Alice. Reflexos do espectro autista
ARTIGO/
Sylvia Beatriz Joffily*//
No artigo a seguir, a psicóloga clínica e neuropsicóloga Sylvia Joffily descreve um caso de Transtorno do Espectro Autista (TEA). A Alice do Rio de Janeiro, paciente de Sylvia, e a Alice de Lewis Carroll dialogam entre si num texto poético, de ritmo peculiar, através do qual somos levados pela discussão técnica e pela evolução de diagnóstico do TEA, e ao mesmo tempo transportados ao mundo autista e às sensações de uma menininha real, que experimenta o mundo como uma aventura no país das maravilhas. Nesta edição, a Cosmos e Contexto convida o leitor a seguir Sylvia Joffily através do espelho de Alice. Das Alices.
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Alice! Recebe este conto de fadas
E guarda-o, com mão delicada,
Como a um sonho de primavera
Que à teia da memória se entretece,
Como guirlanda de flores murchas que
A cabeça dos peregrinos guarnece.
Lewis Carroll
Introdução
Em 1970, época em que descrevi o caso Alice, não pretendia me dedicar à produção de textos acadêmicos. Meu intuito era escrever uma peça de teatro, um romance, um poema ou, até mesmo – pura pretensão –, produzir um filme no qual exibiria as primeiras impressões que os recém-nascidos experimentam ao entrar na vida: solidão e desamparo. A ideia seria traduzir em palavras o estar absolutamente só, o não dispor das primárias condições de comunicação com o semelhante. Mas sem nenhum talento literário, enveredei pela psicologia. O que, por um lado, foi bom por dar-me a oportunidade de muito aprender sobre desenvolvimento infantil e suas patologias. Mas, por outro lado, a proposta inicial ficou negligenciada.
“Quem é você? “perguntou a Lagarta.
“Não era um começo de conversa muito animador. Alice respondeu, meio encabulada: “Eu… mal sei, Sir, neste exato momento… pelo menos sei quem era quando me levantei esta manhã, mas acho que passei por várias mudanças até então” (Lewis Carroll, 2002, p. 45).
Alice não era uma criança comum.
Quando os pais, preocupados com o seu comportamento me procuraram, ela já havia completado quatro anos de idade embora, sob alguns aspectos, agisse como bebê. Nascida no Rio de Janeiro, em pleno apogeu da psicanálise, quando a neuropsicologia cognitiva ainda engatinhava, não era fácil para qualquer especialista fechar diagnóstico definitivo. Assim ela foi diagnosticada, na década de 1960, como portadora de uma abrangente e pouco esclarecedora nomenclatura: ‘Disfunção cerebral mínima’. Embora a meu ver, o diagnóstico de Transtorno Global do Desenvolvimento Sem Outra Especificação – também pertencente ao grupo dos Transtornos do Espectro Autista (TEA) – fosse mais adequado ao seu caso, ela recebeu, posteriormente, o de autista. Lamentavelmente, ao contrário do que acontece hoje em dia, naquela época, tal diagnóstico implicava em grave e injusta acusação de frieza afetiva parental.
“Que quer dizer com isso? “esbravejou a Lagarta. “Explique-se!”
“Receio não poder me explicar”, respondeu Alice, “porque não sou eu mesma, entende?” (Lewis Carroll, 2002, p. 45).
Na época, o maior problema de Alice, na opinião de seus pais, referia-se ao seu isolamento afetivo/social. Ela evitava o olhar alheio; manifestava desconforto quando abraçada; não reagia e nem era atraída pela fala humana. Como sua linguagem não se desenvolvera adequadamente (as poucas palavras que aprendera eram repetidas de forma aleatória e totalmente fora de contexto, numa inexpressiva, rouca e arranhada emissão de voz), houve a suspeita de baixa audição.
“De onde vinha o barulho, ela não conseguia distinguir: o ar parecia repleto dele, e ressoava em toda a sua cabeça até deixá-la completamente surda” (Lewis Carroll, 2002, p. 223).
Por outro lado, seus movimentos, gestos e andar eram pouco espontâneos – mecânicos. Quando algo a desagradava sua reação surgia desproporcional e inadequada. Gritava, cuspia e batia ritmicamente nas bochechas com as mãos espalmadas ou mordiscava os próprios braços até sangrar.
“Mas não sou uma cobra, estou lhe dizendo!” insistiu Alice. “Sou uma… uma…”
“Ora essa! Você é o que?” perguntou a pomba, “Aposto que está inventando alguma coisa!”
“Eu… eu sou uma menininha”, respondeu Alice, bastante insegura, lembrando-se do número de mudanças que sofrera naquele dia (Lewis Carroll, 2002, p. 52).
Escrever um artigo sobre as dificuldades relacionais e expressivas de Alice não era, como penso ter deixado claro no início deste texto, o que pretendo fazer. Mas, como “o uso do cachimbo faz a boca torta”, não posso evitar que algumas informações referentes ao desenvolvimento infantil e seus distúrbios invadam as entrelinhas.
“Pois bem”, continuou o Gato, “você rosna quando está zangado e abana a cauda quando está contente. Ora, eu rosno quando estou contente e abano a cauda quando estou zangado. Portanto sou louco.” (Lewis Carroll, 2002, p. 63).
O texto tem como base fatos ocorridos ao longo dos quase 15 anos, não consecutivos, de convívio terapêutico com Alice (quatro sessões semanais de 50 minutos). Mas como descrever impressões alheias? Estaria falando das vivências de Alice ou das minhas? Como diferenciar os meus sentimentos, desejos, medos, inseguranças e intenções dos de Alice, se ainda hoje não sei quem sou, nem a que vim?
“‘Mas agora’ pensou a pobre Alice, ‘não adianta nada fingir ser duas pessoas’. Ora, mal sobra alguma coisa de mim para fazer uma pessoa apresentável’” (Lewis Carroll 2002, p. 18).
