A superação da visão dualística em Liezi e Laozi
Vivemos sob o domínio da impermanência. Ora sentimos uma alegria inexprimível, ora uma angústia tenebrosa. Perturbados por diversos estímulos, assemelhamo-nos a um mar de convulsões. Abalados por inúmeros sentimentos como ódio, inveja, tristeza, vaidade, júbilo, ressentimento e amor, mal sabemos como nos guiar nessa viagem tão conturbada. Navegamos de um extremo a outro nesse mar de incertezas. Somos ainda assaltados por uma avalanche de circunstâncias que escapam de nosso controle. Nada nos satisfaz. Embora haja tanta inconstância nos fenômenos de nossa vida, continuamos perseguindo de maneira desenfreada os falsos contentamentos para aplacar as nossas insatisfações. É como se estivéssemos nos afogando numa correnteza de ondas da qual somos incapazes de nos libertar. Contudo, podemos examinar o modo pelo qual seria possível enfrentarmos essas adversidades. O pensador taoísta Liezi no clássico “Vazio Perfeito” nos apresenta um diálogo muito interessante a respeito de nossos temores em relação à inconstância da vida.
Meng Sun Yang perguntou ao Yang Zhu: “Há pessoas que estimam a vida e protegem o corpo de modo que buscam evitar a morte. Isso é possível?”
“É impossível evitar a morte.”, respondeu Yang Zhu.
“Então, é possível viver por um tempo mais longo?”, perguntou Meng Sun Yang.
“Também é impossível. Não é estimando a vida que se pode conservá-la. Não é protegendo o corpo que se consegue preservá-lo. Além disso, por que motivo desejaríamos prolongar a vida? Nossos sentimentos de amor e ódio, o perigo e a segurança de nossos membros físicos, a alegria e a dor do mundo, as mudanças do destino e as desordens do governo nunca foram diferentes tanto nos primórdios como nos tempos atuais. Já ouvimos, vemos e experienciamos todas as coisas. Se uma vida de cem anos já nos deixa aborrecidos, por que motivo desejaríamos suportar mais sofrimentos por um tempo maior?”, disse Yang Zhu.
Meng Sun continuou: “Desse modo, uma morte prematura não seria preferível à vida longeva? Podemos pisar nas facas pontiagudas, penetrar nas águas ardentes e nos entregar à morte prematura.”.
Yang Zhu disse: “Não é bem assim. Enquanto você estiver vivo, é preciso abandonar as preocupações e seguir a Naturalidade. Realize todos seus desejos e espere pela morte. Quando estiver próximo o momento da morte, abandone suas preocupações e siga a Naturalidade. Aja de maneira plena a fim de realizar a completude em todas as ações. Sem aflições e seguindo a Naturalidade, por que teríamos de nos preocupar se teremos uma morte prematura ou tardia?”.[1]
Nesse diálogo entre Yang Zhu e Meng Sun contado por Liezi, “nossos sentimentos de amor e ódio, o perigo e a segurança de nossos membros físicos, a alegria e a dor do mundo” e todas as outras oposições do mundo dualista são noções projetadas pela mente humana na medida em que, ao se deparar com os eventos externos, cria sobre eles uma determinada interpretação e, portanto, uma avaliação subjetiva de acordo com os seus critérios, gostos e caprichos, os quais, por sua vez, decorrem de certas cristalizações de seus hábitos, experiências e crenças pessoais. É a mente subjetiva do indivíduo com todo o seu contexto histórico-pessoal que atribui valor às experiências. Nesse sentido, os fenômenos se tornam bons ou ruins, felizes ou infelizes pelo fato de que são interpretados de acordo com os juízos valorativos criados pelos nossos pensamentos. É provável que aquilo que considero valioso não o seja para uma outra pessoa, e isso acontece justamente em função da diversidade de juízos, crenças, hábitos, experiências e concepções que variam de indivíduo para indivíduo. Há diversas visões de mundo, as quais nem sempre são condizentes umas com as outras. Ademais, mesmo num indivíduo a sua visão de mundo varia conforme as mudanças ocorridas na vida. É evidente que se os conceitos derivam de nossas interpretações subjetivas limitadas, o que realmente compreendemos quando somos confrontados com um determinado aspecto do mundo fenomênico? Com efeito, segundo Liezi, aquilo que na aparência fenomênica se mostra como “morte prematura” ou “morte tardia”, na verdade, não é nem uma coisa nem outra. Trata-se simplesmente da maneira pela qual avaliamos subjetivamente a realidade, mas, decerto, a própria realidade escapa de nossas conceituações, pois ela é mais vasta e incognoscível.
