Ao Sul do futuro: hipo-utopia no cinema de ficção científica
Um mundo ameaçado pelo aquecimento global e guerras. Causa: política, religião, megalomania, crescimento populacional e disputas territoriais. Solução: inteligência artificial,nanotecnologia e biotecnologia, substituindo progressivamente a ação humana pela automação e robótica.Afastado de profissões enfadonhas como “caixas de banco, frentistas de postos de gasolina, ensino, pilotos, soldados”, o ser humano ocuparia seu tempo livre habitando mundos virtuais tridimensionais simulando, por exemplo, “a experiência de se sentar numa praia tropical”. Mais do que isso, o planeta se livraria das ações econômica e política humanas historicamente danosas ao meio ambiente simplesmente transferindo a humanidade para o mundo virtual das redes eletrônicas conectadas com o sistema neuronal humano.
Sobre o que estamos falando? A sinopse de algum filme de ficção científica? Longe disso. Esta é a síntese de uma palestra proferida por Denis Bushnell, cientista chefe da NASA no Langley Research Center, na Conferência da World Futurist Society em Boston, EUA em Julho de 2010. Se essas projeções do cientista-chefe da NASA vão ocorrer, isso pouco importa. O mais importante é a estranha ironia que guarda esta notícia: no espaço de uma organização civil que pretende reunir cientistas e intelectuais para propor visões para o futuro, Bushnell propõe uma estranha utopia, onde a humanidade, de tão inútil e maléfica para o planeta, seria despachada para uma espécie denowhere virtual. Contrariando a visão de um futuro como lugar que alcançaríamos (seja utópico ou distópico), Bushnell propõe uma migração da espécie humana desnecessária para um “não lugar”.
Estranha visão futurista, pensada como solução para as mazelas do presente, fruto do crescimento da economia globalizada a que o pensador Zygmunt Bauman (2005) denomina por“problemas de acumulação de redundantes”: lixo tóxico, populações excedentes e toda uma variedade de refugos que ameaça entrar em um ponto crítico de autocombustão nas grandes cidades.
Se o historiador Marc Ferro (1992) estiver certo de que o filme pode ser considerado um verdadeiro documento primário por expressar por meio de imagens e movimento o imaginário e as sensibilidades de uma determinada época, então encontraremos uma expressão cinematográfica dessa sensibilidade nowhere de Bushnell em um grupo de filmes de ficção científica denominado de “ficção científica do Sul”: uma produção ignorada por críticos e acadêmicos, mas que nos últimos anos passou a ser descoberta. Filmes provenientes de uma região periférica (como a América Latina, por exemplo) ao hegemônico sistema hollywoodiano, que articulam as narrativas e convenções do gênero com elementos culturais regionais e tradicionais.
Filmes que exploram temas como direitos humanos/trabalho e, principalmente, como uma sociedade estruturada em um sistema em rede com uma interface digital contínua apagaria as tensões étnicas e raciais. A alta tecnologia (ícone característico do gênero) convivendo com favelas, deterioração urbana, precarização do trabalho e muito lixo que, muitas vezes, se confunde com seres humanos que necessitam ser controlados, confinados, descartados ou eliminados – imigrantes e estrangeiros humanos ou de outros planetas.
Justamente pelo seu olhar de um ponto de vista periférico, a FC “do Sul” expressaria de forma mais aguda essas contradições criadas pelo movimento de Globalização dos fluxos sociais e econômicos.
A FC do Sul seria a confirmação de uma tendência de produção cinematográfica que ocorre nas margens de Hollywood a partir de filmes como “Blade Runner, O Caçador de Andróides” (1982, coprodução EUA/Hong Kong), “Matrix” (1999, EUA/Austrália), “Código Fonte” (2011, EUA/França), “eXistenZ” (1999, Canadá/França).
Se a principal característica do gênero é a especulação sobre mundos futuros utópicos ou distópicos, nessa produção de FC periférica, ao contrário, cria-se uma utopia que poderíamos chamar de “hipo”:na hipo-utopia o futuro tal qual previsto nas utopias científicas e tecnológicas modernistas não se realizou, nem nos seus aspectos positivos (utópicos) nem nos negativos (distópicos).“Hipo” no sentido de “insuficiência”, “posição inferior” + “topia” do grego “topos”, “lugar”.
