A vida é feita de reentrâncias:
existir não cabe em modelos
O pensamento não oblitera a vida,
É apenas uma ínfima parte do mistério.
Possam as palavras realizarem o belo papel de abrir dimensões para além delas mesmas, dando um salto para fora e revirando em pulsante compreensão vívida!
Ao se dedicarem a esta leitura, encontrarão, no corpo do texto, um arabesco. É o momento de uma parada reflexiva, é o convite para um instante de silenciamento na ânsia de prosseguir para que possam verificar, em suas sensações e percepções, na sua experiência direta, o que está sendo apontado. Desvelar os meandros do funcionamento do humano requer uma autopesquisa. É isso que os sábios de todos os tempos e lugares têm em comum: na quietude do mergulho em busca da verdade, o reconhecimento de movimentos sutis, de substratos mal verificados nos automatismos do viver torna-se óbvio, e o saber sempre presente, essa imutável essência espontânea ganha clareza indubitável.
É para este tipo de jornada que os tempos de confusão intensa pedem atenção. E o primeiro passo é para que saiam dos programas condicionados, dando um passo além do lugar comum.
Para tal, comecemos de onde bem agora estamos: na leitura deste texto. Reconheçam a tela onde as palavras estão surgindo (ou o papel)… Não há pressa, agora. Deixem a investigação ter o ritmo sereno de quem contempla um belo pôr do sol num fim de semana sem compromissos.
Verifique como estamos treinados a dar atenção quase total ao texto e suas significâncias, e como nos estranha a proposta de reparar no fundo sobre o qual as palavras estão surgindo. A reação, muitas vezes, é de um desprezo pela obviedade do simples.
Pois aqui estamos para revitalizar o simples, sem desvalorizar a complexidade. Inclusão, integração, totalidade, completude são buscas primordiais da existência. Pois então, acolha o papel (ou a tela de fundo) em branco, como também o espaço da sala, a vaziez do universo, o silêncio que é o pano de fundo das canções, os intervalos entre os pensamentos…
Ampliem a atenção para o entorno, incluído também os sons à volta e a quietude de onde surgem e para onde se vão quando se desfazem. É a vida por inteiro! Perceba, ainda, que está presente a sensação inexplicável de simplesmente existir.
Convido para que façam deste momento uma possibilidade de despertude para o infinito, inteiro e sem partes.
Não apressem as soluções. As conclusões rápidas são frutos de reações adquiridas, automatizadas, que funcionam muito bem para práticas diárias, como dirigir um carro. É bom sermos cuidadosos, ao evocar as raízes dos problemas, deslocando a atenção de uma forma de ver adquirida – o que gera uma forma de pensar e de agir condicionada, programada – para outra, livre e criativa, que emerge de sua própria experiência.
A experiência vívida, imediata, sem intermediações, é livre e única, incondicionada. O pensar discursivo modela ideias, constrói um mapa. As interpretações surgem a posteriori e são moldadas pelo treinamento interpretativo.
Por isso, recomendo novamente o reconhecimento da experiência do agora como um todo, não fragmentado por uma atenção exagerada ao texto, mas contextualizando o ler como um aspecto apenas da multiplicidade indescritível do agora.
Utopia, como um lugar (topos – κορυφές) negativado, um não-lugar, etimologicamente, sugere uma total abertura. Qualquer lugar é referenciado. E assim é que o pensar funciona. Veja por si mesmo! Pensar é pensar em alguma coisa. No paradigma dominante, a atenção está domesticada para pousar em um objeto/evento, para recortar e fragmentar a indefinível existência. Qualquer abertura que surja é rapidamente preenchida, em vez de se deleitar na vacuidade criativa do desconhecido.
Eis aqui uma delicada questão…
É preciso contemplação para que o fluxo quase ininterrupto do discurso interno seja colocado em seu lugar devido; contemplar o próprio discurso, não como quem analisa, mas como quem descansa vendo pássaros voando no azul do céu de outono.
Até onde o funcionamento intelectual consegue tocar, a dança entre o vazio e a forma surge como excludentes em mutação. Num momento apresenta-se o vazio, noutro momento a forma. Todavia, há algo de belo e imenso, no humano. Há um funcionamento para além, onde vazio e forma cabem ao mesmo tempo no mesmo lugar, bem aqui, bem agora.
Onde o fluxo das formas acontece, formas materiais, emocionais, imaginações, pensamentos, análises e sínteses, memórias e vibrações, é justo na espacialidade vazia, intocada. O paradoxo do cheio e do vazio não é exatamente uma superposição, ainda que esta imagem ajude. Mais precisamente, é uma integrada e radiante totalidade, sem bordas, interpenetrada.
Deixe, por um instante, que este modelo dinâmico e sistêmico seja verificado em sua vivência, acolhido como um modelo, sim, porém, mais inteiro, mais livre e expandido. Não temos uma meta determinada com esta mudança de percepção, mas sim explorar como é o simplesmente ser.