É nesse sentido que o mestre Liezi nos sugere o caminho do desapego em relação às nossas preocupações e aflições mentais. Somos condicionados pelas nossas crenças e juízos limitantes que sempre são determinados pelas oposições do mundo dualístico. Contudo, a visão filosófica de Liezi não é relativista, visto que ele nos propõe uma compreensão metafísica do Princípio Imutável do Dao no sentido de uma Unidade Transcendente-Imanente e, sobretudo, a prática de uma conduta de aceitação condizente com essa Suprema Ordem Natural conhecida como Decreto do Céu (天命-tianmìng). Nesse contexto, o sábio taoísta compreende essa Suprema Ordem (tal como na visão do I Ching) e age de acordo com a sua Natureza Originária (本性-běnxìn), transcendendo as oposições do mundo relativo tais como alegria e tristeza, boa-fortuna e infortúnio, vida e morte. Ele segue o fluxo dos fenômenos e acolhe tanto o movimento como o repouso, tanto o ganho como a perda. Moderado e constantemente enraizado no seu centro interior – o que não quer dizer que seja indiferente e insensível às circunstâncias – , ele age no mundo, mas não se enreda nas teias insidiosas e instáveis que lhe sucedem. Transcendendo tais oscilações, ele compreende que tanto a alegria quanto a tristeza, tanto a dor quanto o prazer pertencem à ordem (理-lǐ) do universo. Contudo, essa transcendência não é uma espécie de negação do mundo (atitude niilista); ao contrário, trata-se de um modo de compreensão daquela realidade total e vasta (o chamado Decreto do Céu) que escapa da racionalidade, dos conceitos e das palavras e até mesmo do domínio de nossa mente ordinária. É por isso que, se moderarmos o fluxo mental dos pensamentos, abandonaremos o excesso da discursividade lógica e nos entregaremos a uma nova sintonia com a Natureza Originária e a essência do cosmos. Conquistamos a nossa liberdade autêntica em harmonia e não em conflito com a ordem cósmica natural.
Lembremos que no capítulo 2 do Dao De Jing em que Laozi diz que tais oposições como o belo e o feio, o bem e o mal, o certo e o errado, o benefício e o prejuízo são somente aspectos mutuamente dependentes e relativos um ao outro. Assim, como ele observa, a Existência e o Vazio se geram um pelo outro; o difícil e o fácil se completam; o longo e o curto se comparam; o alto e o baixo se dependem; o som e a voz se harmonizam; o antes e o depois se seguem um ao outro[2]. Ou seja, um lado só existe em função do outro numa relação de mútua interdependência. Assim, quanto mais compreendermos a complementaridade dos opostos, estaremos mais precavidos contra as preocupações excessivamente supérfluas, pois são elas que, em última instância, desencadeiam uma série de apegos prejudiciais ao equilíbrio de nossa mente e corpo. Como o Sábio não se apodera de uma posição fixa, não se apega às posturas unilaterais. Pois o próprio ato de sustentar uma posição desencadeia em nossa mente um esforço, uma persistência em defender um ponto de vista, implicando sempre num apego que se empenha arduamente em preservar a nossa visão, que por sua própria natureza é parcial e suscetível de erro. A atitude sábia é não nos envolvermos com essa espécie de ilusão, já que, para manter esse ponto de vista, somos induzidos a disputar com argumentações, o que requer de nós grande dispêndio de energia. Isso porque na medida em que permanecemos mais apegados, desgastamos cada vez mais nossa vitalidade energética. No fluxo dos acontecimentos, as oposições nunca permanecem imutáveis. Ao contrário, elas se interagem e até mesmo se transformam uma na outra, o que mostra claramente que seria equivocado nos apegarmos exclusivamente a um lado do fenômeno. Sem nos restringirmos a tais juízos parciais, como poderíamos agir de maneira menos contenciosa e com uma atitude mais condizente com a visão da Totalidade? Como sugere Laozi: o Sábio age através da Não-Ação e pratica o ensinamento sem falar. Assim, todos os seres atuam sem nenhuma intervenção, geram sem se apoderar e realizam sem depender. Cumprida a obra, o Sábio não se apega. Não havendo apego, nada se perde.[3]