E como falar em nome de Alice? Apoiada na literatura de Lewis Carroll, autor de Alice No País Das Maravilhas e Através do Espelho. Carroll teve o mérito de colocar em palavras aquilo que sempre pretendi: passar para o outro lado do espelho e, assim, enfurnando-se na pele do outro, descrever o avesso dos sentimentos e sensações de Alice. Assim, escondida atrás de óculos e rótulos, eu – psicóloga – ouso escrever este texto com personagens que não são meus. Emprestados.
“‘Concordo plenamente com você’, disse a duquesa; ‘e a moral disso é ‘Seja o que você parece ser’… ou, trocando em miúdos, ‘Nunca imagine que você mesma não é outra coisa senão o que poderia parecer a outros de que você fosse ou poderia ter sido não fosse senão o que você tivesse sido teria parecido a eles se de outra maneira.’” (Lewis Carroll, 2012, p. 89).
Mas minhas dúvidas não terminam aí. Será que este texto espelhado poderia resultar num acadêmico artigo de fácil compreensão? Se não, o que seria então? Não querendo correr o risco destes parágrafos e frases parecerem invertidos, embaralhados – do outro lado do espelho –, como escreveria Lewis Carroll, apresso-me em colocar ordem na confusão, tal como faria o coelho branco de olhos cor de rosa.
“Quando viu o coelho tirar um relógio do bolso do colete e olhar as horas, e depois sair em disparada, Alice se levantou num pulo, porque constatou subitamente que nunca tinha visto um coelho com bolso de colete, nem com relógio para tirar de lá, e, ardendo de curiosidade, correu pela campina atrás dele, ainda a tempo de vê-lo se meter a toda pressa numa grande toca de coelho debaixo da cerca.” (Lewis Carroll, 2012, p. 11).
Uma pitada de teoria
“‘É inútil falar sobre isso’, disse Alice, olhando para a casa e fingindo estar discutindo com ela. ‘Não vou entrar ainda. Sei que deveria atravessar o espelho de novo… de volta à sala… e seria o fim de todas as minhas aventuras!’” (Lewis Carroll, 2012, p. 149).
Nos últimos anos, várias foram as tentativas de recuperar as condições cognitivas e relacionais das crianças cujo desenvolvimento manifestava-se atípico. Consideradas pelos primeiros psicanalistas como desprovidas de afeto e, portanto, incapazes de estabelecer qualquer tipo de transferência terapêutica, elas foram, durante muito tempo, abandonadas à própria sorte.
“‘Quem se importa com vocês?’, disse Alice (a essa altura, tinha chegado ao tamanho normal). ‘Não passam de baralho!’ A essas palavras o baralho inteiro se ergueu no ar e veio voando para cima dela.” (Lewis Carroll 2012, p. 121).
Ora, é bem sabido que uma das características mais marcantes e misteriosas do processo de desenvolvimento cognitivo refere-se à sensibilidade para ordenar objetos. Ordenar coisas é o mesmo que conhecê-las, lembrar-se do lugar que ocupam no espaço e, sobretudo, saber como orientar-se ou comportar-se em relação a elas.
“‘Um lado do quê? O outro lado do quê?’ Alice se perguntou.” (Lewis Carroll, 2002, p. 50).
O jogo de esconde, tão atrativo para as crianças pequenas, pressupõe a representação mental de objetos que aparecem e desaparecem do campo visual. Por meio deste jogo, se pode intuir a presença ou a ausência de sensibilidade para lembrar, perceber, ordenar e relacionar diferentes estímulos do mundo externo.
“A cabeça do Gato começou a sumir assim que o carrasco se foi e, quando ele chegou de volta com a Duquesa, já sumira por completo; diante disso o Rei e o carrasco puseram-se a correr freneticamente para cima e para baixo à procura dela, enquanto o resto do grupo voltava ao jogo.” (Lewis Carroll, 2012, p. 86).
A vida só adquire sentido quando, ordenando e relacionando estímulos externos (percepções) e internos (memórias de percepções), a criança consegue inseri-los em um único e mesmo contexto. Na ausência de tal contextualização, a existência perde o sentido.
“‘Bem! Já vi muitas vezes um gato sem sorriso’, pensou Alice; ‘mas um sorriso sem gato!’ É a coisa mais curiosa que já vi na minha vida!’” (Lewis Carroll, 2012, p. 64-65).
Segundo Winnicott (1969, p. 38) a saúde mental do bebê depende, sobretudo, do desenvolvimento afetivo que ocorre antes que ele possa reconhecer a si mesmo e aos outros como individualidades. Para Winnicott, o início da vida se caracteriza pelo estado de “não integração primária”. Caso este estado não seja devidamente superado, a personalidade entra em regressiva desintegração. O reconhecimento e o acolhimento parental propiciariam a união das diferentes experiências sensório/motoras em um mesmo e único contexto cognitivo. Neste caso, a fala repetitiva e ordenada da mãe favoreceria a estruturação da linguagem e do pensamento do bebê. Caso por motivos físicos, psicológicos ou sociais a criança não consiga relacionar diferentes estímulos em um único contexto, o mundo é vivenciado como algo caótico e aterrorizante.
“‘Parece muito bonito’, disse quando terminou, mas é um pouco difícil de entender!’ (Como você vê, não queria confessar nem para si mesma que não entendera patavina.) ‘Seja como for, parece encher a minha cabeça de idéias… só que não sei exatamente que idéias são. De todo modo, alguém matou alguma coisa: isto está claro, pelo menos…’” (Lewis Carroll, 2002, p. 145).
