Anarquia sagrada
“O antídoto do ódio é o poema”[1]
Esta heterogeneidade cada vez mais estranha que possui a alcunha jurídica de “Brasil” passa por turbulências graves. Os ditos “brasileiros” buscam salvação em líderes populistas; cada simpatizante de determinado líder fica cego e surdo diante do simpatizante de outro. Essa cegueira faz o “fascismo brasileiro” sair do armário. Neste artigo, apreenderemos o fascismo como um pus que sai do corpo, e que, portanto, é um sintoma. Para a transformação desse corpo, entendemos que o mais adequado é instituir o que chamamos de anarquia sagrada.
A anarquia sagrada é a expressão política dos transaberes (JOB, 2013). Chamamos transaberes a relação dos saberes enquanto imanência ao longo da epistemologia e da ontologia, bem como ao longo do Um e do múltiplo, conjunto que nomeamos Unidade Dinâmica.
“É a pele o lugar de Deus”
Baruch Spinoza (2014b), filósofo do século XVII, foi crítico da monarquia e apostou na democracia. Criou um sistema ontológico baseado na imanência pura, sem qualquer lampejo de transcendência. Sua filosofia é tão bela quanto contundente. Uma pergunta nos atravessa: o que teria a dizer Spinoza acerca da política, hoje? O que segue é uma digressão particular: estamos deixando o spinozismo passar por nós, invocando novidades. Consideramos equivocado o que é algumas vezes feito da filosofia de Spinoza como sendo um protomarxismo, e está muito distante de nossos interesses.
Vamos entender por que abandonamos um pensamento da transcendência: a linhagem que vai de Platão a Kant, passando pela Escolástica e por Descartes, teve como ponto de partida provisório o Egito Antigo, onde deuses imanentes se transformavam em aspirações transcendentes. Esse processou culminou em um deus único, transcendente: imagem que veio corroborar o poder dos faraós (NUNES CARREIRA, 1994). Tal compreensão do direito divino migrou para o dito “Ocidente”, legitimando também reis, que, devidamente secularizados, tornaram-se líderes políticos, juízes, chefes de todos os tipos. De forma direta, a ordem “vem de cima”. Toda uma forma de pensar e organizar a realidade através da condução das pessoas à obediência; um adestramento que passa pela forma de pensar, pela linguagem e pela fé. A humanidade foi desconectada do cosmos e de Deus, deixando de fazer parte deles e sendo relegada à posição de louvá-los e obedecer-lhes. O desamparo dessa desconexão intensifica o desejo de uma salvação que vem de fora. Clama-se por um deus-pai. Por um salvador.
Em uma imanência, inexiste um fora absoluto; restam apenas os devires que criam novidades em uma totalidade aberta. Pode ser algo novo, mas vem da imanência. Nesse sentido, nada nos determina. Somos um contínuo com os cosmos; somos cósmicos. É impossível uma solidão real nessa ontologia – a solidão é uma ilusão criada pelo pensamento da transcendência. E, se nada nos determina, nenhuma ordem “de cima” pode ser legítima. O cosmos é uma auto-organização. Somos partes imanentes de uma auto-organização cósmica.
Partimos do princípio de que essa ontologia nos deva guiar politicamente. A auto-organização é nosso mote. E, por desdobramento, nossa política deve passar pela auto-gestão. É aqui que nos identificamos com a anarquia.[2]
“Os diálogos fazem-se com veias e não com palavras”
A anarquia nasceu na segunda metade do século XIX, inspirada por libertários como La Boétie, Charles Fourier, Max Stirner, William Godwin, que propuseram críticas ao Estado, ao capitalismo e às hierarquias, e elegeram a auto-gestão como forma privilegiada de organização. Outros nomes importantes foram Pierre-Joseph Proudhon, Mikhail Bakunin, Piotr Kropotkin, Emma Goldman e Errico Malatesta (COELHO, 2016). Nas últimas décadas, pôde-se observar um aumento de adeptos à anarquia (IBÁNEZ, 2015).
Saul Newman (2018) realizou uma operação conceitual importante ao trazer um “pós-anarquismo” a partir das relações conceituais entre Max Stirner e um grande spinozista da segunda metade do século XX, Gilles Deleuze. Newman critica duas noções caras à anarquia tradicional: a concepção de Estado como um artifício e a ideia de um sujeito “corrompido” pelo Estado. Deleuze, junto com Félix Guattari, afirmou que o Estado sempre existiu, como codificação “tubular” das forças turbilhonares da vida, tendendo a sempre reduzi-las a um axioma (DELEUZE; GUATTARI, 1997). Desdobrando essa ideia, vamos recorrer ao Comitê Invisível (2013): “governar nunca foi outra coisa senão repelir por mil subterfúgios o momento em que a multidão se revoltará e todo o ato de governo nada mais é que uma forma de não perder o controle da população”.
