Cidade ou Aldeia? Trabalho ou Brincadeira?
1 Primeiras palavras
Este ensaio é uma provocação. O que pretendemos é fomentar um debate em favor da brincadeira, um tipo de defesa da aldeia como unidade administrativa política e críticas contra o trabalho e a cidade. Aqui, por brincadeira, entendemos o conjunto complexo que envolve o jogo e poderia ser identificado com ludicidade. Vale uma ressalva, considerando que em outras línguas como o inglês, “jogo” e “brincadeira” assumem o mesmo sentido, isto é, o verbo “to play” expressa justamente isso. A riqueza da língua portuguesa oferece-nos dois termos distintos. Mas, aqui vamos usá-la encampando dimensões distintas. Vamos elencar algumas provocações, trazer questionamentos em favor de promover a aldeia como lugar por excelência para a vida em sociedade. Além de defender a brincadeira como modo de vida básico a ser adotado por todas as pessoas, consideramos que a cidade é um lugar insuficiente para o bem-estar coletivo. Importante notar que não se trata necessariamente de um ensaio utópico. Porque independente de idealismos, romantismos e afins. Esse mundo possível proposto já existe em lugares presentes. De certa forma, aldeias indígenas, quilombos, assim como povoados tradicionais brasileiros, africanos e em diversas regiões do mundo podem ser, parcialmente, um espelho dessa “utopia”. Thomas More (1478-1535) escreveu uma obra que se tornou um marco importante na utilização de utopia como sinônimo de uma sociedade ideal. A própria República, livro escrito pelo filósofo grego Platão (428-348 a.E.C.) já tinha essa proposta de uma sociedade perfeita. No século XX, Karl Marx (1818-1853) dizia que as utopias socialistas tiveram nomes como Pierre Proudhom (1809-1865), Charles Fourier (1772-1837), Robert Owen (1771-1858) e Saint-Simon (1760-1825) fizeram utopias socialistas no século XIX.
Numa perspectiva geral, a educação, através da escola, funciona como uma instância de produção de um imaginário favorável ou infértil às utopias. Porém, uma coisa parece consensual nos mais variados debates. Nós estamos carentes de utopias e plenos de crises. Afinal, se concordarmos que os valores de uma sociedade aparecem no seu modelo de educação, a escola é um lugar que reúne símbolos importantes de qualquer ausência de utopia. Numa escola em que o aprendizado está no amadurecimento, no crescimento e no desenvolvimento, encontramos um entrave decisivo a qualquer utopia. Só é possível sonhar com lugares e caminhos novos, se abandonarmos as teses desenvolvimentistas e ficarmos envolvidos com as coisas. Isso tudo pode parecer bastante abstrato à primeira vista. No artigo Entre a linha e a roda: infância e educação das relações étnico-raciais, publicado na Revista Magistro em 2017, uma crítica à educação colonial, apresenta horizontes para escolas em formatos africanos, afro-brasileiros e indígenas. Com menções específicas às expressões conceituais: escola-quilombo e escola-aldeia.
Por escola-quilombo aqui se deve entender uma noção ainda em construção, uma perspectiva que compreende o aprendizado como um exercício articulado/inserido ao/no cotidiano que faz jus ao provérbio Haussá: “Para educar uma criança, todo o povo é preciso”. O aprender é um tipo de relacionamento, encontrado em diversas culturas africanas tal como a pensadora burquinense apresenta:
Um dos princípios do conceito dagara de relacionamento é que este não é um assunto privado. Quando falamos sobre ‘nosso relacionamento’, na aldeia, a palavra ‘nosso’ não é limitada a dois. É por isso que achamos difícil viver um relacionamento em uma cultura moderna, que não tem verdadeira comunidade. (SOMÉ, 2007, p. 36).
Em outras palavras, a escola-quilombo educa para/a partir da comunidade, recusando que o aprender seja feito somente para benefício individual.
Por escola-aldeia aqui se deve entender uma noção ainda em construção, uma perspectiva que compreende o aprendizado como um exercício articulado/inserido ao/no cotidiano que diz respeito à noção do povo Guarani de que a educação começa mesmo antes do nascimento de uma pessoa, a partir do sonho materno como nos diz a educadora e antropóloga guarani Sandra Benites Ara Rete, “[…] a nossa educação começa com xara’u (sonho) omoexakã (revelação do nhe’ẽ, ou seja,
quando a mulher sabe que ficará grávida).” (ARA RETE, 2015, p. 3). Em outros termos, a escola-aldeia articula-se a partir do sonho.