Jacques Lacan (1949) também utiliza o fenômeno especular – “estádio do espelho” – para sintetizar a função de reconhecimento e seu complexo sistema de identificações com o Outro. Segundo este psicanalista francês, os traços linguísticos que acompanham e organizam o intercambio especular seriam os mesmos que atribuem função simbólica aos atos de reconhecimento recíproco, como o que acontece entre a criança e o seu Outro, quando estes passam a ser representados por palavras, ou por nomes.
“E aqui eu gostaria de ser capaz de lhe contar a metade das coisas que Alice costumava dizer a partir de sua expressão favorita: ‘Vamos fazer de conta’. Ela tivera uma discussão bastante longa com a irmã ainda na véspera, tudo porque começara com ‘Vamos fazer de conta que somos reis e rainhas’; e a irmã, que gostava de ser muito precisa, retrucara que isso não era possível porque eram só duas, até que Alice finalmente se vira forçada a dizer: ‘Bem, você pode ser só um deles, eu serei todos os outros.’” (Lewis Carroll, 2002, p. 136).
Em 1945, bem antes que as ciências humanas aderissem à linguística, Jean Piaget já descrevera em seu livro “A formação do símbolo na criança” a função semiótica do aparato psíquico. Esta função, que para ele antecedia e ultrapassava a atividade propriamente linguística, consistia tanto na emissão quanto na recepção de mensagens significativas. Assim, a ecopraxia ou o jogo de gestos por meio dos quais o adulto e a criança se imitam mutuamente, antecederia a comunicação significante.
“‘Vamos fazer de conta que você é a rainha Vermelha, Kitty! Sabe, acho que se você sentasse e cruzasse os braços ficaria igualzinha a ela. Vamos, tente minha fofura!’” (Lewis Carroll, 2002, p. 136).
Os jogos de imitação vocal permitindo a criança isolar e dominar os fonemas significantes da língua materna tem origem, por um lado, na imitação gestual, e por outro, nos jogos de simulacros. Através destes últimos, a criança, na presença de adultos, imita a si mesma, como por exemplo, no caso em que finge estar dormindo. Quando a atividade de simulacro inclui as verbalizações que caracterizam as primeiras palavras, considera-se que a criança conquistou a capacidade de simbolizar. Neste momento acontece a passagem da semiótica do gesto corporal para o significante linguístico.
“‘Sabe jogar xadrez, Kitty? Não, não sorria, meu bem, estou perguntando a sério. Porque, quando estávamos jogando há pouco, você observou exatamente como se entendesse; e quando eu disse ‘Xeque!’ você ronronou! Bem, foi um belo cheque, Kitty, e eu realmente poderia ter ganho, não tivesse sido por aquele cavaleiro desagradável, que veio se insinuar ziguezagueando entre minhas peças. Kitty, querida, vamos fazer de con…’” (Lewis Carroll, 2002, p. 136).
Em seus textos, Lewis Carroll trabalha a linguagem em todos os níveis: na organização das narrativas, nas séries, no funcionamento sintático, na produção de sentido, no domínio das significações e na passagem da designação à expressão. Entretanto, o conjunto de todas estas operações só é adequadamente percebido quando o ouvido entra em sintonia com o pulsar rítmico da linguagem. Como os textos de Lewis Carroll se sustentam no ‘ruído’ produzido pelo sentido, muitos dos efeitos fonéticos e semióticos que os caracterizam se perdem na tradução.
“‘Ah, bem! O significado é quase o mesmo’, disse a Duquesa, fincando o queixinho pontudo no ombro de Alice enquanto acrescentava: e a moral disto é… ‘Cuide do sentido, que os sons cuidarão de si’.” (Lewis Carroll, 2002, p. 89).
Nos textos carrollianos, as rimas, os ecos e as redundâncias atraem as palavras que são depositadas em camadas fônicas as quais se sobrepõem aleatoriamente ao sentido. Embora o texto não explicite o aparecimento e o desaparecimento dos personagens, estes se insinuam nas diferentes instâncias linguísticas, uma vez que seus caracteres manifestam-se no ordenamento dos níveis semântico e fonético. Como o objeto do desejo não se dissocia da linguagem, deduz-se que a expressão do outro lado do espelho esconda a face sonora das coisas e das palavras.
“‘Você disse porco ou corpo?’ o Gato perguntou.
‘Disse porco’, respondeu Alice; ‘e gostaria que não ficasse aparecendo e sumindo tão de repente: deixa a gente com vertigem.’
‘Está bem’, disse o Gato; e dessa vez desapareceu bem devagar, começando pela ponta da cauda e terminando com o sorriso, que persistiu algum tempo depois que o resto de si foi embora.’” (Lewis Carroll, 2012, p. 64).
Em 1951, Winnicott descreve o fenômeno transicional, recurso utilizado pelos bebês para se protegerem da angustia depressiva da separação materna no momento em que são deixados sozinhos no berço para dormirem. Segurar, cheirar e/ou chupar um objeto (pedaço de pano), os quais não pertencem nem ao próprio corpo nem, exatamente, ao mundo externo, os deixa mais tranquilos. Para Winnicott, tais objetos intermediários situam-se entre a atividade auto-erótica (chupar os dedos) e a relação com objetos externos, como brinquedinhos de pelúcia.
“Primeiro, no entanto, esperou alguns minutos para ver se ia encolher ainda mais: a idéia a deixou um pouco nervosa: ‘pois isso poderia acabar’ disse Alice consigo mesma, ‘me fazendo sumir completamente, como uma vela. Nesse caso como eu seria?’ E tentou imaginar como é a chama de uma vela depois que a vela se apaga, pois não conseguia se lembrar de jamais ter visto tal coisa.’” (Lewis Carroll, 2012, p. 17).