Por exemplo, filmes como a coprodução África do Sul/EUA Distrito 9 (2009) de Neil Blomkamp e o curta Cybraceros (México/EUA, 1997) de Alex Ribera são produçõesde FCque, paradoxalmente, parecem se ressentir de ausência de futuro: refletem mais as mazelas do presente e as projetam de forma hiperbólica em futuros próximos. Na verdade, o futuro não existe, ele é apenas uma tela paródica ou cínica do presente.
Sua forma hiperbólica se manifestaria através de uma narrativa mockumentary (filmes em estilo documentário com um tom paródico), tornando ainda mais explícito esse “futuro do pretérito”: através de uma narrativa realista e hiperbólica, o presente curva-se sobre si mesmo, produzindo um estranho não futuro e um não lugar, muito semelhante ao imaginado pelo cientista-chefe da NASA Dennis Bushnell.
Ficção científica: utopia, distopia e hipo-utopia
Carlos Lima (2008) afirma que entender utopia como “nenhum lugar” ou “lugar nenhum” seria uma redução equivocada. O prefixo grego da palavra remeteria à negação de lugar no sentido de “lugar-outro”:
A partir deste corte hermenêutico, podemos enunciar que a utopia [outopos] vem a ser a negação do lugar, o lugar da negação: lugar-outro, clinâmen, desvio, cruzamento, descaminho, encruzilhada, excêntrico. O que funda a utopia é o logos selvagem, a razão bárbara, o logos esquerdo, o logos descontínuo, o logos da transversalidade, o logos excêntrico. (LIMA, 2008, 16)
A utopia se apresentaria como “negação de lugar”, consciência inquieta que não se conforma com o presente, um pensar diferente que explora o outro, como um meio de reflexão e crítica ao atual. Esses não lugares atenderiam às demandas e expectativas do seu tempo, pois dizem respeito tanto ao futuro quanto às precariedades do presente.
Na época das grandes navegações e da descoberta do “novo mundo”, a obra de Thomas Morus, onde a ideia renascentista de homem e humanidade vai dimensionar o pensamento utópico, projetou sua cidade ideal no espaço, numa ilha desconhecida dos europeus descoberta pelo navegador filósofo Rafael Hitlodeu. Esse pensamento inaugural da utopia criará três categorias que tornarão comum na imaginação (seja literária, científica ou tecnológica) da modernidade: o topos projetado, o logos excêntrico e o novum estranho.
Esse topos ou lugar-outro é projetado no futuro: a consciência inquieta que quer enxergar longe, que quer transpor o estado atual do sonhador. A consciência da carência e precariedade do real, uma projeção do melhor que criaria uma brecha no espaço e no tempo, descontinuidades no fluxo do presente e que abre para caminhos possíveis.
Nessa ontologia do real, o logos do ser seria “excêntrico”, ou seja, se expande do centro (o presente) para explorar o que está fora, nas regiões periféricas do futuro.
Esse topos projetado seria o novum estranho, cujo narrador apresenta esse futuro como novidade e espanto. Esse choque com a nova realidade é ainda potencializado pelo olhar de um “narrador-estrangeiro”, aquele que se deslocou do centro ou do presente em direção da periferia ou do futuro.
Essas três categorias farão parte dos cânones tanto da ficção científica da utopia quando da distopia, embora,como bem observa Silva (2011) esse “lado negro da utopia” subverta o novum para um topos hostil e inseguro.
De qualquer forma, tanto na utopia quanto nas distopias representadas por obras como 1984 de George Orwell eAdmirável Mundo Novo de Aldous Huxley ainda apresentam, de forma perversamente invertida, o espírito positivo oitocentista nos termos de evolução total da humanidade a partir de uma ideia teleológica de progresso: uma tecnociência que aspira a universalidade através do planejamento e controle da totalidade social, cultural e urbana. A distopia é o topos projetado dos princípios modernos de integração, planejamento e controleelevados ao paroxismo – o “ver para prever” da tecnociência positivista levado ao ponto em que se transforma em pesadelo.
