de vista em questão. Ele não poderia alçar voo, por exemplo, sobre a natureza da Justiça em si mesma, mas, sim, deve se ater a comprovar se tal ato é justo ou não.
Já os amantes do saber (philo-sophos) quando conversam, mesmo que iniciem sua discussão sobre um determinado assunto de natureza mais prosaica, podem alçar voo para questões mais profundas e primeiras. Com essa liberdade de condução, regulada pela prioridade dos próprios temas investigados, Platão parece querer mostrar que, ao investigarem, os filósofos podem se apartar dos caminhos aqui da terra e alçar voo para lugares mais ricos de espanto e liberdade, intensos com assuntos de profundo interesse e deleite, como os assuntos referente aos astros, que são maiores do que aquilo que o cotidiano pode oferecer, mais propriamente humanos do que aquilo que os ditames da clepsidra permite. Pois esse cotidiano, a que estão sujeitos os homens dos tribunais, os enfraquece e os apequena, os retira do que seja essencial ao ser humano, e os torna joguetes das regras de instituições que têm interesses considerados pequenos frente aos interesses primordiais do homem.
Essa liberdade a que o filósofo está sujeito torna a sua alma larga, assim como a pressão das pequenas regras do tribunal vai tornando a alma destes pequena e torna (smikroì kaì ouk orthoì). O aprendizado dos meios de se conseguir vitória no tribunal impossibilita a alma daquele que ali é formado de se tornar autêntica e livre. Ele não tem liberdade de respeitar sua própria natureza e seus impulsos, mas aquele ambiente exerce uma força formadora que torna a alma subordinada aos ditames das regras ali estabelecidas. Assim, apesar de aparentar poder e verdade, pois por vezes é vitorioso naquele jogo, o retórico dos tribunais não acostumou sua alma com assuntos próprios, sua vida não está de acordo com a livre investigação daquilo que é mais autêntico no homem, muito menos teve chance de se debruçar sobre as questões que são as mais importantes.
Tendo descrito primeiro o grupo dos negociantes do poder público, Sócrates pergunta se eles devem se voltar para descrever o outro grupo, o grupo dos filósofos, e Teodoro responde enfaticamente que sim. Com a liberdade de investigação do que for mais próprio e autêntico, liberdade essa que molda a alma do filósofo com os hábitos das investigações elevadas, os filósofos frente aos homens da Ágora parecem pouco úteis e práticos, até mesmo ridículos.
Socrates: […] de início, devemos observar acerca dos primeiros [os filósofos] que desde a mocidade o que mais do que tudo ignoram é o caminho da Ágora ou onde fica o tribunal, a sala de conselho e quejandos, locais de reuniões públicas; não ouvem nem veem as leis nem as decisões publicadas ou narradas. As disputas dos cargos públicos nas hetérias (sociedades políticas), as reuniões e os festins, os banquetes animados por tocadoras de flauta: nem em sonhos lhes ocorre comparecer a nada disso. Nasceu na cidade alguém de nobre ou baixa estirpe? Certo cidadão herdou maldição de seus antepassados, homens ou mulheres? É o que o filósofo conhece tão pouco, como se diz, como quanta areia há no mar. Nem chega mesmo a saber que não sabe nada disso. Porém, não se alheia dessas coisas por vanglória, mas porque realmente só de corpo (sôma) está presente na cidade em que habita, enquanto o pensamento (diánoia), considerando inane e sem valor todas essas coisas, as desdenha, e voa por cima de tudo, como diz Píndaro, “sondando os abismos da terra” e medindo a sua superfície, contemplando os astros (astronomoûsa) “para além do céu”, a perscrutar a natureza em universal de cada ser em sua totalidade, sem jamais descer a ocupar-se com o que se passa ao seu lado.
Sócrates descreve todo um conjunto de realidades da vida cotidiana da Grécia que serão desprezados. Primeiro, a cena política de Atenas e suas festas correspondentes. Pode-se perceber certo ato contínuo entre as esferas políticas e festivas, todas desprezadas pelo filósofo. Por um lado, com seus conselhos e tribunais e suas sociedades políticas, por outro, com seus banquetes (deîpna) e festas (kômoi) com flautistas. Num segundo momento, Platão começa a descrever o afã por informações sobre homens, com seus julgamentos limitados e preconceituosos.
As perguntas que Sócrates levanta são perguntas típicas de fofocas e intrigas, provavelmente comuns em sua época.