Ora, dentre os objetos transicionais incluem-se todos os ruídos que as crianças fazem antes de dormir, inclusive as verbalizações de palavras. É neste sentido que para Gori (2010) as palavras deixam de ser somente simbólicas para se transformarem no ponto de equilíbrio quase estacionário que oscila entre os investimentos narcísicos e eróticos/objetais; entre a libido e a pulsão de morte; entre o corpo e o código; e, entre o imaginário e o simbólico. Para este autor, a palavra tem origem na imagem corporal.
“Alice começou a ficar com muito sono, e continuou a dizer para si mesma, como num sonho: ‘Gatos comem morcegos? Gatos comem morcegos?’ e às vezes ‘Morcegos comem gatos?’ pois, como não sabia responder a nenhuma das perguntas, o jeito como as fazia não tinha muita importância. Sentiu que estava cochilando e tinha começado a sonhar que estava andando de mãos dadas com Dinah,…” (Lewis Carroll, 2012, p. 14).
Mais recentemente, acredita-se que a capacidade que permite aos homens interpretarem, imitarem e aprenderem, por meio da recíproca observação comportamental, depende do bom funcionamento de uma classe particular de neurônios visuomotores à qual se acordou denominar ‘neurônios espelho’ (Lameira; Gawryszewski; Pereira Jr., 2006; Rizzolarri, 2005; Gallese; Goldman, 1998; Rizzolatti; Craighero, 2004).
“Alice riu tanto disso que teve de correr de volta para o bosque, de medo que a ouvissem…” (Lewis Carroll, 2012, p. 55).
Entretanto, pesquisas têm comprovado serem os ‘neurônios espelho’ responsáveis não só pela interpretação das ações alheias (essencial à sobrevivência), como pela imitação (essencial à aprendizagem) e pela empatia (essencial à socialização), todas estas ausentes ou francamente prejudicadas nos sujeitos autistas. (Oberman; Ramachandran; Pineda, 2008; Oberman; Ramachandran, 2007).
“Ao mundo do Espelho Alice então proclamou:
Coroa na cabeça e cetro na mão, agora convido
Todas as criaturas que o Espelho jamais espelhou
A cear com a rainha Vermelha, a Branca, e comigo!” (Lewis Carroll, 2012, p. 251).
A importância destes achados é enorme, pois no momento em que os ‘neurônios espelho’ se ativam o significado da ação é automaticamente – de modo pré-atencional –captado pelo observador. À captação pré-atencional seguem-se, ou não, as etapas conscientes que caracterizam mecanismos cognitivos mais complexos e sofisticados.
“‘Ó criaturas do Espelho’, Alice chama, ‘venham cá!
É uma honra, uma graça que a sorte lhes concedeu.’” (Lewis Carroll, 2012, p. 251).
Pesquisas comprovam que, quando um homem observa a fala silenciosa do outro homem, a área de Broca, relacionada à linguagem articulada – hemisfério cerebral esquerdo –, se ativa. Por outro lado, quando ele observa os movimentos labiais do macaco, apenas uma parte muito pequena da mesma região cerebral de seus dois hemisférios cerebrais se ativa e, quando ele observa um cão latir, somente as áreas visuais extra-estriadas se ativam. Melhor explicando, os neurônios espelho dos humanos só se ativam quando as ações observadas refletem as ações pertencentes ao seu repertório motor.
“Alice pensou consigo: ‘Se é assim, não adianta nada falar.’ Dessa vez as vozes não a acompanharam, já que ela não falara, mas, para sua grande surpresa, todas pensaram em coro (espero que você entenda o significado de pensar em coro… porque devo confessar que eu não entendo).” (Lewis Carroll, 2012, p. 162).
Porém, ao observar o comportamento motor do outro, duas diferentes informações podem ser captadas. Uma, mais primitiva, refere-se à estrita ação do outro – ‘o que’ ele está fazendo –, e a outra, mais elaborada, à sua intencionalidade – ‘por que’ ele está fazendo tal coisa.
“‘Por quê?’ Perguntou a lagarta.
Aqui estava outra pergunta; e como não pudesse atinar com nenhuma boa razão, e a Lagarta parecesse estar numa disposição de ânimo muito desagradável, Alice deu meia volta.” (Lewis Carroll, 2012, p. 162).
Aparentemente, autistas só conseguem captar informações que respondam a pergunta ‘o que?’, pois apenas conseguem perceber que uma ação está sendo realizada, mas são incapazes de atribuir-lhe qualquer intenção. À capacidade de identificar as próprias intenções e/ou emoções em comportamentos alheios dá-se o nome de empatia. Mais recentemente, constatou-se o envolvimento dos neurônios espelho na empatia, sensibilidade que os autistas desconhecem (Wicker et al. 2003; Carr et al, 2003).
“Alice nunca conseguiu entender direito, refletindo sobre isso mais tarde, como tinham começado: tudo que lembrava é que estavam correndo de mãos dadas, e a Rainha corria tão depressa que ela mal conseguia acompanhá-la. Mesmo assim a Rainha não parava de gritar: ‘Mais rápido! Mais rápido!’, mas Alice sentia que não podia ir mais rápido, embora não lhe sobrasse fôlego para isso.” (Lewis Carroll, 2012, p. 156).
O caso Alice
“O que você sabe sobre este caso?” perguntou o Rei a Alice.
“Nada, respondeu Alice.
“Absolutamente nada?” Insistiu o Rei.
“Absolutamente nada”, confirmou Alice. (Lewis Carroll, 2012, p. 116).
Alice era a segunda filha de um casal de jovens intelectuais de classe média do Rio de Janeiro. Quando Alice nasceu, sua mãe estava ainda muito envolvida com filha mais velha que apresentara, desde o nascimento, graves problemas gastrointestinais. Assim, a notícia da gravidez da Alice foi recebida por sua mãe com mais preocupação do que alegria, tendo esta praticamente se esquecido ‘que estava grávida’. Depois do nascimento, Alice foi deixada aos cuidados de uma empregada. Como era muito quieta e pouco chorava foi, inicialmente, considerada um bebê exemplar. Os primeiros problemas surgiram, por volta dos seis meses quando Alice passou a regurgitar e vomitar todo o alimento que lhe era oferecido. Como consequência, foram inúmeras as internações por desidratação.
