Cosmologia Aberta
Nas últimas décadas do século passado, a ideia de identificar a cosmologia como extensão das leis físicas observadas na Terra, isto é, como uma física extragaláctica, tomou conta do cenário científico ou, para ser mais preciso, do establishment científico. Se essa versão permitia preservar o modo tradicional de generalização de leis e teorias descobertas na Terra e em suas vizinhanças, por outro lado ela inibia – consciente ou inconscientemente – a explicitação das origens da cosmologia e sua intima conexão com aspectos típicos de outros saberes de natureza não-cientifica, como a filosofia e até mesmo a religião.
Perdia-se a grandiosidade com que podemos nos encantar ao olharmos essas centenas de milhares de estrelas de nossa Via Lactea e mesmo além, as centenas de milhares de galáxias que tocam nosso coração, e seriamos condenados a aceitar a frieza com que a técnica cientifica pretende construir uma visão do mundo.
Não podemos dizer que essa versão tenha desaparecido do seio da comunidade cientifica, mas creio ter razão ao afirmar que ela não desfruta da mesma unanimidade de décadas anteriores.
Para ser mais específico, eu diria que há duas tendências na classificação da cosmologia contemporânea.
Uma – ainda majoritária – que retém aquela versão reduzida acima citada, e que chamaremos de cosmologia fenomenológica. Outra, que pretende abraçar a proposta dos pais fundadores que no século 16 imaginaram a ciência como uma comunhão com a Natureza e as leis físicas conseguidas através de um diálogo contínuo e permanente com ela – que chamaremos de Cosmologia Aberta. Uma tal versão ressoa nas palavras do psiquiatra francês Eugène Minkowski: “…a cosmologia tem por objeto os movimentos comuns à alma humana e à Natureza”.
O próximo passo é então entender como ir além da extensão simplista das leis físicas terrestres, permanecendo no interior de uma atitude científica.
Gravitação é geometria
A resposta natural é: usando as propriedades que seguem da identificação da gravitação com a geometria do espaço-tempo, como feito na teoria da Relatividade Geral. Pois é essa teoria que permite entender como realizar de modo amplo essa generalização que conduz diretamente à dependência cósmica das interações.
Com efeito, sabemos que existem quatro forças fundamentais na Natureza. Duas de longo alcance (isto é, que se estendem para todo o espaço-tempo), a gravitação e o eletromagnetismo; duas de curto alcance, típicas do domínio microscópico dos átomos, a interação forte (responsável pela estabilidade da matéria) e a interação fraca ou de Fermi (responsável pela desintegração da matéria).
Assim, graças à universalidade da gravitação e seu caráter sempre atrativo, é essa força que controla a geometria global do espaço-tempo.
Aqui aparece uma sutileza no processo de interação gravitacional e que é consequência de sua identificação com a geometria. De um modo simples, o princípio de equivalência – sustentáculo dos primeiros passos de Einstein na elaboração da Relatividade Geral (RG)– afirma que é sempre possível, pelo menos localmente, eliminar a força gravitacional através de uma simples escolha de referência. Isso se deve a que a geometria riemanniana permite reduzir a forma do tensor métrico, que a caracteriza, a uma forma constante, como na métrica de Minkowski– que é a geometria do espaço-tempo na ausência idealizada de efeitos gravitacionais. Desse modo, anula-se localmente aquela força.
Isso não pode ser feito globalmente, mas vale somente em uma pequena região compacta, pois a existência de curvatura na geometria impede sua eventual extensão.
Ao início da RG considerou-se a hipótese de que toda interação gravitacional se realiza através desse princípio de equivalência. Isso garantiria que as leis físicas terrestres sejam as mesmas em qualquer região do espaço-tempo.
A dependência cósmica das leis físicas
No entanto, por diversas razões de ordem técnica, nas últimas décadas do século passado, foi-se levado a considerar um novo modo de interação entre a matéria sob qualquer forma e o campo gravitacional – chamado acoplamento não-mínimo – no qual a curvatura da geometria tem um papel relevante. Isso implica que as leis físicas terrestres adquirem uma nova formulação, dependente da intensidade da curvatura do espaço-tempo.
Como essa curvatura é muito pequena na Terra e em suas vizinhanças, isso não afeta nenhuma propriedade das leis tradicionais experimentadas em nosso domínio.
É somente nas regiões onde essa curvatura adquire valor não desprezível, que a dependência da lei física com a região do espaço-tempo passa a ser importante.
Como a geometria que descreve o universo em larga escala é espacialmente homogênea e isotrópica, implica que a curvatura da geometria dependa somente do tempo cósmico. Dessa forma, e com o modo de interação do acoplamento não-mínimo, segue que os processos descritos pela extensão das leis terrestres, passam a ser função do tempo cósmico.