Mas é a ultima parte deste trecho, e em especial a que está em negrito, que mais nos interessa aqui. O termo investigar o céu, astronomoûsa, é uma forma verbal de astronomia, e é nosso tema principal neste artigo, especialmente as decorrências na forma de viver daquele que faz a astronomia. Em primeiro lugar, vale a indicação que não se trata de uma atitude de exaltação de si mesmo, como se o amante do saber se considerasse tão superior que não se volta ao nível destas atividades baixas. Não, de forma alguma. O que move o filósofo não é um desprezo altivo e narcísico por uma dimensão supostamente inferior do mundo, mas o passar a prezar muito outra dimensão.
Trata-se antes de uma paixão e um interesse tão forte pelas questões filosóficas, aquelas que são as mais próprias e mais importantes para o homem, que fazem com que ele se afaste do mundo cotidiano.
A distinção corpo e pensamento (sôma e diánoia) é crucial aqui, e reflete toda uma tradição ascética que será muito importante na história da filosofia e do cristianismo. O corpo do filósofo está presente na cidade onde ele vive e dorme, mas seus pensamentos vagueiam pelos lugares mais recônditos do universo. Acredito que aqui Platão busca realçar o caráter especulativo da filosofia como algo realizado com um envolvimento emocional muito forte, com todo seu interesse. Podemos mesmo relacioná-lo com o modo como descrevemos cotidianamente uma pessoa absorta em pensamentos que só está presente ali em corpo, mas não em espírito. Com seu espírito, o filósofo vagueia pelas dimensões mais radicais e não tem olhos para os fatos a sua volta, considerando-os sem valor, coisas pequenas.
Mais à frente, veremos que este “absorver-se em seus pensamentos” efetiva na alma do filósofo um novo critério axiológico que coloca em diferente perspectiva as realidades do mundo cotidiano. No entanto, já podemos ver aqui qual tipo de atividade será paradigmática para Platão para descrever este “tornar-se absorto em pensamentos”: o contemplar os astros. Utilizando nesta passagem um linguajar reminiscente ao das ideias, há uma linha de continuidade entre o tipo de investigação dos astros com a investigação filosófica por excelência, aquela que busca a essência da coisa, a coisa em sua totalidade. Vejamos, finalmente, a história de Tales, continuação direta do trecho acima.
Teodoro – Que queres dizer com isso, Sócrates? Sócrates – Foi o caso de Tales, Teodoro, quando observava os astros (astronomoûnta) porque olhava para o céu, caiu num poço. Contam que uma decidida e espirituosa rapariga da Trácia zombou dele, com dizer-lhe que ele procurava conhecer o que se assava no céu, mas não via o que estava junto dos próprios pés. Essa pilhéria se aplica a todos os que vivem para a filosofia. Realmente, um indivíduo assim alheia-se por completo até dos vizinhos mais chegados e desconhece não somente o que eles fazem como até mesmo se se trata de homens ou de criaturas de espécie diferente. Mas o que seja o homem e o que, por natureza, lhe cumpre fazer ou suportar, para distingui-lo dos outros seres, eis o que ele procura conhecer, sem se poupar a esforços em sua investigação. Compreendes-me, Teodoro, ou não? […]
A dimensão da contemplação dos astros vai ser fundamental nessa passagem.
Aqui, se trata de um investimento tão radical na busca de compreender qual é o lugar em que nos encontramos frente à totalidade, que somos afastados do interesse pelas coisas do cotidiano e mais próximas. Trata-se de levar em conta a descoberta de novos parâmetros que remodelariam os valores que conferimos ao mundo imediatamente à nossa volta. É natural, portanto, um estranhamento radical frente aos objetos ao nosso redor, já que o filósofo se encontra em um estado de estupor, de espanto original (thaûma) por contemplar os elementos mais longínquos e a partir de uma perspectiva mais fundamental do que a cotidiana.
Esta é uma passagem importante especialmente pela sua relação com os vizinhos. Para ele, o ser humano se torna um estranho, pois o filósofo percebe tudo com o thauma de quem tem a consciência de não saber o que as coisas são, ou melhor, que as contempla obnubilado por uma dimensão que vai aos poucos descobrindo, a dimensão cósmica. Por isso, duvidar de que os seus vizinhos sejam realmente humanos é uma mera decorrência natural de quem está estupefato com o fato de todo o mundo ser como é dentro de um cosmos tão gigantesco. Trata-se de se espantar com o que está a sua volta por olhá-lo de um ponto de vista longínquo, a partir de um horizonte amplo e não estreito como aquele do cotidiano. Ele está imerso na investigação do que seja o humano em si, e nessa imersão, não consegue reconhecer o vizinho com todas suas idiossincrasias. Novamente, vemos uma continuidade entre o tipo de investigação dos astros e aquela tipicamente filosófica, que busca a essência, a coisa em si.