Como comenta Wang Bi[4], as oposições dualistas são produtos da mente humana na medida em que ela julga e conhece os fenômenos de acordo com os seus juízos discriminativos. A mente distingue, separa e classifica. Com essa operação, ela acaba criando uma escala de valores e tende a se apegar a um dos aspectos da realidade. Nesse sentido, quanto mais cultivarmos o desapego, mais deixaremos a nossa possessividade, e por isso, evitaremos a artificialidade de nossas ações cuja tendência é sempre sobrevalorizar um dos lados em detrimento do outro. De maneira análoga, o comentador Su Zhe[5] esclarece que os homens geralmente desconhecem que tais oposições como bem/mal, belo/feio são apenas mutuamente dependentes e relativos um ao outro, uma vez que o conceito de “bem” só se sustenta porque existe o seu contrário. Quando reconheço o bem, é porque também reconheço e identifico a existência do mal. Um só existe em relação ao outro. Não existe o conceito de bem isoladamente. Assim o bem não existe em si e por si. Da mesma maneira, o alto e o baixo, o longo e o curto, a Existência e o Vazio e as outras oposições. Portanto, não seria conveniente nos fixarmos num dos extremos se realmente compreendemos que os opostos não se excluem, mas se complementam entre si. Daí por que seria mais plausível que nos distanciemos daquela visão parcializante (偏见-piānjiàn) e, consequentemente, do espírito de rivalidade que essa última suscita em nossas mentes. Se cultivarmos o estado de Não–Mente (无心-wúxīn) que incorpora e aceita as oposições, estaremos agindo com sabedoria do desapego tal como o sábio que age pelo wúwéi (Não–Ação). Quando Laozi diz que o sábio age pelo wúwéi, isso significa que ele age sem aquela artificialidade de querer intervir no fluxo natural das coisas. No seu desprendimento, ele se desapega do próprio ato de se ocupar (居-jū) de um ponto de vista no sentido de defender com teimosia uma determinada crença. Através desse desapego, ele diminui o apego excessivo da fala provocada pelo fluxo dos pensamentos que são hábitos limitantes.
Como observa Chen Gu Ying[6], libertando-se das distinções dualísticas e removendo a interferência mental (干预-gānyù), o sábio realiza plenamente as ações de acordo com o princípio da Naturalidade. Na medida em que evita as ações forçosas (强作妄为-qiángzuòwàngwéi), desapega-se daquela possessividade causada pela mente, possessividade que se caracteriza pelo desejo de dominação. É nesse sentido que Laozi critica os pontos de vista subjetivos provocados pelo nosso apego a determinadas ideias. Tais apegos resultam de nossas crenças e juízos cuja natureza é sempre humana, relativa e circunscrita aos caprichos pessoais. Quando Laozi diz que o sábio não fala (不言-buyán), isto é, não disputa verbal e mentalmente, isso significa que ele está plenamente atento ao momento presente e atua a partir da Não-Ação (无为-wúwéi). Em outras palavras, ele cessou o “diálogo interno” de sua mente confusa e a balbúrdia de seus sentimentos inconstantes que só provocariam o apego às posições dualistas e a artificialidade das ações forçosas. Assim, se pudermos cultivar o estado de Não-Ação, alcançaremos a dimensão da não-interferência mental. É evidente que continuaremos atuando, porém sem aquele desejo excessivo de dominação, pois quem deseja dominar, torna-se uma pessoa obstinada, teimosa e impositiva. Com efeito, a Não-Ação tal como Laozi e Liezi a concebem é simplesmente uma ação baseada na Naturalidade (自然–zìrán) que é completamente distinta da Ação Forçosa (有为-yǒuwéi), visto que é uma ação isenta de artificialidades, manipulações e estratagemas ardilosos, e que, portanto, não é orientada pelo desejo de intervir excessivamente. Logo, trata-se de uma ação menos sobrecarregada pela intenção do agente, já que o próprio agente liberado desse desejo de dominação não se agarra aos resultados que adviriam de sua ação. Daí por que esse modo de agir corresponda à configuração de cada coisa em sua especificidade própria. Por isso, quando pensamos na ideia de “natural” ou “naturalidade”, vemos aí o agir próprio de cada ser em conformidade com sua essência e em correspondência com as outras coisas do mundo, sem que ocorra nenhuma ação de interferência. Isso não quer dizer que sejamos submissos e “determinados” pelas circunstâncias. Ao invés de uma mera conformação com os fatos, a nossa naturalidade deixa aflorar nossa condição livre e genuína no sentido da essência de nossa Natureza Originária, na medida em que quem cultiva essa dimensão da Naturalidade entra em comunhão com a essência do Dao. Essa Naturalidade ou Natureza no sentido da totalidade do Dao não é meramente o que chamamos de ambiência natural ou espaço físico estudado e determinado pela visão científica, mas sim um estado existencial de ser que efetivamente manifesta a eficácia do Dao. Assim, aquilo que é natural é verdadeiro na sua condição porque atua e funciona de maneira eficaz sem interferência de nenhuma ação forçosa e por isso mesmo ela se chama zìrán, ou seja, “zì” quer dizer “si mesmo” e “rán” significa “assim tal como é”. Em outras palavras, quando as ações são por si mesmas assim como são, elas se manifestam seguindo de acordo com a Naturalidade (顺其自然–shùnqízìrán).