Ou seja, é essa interação que faz com que as leis físicas terrestres ao serem extrapoladas para o universo profundo, dependam do tempo cósmico.
Com esse procedimento a Cosmologia começou a se libertar de uma prisão formal e iniciou uma nova fase que não se limita a uma descrição fenomenológica, mas que procura ampliar as consequências que a Relatividade Geral e os processos de interação não-mínima permitem.
Dentre essas vamos considerar três propriedades da geometria do universo que são extremamente atraentes: a possibilidade de estender ilimitadamente o tempo de sua existência, o processo de bifurcação e a solidariedade cósmica.
O mecanismo de bouncing
Opondo-se à ingênua identificação do momento de máxima condensação do universo ao seu “começo”, o mecanismo de bouncing estendeu o tempo de existência do universo, permitindo uma fase anterior de colapso gravitacional antecedendo a atual fase de expansão, onde o volume total do espaço aumenta com o tempo cómico. No mesmo processo, pôde esclarecer uma questão que desde tempos longínquos, os filósofos se colocaram, a saber: porque existe alguma coisa e não nada. A resposta, simples como toda boa ideia, está relacionada à configuração inicial do universo como associada ao vazio cósmico, que na versão quântica, é instável. O Universo estava condenado a existir. Assim, o cenário coerente do universo pode se identificar com a presença de uma fase colapsante onde o volume total do espaço tridimensional se reduz a um valor mínimo, diferente de zero, e em seguida começa a se expandir. Como o estado final desse cenário é igual ao seu estágio inicial, é compreensível que possa haver ciclos de expansão e colapso, em um movimento sem interrupção.
Bifurcação no cosmos
Embora a ideia de bifurcação tenha sido examinada pelos matemáticos no final do século 19, foi somente graças a um livro de divulgação, feito pelo químico Ilya Prigogine e a filósofa Isabelle Stengers, que essa ideia se popularizou. Ela foi então associada à possibilidade de quebra do determinismo até então considerado como lei rígida da física clássica.
Aqueles autores limitaram sua análise a processos químicos e físicos observáveis e controlados nos laboratórios. Uma situação bastante mais complexa e com consequências mais radicais, seguiu da descoberta do processo de bifurcação no universo, significando que a dinâmica do universo pode se mostrar hesitante em algumas situações. Ou seja, mesmo conhecendo as equações que descrevem a evolução da geometria do universo (e, consequentemente, de seu volume espacial) e as condições iniciais, não é possível conhecer o comportamento do universo em qualquer instante, pois a presença da bifurcação faz com que a evolução em momento posterior seja imprevisível. Segue então que, nessa circunstância, a versão clássica do determinismo deixa de ser aplicável ao universo.
Solidariedade cósmica
Utilizo esse termo para enfatizar a coerência entre diferentes partes do universo em interação, sem a qual seu tempo de existência seria bastante reduzida.
Com efeito, a falta de interação entre diferentes partes do universo, a ausência de uma pressão que possa se opor significativamente ao equilíbrio desestruturante da gravitação, provocam sua autodestruição, como exemplificado pelo primeiro modelo cosmológico proposto por Einstein. Seu cenário, constituído somente por matéria incoerente, sem pressão, sem interação entre suas partes, conduz inexoravelmente ao seu colapso e destruição. Com um tempo de existência pequeno, se o modelo cosmológico de Einstein fosse real, ele não poderia dar origem a estruturas como estrelas, galáxias e, consequentemente, vida.
Quanto mais intensa e complexa a interação entre suas partes, ou seja, maior solidariedade, mais se alonga a duração do universo e, através do fenômeno de bouncing, permite estender sua existência indefinidamente, sem limite temporal finito.
Já no século 16 Giordano Bruno se encantava com a solidariedade que ele vislumbrava no universo e conclamava voltar constantemente nosso olhar para os céus e reproduzir na sociedade humana a solidariedade cósmica.
Esse encantamento, misto de reflexão cientifica rigorosa e ingenuidade poética, é o que chamamos de Cosmologia Aberta.
Referências:
Renaud Barbaras: Phenomenologie et cosmologie, Ed Librarie Philosophique J. Vrin (2024).
Cassiana Der Haroutiounian e Mario Novello in https://cosmosecontexto.org.br/cantos-cosmicos-ensaio-palavra-imagem-com-mario-novello-e-fotos-da-nasa/
Mario Novello in https://cosmosecontexto.org.br/horror-do-vazio/
Mario Novello in https://cosmosecontexto.org.br/solidariedade-cosmica-solidariedade-social/
Mario Novello e Santiago Bergliaffa: Bouncing Cosmology in Physics Reports (2008).