Um pouco mais à frente, temos a explicação de como o sistema axiológico do filósofo é transformado em seu hábito de investigar as dimensões espaciais. Sócrates continua a falar:
[…] Por outro lado, quando se trata de elogios e de enaltecerem uns aos outros com termos pomposos, não procura esconder o riso; estoura em gargalhadas sem nenhum constrangimento, o que o faz parecer tolo. Quando ouve o encômio de qualquer tirano ou potentado, imagina que se trata do elogio de um pastor: porqueiro, cabreiro ou vaqueiro, por ser abundante a sua ordenha. É de opinião, aliás, que os reis guardam e ordenham um rebanho muito mais insidioso e intratável do que os dos verdadeiros pastores, e que por falta de vagar acabam ficando tão rústicos e ignorantes como aqueles e tão cercados por seus muros como os verdadeiros pastores pelos currais nas montanhas. […]
[…] Quando ouve dizer que tal indivíduo é dono de dez mil plectros de terra, ou até de mais, como se se tratasse de uma grande propriedade, julga que lhe falam de coisinhas sem valor, acostumado, como está, a contemplar a terra inteira. Ao ouvir gabarem títulos de nobreza, por poder alguém mencionar sete antepassados ricos, considera absolutamente fútil tal elogio e revelador de curteza de vista por parte dos que falam, os quais, por ignorância, são incapazes de apreender o todo e de calcular que não há quem não tenha miríades sem conta de avós e antepassados, entre os quais se sucedem ricos e pobres, também por miríades, potentados e escravos, Helenos e bárbaros, indiscriminadamente, nesta ou naquela geração. […]
Nesta passagem Platão leva a sério a relatividade dos termos grande e pequeno, rico e pobre, e explicita a dimensão de seu relativismo. A apreciação valorativa realizada pelo ser humano sempre se baseia em determinado padrão, certa medida a partir da qual a valoração se realizará. O filósofo, por contemplar o espaço e o tempo a partir da totalidade, por ser também um cosmólogo, coloca nesta perspectiva o objeto cotidiano, diário e vizinho com que normalmente nos encontramos. Platão nos diz que o hábito de investigarmos as dimensões físicas do mundo cria em nós certas posturas morais a que reagimos quando encontramos os diferentes objetos pelo mundo. A partir deste texto, podemos pensar que todo homem carrega em si um sistema axiológico, isto é, valorativo, que coloca um peso moral e social aos objetos ao nosso redor. Podemos dizer que nossos desejos e expectativas frente aos objetos ao nosso redor provém de uma medida prévia que o homem carrega ao andar pelo mundo.
Essa medida prévia é que faz com que acreditemos que possuir 5 quilômetros quadrados de terra é possuir muito ou pouco, isto é, há um padrão prévio que regula nosso investimento valorativo, nosso sistema axiológico. Os estudos cosmológicos, isto é, os nossos hábitos investigativos de apreender as dimensões cósmicas, tinham para Platão um poder de transformar aquilo que regula o nosso investimento axiológico, isto é, aquilo que regula e transforma a medida prévia que carregamos ao existirmos. Estamos alterando nossos desejos e expectativas na medida em que nos habituamos com as dimensões da totalidade. Enfim, ao estudarmos o cosmos, reestruturamos as dimensões valorativas que nos determinam eticamente: cosmologia é um estudo que tem consequências na formação de caráter e este era o aspecto relevante para a concepção antiga de filosofia.
É deste modo que o filósofo, por possuir um padrão diferente dos demais, se torna alguém cômico, ridículo, pois não consegue agir no mundo de valores com padrões curtos frente ao seu sistema axiológico. Podemos pensar também na figura do palhaço, do trixter, ou até mesmo do louco como um símbolo daquilo em que o filosofo se transforma em sua paixão pelo saber.
Por fim, não podemos deixar de citar o trecho que vem logo a seguir que foi fundamental para toda a história do cristianismo e do ocidente.
[…]Daqui nasce para nós o dever de procurar fugir o quanto antes daqui (da terra) para o alto (para o céu). Ora, fugir dessa maneira é tornar-se o mais possível semelhante a Deus; e tal semelhança consiste em ficar alguém justo e santo com sabedoria […].