“Ela nunca esquecera que, se você bebe muito de uma garrafa em que está escrito “veneno”, é quase certo que vai se sentir mal, mais cedo ou mais tarde.” (Lewis Carroll, 2012, p. 116).
Quando a vi pela primeira vez, Alice estava sentada no chão da sala de espera do consultório. Sua aparência era desagradável e envelhecida, talvez pela cor marrom do vestido, dos cabelos e de seus óculos de espessas lentes. O olhar vago e inexpressivo e os braços largados ao lado do corpo magro lembravam os de uma boneca de pano. Chamei-a pelo nome: “Alice! Alice!” Não reagiu. Sustentando-a por debaixo dos braços levantei-a. Alice deixou-se arrastar para dentro do consultório sem expressar reações.
“‘Não imagina que prazer é vê-la de novo, meu benzinho!’ disse a Duquesa, enquanto enfiava o braço afetuosamente sob o de Alice e saíam caminhando juntas.” (Lewis Carrol, 2012, p. 87).
Entretanto, no momento em que deixei de sustentá-la, Alice desabou no chão, ficando imóvel durante quase uma hora, apesar da grande quantidade de estímulos (lápis coloridos, papeis, tintas, brinquedos e instrumentos musicais) à sua disposição. Durante toda a sessão fui tomada por profundo e desagradável sentimento de solidão. Nos encontros subsequentes este sentimento só se agravou. Como única reação à minha desesperada busca de contato, visual (olho no olho), tátil (proximidade espacial) ou até mesmo verbal (dirigindo-lhe a palavra), Alice babava e cuspia.
“Ai, ai! Como tudo está esquisito hoje! E ontem as coisas aconteciam exatamente como de costume. Será que fui trocada durante a noite? Deixe-me pensar: eu era a mesma quando me levantei esta manhã? Tenho uma ligeira lembrança de que me senti um bocadinho diferente. Mas, se não sou a mesma, a próxima pergunta é: ‘Afinal de contas quem sou eu?’ Ah, este é o grande enigma!” (Lewis Carroll, 2002, p. 21).
Como sabia que cuspir, babar e vomitar eram reações comuns ao seu dia a dia, deduzi que eu e minhas abordagens terapêuticas éramos, assim como o alimento e os cuidados que recebia em casa, desprezíveis, indesejáveis, merecendo, portanto serem “jogados fora!”.
“Alice começou a se sentir muito apreensiva. Era verdade que até agora não tivera nenhum conflito com a Rainha, mas sabia que isso podia acontecer a qualquer instante; ‘e neste caso’, pensou ‘que seria de mim? Eles são horrivelmente chegados a decapitar as pessoas aqui; o que me admira é que ainda sobre alguém vivo!’.” (Lewis Carroll 2002, p. 83).
Decidida a não mais permanecer naquela desagradável situação de isolamento relacional, tomei a decisão de espelhar, através de verbalizações e dramatizações diretas e simplificadas, o seu bizarro comportamento. Assim, fui me transformando em mero reflexo especular. Sentada à sua frente olhava para os brinquedos com expressões de nojo e desprezo e, virando o rosto para o lado oposto, cuspia, e dizia – “Fora! Não quero!”
“Porém a coisa não deu certo – sobretudo’, Alice disse, ‘porque a gatinha não cruzava os braços direito.’ Assim, para puni-la, segurou-a diante do espelho, para que visse o quanto estava intratável… ‘e se não consertar essa cara já’, acrescentou, ‘eu lhe faço atravessar para a Casa do Espelho. O que acharia disso?” (Lewis Carroll 2012, p. 137).
O maior problema da terapia não estava, naquele momento, em desvendar os segredos de sua hermética personalidade, mas em saber como lhe transmitir minhas sinceras intenções de acolhimento. Como não dominava o significado de seu limitado e bizarro repertório comportamental e linguístico, eu temia que Alice não compreendesse o que pretendia espelhando seu comportamento.
“‘De que adianta toda esta lenga-lenga’, interrompeu a Tartaruga Falsa, ‘se você não vai explicando a cada passo? É de longe a coisa mais atrapalhada que já ouvi!’” (Lewis Carroll 2012, p. 104).
Apesar de minhas crescentes dúvidas, algumas sessões mais tarde, um novo elemento instalou-se em nossa rotina terapêutica. Na tentativa de excluir definitivamente minha presença de seu campo visual, Alice passou a girar a cabeça para o lado oposto ao que me posicionava. Esta atitude possibilitou o surgimento de um interativo jogo topológico, no qual Alice me excluía de um lado e eu retornava pelo outro. A topologia é uma geometria não-métrica de espaços que utiliza conceitos tais como ‘interior’, ‘exterior’ e ‘limite’. Tais conceitos revelaram-se perfeitos para descrever o comportamento psicossocial de Alice.
“‘Encontre-me lá’, disse o Gato, e desapareceu.
Alice não ficou muito surpresa com isso, tão acostumada estava ficando a ver coisas esquisitas acontecerem. Ainda estava olhando para o lugar onde o vira quando ele apareceu de novo de repente.” (Lewis Carroll 2012, p. 63).
Notei, naquela ocasião, que Alice nem sempre utilizava a modalidade sensorial adequada para escapar aos estímulos que considerava indesejáveis. Muitas vezes a vi fechar os olhos ou virar-se de costas para não ouvir minha voz, ou tampar os ouvidos para não me ver. Também observei que, em alguns momentos, mesmo me dando às costas, continuava olhando-me de soslaio.