Com efeito, nossa aposta é de que os elementos quilombolas e indígenas trazem possibilidades para uma nova política. O horizonte das nossas questões é muito simples, diante de um cenário de crise. Não cabem mais alternativas que revitalizem “mais do mesmo”. É preciso abandonar dicotomias falsas. Não podemos mais ser abatidos em nossas esperanças por dilemas que insistem em colocar como opções as “faces da mesma moeda”.
2 Primeira ressalva, a falsa dicotomia
Durante algum tempo, os debates políticos parecem ter ficado polarizados entre dois extremos. Talvez ainda estejamos muito presos ao contexto europeu ocidental dos setecentos, isto é, durante a Revolução Francesa no século XVIII foi formada uma assembleia constituinte e durante a preparação da constituição da república, os mais ricos ficavam do lado direito e os mais pobres do lado esquerdo.
Dentro do espectro dos três lemas da Revolução Francesa, igualdade, fraternidade e liberdade, enquanto a direita escolhe este último, a esquerda concentra-se no primeiro. Para a direita, a liberdade é mais importante. O cientista político italiano Norberto Bobbio (1909-2004) argumenta que a esquerda e a direita circunscrevem programas contrapostos, suas soluções e interesses divergem. De qualquer forma, isso não significa que os sentidos de “direita” e “esquerda” sejam valores fixos; mas, ainda que recubram algumas ideias identificáveis, elas são categorias dinâmicas e modificam-se de acordo com o contexto e as circunstâncias. Num plano geral, associamos a direita à meritocracia, bem-estar individual, um Estado que gerencie a livre concorrência e uma visão mais conservadora. A direita inclui conservadores, nacionalistas, democratas cristãos, liberais e as várias faces do fascismo. Por outro lado, esquerda representa as lutas pelos direitos de trabalhadoras e trabalhadores, participação popular e agendas que promovam o bem-estar coletivo. A esquerda comporta: progressistas, ambientalistas, sociais democratas, socialistas, assim como comunistas. Sem dúvida, existem nuances que vão desde a extrema direita à extrema esquerda, passando por direita, centro-direita, centro, centro-esquerda, esquerda e outras divisões e subdivisões.
No contexto de boa parte das sociedades contemporâneas, o embate político pode ser descrito em polarizações entre esquerda e direita; ainda que existam tensões entre centro e direita, e entre centro e esquerda. As disputas são quase sempre entre azuis (direita) e vermelhos (esquerda). O que remontaria justamente às cores da bandeira francesa. Não vamos explorar essa hipótese, o que já foi feito de modo muito interessante na trilogia das cores do cineasta polonês Krzysztof Kieślowski (1941-1996)[1].
A esquerda e a direita realmente são tão diferentes? Elas têm algo em comum? Nossa especulação é simples, esquerda e direita são duas faces da mesma moeda. À primeira vista essa afirmação pode parecer estranha. Mas, o que estamos a dizer tão somente é que um essencialismo epistêmico que atravessa diversas análises políticas empobreceu muito as perspectivas. Nós estamos de acordo com o filósofo e cientista político camaronês Achille Mbembe, a modernidade global que hierarquiza e enquadra as pessoas em categorias valorativamente distintas com vistas a um projeto civilizatório mundial tem base racista. “Na maneira de pensar, imaginar e classificar os mundos distantes, o discurso europeu, tanto o erudito como o popular, foi recorrendo a processos de efabulação” (MBEMBE, p. 29). Processos que fizeram da Europa, equivocamente, o centro do mundo. Preferimos pensar de outro modo, a Europa não é “velho mundo” nem matriz de um modelo civilizatório ultradesenvolvido, ainda que parte da história da humanidade seja uma campanha de publicidade que justifique o fundamentalismo eurocêntrico.
Como observou Aníbal Quijano, não é notável e tampouco exclusivo que os europeus pensassem dessa maneira. Entretanto, por razões diversas, ao estabelecer sua visão de mundo como hegemônica no novo universo intersubjetivo mundial do padrão de poder, europeus estabeleceram uma maneira de organização política. Nossa hipótese, o embate entre esquerda e direita empobrece as possibilidades de fazer política. De volta às duas perguntas: 1ª) Esquerda e direita realmente são tão diferentes? Não. 2ª) Elas têm algo em comum? A cidade.