O tema do “assemelhar-se a deus”, homíosis theoi, foi central em toda tradição do cristianismo e sempre relacionado, como nesta passagem, a uma fuga do nosso mundo em direção ao mundo divino. No entanto, o que não foi tão aprofundado na história ocidental é que este assemelhar-se a deus é também um assemelhar-se ao padrão divino inscrito nos corpos celestes. A frase do Teeteto é bem clara quanto a isso, pois se trata de uma fuga não física, já que não se trata de fugirmos com espaço naves para o espaço sideral, mas da contemplação psíquica que efetua revoluções morais, típica da investigação investida afetivamente dos estudos cosmológicos-filosóficos da antiguidade. O homem, para se tornar melhor, precisa procurar fugir daqui ao se tornar semelhante aos astros, contemplando-os e buscando levar a sua própria vida como eles o levam, de modo harmonioso, rítmico, regrado.
Plotino
A comparação com textos de Plotino (201-270 D.C.) se faz natural especialmente pelo aspecto claramente ético que podemos encontrar em alguns de seus estudos sobre o cosmos. A descrição de todas as características e implicações de sua concepção cosmológica é muito complexa para o presente texto e me limito apenas a uma apresentação de seu sistema geral, assim como de aspectos cosmológicos e éticos deste sistema.
Plotino tem um sistema metafísico com certos traços marcantes e bem diferentes do sistema de Platão. Seu sistema não se limita ao dualismo platônico, em que temos, por um lado, o mundo das ideias eternas, acessível pelo intelecto e, por outro lado, o mundo sensível, composto por cópias das ideias, em constante transformação, e acessível pelos cinco sentidos. Plotino vai defender ainda um terceiro nível, além destes dois platônicos.
Plotino denomina o nível que organiza o mundo sensível de psykhé, isto é, de nível psíquico, pois se trata de pensar que há uma alma que preside e governa este nosso mundo. No entanto, esta anima mundi, alma do mundo, tem uma atividade própria: contemplar o mundo inteligível das ideias para poder doar ordem e beleza ao mundo sensível. Este nível inteligível, Plotino chama de Intelecto, Noûs em grego. No entanto, para Plotino, há ainda um terceiro nível, além do mundo inteligível das ideias, o Uno-Bem. Assim, temos a tríade tão famosa do neoplatonismo: Alma, Intelecto e Uno (psyché, noûs, hén). Este terceiro nível, o Uno, que marca claramente uma distinção com o dualismo platônico, é tão radicalmente transcendente, que dele nada se pode falar, e a única forma de descrevê-lo seria negando-lhe todos os atributos possíveis.
Qualquer atributo, por participar da multiplicidade, não pode descrever com rigor a unicidade radical do Uno-Bem. Até mesmo esses termos, Uno e Bem, deveriam ser entendidos negativamente, como negando os seus opostos. Tem-se aí o que depois se convencionou a chamar de Teologia Negativa, ou Apofática, por ter como método de descrição da divindade suprema um processo de negação de todo e qualquer atributo. Plotino tem uma concepção do cosmos que segue em diversos aspectos as concepções de Platão e Aristóteles, mas em outros se diferenciam. Os astros são seres vivos e apresentam em seu suposto movimento matemático perfeito a expressão de sua vida ética perfeita: os seres celestes são deuses eticamente perfeitos, vivendo suas virtudes no máximo grau possível para um ser da ordem do mundo sensível. O ato próprio dos planetas e astros é contemplar as realidades superiores, isto é, os inteligíveis que formam o Noûs (Intelecto). Tal contemplação enseja um tipo de saber, isto é, a contemplação efetuada pelos astros é um tipo de conhecimento sobre as realidades inteligíveis, conhecimento este que não se faz apenas como posse, mas se faz como uma identificação com o objeto conhecido: os astros ao contemplarem os inteligíveis exercem uma identificação com eles e por issso seu movimento deve também ser inteligível, isto é, matemático. A participação da alma dos astros nas realidades inteligíveis do Noûs é o ato próprio dos astros e a matemática de seu movimento é um dos reflexos de tal ato principal, atestando a vida feliz que levam: não há nada que possa trazer maior felicidade para um ser vivo do que a contemplação do mundo inteligível.
Temos, então, dois aspectos em que os astros são para nós entes especiais, um epistemológico e outro lógico. No aspecto epistemológico, os astros são, no âmbito sensível, as realidades que mais nos apresentam a dimensão inteligível da totalidade, pois seus movimentos são os melhores meios para nós compreendermos a dimensão das ideias, que é a dimensão fundamental de todo conhecimento. Por outro lado, os astros também são, eticamente, os melhores e mais felizes seres vivos, e portanto são também paradigmas de felicidade para nós, que podemos nos melhorar na medida em que imitamos o tipo de vida eles que levam.