“e dessa vez desapareceu bem devagar, começando pela ponta da cauda e terminando com o sorriso, que persistiu algum tempo depois de o resto de si fora embora.” (Lewis Carroll 2012, p. 64).
Embora, desde o início do tratamento, eu suspeitasse que Alice estava apta a interpretar de alguma forma minhas atitudes e verbalizações, só pude confirmar minhas suspeitas quando, tornando-me sua imagem especular, notei mudanças progressivas em seu comportamento. A partir deste jogo terapêutico Alice foi ficando cada vez mais espontânea e direta. De uma feita, tendo eu ultrapassado o círculo de proteção imaginário que parecia ter estabelecido em torno de sua pessoa, ela que em geral pouco se movia durante as sessões, levantou-se, e para minha surpresa, caminhou até a porta, com a evidente intenção de abri-la e escapar da minha presença.
“Alice não gostou de ficar tão perto dela; primeiro, porque a Duquesa era muito feia; e segundo porque tinha a altura certa para apoiar o queixo sobre o seu ombro e era um queixo desconfortavelmente pontudo. No entanto, como não queria ser indelicada, suportou aquilo o melhor que pode.” (Lewis Carroll 2012, p. 88).
Outra vez, como não conseguisse sair do consultório, pegou uma de minhas mãos e, como se tratasse de objeto inanimado e sem dono, carregou-a até a porta, depositando-a sobre a maçaneta. Como a porta não se abrisse, passou a dar gritos enquanto socava minha mão. Primeiro sutilmente e depois, cada vez com mais forte, como se ativasse um brinquedo mecânico. Não reconheci em sua atitude sentimentos de medo, raiva ou qualquer outro. Sua reação não se dirigia a uma pessoa, mas um objeto qualquer. Como nem por um momento seus olhos procuraram meu rosto para avaliar sentimentos e intenções, fui tomada por crescente sentimento de solidão e desamparo. Alice não me reconhecia, nem se relacionava comigo, apenas com minha mão, objeto não intencional que acreditava ter o poder de libertá-la de tão desagradável e/ou aterrorizante situação.
“Alice estava começando a pensar ‘E agora? Que vou fazer com esta criatura quando for para casa?’ quando ele grunhiu de novo com tanta fúria que ela olhou para o seu rosto um tanto alarmada. Desta vez não havia engano possível: era nem mais nem menos do que um porco, e lhe pareceu que seria totalmente absurdo continuar carregando-o.” (Lewis Carroll 2002, p. 62).
Embora, no início do tratamento, a comunicação com Alice se restringisse a usar partes de meu corpo como instrumentos utilitários, um belo dia, sem que eu possa precisar exatamente quando, nem por que, as tão atraentes e esperadas atitudes intencionais brotaram em nossa relação. Em decorrência, meu desgastante sentimento de solidão e tédio cedeu lugar à gratificante curiosidade dos encontros desejados. Mais ou menos na mesma época, notei mudanças em sua voz. Assim, como acontece naturalmente durante o desenvolvimento infantil, os ruídos e as mal articuladas e distorcidas palavras que Alice emitia passaram a revelar sentimentos, desejos e intenções.
“‘Ó Camundongo, sabe como se faz para sair desta lagoa? Estou muito cansada de ficar nadando para todo lado, ó Camundongo!’(Alice achava que devia ser a maneira correta de se dirigir a um camundongo; nunca fizera isso antes, mas se lembrava de ter visto na Gramática Latina do irmão; ‘Um camundongo… de um camundongo… para um camundongo… um camundongo… ó camundongo!’ O Camundongo lançou-lhe um olhar um tanto inquisitivo, pareceu piscar um olho, mas não disse nada.” (Lewis Carroll, 2012, p. 25).
Um aspecto interessante do comportamento de Alice referia-se à sua compreensão parcial das situações. Assim, reações aparentemente absurdas eram regidas por uma lógica particular. Por exemplo, na sala de terapia havia uma janela muito alta que ela não alcançava. Entretanto, não sei exatamente como, Alice descobriu que, subindo em uma cadeira que estava encostada na parede próxima à janela, podia olhar para o lado de fora, e assim escapar de minha insistente presença.
“Desta vez houve dois guinchos, e mais sons de vidro quebrado. ‘Quantas estufas de pepino!’ pensou Alice. ‘O que será que vão fazer agora? Quanto a me puxar pela janela, eu bem queria que pudessem! Tenho certeza de que não quero ficar aqui nem mais um minuto.’” (Lewis Carroll, 2012, p. 39).
Tal comportamento permitiu-me entender outros que eram até então absolutamente enigmáticos para mim. Na ausência de mãos disponíveis, Alice pegava a mesma cadeira, arrastava-a para detrás da porta fechada, e subindo nela esperava que, como em um passe de mágica, fosse transportada para fora da sala! Obviamente tal coisa nunca aconteceu…
“Como ficar esperando junto à portinha parecia não adiantar muito, voltou até a mesa com uma ponta de esperança de conseguir achar outra chave sobre ela, ou pelo menos um manual com regras para encolher pessoas como telescópios.” (Lewis Carroll, 2012, p. 17).
A percepção corporal de Alice parecia ser precária e distorcida. Assim, como o resto do mundo, seu corpo não era vivenciado como algo substancial ou permanente. Tanto podia se transformar em outra coisa, como desaparecer de uma hora para outra.
“‘Receio não poder ser mais clara’, Alice respondeu com muita polidez, ‘pois eu mesma não consigo entender, para começar; e ser tantos tamanhos diferentes num dia é muito perturbador’ ” (Lewis Carroll, 2012, p. 45).
As mãos de Alice desempenhavam importante papel em sua vida, pois, elas eram, aparentemente, os únicos objetos com os quais podia contar. Ora, eram utilizadas para minimizar sensações desconfortáveis ou aflitivas como quando as utilizava espalmadas para bater no próprio rosto, ora para se tranquilizar e experimentar algum prazer corporal masturbando-se.
