Autoadulação
Quando se olha para a história da filosofia, embora existam muitas escolas e formas de pensar diversas, é possível perceber (com a maior facilidade) que há um modo de pensar predominante, vitorioso, que estabelece como que uma direção geral do ato de pensar e um modo de compreender o que seja a filosofia. Por outro lado, é possível ver os pensadores escalenos, os pensadores que marcam em relação a essa forma de pensar predominante uma importante e curiosa declinação.
A história da filosofia vai ser dominada pela raiz platônico-aristotélica – estes autores estabeleceram uma espécie de norte do pensamento ocidental e fundaram uma imagem do pensamento, uma compreensão do que seja a filosofia, do que seja o ato de pensar que se sustenta ao longo dos séculos.
Há, então, razão de se perguntar como essa predominância se deu e pode perdurar ao longo do tempo e, por outro lado, porque os pensadores escalenos são pouco conhecidos, estudados ou referenciados, havendo uma clara desigualdade no protagonismo que um ou outro filósofo assume na construção da história do pensamento ocidental. Ou, dito em outras palavras, como que os titulares da referência filosófica se tornaram titulares?
Deleuze chama essa imagem dominante da filosofia de imagem dogmática, uma imagem que sustenta a ideia de que o pensamento quer a verdade, ama a verdade, busca a verdade; mas haveria uma outra imagem do pensamento, uma nova imagem, marcada por uma linhagem prodigiosa da Filosofia, em que o fundamental é a criação, a criação permanente, o que faz desmoronar toda o edifício epistemológico, todas as pretensões morais, toda idealidade em favor de um ânimo que já não se apoia no Deus transcendente ou no eu da razão.
Se há um gosto pela crítica do negativo, pelo pensamento afirmativo e criador, pela cultura da alegria, por que seu lugar é diminuído frente aos grandes sistemas? Se há uma inspiração para o aumento de força, para novas possibilidades de vida, por que ser devorado por tamanha vulgaridade? Por que ser dominado por uma forma de pensar que alicerça o processo do conhecimento, os ideais políticos, os princípios morais, a conduta comum sob o jugo de um cansaço e de uma impotência?
Se há uma imagem dominante na história da filosofia é porque essa imagem se ajusta, se adequa às pretensões humanas, porque ela faz uma autoadulação no sujeito que pensa. O que significa ser autoadulado? O que significa buscar o pensamento que adula a si mesmo?
O homem tem pretensões, tem desejos de realizar um modo de existência em que todas as suas promessas ideais possam ser cumpridas. Ele gostaria de ver realizado, para a sua segurança, para o seu contentamento, para o seu bem-estar, inclusive do ponto de vista da espécie (limitado que é por sua constituição biológica), um mundo ordenado, determinado e verídico, livre das ambiguidades e contradições que caraterizam o mundo em que se vive.
Como diz Freud, o homem vive um mal estar fundamental, o que faz com que sua vida seja precária, incerta, insegura, inconstante. Ele não é suficientemente potente do ponto de vista biológico para sua preservação, suas faculdades não conseguem lhe prover todas as necessidades que precisa para sobreviver. Além disso, a vida coletiva, necessária para que se equilibre melhor essa equação entre necessidade e meios de sua realização, lhe traz uma série de dificuldades que é preciso remediar. Em resumo, são muitas aspirações que se multiplicam na complexidade da vida humana.
O repouso, a identidade, a coerência, a permanência são ideais quase que infantis que caracterizam o homem e, suas ambições civilizatórias, é que tudo isso possa ser plenamente realizado. Desse modo, toda construção teórica sobre o mundo que reproduz esse ideal parecerá ao homem o óbvio e sábio caminho que o pensamento deve seguir. Quando o homem cria uma interpretação do mundo que afirma ser a vida marcada pela organização causal, pela coerência dos fenômenos, pela homogeneidade das formas, pela racionalidade dos acontecimentos, ele se sente confortável, se sente bem, se sente acolhido, acalentado, como que acarinhado em um abraço materno.