Desse modo, agindo pela Não-Ação e compreendendo o Princípio do Caminho, o sábio se adapta de maneira flexível ao contexto de cada situação. Percebe que, apesar de existirem diversas circunstâncias contrárias e heterogêneas em constante mutação como sucesso/fracasso, vida/morte, ganho/perda, todos os acontecimentos possuem sua razão de ser, seu “dever” intrínseco, já que tudo se manifesta e atua em conformidade com sua função dentro do Todo. Decerto, o sábio já não age pela mente nem pela Não–Mente, porque transcendeu as oposições dualistas do juízo ordinário. A visão holística do sábio ultrapassa os condicionamentos, os hábitos de pensamento, as noções particulares e as crenças subjetivas, visto que se trata de uma vivência profunda na imanência da Totalidade. Por isso, longe de ser fatalista ou negativista, o sábio de maneira harmônica e condizente com a Ordem Genuína (理–lǐ) das coisas, ou seja, possui uma compreensão ampla dos acontecimentos do mundo e, por isso, realiza as suas ações de acordo com a Naturalidade, aceitando e respeitando a Natureza Originária (性–xìng) de todo processo dinâmico da realidade.
Nesse sentido, somos confrontados com uma questão importantíssima no contexto atual: como podemos nos desapegar dos hábitos, condicionamentos, crenças e ideias limitantes? O problema não está na experiência aprazível como quando reconhecemos que o belo é belo, mas sim no apego, no condicionamento do ato de dizer que algo é belo e assim ficarmos enredados na busca excessiva da satisfação. Fica aqui uma sugestão de questionamento: seria possível agirmos sem nos apegarmos e nos identificarmos com um dos extremos dessa visão dualística? Como seria agirmos em estado de liberdade e autenticidade? Esse é um desafio que cada um poderá enfrentar, examinando e refletindo sobre a sua própria conduta. A partir das observações de Liezi e Laozi, percebe-se o quanto ainda é atual o pensamento taoísta no sentido de ampliar as possibilidades de nossa escolha no campo existencial. É um saber tão fundamental quanto outros que existem no mundo, tão precioso que contribui para a expansão de nossa consciência.
[1] Liezi, Vazio Perfeito, tradução de Chiu Yi Chih. São Paulo: Editora Mantra, 2020, cap.225.
[2] Laozi, Dao De Jing, tradução de Chiu Yi Chih. São Paulo: Editora Mantra, 2017, p.11.
[3] Idem, p.11.
[4] Laozi, A sabedoria de Dao De Jing / Daodejingdezhihui 道德经的智慧 (com comentários dos comentadores clássicos chineses Wang Bi e Su Zhe – traduzido por Huang Xian Sheng). Beijing: Xinshijiechuban, 2016, p.7.
[5] Wang Bi e Su Zhe, p.7-8.
[6] Ying, Chen Gu (陳鼓應). Laozi zhushijipingjieunzibinfa 老子注釋及評介 (Laozi com tradução, comentários e notas). Beijing: ZhongHuaShuju, 2012, p.65.