Blanqui ou a revolução do pensamento que a Cosmologia provoca
Quebrar as barreiras entre os saberes e
permitir que o encantamento do cosmos
volte a se integrar em nosso cotidiano
O escritor Louis-Auguste Blanqui é mais conhecido pelos historiadores por sua ação revolucionária que lhe causou mais de vinte anos de reclusão nas penitenciárias da monarquia francesa do século19.
Em sua última estadia na prisão, Blanqui escreveu um texto, publicado no primeiro trimestre de 1872 que se afasta completamente de suas incursões literárias anteriores e que deu por titulo L’éternité par les astres, o que foi considerado desde então como uma singularidade estranha em seu percurso revolucionário.
A acreditar na versão de Fabrizio Desideri que, em 1983, prefacia sua versão para o italiano, Blanqui teria usado o universo como um refúgio, um modo de não se deixar engolir pela desesperança e a loucura nesses últimos anos de sua vida na prisão.
Em suas próprias palavras Blanqui anuncia que esse livro deve ser entendido como um sonho, um sonho de um prisioneiro. Não se deve procurar nesse seu texto um verdadeiro ensaio de astronomia, mas sim imaginar a que grau de tensão a solidão da prisão política, da perda da liberdade por uma idealização da sociedade, do comportamento humano, pode levar a mente humana. Desprovido de liberdade, Blanqui se volta para os astros, para as estrelas e produz uma “cosmologia fantástica”.
Uma simples leitura de seu texto permite entender quão longe ele deixou seu pensamento flutuar.
O inteiro universo, diz Blanqui, é estruturado a partir de uns poucos elementos fundamentais que compõem as estrelas e tudo mais. Esses corpos se estendem por um espaço infinito e um tempo infinito. Tudo se passa como se eu e todos nós repetíssemos as mesmas atividades através dos astros, como cópias de nossas ações, de nossas existências, por todo o universo e sempre.
Esse universo estático, sem evolução, repetindo indefinidamente cada ação minha e de todos e tudo, cria uma desesperança que só pode ser quebrada pela inesperada aparição de uma bifurcação, da introdução de uma história no cosmos, capaz de violar ostensivamente esse destino que se pretendia inevitável imposto pela sociedade (o que hoje chamariamos establishment). O processo revolucionário, a ação contra o despótico poder central, só ganha sentido e uma força interna maior, se olharmos para os céus, e deixarmos as estrelas seguirem outros caminhos que aqueles que os astrônomos lhes impõem. A eternidade imperturbável recita ao infinito, e sempre, a mesma representação.
Assim termina A eternidade através dos astros. Como um tal pensamento pode ter dominado a visão de um revolucionário que passou toda sua vida de adulto lutando contra o imobilismo da sociedade, o imobilismo do pensamento dominante? Como isso pôde acontecer?
Diz ele: “Em minhas indagações sobre o universo, não procurei aquilo que me daria prazer, mas sim a verdade. Não realizei nenhuma profecia, nem nenhuma revelação, mas sim levei ao extremo a análise espectral e a cosmogonia de Laplace. Essas duas descobertas conduzem à eternidade.
Não é uma consolação saber que nesses outros milhares de planetas e astros estaremos, meus átomos, revivendo ações que pensava serem somente desse meu corpo. Estamos tão solidamente dependentes desses nossos corpos que não podemos nos entregar ao cosmos. Estamos rigidamente presos a essa aparente solidez de nossos corpos e cada um de nós atados a um eu, dependentes do establishment e da desesperança, da desilusão e do ceticismo desse século.
Essa visão do cosmos como uma repetição monótona e eterna é de uma tristeza e resignação ímpar. Impossível aceitar que um revolucionário tenha construído para si mesmo esse confinamento interno. Nem mesmo sua prisão efetiva por décadas é capaz de entender essa angústia.
Nada semelhante na versão contemporânea de um cosmos infinito no espaço e no tempo. Mesmo os diferentes ciclos de universos que se sucedem não são repetições de uma nota só.
Os mesmos átomos perambulam desde sempre esse cosmos, como diz Blanqui? Sim, mas em múltiplas e variadas combinações. As leis cósmicas que os organizam restringem essa suposta repetição monocórdia.
O universo é eterno e possui ciclos de expansão e colapso, como ele imagina ? Sim, mas nada impede a variação das leis físicas de um ciclo para outro, e mesmo dentro de um ciclo, como Gödel e Sakharov exibiram.
Não devemos entender Blanqui, o eterno revolucionário, aquele que defendia a revolução de um proletário, antes de Marx (mas sem a conotação de luta de classes) através dessa reduzida visão estática do mundo. Não faz sentido associá-lo a um imobilismo de pensamento. Mas se é assim, se essa configuração estática do universo nada mais é do que a fantasia de um pesadelo, como devemos então interpretar suas anotações, sua descrição de um cosmos sem evolução, onde estaríamos obrigados a realizar as mesmas ações ad eternum, como em uma repetição enfadonha de uma vida sem liberdade?
Sartre vem para nos ajudar a entender essa oculta independência, essa liberdade escondida de um prisioneiro. Antes de pretender a fuga da prisão, é preciso destruir as prisões internas. De cada um de nós e da sociedade. Uma sociedade prisioneira de preconceitos e estagnada em seu processo de evolução nunca será livre. Os burgueses, diria Sartre mais adiante, depois da leitura de Marx, que se sentem livres graças a suas contas bancárias, estão aprisionados de um modo mais violento e permanente do que aqueles que lutando contra o sistema, são jogados para fora do convívio social, isolados em prisões.
Assim, ao enfatizar essa continua e repetida forma das ações humanas, Blanqui nos oferece múltiplos espelhos para podermos, livres de contatos espúrios, ver-nos como somos. Para que não reste dúvidas nesse olhar para dentro de si, faz dessa repetição um instrumento capaz de conduzir a uma reflexão profunda sobre nossas ações. Desse modo, pretende excitar em cada um de nós, uma autocrítica e a esperança de que a consequência maior dessa meditação conduza a um salto para fora desse espelho e então se realize seu objetivo maior, uma ação revolucionária e a reforma desejada da sociedade. Ou seja, um encontro forçado com uma bifurcação, com a história. Sua cosmologia, cheia de defeitos e imprecisões, se apoia em uma certeza -que os cosmólogos do século 21 corroboram — a eternidade e a infinitude desse universo. Ou melhor, como ele diria, desses infinitos universos que nos cercam.
Blanqui, o revolucionário derrotado e aprisionado pelo establishment, consegue superar, do interior de sua prisão, seu destino que nos parece trágico e, através da eternidade dos astros, ser mais livre do que seus algozes.
Referências
- Louis-Auguste Blanqui: L´eternità attraverso gli astri. Introduzione e cura di Fabrizio Desideri. Ed. Theoria, 1983 (traduzido do original francês de 1872).
- Mario Novello: Quantum e Cosmos (introdução à metacosmologia). Ed Contraponto, 2021