A distopia não está à parte da utopia; ou melhor, não se trata de uma negação do pensamento utópico. Pelo contrário, se pode dizer que, nele inserida, a reflexão distópica concentra em si semelhantes pressupostos e propósitos, invertendo, todavia, os meios e os mecanismos pelos quais se articulam suas críticas. Se a utopia ultrapassa a realidade experimentada no cotidiano, abrindo e imaginando espaços para novos horizontes ao passo em que cria caminhos descontínuos no fluxo presente, o mesmo faz a distopia, na intenção de, através do estranhamento e da perplexidade, resgatar a empatia humana pelo humano (SILVA, 2011, pp. 14-15).
Com a evolução da modernidade para a sua fase pós-industrial ou pós-moderna depois da Segunda Guerra Mundial e a aceleração dos fluxos econômico-financeiros com a Globalização na década de 1990, temos uma erosão das categorias que norteavam o paradigma modernista. Autores como Chesneaux (1995), Harvey (1994 ) e Gumbrecht (1994) convergem na tese de que o novo processo econômico baseado em aceleração de fluxos financeiros, humanos e de mercadorias baseou-se em uma nova configuração das tecnociências e? que? [A1] rompem com o antigo paradigma moderno, ao criar uma ambiência tecnológica computacional onde o sujeito humano é desnaturalizado: da tecnologia como extensões do homem ao momento atual de ruptura onde a tecnologia virtualiza o humano. O resultante é um mundo viscoso, menos estruturado e flutuante que pode ser sintetizado em três palavras-chave: destemporalização, destotalização e crise da noção de progresso.
A destemporalização corresponderia a uma crise teleológica: ruptura com a temporalidade moderna marcada por um fluxo constante que caminha do passado em direção ao futuro. Em um texto seminal sobre o gênero no pós-moderno, Nelson Brissac Peixoto argumenta que a ficção científica atual perdeu a visão de futuro: primeiro ao mostrar o futuro como pós-apocalipse (como catástrofe, lixo, saturação e decadência) ou como passado, um olhar nostálgico contemporâneo retro, o ímpeto pela vivência intensa de uma época quando a aspiração pelo futuro foi formulada. Em síntese, o futuro do passado.
Ficção científica sugere de imediato uma visão de futuro. Planetas desconhecidos, robôs e tecnologia ultrassofisticados, inacessíveis aos tempos atuais. Mas e se esta perspectiva do que está para vir tiver sido feita há muitos anos? Há algo de estranho e perturbador nos filmes sci-fi dos anos 1950: eles apresentam uma ideia do futuro que é de uma outra época, distinta da nossa. (PEIXOTO, 1987, p. 75).
Se o futuro como um “não lugar” ou um topos projetado e estranho éum dos cânones do gênero ficção científica, o que teríamos na atualidade seria a sua desconstrução como uma percepção de futuro “fraca” que muito mais se remete ao presente – a hipo-utopia.
Outro cânone da ficção científica, a sofisticação tecnológica, entra em crise com a destotalização. A tecnologia até continua sofisticada, porém perde o seu caráter de planejamento, totalização e controle. A Ciência abandonou qualquer projeto que aspirava à universalidade, ao planejamento da totalidade global, social ou urbana. Ao assumir a forma de tecnociência, ela privatiza e individualiza seus propósitos. Abandona o macro para concentrar-se no micro: gadgets tecnológicos sofisticadíssimos e prédios inteligentes conectados com velozes fibras óticas enquanto as ruas e o entorno público são dominados pelo caos da poluição, do trânsito e do lixo.
A tecnologia transforma-se em gadget: personagens lidam com sofisticados aparelhos a partir de complexas telas, manipulam telematicamente eventos distantes, perscrutam, vigiam e controlam. Porém, diferente das utopias e distopias de controle e totalização do passado, apenas intervêm pontualmente, fragmentariamente, o que só fomenta o caos e a desordem pós-apocalíptica.
Como consequência desse abandono do planejamento macroeconômico e social, temos a terceira crise: a perda da noção de progresso. Seja na utopia, onde a ciência e a tecnologia conduziriam a humanidade à maioridade através da igualdade e do aperfeiçoamento moral e espiritual, ou na distopia, onde a ciência domina todos os aspectos da vida a tal ponto que se torna autoritária e abusiva ao massificar os indivíduos como mais um número em uma gigantesca contabilidade, temos visões teleológicas de progresso em seus aspectos positivos e negativos.