Em outras palavras, o homem, em razão de sua pequena humanidade, de sua fragilidade enquanto espécie, de sua necessidade de conservação, de ser apaziguado frente a suas dores e tormentos, construiu uma forma de pensar em que tudo está apascentado, contido, a salvo. E é assim que o homem tornou o pensamento que mais lhe agrada, o pensamento que mais contenta suas pretensões, o pensamento referencial da história humana.
E, quanto mais esse pensamento parece cumprir as promessas que ele vê realizadas, mais ele o saberá valorizar. Quanto mais adequado às suas pretensões esse pensamento for, mais tomado por certo, sólido, verdadeiro, admirável, será. Entra-se em uma espécie de círculo vicioso delirante, em que o homem constrói o pensamento que parece o livrar dos seus medos e quanto mais parece efetivamente colocar a vida a salvo dos riscos, mais se torna vitorioso.
Toda a questão é que essa forma dogmática de pensar, solidificada, cristalizada em estratos ao longo da história é reconfortantemente aduladora. Quanto mais aduladora é a ideia, o estrato que se construiu, mais você confia no estrato; quanto mais você confiar no estrato, mais adulado você fica e quanto mais adulado você fica, mais você quer confiar no estrato.
Aquietado em suas angústias, amparado em suas incertezas, sejam elas biológicas, morais ou políticas, o homem constrói um pensamento sob medida para si e ilusoriamente cria a cura a si mesmo, quando em realidade nada mais faz do que se auto adular, se auto proteger do que não pode ser protegido. Assim, os homens vão patinando de teoria autoaduladora em teoria autoaduladora e, sentindo-se confortável, ele só deseja que tal forma de pensar se reproduza e penetre todos os campos do saber.
O pensamento autoadulador é o que estabelece uma conformação da natureza às ideias do homem, descrevendo leis e princípios que a sua capacidade intelectiva consegue conceber e demonstrar.
Para Nietzsche tal forma de pensar não passa de uma fábula, de um equívoco, de uma vida na ilusão. É preciso ter coragem para encarar o mundo como ele é, para se situar no caos que é a vida. O ato de pensar não existe para o contentamento humano, para lhe trazer qualquer tipo de proteção ou engodo.
O homem não quer pensar em termos incertos e improváveis. Ele não suporta a franqueza da vida e quer se abrigar em uma crença superficial, se afetando pela preguiça. Qual a consequência disso? Toda a grandiosidade da vida lhe fica negada, toda a experiência vulcânica dos filósofos escalenos é diminuída ou desconsiderada e sufoca-se possibilidades criativas de pensar.
Talvez a vida seja dura, violenta demais para nós, mas talvez haja homens de espírito livre que possam olhar para a vida sem necessidade de apoios, de acalento, de estabilidades, em uma palavra, de artifícios aduladores.
Um dos momentos mais bonitos do estudante de filosofia é quando ele percebe que o pensamento tem um chamamento que excede esses artifícios, que há uma inquietação, uma beleza, algo quase intolerável que o chama a sair desse lugar comum. Ser golpeado pela paixão do pensamento, pela tormentosa paixão do pensamento é experimentar uma intensidade, um excesso que nos tira até o fôlego. É uma nova experiência do pensamento, não mais dominada pela afeição que o homem sente por si mesmo, mas impulsionada pela revelação de novas possibilidades, novas conquistas, novas formas de resistir. É quando o estudante percebe que as teorias auto-aduladoras podem contentar o homem, mas que nada tem a ver com a tarefa de pensar.
A tarefa do filósofo é eliminar tudo o que é superfluidade, tudo o que alimenta o apequenamento e a mediocridade, ainda que do ponto de vista humano, demasiadamente humano, seja uma confortável adulação. As teorias da adulação reivindicam mundos ordenados, mas o contraste entre este e a realidade efetiva constitui um dos aspectos mais característicos dos pensadores escalenos. Ela se dá quando no mundo homogeneamente ordenado que acreditamos viver, o caos irrompe assustador e perturbador e a confiança metafísica em um sentido do mundo, na bondade e racionalidade, vacila e todas as garantias de um pensamento objetivo, real, adequado, perdem a sua razão de ser, tornado impossível encontrar-se diante dos seguros caminhos.