Thomas More imaginou um lugar maravilhoso. Escrito em 1516, seu livro intitulado Utopia representou um ideal social, econômico e político que encanta a todos. Neste contexto de onde surgiu e foi popularizado o termo utopia, ele remete a uma construção do pensamento. Como um lugar criado no mundo das ideias, ele está sempre orientado para aplainar os medos mais básicos da existência finita e temporal.
Nenhuma representação mental tem a capacidade de descrever a vida! Como numa geometria ideal, feita de retas e planos, a natureza não se apreende aí, com suas reentrâncias e incertezas.
Quando o conceito de utopia sugere ideais, afasta-nos do viver, de sua maravilha e sua absurdidade!
Aqui não há respostas teóricas, mas um questionar das bases da construção de nossas ideias e representações de mundo, de identidades, de definições que norteiam o existir, é um dobrar-se sobre as perguntas. Verificar a validade da questão implica deixar em aberto novas formas criativas do olhar. Olhar aberto tem, em seu âmago, o desafio essencial do humano, a instância do não-saber, a insegurança primordial.
Insegurança que emerge do olhar que se treinou em dar importância demasiada aos objetos e esqueceu-se da beleza do vazio, do silêncio e do não-saber!
Eis a herança, o direito de nascença do humano: como um evento, ele tem a capacidade de transcender os próprios eventos, transcender a si mesmo como um acontecimento no espaço e no tempo e dar-se conta da eternidade infinita de um presente eterno, onde o tempo se constrói e se desfaz num fluxo em transformação contido na correnteza imutável de uma Vida incognoscível para as ideias, porém sempre reconhecida por Si Mesma, refletida num saber que está além do conhecer intelectual, e que é a essência mesma de sua real natureza, onde tudo, absolutamente tudo, surge e se desfaz!
A impermanência de tudo que se percebe é conhecida por um rápido experimento, um instante de contemplação. Este instante agora, onde a atenção mais uma vez é desfocada de um elemento único e de forma dispersa, inclui, sem separação, tudo que está acontecendo.
Existem diversos níveis de conhecimento.
Conhecimento dos eventos (incluindo aqui os objetos materiais como eventos acontecendo no espaço e no tempo) tem tendência a um simplismo, uma economia que não se aproxima da complexidade viva. É constituído de contrastes e dualidades, cuja função é discernir entre os elementos, seu funcionamento e sua multiplicidade. Tem objetivo prático e é eficaz na invenção de ferramentas e tecnologias. Por isso, está sempre em construção.
Há um conhecer experiencial, vivências acumuladas na memória, muitas acessíveis, outras submersas num inconsciente profundo. São moldadas por sensações de prazer e de dor, que direcionam os gostos e as evitações do comportamento pessoal. Escrevem assim uma narrativa da história pessoal, deste personagem que se narra e se define por conceitos que, ao serem tomados como inflexíveis, geram uma rigidez estonteante, geradora de pânico e de violência.
Há um saber que sabe disso tudo!
A tomada de consciência das complexidades dos fios que tecem histórias e arrumam os elementos em seus lugares: todos os elementos conhecidos são objetos de conhecimento e, como tal, não podem definir a identidade do sujeito!
Então, quem é você?
Um saber sem objeto, puro conhecer, luminescência primordial, é o que está sendo apontado por todos os sábios da humanidade, estes que viram o puro conhecer em sua essência primeva e anunciaram: esta é sua natureza essencial, para além do tempo e do espaço, reconhecida na porta estreita do agora, de onde nunca se sai, de onde tudo é visto em mutação permanente!
Este não-lugar presente invariavelmente é o que você é!
Assentado neste conhecimento todo abarcante, todo includente, um natural cuidar surge.
Portanto, o pensar, como um dos elementos vivos – mas apenas um deles – deve ser colocado numa dimensão incluída no compreender mais amplo, que chamaremos de sabedoria.
Estamos aproveitando o tema da utopia, o não-lugar, para apresentar a investigação que os ensinamentos não-duais orientam. São ensinamentos seculares, que investigam profundamente o existir e suas interpretações, como se foi distanciando de uma compreensão incondicionada e desperta para a natureza sempre presente da consciência iluminada em direção a um conhecer fragmentado e excluidor, condicionado pela estrutura dominante na cultura.
O ensinamento não-dual aponta para como o condicionado e o incondicionado surgem simultaneamente. Reflete sobre a limitação de compreensão e atuação do indivíduo que se identifica com uma pessoalidade não integrada, instigando a sensibilidade para as inter-relações que co-emergem em formas paradoxais, que reconhece o indivíduo como um elemento a mais no colapso da totalidade do momento, e neste olhar de sabedoria abrangente, verifica a liberdade da dimensão que não está tocada pelo tempo.
Saborear a pureza da vida sem qualidades move amorosidades desconhecidas para aquele que está sujeito à finitude.