Bauman (2005) descreve como o progresso da Globalização não cria desigualdades, crescimento dos abismos das classes ou pobreza como nos sistemas econômicos clássicos marcados pela exploração da força de trabalho. Simplesmente, o pleno desenvolvimento econômico trouxe a exclusão ou “baixas colaterais”: lixo tóxico, tecnológico e refugos humanos – velhos, estrangeiros, imigrantes, etc., todos sem possibilidade de serem integrados. Assim como o lixo informático (baterias, placas, etc.), são enterrados em contêineres em algum país africano, da mesma forma uma massa de “redundantes” éempurrada para periferias, guetos ou caçados ou barrados pela polícia de imigração, sem possibilidades de integração. Para o novo sistema global nem são considerados “exército industrial de reserva”, mas “redundantes” e “superpopulação”.
Ao contrário de distopias como 1984 onde o Big Brotherintegra obrigatoriamente os indivíduos como necessidade econômica de uniformização e controle, o novo Big Brother da hipo-utopia faz o inverso: exclui compulsoriamente. Esses redundantes devem “desaparecer”, seja física ou virtualmente.
Cybraceros e Distrito 9
O curta Cybraceros de Alex Rivera, quecinicamente mostra como o sistema econômico norte-americano livra-se da presença indesejável de braceros mexicanos para torná-los trabalhadores virtuais confinados na periferia, partilha dessa visão hipo-utópica: alta tecnologia aplicada à exclusão de refugo humano indesejado.
O curta tem a forma de uma simulação de um vídeo promocional. Baseia-se em um verdadeiro filme promocional da década de 1940, feito pelo Conselho de Agricultores da Califórnia, intitulado Why Braceros? – “braceros” era como se chamavam os peões ou mão de obra temporária mexicana. O filme era uma peça do chamado Programa Bracero, uma série de leis e iniciativas diplomáticas entre México e EUA para a contratação de mão de obra temporária para trabalho no campo. Ao longo do tempo, a iniciativa acabou gerando problemas de imigração ilegal e conflitos na fronteira entre os dois países.
Uma típica voz feminina de vídeos institucionais ou de sistemas de som de shoppings emoffdefende um Programa Bracerofuturista em que apenas o trabalho seria importado pelos EUA: os trabalhadores seriam deixados em casa no México diante de telas de computadores com conexões de alta velocidade, munidos dejoystickatravés do qual manipulam telematicamente robôs que selecionam as laranjas nas fazendas californianas.
Cinicamente a narradora descreve que na Internet não há diferenças entre ricos e pobres e que no futuro todos trabalharão em casa, até mesmo osbraceros. Uma reviravolta bizarra do sonho americano. Com o Programa Cybracero todos se livrarão dos problemas. Sem compromisso, com baixo custo e sem cruzar a fronteira dos EUA, o cybracero é o imigrante perfeito, a carahigh techdo sonho americano. E os consumidores norte-americanos consumirão produtos mais baratos e sem custo social. E o final do curta é ufanista: com o programa cybracero não haverá mais a ameaça de um trabalhador transformar-se em um cidadão, o que significa “produtos de qualidade a um baixo custo financeiro e social para você, consumidor americano”, enquanto vemos imagens de uma mulher branca loira em um supermercado moderno.
Dirigido pelo estreante Neil Blomkamp, a produção independente sul-africana é mais um exemplo dessa tendência da ficção científica “do Sul”: a exploração de temas como apartheid, racismo, precarização do trabalho e privatização. Uma nave perdida vinda do espaço estaciona sobre Johanesburgo e por lá fica 20 anos. Com o tempo os aliens ganham o apelido pejorativo de “camarões” e são confinados em um distrito, explorados pela máfia nigeriana e controlados por uma versão privatizada e policialesca da ONU, a MNU.
Um futuro que projeta em alta tecnologia o racismo e preconceito do presente. No filme estão muitas das características perversas da globalização: precarização alimentar (os nigerianos vendem a um preço exorbitante comida de gato enlatada, apreciada pelos alienígenas), precarização do trabalho (a MNU é uma corporação cínica e hipócrita) e o tráfico de armas (tanto a máfia nigeriana como a MNU estão interessadas no arsenal de armas da nave dos alienígenas).
Moebius, 2033 e Les Revenants
Desperdício de vidas, exclusão compulsória e apartheid social passam a ser temas recorrentes na ficção científica do Sul, criando um futuro cada vez mais próximo de natureza hipo-utópica. As formas de representar esses “efeitos colaterais” da globalização socioeconômica assumem diversas formas.