“Certa vez teve a idéia de esbofetear as próprias orelhas por ter trapaceado num jogo de croqué que estava jogando contra si mesma, pois essa curiosa criança gostava muito de fingir ser duas pessoas.” (Lewis Carroll, 2002, p. 17-18).
Os olhos para Alice também possuíam poderes especiais. Através de o jogo ver/não ver, ela acreditava controlar a realidade. Assim quando algo que lhe agradava, ela o fixava longamente com os olhos bem abertos, e depois, fechando-os vagarosamente, parecia querer manter presente o objeto desaparecido. Posteriormente, o mesmo comportamento de piscar lenta e prolongadamente adquiriu o sentido de código cujo sentido se referia a alternância noite e dia, noite e dia…
“‘Ou o mesmo que dizer’ acrescentou o Caxinguelê, que parecia estar falando dormindo, ‘que respiro quando durmo é a mesma coisa que durmo quando respiro!’” (Lewis Carroll, 2002, p. 69).
Após algum tempo de convivência, um grave problema se apresentou: como comunicar a Alice a prolongada interrupção da rotina terapêutica devido minhas férias? Como fazê-la entender que a sala, e todas as coisas que lá estavam (dentre as quais eu me incluía) desapareceriam por mais ou menos três semanas? Seria ela capaz de entender tal interrupção ou nem a notaria? Como prisioneiras do limitado e efêmero aqui e agora do tempo presente, como assimilaríamos e expressaríamos o sentido dos abstratos e infinitos tempos pretérito e futuro?
“Alice suspirou, entediada. ‘Acho que vocês poderiam fazer alguma coisa melhor com o tempo’, disse, ‘do que gastá-lo com adivinhações que não têm resposta.’
‘Se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu’, disse o chapeleiro, ‘falaria dele com mais respeito.’
‘Não sei o que dizer’, disse Alice.
‘Claro que não!’ desdenhou o Chapeleiro, jogando a cabeça para trás. ‘Atrevo-me a dizer que você nunca chegou a falar com Tempo!’ (Lewis Carroll, 2002, p. 70).
Felizmente algumas palavras, frases e atitudes relacionando o início e o término das sessões tinham sido sistematicamente repetidas durante o tratamento. Apontando com a mão para o meu e o corpo dela, eu dizia a cada término de sessão: “Até manhã, Alice! Amanhã Alice e Sylvia estarão de novo juntas aqui!” Caso não fossemos nos encontrar no dia seguinte, como no caso dos finais de semana, eu dizia, balançando a cabeça, em sinal de negação: “Até segunda, Alice! Amanhã, não! Amanhã, não!” Na verdade ignorava se tais atitudes e palavras tinham algum significado para ela.
“A questão é”, disse Alice, “se pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes.”
“A questão”, disse Humpty Dumpty, “é saber quem vai mandar – só isso.” (Lewis Carroll, 2012, p. 204).
Nas últimas sessões que antecederam minhas férias tornei-me mais enfática, e usando sempre o jargão oral e gestual repeti por várias vezes: “Férias, Alice e Sylvia, não, não, não…” Não sei ao certo o exato momento em que me surpreendi ouvindo-a dizer com sua rouca e desafinada voz: “Manhã, fora!”
De início pensei estar delirando, mas ela, generosamente, repetiu o bordão mais algumas vezes para assegurar-me que havia traduzido para sua linguagem particular o sentido que atribuíra às minhas palavras. Só bem mais tarde, dei-me conta da importância daquele momento. Alice estava me comunicando através do bordão “Manhã fora!” – versão personalizada da letra de uma música que dava início aos capítulos da novela que a família de Alice assistia todas as noites –, o seu sentido do tempo.
“Os gatinhos têm o hábito muito inconveniente (Alice comentara uma vez) de sempre ronronar, seja o que for que se lhes diga. ‘Se pelo menos só ronronassem para dizer ‘sim’ e miassem para dizer ‘não’, ou alguma regra desse gênero’, ela dissera, ‘seria possível manter uma conversa! Mas como se pode conversar com uma pessoa se ela diz sempre a mesma coisa?’
Nessa ocasião a gatinha só ronronou – e era impossível saber se isso significava ‘sim’ ou ‘não’.” (Lewis Carroll, 2012, p. 263).
Posteriormente, soube pela mãe de Alice que durante as férias, Alice se mostrara muito atenta aos deslocamentos maternos, como se quisesse descobrir se sairia ou não de casa para a terapia. Ao retornar, pude constatar que seu acervo verbal e gestual estruturado ao longo da terapia não se perdera, mas se consolidara. Tal fato fez aumentar meu interesse por nossa peculiar relação.
“Volte!” chamou a Lagarta. “Tenho uma coisa importante para dizer!”
Isso parecia promissor, sem dúvida: Alice se virou e voltou.” (Lewis Carroll, 2012, p. 46).
É certo que expressões topográficas tais como ‘estar dentro’ e ‘estar fora’, descriminando a entrada e a saída de Alice nas sessões, desempenharam papel decisivo no processo psicoterapêutico. Quando Alice conseguia, por conta própria, escapulir da sala de terapia eu nunca a acompanhava. Limitava-me a aguardar seu retorno dentro da sala. Caso não retornasse durante o tempo previsto, eu ia até a sala de espera e lhe comunicava o término da sessão. Penso que este procedimento permitiu que ela distinguisse dois diferentes espaços existenciais e compreendesse rapidamente que o que acontecia dentro daquela sala era bastante bem diferente do que acontecia do seu lado de fora.
“Não adianta nada bater”, disse o Lacaio, “e isso por duas razões. Primeiro porque estou do mesmo lado da porta que você; segundo, porque estão fazendo tanto barulho lá dentro que ninguém pode ouvi-la.” (Lewis Carroll, 2002, p. 56).