Toda a obra de Deleuze e Guattari envolve uma crítica ao sujeito enquanto essência. Ou seja: há agenciamentos em devir; nunca um sujeito passivo, pré-determinado, mas individuações, processos instáveis. Os autores propõem, como resistência às forças axiomáticas do Estado, a máquina de guerra. Devemos diferenciar essa máquina da guerra bélica em si: a máquina de guerra é a resistência à codificação tubular do Estado, por meio do nomadismo, da descodificação, para permitir a naturalidade da turbulência. O nômade, para eles, pode estar parado – é menos um questão de movimento e mais de velocidade. O movimento é extensivo, desloca-se, e a velocidade é intensiva, onde se modulam forças.
Na mesma construção, Deleuze e Guattari dialogam com a formulação de Sociedade Contra o Estado, do antropólogo Pierre Clastres (2017). Baseado em seus estudos com os ameríndios, Clastres afirma que a única alternativa ao Estado é a guerra constante. O autor nos deixa em uma rua sem saída, legitimando as piores consequências da psicanálise e indicando que a repressão inconsciente é o “mal menor” que possibilita o processo civilizatório.[3]
Acerca da crítica a Clastres, vale trazer a concepção do historiador Douglas P. Fry (2007). Ao rever os critérios históricos que levam à conclusão de que a humanidade seja bélica, o autor conclui que durante a maior parte da história (na era que vai desde os caçadores-coletores até o Neolítico), a humanidade foi pacífica. Afirma que muito do que foram pequenas rivalidades locais são tratadas pela maioria dos pesquisadores como guerra, e enumera sociedades contemporâneas que ainda hoje são pacíficas.
Outro anarquista leitor de Deleuze e Guatari é Hakim Bey (2001). Em seu livro TAZ, ele propõe o conceito de Zona Autônoma Temporária, que é a modulação de instâncias libertárias móveis: uma festa, um piquenique, um grupo de estudos; qualquer ocasião sem hierarquia, onde os participantes sejam autogeridos. Bey diz que a revolução, entendida como algo que se pretende universal, não deve sequer ser desejada. Ele propõe o levante como alternativa: efêmero e sem desejo de permanência.[4] Um acréscimo importantíssimo é a crítica que Bey faz à violência dos levantes anarquistas; diz que, hoje em dia, estrategicamente, as manifestações anarquistas devem ser pacíficas. Resistências, sim, mas pacíficas. Assim como Deleuze e Guattari (1996) dizem que não é mais tempo de “filosofar com marteladas”, como queria Nietzsche, mas de criar um Corpo sem Órgãos em um trabalho com lixa, bem mais sutil.
“Só o inominável vale a pena”
Vamos, agora, acrescentar à anarquia o sagrado. Será preciso lembrar que a imanência proposta por Spinoza (2008) é toda relacionada com Deus. Deus, ou substância, é de onde emergem todos os conceitos spinozistas. Esse Deus é imanente; está aqui. É diferente da concepção judaico-cristã, em que Deus é transcendente e criador do mundo. Para Spinoza, Deus e mundo são um só, autocriados. Spinoza (2014), em sua carta 43, endereçada a Jacob Osten, afirma ser seu conceito de Deus imprescindível à sua obra.
No entanto, na obra de Gilles Deleuze, a presença de Deus está obscurecida. Por outro lado, existem vários estudos que evidenciam um misticismo na obra do filósofo, povoada de alusões ao xamanismo e à magia (JOB, 2018c). Ora, esse nômade intensivo encontra extrema ressonância no sábio autoinquiridor do Advaita Vedanta (JOB; OM, 2018), saber indiano que ressalta a não-dualidade, inclusive entre Deus e criatura, e legitima a imanência.
“Nenhum alfabeto é mais que um prefácio que coloca em fórmula a vida”
Com a referência do Advaita Vedanta e sua ressonância com a filosofia de Spinoza e Deleuze, queremos enfatizar a experiência direta, sem intermediação da “cultura” entre nós e o mundo. Aqui, tornamo-nos próximos ao anarcoprimitivismo de John Zerzan (2007), no sentido de que queremos um amálgama com a Natureza, anterior à linguagem e seus desdobramentos. Diferenciamos de Zerzan, contudo, pois queremos habitar o melhor de dois ou mais mundos sem querer destruir a civilização; problematizando-a, criticando a ilusão da cisão entre humanidade e cosmos.
Voltemos ao sagrado. Gregory Bateson (2005), autor caro a Deleuze, estava à busca de uma “epistemologia do sagrado”, relacionando Deus à auto-organização e à mente. Ou seja, cosmos-Deus é auto-organizado e autoconsciente (JOB, 2018a), sendo que a Consciência dos seres inorgânicos e orgânicos varia apenas em gradação. É aqui que declaramos nosso animismo, entendendo que o devir é vital; que a vida se dá no processual.