No filme argentino Moebius (1996) de Gustavo Mosquera, baseado no conto de A.J. Deutsch de 1950, temos um exemplo disso através de um paradoxo espacial: em um futuro próximo o metrô de Buenos Aires assume uma forma excepcionalmente labiríntica e complexa. No meio de um dos trajetos, uma composição inteira com mais de 30 passageiros desaparece. Um topologista é chamado para investigar o incidente e eventualmente descobre que a complexidade das linhas de metrô teria assumido uma forma semelhante àda fita de Moebius. Devido às suas propriedades matemáticas e geométricas, o trem acabou circulando em um plano dimensional indefinível e invisível, embora todos consigam sentir o barulho e a vibração quando o trem está próximo.
O filme foi realizado em plena era do governo Carlos Menem de políticas neoliberais radicais e privatizações, entre elas a do próprio metrô de Buenos Aires. O filme narra como a empresa tenta lidar com o problema do desaparecimento de um trem inteiro pressionando seus funcionários sob um regime de censura e medo e como tenta manipular a opinião pública. A precarização do trabalho no metropolitano coincide com o desaparecimento de pessoas: referências não só ao desaparecimento de opositores da ditadura militar nos anos 1970 de memória vívida para os argentinos, como também do desaparecimento de trabalhadores “redundantes” em uma economia de radical neoliberalismo– o desemprego se aproximava a 30% na época.
O filme 2033 (2009) do diretor mexicano Francisco Laresgoiti novamente nos apresenta um futuro próximo, dessa vez no México, onde após intensas políticas de privatizações o Estado foi convertido em mero aparelho policial e repressivo que controla a sociedade, bancado por corporações de telecomunicações, farmacêuticas, energia e Cryo-pausa – onde intelectuais, cientistas e políticos são guardados em armazéns congelados para que suas mentes sejam reprogramadas para posteriormente serem úteis aos sistema.
O enorme desenvolvimento tecnológico apenas fez aprofundar o apartheidsocial: nos subúrbios vivem os pobres que são caçados por esporte pelos ricos como se fossem animais. Ao mesmo tempo, os cidadãos são “pacificados” pela bebida viciante chamada “pactia” cujo princípio ativo é uma droga chamada “Tecpanol” produzida pela corporação farmacêutica Phaarmax.O filme é um evidente sintoma do México atual arrasado pela violência do narcotráfico e pelo desastre econômico de políticas neoliberais de um país na fronteira com os EUA e ansioso porse integrar ao bloco econômico da América do Norte – o NAFTA.
Embora seja uma produção francesa, Les Revenants (2004) de Robin Campillo apresenta uma parábola das complicadas relações do país com suas ex-colônias e os imigrantes ilegais, refugiados de sua pobreza natal e excluídos na França. Mortos retornam inexplicavelmente do além-túmulo em uma pequena cidade. Eles não querem comer cérebros e nem matar. Voltam calados, como memórias vivas e indesejáveis para os vivos. Os mortos recém-chegados tornam-se um problema social: o que fazer com eles? Como reintegrá-los às suas famílias, à sociedade e aos seus antigos trabalhos? Entes queridos que retornam podem, de uma hora para outra, tornarem-se indesejáveis. De início, o filme apresenta a interessante metáfora do problema social da integração dos imigrantes, do estrangeiro e o fenômeno da intolerância.
Considerações finais
Paz (2008) observa que, por limitações econômicas e técnicas decorrentes de uma condição periférica, no cinema de ficção científica latino-americana estão ausentes uma variedade de temas da FC norte-americana como space operas ou filmes-catástrofes. Citando a escritora argentina de FC Angélica Gorodischer, ela diz: “em um país onde os telefones não funcionam e ter carro é um luxo, não podemos escrever sobre ficção científica tecnológica, dar explicações sobre naves que vão até as estrelas ou falar sobre impérios galáticos” (PAZ, 2008, p. 99).