Como um modo de exemplificar a função formadora e ética da contemplacão do cosmos, façamos, por fim, uma análise de uma passagem das Enéadas. Podemos dizer que Plotino propõe um exercício mental que tem por objeto o céu como ele é pensado dentro de seu sistema. No tratado Sobre a Beleza Inteligível (V, 8 [31], 9), Plotino defende que a contemplação imaginativa da totalidade do cosmos pode nos elevar da sua dimensão meramente física para uma proximidade com as ideias inteligíveis, já que mantemos em nossa mente a dimensão matemática refletidas no movimento supostamente perfeito dos astros. Ele nos solicita que tenhamos em mente cada um dos elementos celestes, como em um exercício imaginativo que possa nos aproximar do nível inteligível, que por sua vez está sendo contemplado pelos astros. Para isso, necessitamos retirar a massa destes corpos depois de entendermos suas dimensões e movimentos.
Compreendamos portanto este universo, permanecendo cada uma das partes como isto mesmo que elas são que é, sem misturar-se, “todas as coisas juntas em uma”, por quanto é possível, de modo que, quando se mostra uma coisa qualquer como, por exemplo, a esfera externa do céu, siga imediatamente também a imaginação do sol e junto <a esta> a dos outros astros, e se veja quer a terra, quer o mar, quer todas as criaturas vivas, como se efetivamente se pudesse ver todas as coisas numa esfera transparente. Tenhas então na alma uma luminosa imagem de uma esfera que tem todas as coisas nela mesma, seja aquelas que se movem, seja aquelas em repouso ou ainda, algumas que se movem, outras que estão paradas. Conservando esta imagem, acolhe uma outra em ti mesmo eliminando a massa. Elimina também os lugares e a imagem da matéria que está em ti, e não busque conceber uma outra esfera diferente da primeira porque é menor na massa; mas invocando o Deus, que criou aquela da qual tu tens a imagem, roga a ele que venha.
Como podemos ver, se trata mesmo de um exercício mental em que utilizamos a contemplação imaginativa dos astros como uma etapa para alcançarmos o nível inteligível. Na medida em que experimentamos imaginativamente a amplidão e a regularidade dos seres celestes e de seus movimentos estamos de alguma forma nos aproximando daquela vida superior que é a contemplação das realidades inteligíveis.
Ao retirarmos a massa de todo o universo, nos aproximamos ainda mais da esfera dos inteligíveis, pois nos resta apenas o que há de estritamente matemático, isto é, o movimento considerado regular e eterno dos seres celestes. Neste sentido, o exercício de contemplar o céu buscando seus movimentos serve como um trampolim para a contemplação eticamente relevante do nível do inteligível.
Digo eticamente relevante pois se trata sempre de pensar que a felicidade humana está em fugir daqui, como diria o Teeteto, e buscar maximamente nos tornarmos semelhantes aos movimentos celestes e, assim, ao divino. Quando contemplamos os traços matemáticos dos movimentos dos seres celestes, incorporamos em nosso próprio modo de ser essa dimensão superior que é o nível inteligível da totalidade, dimensão que se encontra mais explícitamente nestes movimentos.
Assim, pode-se ver que tanto em Platão quanto em Plotino há uma dimensão claramente ética nas investigações cosmológicas que realizavam os antigos. Podemos ver que em Platão a contemplação dos astros, com suas distâncias, nos possiblita ganhar um novo parâmetro axiológico com o qual medir o mundo a nossa volta, fazendo com que o filósofo, acostumado àquelas dimensões gigantescas, pareça mais como um louco ou bobo frente aos afãs dos negociantes da praça pública e suas supostas justiças.
O filósofo, frente ao retórico dos tribunais, leva uma vida mais livre, pois está mais próxima daquilo que realmente existe: possui o critério das dimensões celestes para medir o mundo a sua volta e por isso encontra uma realização muito mais radical do que o homem comum. Por outro lado, Plotino propõe certos exercícios imaginativos a partir da contemplação do cosmos que investe na alma humana uma proximidade maior com a dimensão inteligível da totalidade, proximidade esta que lhe possibilita uma vida mais plena e feliz, mais própria. Podemos assim ver dois exemplos de filósofos da antiguidade que defendiam que os estudos cosmológicos têm uma dimensão ética.