“Talvez a guerra seja o abraço ao contrário”
Se inexiste uma instância transcendente a ser obedecida, clamamos por desobediência, como proposta por Frédéric Gros (2018). O filósofo associa obediência a desresponsabilização, e aqui temos um mote importante: ser imanente ao cosmos é, necessariamente, instaurar uma ética cósmica. Desobedecer é se responsabilizar por tudo e todos, sabendo-nos imanentes. O objetivo do poder e da transcendência é produzir corpos dóceis, instaurar separatismo, obediência, e convidar o “indivíduo” a se desresponsabilizar. Como esclarece o Comitê Invisível (2016): “o poder cria o vazio. O vazio invoca o poder”.
Isso ajuda a explicar a ascensão do fascismo no Brasil: primeiro, criou-se acidentalmente um “fascismo cordial”, brincalhão, acessível aos trópicos, onde o Integralismo falhou; segundo, associaram-se a isso uma despolitização e um clamor por militarismo. Os corpos dóceis dizem: “deixe tudo explodir; deixem que eles tomem conta”, e entregam o poder de suas mãos para quem vai usá-lo contra eles. Os corpos dóceis desejam o controle e a subserviência, ou servidão, como prefere Spinoza (2008).
Em uma ética cósmica, inexiste o poder, que é minimizado pelo aumento da potência. O poder é exercido “sobre” o escravo. A potência se dá ao longo de (JOB, 2018b), em uma itinerância, no melhor estilo do antropólogo Tim Ingold. A potência é construída ao longo da imanência, sem dualismo de sujeito e objeto. É na ilusão construída de separação entre e sujeito e objeto que se exerce o poder. Nosso objetivo é especificado pelo Comitê Invisível (2015): “entrever um mundo povoado não de coisas, mas de forças, não de sujeitos, mas de potências; não de corpos, mas de elos”.
“Quero a insuportável ternura da serenidade dos instintos”
O que devemos fazer? Em uma palavra: nada. Da imanência, emerge a espontaneidade. Foi o primeiro ato contra que gerou todos os outros e, por consequência, o dualismo, a guerra. Os devires passam e nos constituem espontaneamente. Os “diques no devir” (TARDE, 2003) simulam a separação e criam as ideologias. E as ideologias são as piores inimigas da espontaneidade. O escritor Philip K. Dick (2007) dizia que o “Império nunca terminou”, declaração cujo complemento deleuziano é: “o Estado sempre existiu”, como citamos anteriormente. Dick alertou para o risco de se colocar contra o Império, tornando-se parte dele. O Império, ou o Estado, são da ordem cindida da causa e efeito, do poder exercido. A potência, ao contrário, é contínua, imanente. Mas é preciso diferenciar o que propomos da alienação e do niilismo: para isso, ressoamos a palestra do historiador Patrick Boucheron (2018), Como se revoltar?, onde diz: “estamos vendo que nenhum poder, mesmo ou sobretudo o mais autoritário, o mais repressivo, pode resistir por muito tempo à pressão, ainda que pacífica, de uma multidão que não volta para a casa, que ocupa os lugares”. Reverberamos, também, o conceito de destituição do Comitê Invisível (2017): “destituir não é […] atacar a instituição, mas, sim, a necessidade que temos dela. […] Destituir o governo é se tornar ingovernável. Quem falou em vencer? Superar é tudo”.
Assim como o sábio “nômade” intensifica-se, habitar um cosmos sem Estado e sem Império é ir além de uma linearidade temporal e habitar um cosmos intensivo, coexistente, atemporal, contínuo. A questão é menos a luta “contra o fascismo” e mais a afirmação, aqui e agora, de um ato intensivo de ternura no cosmos, na vida. A anarquia sagrada é a expressão política desse cosmos que é solidário, como afirma o cosmólogo Mario Novello (2018) e dinâmico, aberto, espontâneo, afirmativo.
Bibliografia
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[1] Todos os subtítulos deste artigo são trechos do livro “Hoje vou sufocar a Melancolia”, do poeta português António de Deus-Rosto (2016).
[2] Preferiremos “anarquia” a “anarquismo”, por entender a anarquia para além das especificações em campos do saber determinados. A anarquia é algo em movimento.
[3] Vale dizer que o antropólogo anarquista contemporâneo David Graeber (2018) considera Clastres ingênuo.
[4] Essa compreensão remete à Furio Jesi (2018), que afirma que a revolta seja uma insurreição fora do tempo, sem expectativa de futuro. A revolução se dá no plano histórico, temporal.