E poderíamos acrescentar: em uma região onde os “efeitos colaterais” da globalização e as mazelas das políticas econômicas neoliberais são repercutidos de forma mais intensa devido àsua condição geopolítica periférica (seja a América Latina ou os países periféricos ao centro nervoso da Zona do Euro, nesse momento em profunda crise), o cinema de FC autóctone necessariamente irá assumir características bem peculiares: hibridismos e mutações em relação aos cânones da FC norte-americana. O futuro imaginado assumirá uma natureza hipo-utópica que poderíamos sintetizar da seguinte forma:
(a) A categoria de topos projetado cede lugar a um futuro próximo que se aproximaria do presente como alegoria ou metáfora. Perde-se a noção teleológica de futuro para dominar o princípio de que, seja o passado ou o futuro, seriameraprojeção de um eterno presente, criando-se uma condição esquizofrênica e pós-moderna (Jameson, 1985).
(b) O logos excêntrico cede lugar a uma espécie de logos concêntrico, isto é, o movimento centrífugo onde as energias da imaginação vão a lugares “onde nenhum homem jamais esteve” invertem-se para um movimento centrípeto de contração em direção ao centro, ao presente. Por isso futuro é pensado de uma maneira insegura, incerta, pós-apocalíptica. A ciência converte-se em tecnociência materializada por gadgets de ação pontual, fragmentada e privatizada, acelerando ainda mais o caos e a desordem. Não é à toa que a iconografia e os simbolismos fílmicos passam a assumir uma estética labiríntica, claustrofóbica, com instabilidades e perdas de identidades que lembram o conceito de estética neobarroca proposta por Calabrese (1987).
(c) O novum estranho cede lugar a um tom narrativo híbrido, simultaneamente irônico e realista em uma forma muitas vezes documental ou mockumentary. Reconhecemos nesse futuro próximo o nosso próprio presente projetado de forma ao mesmo tempo hiperbólica e realista. A relação de estranhamento com um futuro totalmente outro é substituído pelo mal-estar da familiaridade com o presente.
Filmes de FC do Sul seriam documentos de uma sensibilidade que, de tão extrema em relação às contradições socioeconômicas globais, chegariam ao mainstream representado pela falahipo-utópica do cientista-chefe da NASA Denis Bushnell, ironicamente no país onde o cinema de FC desenvolveu-se como o gênero onde a especulação sobre o futuro é a sua principal matéria-prima.
Bibliografia
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GUMBRECHT, Hans U. & PFEIFFER, Karl L, Materialities of Communication. Stanford: Stanford University Press, 1994.
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LIMA, Carlos, Genealogia Dialética da Utopia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
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PEIXOTO, Nelson Brissac, “O Futuro do Passado”, In: Pós-Modernidade, Editora da UNICAMP, 1987.
SILVA, Diogo Cesar Nunes da, “O Futuro como História: Utopia e Ficção Científica”. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, Julho 2011.
Filmografia
2033. Direção: Francisco Laresgoiti. Produção (México) La Casa de Cine. Elenco: Claudio Lafarga, Sandra Echeverria, Raúl Méndez, Marco Antonio Treviño, Alonso Echánove, José Carlos Rodriguz e Ariane Pellicer. Roteiro: Jordi Mariscal. Cinema Epoch, DVD, 2009 (100 min).
DISTRITO 9 (District 9). Direção: Neill Blomkamp. Produção: (África do Sul, EUA, Canadá Nova Zelândia) TriStar Pictures, WingNut Films. Elenco: Sharlto Copley, David James, Jason Cope. Roteiro: Neill Blomkamp e Terri Tatchell, Sony Pictures Entertainment, DVD, 2009 (112 min).
MOEBIUS. Direção: Gustavo Mosquera. Produção: (Argentina) Universidad del Cine de Buenos Ayres. Elenco: Guillermo Angelelli, Roberto Carnaghi, Anabella Levy, Jorge Petraglia. Roteiro: Pedro Cristiani, Gabriel Lifschitz. Argentina Video Home e Fama Films, DVD, 1996 (88 min).
REVENANTS, Les. Direção: Robin Campillo. Produção: (França) Haut et Court, France 3 Cinéma. Elenco: Géraldine Pailhas, Jonathan Zaccaï, Frédéric Pierrot. Roteiro: Roben Campillo e Brigitte Tijou. Hault et Court, DVD, 2004 (102 min).
WHY Cybraceros. Direção: Alex Rivera. Produção: EUA/México. Roteiro: Alex Rivera, On Line, 1997, curta-metragem.