Por que esquerda e direita são faces da mesma moeda? Marimba Ani, em seu livro Yuguru: uma crítica afrocentrada do pensamento e comportamento cultural europeu, oferece argumentos bastante interessantes. Conforme as pesquisas de Ani, a cosmovisão europeia tem repetidamente reiterado a noção de dicotomia. O que significa que existe uma estrutura dicotômica, contrapondo necessariamente “bem” e “mal”, “certo” e “errado”. Ani atribui a sistematização dessa genealogia à filosofia platônica, desenvolvendo um raciocínio crítico que expõe a seguinte tese, a cosmovisão europeia é profundamente marcada pela dicotomia e oposição, fazendo com que percamos de vista aquilo que ela denomina de gemelaridade. A saber: os opostos são complementares necessários, nunca oposições conflitantes e mutuamente ameaçadoras. Neste sentido, a modernidade europeia produziu uma configuração política dentro de sua cosmovisão dicotômica. Para Marimba Ani, a dicotomia empobrece não só as possibilidades políticas, mas também nossa capacidade de leitura da realidade. Por isso, ela sugere a gemelaridade como um tipo de “superação” dessa polarização. Porque mesmo os projetos da terceira via[2], que buscam considerar elementos positivos de ambos os lados, operam dentro de uma lógica competitiva e dicotômica. Outro aspecto que merece análise é o conceito de cidade. Afinal, será que essa entidade político-administrativa urbanizada deve ser tomada como a unidade básica de gestão política?
3 A cidade e a aldeia
Em linhas gerais, cidade é um conceito polissêmico, podendo circunscrever um conjunto multifacetado de significados. De qualquer maneira, apesar de ser dinâmica, variável e quase sempre assumir adjetivos para uma caracterização mais precisa, tais como “cidade industrial”, “cidade turística”, “cidade medieval”, “cidade portuária”, etc, a geógrafa brasileira Sandra Lencioni (2008) define cidade como “[…] um aglomerado sedentário que se caracteriza pela presença de mercado (troca) e que possui uma administração pública” (LENCIONI, 2008, p. 117). Num outro registro, a cidade equivale a munícipio, uma unidade administrativa das nações modernas. A aldeia não deixa de ser uma noção polissêmica, ainda que o termo venha do árabe, ad-Dai’hâ com o sentido de um povoado, uma pequena aglomeração de habitantes.
Nossa especulação é de que cidade e aldeia encerrariam duas figuras geométricas, aqui interpretadas como modelos divergentes: a linha e a roda. O primeiro parece bastante com a ideia de linha abissal, enquanto o segundo com a noção de roda. Como podemos interpretar nas considerações do sociólogo português Boaventura Santos.
[…] o pensamento abissal opera por uma divisão unilateral advinda dos povos colonizadores que divide as experiências, saberes, atrizes e atores sociais entre úteis/visíveis/inteligíveis e inúteis/invisíveis/ininteligíveis. De acordo com esse sistema de pensamento, a Europa e as populações brancas fariam parte do lado visível da linha, enquanto civilizações africanas e indígenas estariam do lado invisível (NOGUERA, 2017, p.406).
Por outro lado, a roda remete-nos às cantigas, às cirandas. Ou seja, obviamente ao jogo e à brincadeira. Daí, concordamos que podemos aproveitar muito do célebre livro de Roberto Moura, No princípio era a roda (2004). Moura escreve sobre samba de modo notável. A roda é tida como lugar de diálogo. Um território construído para a brincadeira, um lugar de brincantes.
Depois dessas ligeiras considerações, vale a pena registrar as associações que fazemos à cidade e à aldeia, como regimes da linha e da roda, respectivamente. A linha significa uma série de elementos como: exclusão, separação, organização com vistas aos objetivos exteriores, submissão à colonização do tempo, concorrência e competição. Por outro lado, a roda é inclusão, disputa que não visa a competição, a brincadeira como essência vital que não deve ser desprezada. Ou seja, a cidade opera com centro e periferias, sua formação seria em linha. De outro modo, a aldeia é um lugar sem um centro, um território policêntrico por excelência.