Aos poucos, apesar de seu restrito vocabulário, Alice tornou-se apta a se expressar razoavelmente. Adquiriu relativa noção de tempo (ela sabia as horas das refeições, do momento de dormir, da terapia, dos sábados e dos domingos etc.); apresentava certo interesse por sua pessoa (passava algum tempo diante do espelho explorando partes do próprio corpo); conseguia se vestir sem maiores dificuldades, e havia adquirido hábitos básicos de higiene.
“Ficou em silêncio um minuto, pensando. Depois, de repente, recomeçou. ‘Então, no fim das contas a coisa realmente aconteceu! E agora, quem sou eu? Vou me lembrar, se puder! Estou decidida!’ Mas estar decidida não ajudou muito, e tudo que conseguiu dizer, depois de quebrar muito a cabeça, foi: ‘L, eu sei que começa com L!’ (Lewis Carroll, 2002, p. 169).
A ida para um estabelecimento escolar representou uma grande conquista. Na verdade não era se tratava de uma escola formal, mas uma escola de arte, preparada para receber alunos cujo desenvolvimento psicológico se revelara atípico.
Nos primeiros dias Alice manteve-se arredia sem evidenciar interesse pelas atividades que lhe foram oferecidas, nem entrar em contato com os colegas. Mas no final da segunda semana, já podia distinguir sua sala das demais, seus companheiros e até participar, embora com certas limitações, das atividades oferecidas.
“‘E como era?’ quis saber Alice.
‘Leitura e escrita, é claro, para começar’, respondeu a tartaruga falsa: ‘e depois os diferentes ramos da Aritmética: Ambição, Subversão, Desembelezação e Distração.’” (Lewis Carroll 2012, p. 94).
Ao final do primeiro ano escolar Alice tinha feito alguns progressos. Reconhecia e, de certa forma, tentou manter contato com uma colega de classe; distinguia o próprio nome impresso dos demais e havia participado de uma apresentação de teatro cantando e dançando juntamente com outras crianças.
“Alice achou tudo aquilo muito absurdo, mas todos pareciam tão sérios que não ousou rir; como não lhe ocorreu nada para dizer, simplesmente fez uma reverência e pegou o dedal, com o ar mais solene que arranjou” (Lewis Carroll 2012, p. 30).
Entretanto, nem todas as suas dificuldades foram sanadas. Os movimentos manuais que exigiam maior destreza nunca foram bem realizados por Alice; seu linguajar manteve-se qualitativamente bizarro e seu vocabulário inferior ao das pessoas de sua idade. Apresentava dificuldades para desempenhar as atividades que exigiam ritmo ou musicalidade e não conseguia estabelecer relações sociais mais estáveis e duradouras.
“Como as criaturas dão ordens à gente e nos fazem decorar lições!” pensou Alice. “É como se eu estivesse na escola neste momento.” Contudo, levantou-se e começou a recitar, mas tinha a cabeça tão cheia da Quadrilha da Lagosta que mal sabia o que estava dizendo, e as palavras saíram realmente muito esquisitas” (Lewis Carroll 2012, p. 102).
Divertia-se brincando de ‘pega e esconde’. Nunca demonstrou o interesse por bonecas ou qualquer outro jogo que envolvesse a imagem ou o contato humano. Gostava muito de ficar sozinha, balançando-se no jardim da vizinha.
“Alice não disse nada; sentara-se com a cabeça nas mãos, perguntando a si mesma se algum dia alguma coisa voltaria a acontecer de maneira natural.” (Lewis Carroll 2012, p. 103).
Quando interrompi a terapia por motivo de mudança para o exterior, Alice era uma pré-adolescente. Reencontrei-a já adulta. Naquela ocasião, constatei que expressava razoavelmente sentimentos de alegria e de tristeza e, embora fosse incapaz de descriminar relatos cômicos dos dramáticos, podia manter diálogos curtos durante os quais demonstrava interesse em saber o que outro estava fazendo; para onde estava indo; se estava com fome; com sede; frio etc. Porém, considero que a sua maior conquista residia na relativa consciência que tinha adquirido de si mesma e de suas limitações.
“‘Bem, talvez ainda não tenha descoberto isso’, disse Alice; ‘mas quando tiver de virar uma crisália… vai acontecer um dia, sabe… e mais tarde uma borboleta, diria que vai achar isso um pouco esquisito, não vai?’
‘Nem um pouquinho’, disse a Lagarta.
‘Bem, talvez seus sentimentos sejam diferentes’, concordou Alice; ‘tudo que sei é que para mim isso pareceria muito esquisito’
‘Você!’ desdenhou a Lagarta. ‘Quem é você?’ ” (Lewis Carroll, 2002, p. 45)
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*Sylvia Beatriz Joffily é psicóloga clínica e neuropsicóloga. Doutora em Psicologia pela Universidade Louis Pasteur, Estrasburgo, França; professora associada do Laboratório de Cognição e Linguagem do Centro de Ciências do Homem da Universidade Estadual Norte Fluminense Darcy Ribeiro (LCL/CCH/UENF). Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Neuropsicologia Cognitiva (NEPENC) do LCL/CCH/UENF.
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“Alice não gostou de ouvir tantos comentários pessoais a seu respeito e, como o Marimbondo havia recobrado bastante o ânimo e estava ficando muito falante, achou que poderia deixá-lo sem risco. “Penso que devo ir embora, agora”, disse. “Até logo”.
“Até logo, e obrigado”, disse o Marimbondo, e Alice lá se foi de novo morro abaixo, muito satisfeita por ter recuado e dedicado alguns minutos a consolar a pobre e alquebrada criatura.” (Lewis Carroll (2010, p. 288).