4 Homo Faber ou Homo Ludens?
Em época mais otimista que a atual, nossa espécie recebeu a designação de Homo sapiens. Com o passar do tempo, acabamos por compreender que afinal de contas não somos tão racionais quanto a ingenuidade e o culto da razão do século XVIII nos fizeram supor, e passou a ser de moda designar nossa espécie como Homo faber. Embora faber não seja uma definição do ser humano tão inadequada como sapiens, ela é, contudo, ainda menos apropriada do que esta, visto poder servir para designar grande número de animais. Mas existe uma terceira função, que se verifica tanto na vida humana como na animal, e é tão importante como o raciocínio e o fabrico de objetos: o jogo. Creio que, depois de Homo faber e talvez ao mesmo nível de Homo sapiens, a expressão Homo ludens merece um lugar em nossa nomenclatura.
Trecho do prefácio de Homo Ludens
de Johan Huizinga (Leyden, 15 de junho de 1938)
O prefácio escrito pelo historiador neozelandês Johan Huizinga dá uma dimensão de seu propósito, situar o jogo/a brincadeira como uma característica que ajuda a compreender a condição humana. Em certa medida, outro livro publicado quase 20 anos depois, o romance do alemão Max Frisch, Homo faber, ajuda nessa compreensão. Um homem branco alemão, civilizado, racional e com formação em engenharia parte para a América Latina numa viagem de negócios. Este homem chama-se Walter Faber e vive uma série de acontecimentos que colocam em xeque sua visão racional da realidade. Faber é usado por Frisch para caracterizar uma perspectiva do ser humano como fabricante de ferramentas, o humano como a espécie que age por meio de uma modificação sistemática e racional da natureza. Entretanto, a intenção do autor é justamente provocar questionamentos em quem lê. Frisch procurou demonstrar em seu romance que as surpresas vividas pelo personagem Faber eram a “prova” de que o caráter racional e sistematizador não são suficientes para dar conta da realidade. Em poucas palavras, a vida escapa à razão. Neste sentido, a brincadeira e o jogo parecem muito mais com a vida.
O homo faber se caracterizaria pelo trabalho. Esse pressuposto está enraizado em boa parte do imaginário ocidental. Nossa hipótese é que a tradição judaico-cristã e o marxismo convergem para uma mesma tese (o trabalho está nas raízes mais profundas da condição humana), ainda que as motivações e princípios sejam diferentes. O trabalho está na Bíblia em Gênesis 3, 17-19:
E a Adão disse: Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: Não comerás dela, maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida.
Espinhos, e cardos também, te produzirá; e comerás a erva do campo.
No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás.
Vale enfatizar que o trabalho é a punição divina que vai perseguir o ser humano indefinidamente. Desse modo, apesar de ser penoso e doloroso, o trabalho passaria a ser uma constante em todas as sociedades, uma atividade inescapável e sem a qual não poderíamos sobreviver. De acordo com o teólogo Inácio Strieder, numa perspectiva teológica, o ser humano foi feito para o trabalho. Conforme Strieder (1997, p.28), o trabalho é uma boa nova e por meio dele o ser humano liga-se a Deus. “É no mundo do trabalho que se manifestam tanto os sinais de perdição como de redenção do homem.” (STRIEDER, 1997, p. 38).
Para Karl Marx (1818-1883), o primeiro fato histórico é a produção da vida material. Em outros termos, o trabalho é o ponto de partida da história da humanidade. Somente quando a espécie humana começa a trabalhar, produzindo as condições materiais para viver, é que podemos começar a descrever a história. Vale ressaltar que a categoria “trabalho” é complexa e assume sentidos diversos no contexto do pensamento marxista. Existe “processo de trabalho”, “força de trabalho”, “trabalho abstrato”, dentre outras expressões conceituais importantes para compreensão do trabalho no pensamento marxista.
Para Marx, o trabalho pode ser compreendido como uma interação da pessoa que trabalha com o mundo natural, de tal modo que os elementos deste último são conscientemente transformados com vista a um propósito específico. Daí, os elementos do trabalho, entendido como um processo, serem três: 1º) o trabalho em si mesmo, uma atividade produtiva com um objetivo; 2º) a matéria-prima do trabalho, isto é, o(s) objeto(s) sobre os quais o trabalho é realizado; 3º) as ferramentas, estruturas e condições para realizar as atividades, isto é, os meios que facilitam o processo de trabalho.
Com efeito, considerando uma determinada perspectiva teológica e o pensamento marxista, o trabalho seria a possibilidade de redenção. Porque está no princípio da condição humana. O trabalho seria justamente o que definiria a espécie humana, diferenciando-a dos outros animais. Pois bem, aqui defendemos que não nos caracterizamos mais pela brincadeira do que pelo trabalho. Se for possível advogar uma ontologia humana, isto é, um tipo de natureza fundante e primeira, o melhor conceito está na brincadeira. O que nos torna, tal como todas as outras espécies animais, seres brincantes. O psiquiatra estadunidense Stuart Brown é um dos principais articuladores e fundador do National Institute for Play (Nifplay), um tipo de instituto estadunidense de brincadeiras e jogos, um centro de atividades de pesquisa sobre brincar/jogar. No contexto do Nifplay, encontramos discussões que podem acrescentar muito aos nossos encaminhamentos. Brown nos faz voltar ao livro de 1938 de Johan Huizinga, porque coloca a brincadeira/jogo como elemento central da condição humana. Para Huizinga, podemos questionar e duvidar da existência de um ser divino, da justiça, da beleza; mas, não podemos negar a realidade da(o) brincadeira/jogo, instância que ultrapassa o mundo humano. Outra fonte relevante para o campo está nos estudos do neozelandês Brian Suttom-Smith (1924-2015) que publicou a Ambiguidade da brincadeira, afirmando que a brincadeira não se opõe ao trabalho, mas sim à depressão. Para Suttom-Smith, a brincadeira é uma atividade indispensável para o bem-estar humano.
Após essas colocações, convido leitoras e leitores para conhecerem uma das especulações mais importantes deste texto. Na história da humanidade, alguns povos organizaram-se em torno do trabalho; enquanto outros concentraram seus princípios normativos sobre a brincadeira/o jogo. Não cabe aqui fazer digressões longas sobre essas diferenças. As teses de biogeografia de Jared Diamond lançam luzes sobre o assunto, afirmando que os povos europeus conviviam com mais germes e tornaram-se mais bélicos e desconfiados. De modo que passaram a se comportar como colonizadores compulsivos. Por exemplo, povos ameríndios e africanos não se organizaram da mesma forma que os europeus. A partir de leituras variadas, tais como as de Diamond.
O projeto civilizatório baseado no trabalho é autodestrutivo, uma guerra desenfreada por territórios e recursos que ameaça toda a espécie. A Europa encarnou este projeto tornando-se uma máquina de colonização. A tese defendida poeticamente pelo britânico Rudyard Kipling (1865-1936) está ccoloompletamente errada. Kipling foi propagador da ideia de “fardo do homem branco”, defendendo que a civilização europeia, branca, judaico-cristã, baseada nos valores iluministas, tinha a função de redentora de todo o “resto” da humanidade. Ora, Kipling estava errado, porque justamente este projeto parece multiplicar “o mal-estar da civilização”, expressão usada pelo psicanalista Sigmund Freud (1856-1939) para sugerir que a neurose é uma constante das civilizações. O que Freud, tampouco Kipling e todos os iluministas não suspeitavam é que podiam estar completamente equivocados. Talvez, essa é uma hipótese, somente as sociedades invadidas e vítimas de brutal violência das colonizadoras poderiam apontar saídas através da brincadeira.
A grosso modo, supomos que a humanidade tem-se organizado usando os modelos faber e ludens, aqui denominados de organização através do trabalho ou da brincadeira. O trabalho remete ao instrumento medieval de tortura, tripalium. Com isso, não estamos a dizer que somos contra as atividades laborativas. Porém, estamos de acordo com as críticas do Grupo Krisis, fundado em Nuremberg, em 1986, por intelectuais e ativistas alemães, influenciados por teóricos como Guy Debord e Theodor Adorno. Formado por membros como Robert Kurz, Roswitha Scholz Ernst Lohoff, Franz Schandl, Norbert Trenkle e Claus Peter Ortlieb, o Grupo organiza e participa de seminários e debates e publica artigos em diversos jornais e revistas da Europa e da América Latina. Em 2004, o Grupo “rachou”. A saída de Roswitha Scholz e Robert Kurz fez com que a linha editorial mudasse. De qualquer modo, Krisis trouxe argumentos muito consistentes contra a “ditadura do trabalho”.
Uma sociedade centralizada na abstrata irracionalidade do trabalho desenvolve, obrigatoriamente, a tendência ao apartheid social quando o êxito da venda da mercadoria ‘força de trabalho’ deixa de ser a regra e passa a exceção. Todas as facções do campo de trabalho, trespassando todos os partidos, já aceitaram dissimuladamente essa lógica e ainda a reforçam. Eles não brigam mais sobre se cada vez mais pessoas são empurradas para o abismo e excluídas da participação social, mas apenas sobre como impor a seleção (KRISIS, ,p. 3).
Ora, as objeções ao trabalho não significam a sua supressão, mas o reconhecimento de que seu caráter central é uma farsa. Nosso objetivo é questionar a tese de que devemos organizar-nos em torno do trabalho. Por outro lado, a brincadeira inspira outras coisas.
A brincadeira é em si mesma um fenômeno da cultura, uma vez que se configura como um conjunto de práticas, conhecimentos e artefatos construídos e acumulados pelos sujeitos nos contextos históricos e sociais em que se inserem. Representa, dessa forma, um acervo comum sobre o qual os sujeitos desenvolvem atividades conjuntas. (BORBA, 2012, p. 67).
Leontiev (1994), Friedmann (1996), Bomtempo (1997), Blatchford (1998), Brougère (1998), Elkonin (1998), Dohme (2002), Dias Facci (2004) e Biscoli (2005), entre outras e outros, trazem contribuições bastante significativas para o assunto.
5 Sociedades do trabalho ou sociedades da brincadeira?
Nós vamos fazer um arranjo interpretativo em torno das abordagens a respeito dos tipos de sociedades, organizando-as em dois tipos que aqui denominamos de: sociedades do trabalho e da brincadeira. Um pequeno elenco de autores como Diop e Clastres para elucidar dúvidas sobre aquilo que denominamos, para fins de análise, de tipos básicos de sociedades.
Em obras como The African Origin of Civilization: Myth or Reality (1974), The Cultural Unity of the Black África (1978), Civilization or Barbarism. An Authentic Anthropology (1991), encontramos os argumentos do físico e cientista social senegalês. O antropólogo, físico, historiador e egiptólogo senegalês Cheikh Anta Diop (1923-1986) trouxe uma acurada pesquisa sobre duas matrizes societais básicas: meridional e setentrional, denominadas respectivamente de berços do sul e do norte. Diop argumenta que as sociedades do berço meridional são matrifocais; enquanto o berço setentrional é patriarcal. Neste berço do sul, as condições ambientais e o contexto do desenvolvimento foram responsáveis pela consagração de exércitos permanentes e um estado de atenção de fundo xenófobo, a dependência da caça era bem maior do que no berço do norte em que as condições para agricultura eram bem mais favoráveis. Um estudo comparativo feito por Diop aponta para contrastes decisivos no que diz respeito aos dois modelos civilizatórios. Abaixo um pequeno quadro.
Berço meridional | Berço setentrional |
Matrifocal e patrilinear | Patriarcal e patrilinear |
Xenófilo e matriota | Xenófobo e patriota |
Gemelar (complementaridade orgânica dos opostos, as coisas têm funções conforme as posições que ocupam). | Dicotômico (exemplo: bem e mal; certo e errado etc.) |
Num outro registro, o antropólogo francês Pierre Clastres (1934-1977), em A Sociedade contra o Estado, problematizou o etnocentrismo europeu, buscando um diálogo com as sociedades não ocidentais. Ao invés de falar sobre as “outras” sociedades, usando um aparato que as definiria como modelos ultrapassados e primitivos, Clastres reconhece a existência de outra lógica. A etnologia clastreana traz à luz um registro de sociedades que não se organizam em torno de uma centralidade estatal. Isso não significa que essas sociedades não tenham classes, mas não são desiguais como as ocidentais. Na linguagem diopina, as sociedades do berço meridional são mais equânimes; equipamentos sociais como a prisão, o asilo, o manicômio, o orfanato têm suas genealogias no berço setentrional.
Ainda dentro de outro referencial, a pedagoga brasileira e doutora em ciências sociais Patricia Tropia, apoiada nas formulações de autores como o filósofo alemão Jürgen Habermas(1929), o sociólogo italiano Alberto Melucci (1943) e o sociólogo Alain Touraine (1925), explica que a partir de uma mudança estrutural no capitalismo, considerando a mudança do modelo de sociedade industrial para pós-industrial, perde-se a centralidade do trabalho como fonte das contradições principais. Tropia sugere que a “[…] dominação seria eminentemente cultural, daí a centralidade dos conflitos culturais e da luta por ‘formas de vida’ na explicação dos ‘novos movimentos sociais’.” (TROPIA, 2015, p.19). A cultura ganharia mais força do que as relações materiais de produção.
6 Conclusões parciais
Diante de um ensaio especulativo de uma pesquisa que apenas começou, o que podemos concluir? Tão somente que o campo está em aberto. Nossa proposta foi um livre ensaio que pudesse criar condições para um debate, enriquecendo as possibilidades para além das esquerdas, das direitas, dos conservadores e dos liberais. Nossa proposta não tem a menor pretensão de ser inédita. Uma simples perspectiva de refundação de plataformas políticas num horizonte que não se pode denominar de novo. Quiçá, digamos, um pluriverso pouco frequentado, invisibilizado pelas forças políticas dominantes.
O que estamos a propor é que as alternativas não estão dentro das opções correntes de escolha. Não basta recusar a política, ou ainda, escolher entre os partidos A, B, C até Z. Deveríamos experimentar uma maneira de fazer política que não tem nome exato. É preciso fazer política dentro de matrizes afro-indígenas. O que pode viabilizar novas práticas e novos mundos. Nossa proposta é justamente aventar que não podemos mais abandonar o desafio de uma sociedade brincante, organizada na matriz de aldeia.
Referências bibliográficas
ANI, Marimba. Yuguru:an African-centered Critique of European Cultural Thought and Behavior. Michigan: University Libraries/African World Press, 1994.
BROCK, Avril; DODDS, Sylvia; JARVIS, Pam; OLUSOGA, Yinga. Brincar: aprendizagem para a vida. Tradução de Fabiana Kanan. Porto Alegre: Penso, 2011.
DIAMOND, Jared. Armas, Germes e Aço: os destinos das sociedades humanas. Tradução de Silvia de Souza Costa, Cynthia Cortes, Paulo Soares. 15. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, [ falta o ano].
LENCIONI, Sandra. Observações sobre o conceito de cidade e urbano. In: GEOUSP – Espaço e Tempo, São Paulo, n. 24, p. 109-123, 2008.
MOURA, Roberto. No princípio, era a roda – um estudo sobre samba, partido alto e outros pagodes. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
NOGUERA, Renato. Entre a linha e a roda: infância e educação das relações étnico-raciais. In: Magistro_Revista do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Culturas e Artes – UNIGRANRIO, Rio de Janeiro, v.1, n.15, p. 398-419, 2017.
STRIEDER, Inácio. Uma perspectiva teológica do trabalho. In: Perspectiva filosófica, Recife, v. 5, n. 10, p. 27-39, 1997.
SUTOM-SMITH, Brian. The ambiguity of play. Boston: Harvard University Press, 2001.
[1] A Trilogia das Cores, do diretor polonês Krzysztof Kieślowski (1941-1996), traz à tona essas perguntas, ao abordar questões incomuns, mas que, se analisadas, mostram como as pessoas reagem em situações limite que englobam a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade. A Liberdade é Azul (Trois Couleurs: Bleu, 1993), A Igualdade é Branca (Trois Couleurs: Blanc, 1993) e A Fraternidade é Vermelha (Trois Couleurs: Rouge, 1994). Nossa interpretação trocaria “fraternidade” e “igualdade” para que ficassem mais semelhantes aos usos políticos. Mas, mesmo a indicação do “vermelho” como sendo progressista ou de esquerda é contextual. Nos Estados Unidos da América, o Partido Democrata é representado pelo azul, enquanto o Partido Republicano figura como vermelho. Ora, este é tido como conservador. Enquanto, democratas são tidos como progressistas.
[2] Por terceira via [NÃO ENTENDI ESTA NOTA]