A Potência de ser solidário
É de uma necessidade ontológica que construímos a questão desse breve artigo: afinal, é possível ser potente sem ser solidário? Lendo Spinoza diremos que não, já que o homem precisa do homem para viver socialmente mais forte. Mas o que é a potência do homem na obra de Spinoza? Sua essência singular posta como um grau de intensidade que existe em ato e que garante ao ser humano sua perseverança no ser. Na verdade, tal essência é um grau de potência que é parte intensiva da potência infinita de Deus. Se a essência de Deus – definido como ente absolutamente infinito, isto é, uma substância única que é causa da sua própria existência e que consta de infinitos atributos – é uma potência infinita de existir, de agir e pensar que existe em ato; pois Deus existe produzindo e pensando infinitas coisas de infinitas maneiras; no ser humano ela se compreende como um grau de potência de existir e de agir, sendo, igualmente, uma potência de pensar inerente à mente concebida como a ideia do corpo. Assim, a essência do indivíduo como uma coisa singular é, a um só tempo, um grau de potência que age e pensa segundo determinações experimentais e modos de vidas a elas correlatos.
Aqui, enfatizamos a diferença fundamental entre a potência infinita de Deus e os graus de potência dos seres humanos: em Deus a potência de existir, de agir e de pensar se determina pela produção real de infinitos modos em uma infinidade de maneiras, pois Deus – como um ente absoluto e imanente – é sempre ativo e produtivo; no homem – que é um modo da substância divina -, seu grau de potência que existe em ato – uma vez que ele é parte da potência infinita de Deus -, pode aumentar ao longo da sua existência, retirando-o de uma certa passividade na qual ele se encontra quando nasce. É que Deus como um ente absolutamente infinito é definido por Spinoza com um ser que produz por necessidade exclusiva da sua própria potência, isto é, da sua própria natureza uma infinidade de modos. Neste sentido, o Deus potência de Spinoza age por necessidade da sua própria natureza, já que a sua essência envolve necessariamente sua existência potente. Nestes termos, sendo causa de si e de tudo o que produz, sua ação deve ser considerada livre. Já no homem – cujo modo de ser é finito – a potência de agir e de pensar nem sempre se exerce plenamente. Ao se encontrar, de início, separado formalmente daquilo que pode, ele não vem à existência como um ser livre, pois se encontra, no acaso dos encontros, regido pela força dos afetos passivos.
Nesse caso, para aumentar a sua potência e se apropriar formalmente daquilo que ele pode, o homem precisa se esforçar para fazer conexões com modos que aumentem o seu vetor de expansividade, ao ponto dele poder se tornar expressivo e ativo. Como dentre os modos existentes nenhum convém mais ao homem do que um outro homem; um aumento de potência pode ocorrer se ele for capaz de se conectar com outros seres humanos pelo viés da solidariedade.
De imediato, duas coisas devem ser perguntadas: como essa potência de agir e pensar pode aumentar ao longo da existência humana? Não haveriam formas de vínculos sociais entre os homens que pudessem favorecer o seu aumento? Primeiramente, ela pode aumentar se houver esforço para fazer bons encontros pautados nos afetos passivos de alegria; em seguida, se houver composição de relações segundo o lema de uma solidariedade racional, e, finalmente, se houver uma compreensão da essência singular de cada homem, que torne possível uma solidariedade entre coisa singulares. Nesse caso, haveriam três formas de vínculos entre os homens favoráveis ao aumento social de potência: há o vínculo passivo entre homens solidários que fazem bons encontros; há o vínculo racional entre aqueles que se unem ativamente pela compreensão da razão e há, enfim, o vínculo ativo entre homens livres que se conectam entre si cientes das suas essências singulares. Essas três maneiras de se vincular definem três modos de ser solidários.
Por outro lado, cumpre acrescentar que a saúde de uma sociedade expressa a forma de solidariedade que predomina entre os homens. Existindo três maneiras de serem solidários, talvez seja possível precisar neste texto três estados sociais constituídos por vínculos de alegria que funcionem como analisadores da configuração de três modos de vida. Sendo assim, uma cidade potente expressa os laços solidários existentes entre as potências dos seus indivíduos.
Aqui três tarefas devem ser explicitadas ao longo do texto para consolidar a nossa argumentação: 1) que a condição da potência humana seja devidamente esclarecida e explicada ao longo do texto; 2) que o esforço dos seres humanos para eliminarem os encontros que produzem paixões tristes seja enaltecido como um justificador da solidariedade; 3) e que na alegria conquistada pelos bons encontros seja forjada a ocasião para argumentarmos três maneiras de sermos solidários justificadas por três gêneros de conhecimento correlatos a três modos de vida.
De imediato, delineia-se o problema que motivará a consecução das três tarefas: será que as três maneiras de sermos solidários ao coincidirem com os três modos de vida que iremos apresentar não irão caracterizar três gêneros de solidariedade? Nestes termos, a solidariedade torna-se um vetor plausível para a compreensão de um aumento real de potência, tornando-se a guia de uma argumentação ontológica. Iremos analisar a solidariedade de três maneiras segundo o modo de existência de quem a experimenta; pois se existem três gêneros de conhecimento – por intermédio dos quais conhecemos as coisas segundo uma determinada ordem – é preciso que a cada um corresponda um modo de vida solidário concomitante a uma forma de se relacionar socialmente.
Ocorre, entretanto, que no primeiro gênero do conhecimento é possível distinguir dois modos de vida passivos que terão importância capital para uma plena compreensão da nossa argumentação: há o modo de vida entristecido que configura um homem que não cuida dos seus encontros, havendo o modo daquele que se esforça para organizar os encontros e criar as condições experimentais da racionalidade. No primeiro, reina a insensatez determinada pelos afetos de tristeza e ódio; no segundo, pode existir uma predominância de afetos alegres que justifique a existência de uma solidariedade passiva como condição ocasional da nossa argumentação.
Enfim, caso existam “três modos de vidas solidários”, a cada um deverá corresponder um gênero de conhecimento condizente com uma ordem da natureza que apresentaremos resumidamente agora para analisar depois com um cuidado maior.
- Existe, em primeiro lugar, o modo de vida solidário daquele que se esforça para organizar os seus encontros se valendo do conhecimento inadequado de uma imaginação que conhece os efeitos resultantes de vínculos fortuitos e triviais. Com tal maneira de viver o homem só possui um conhecimento resultante de uma ordem dos encontros, onde nela ele só conhece os efeitos resultantes de tais encontros levando um modo de vida passivo.
- Existe, igualmente, um modo de vida solidário inseparável do homem que conhece, pela razão, as relações causais de composição dos modos existentes. Nesse nível, o ser humano compreende a ordem das relações causais que explicam as composições dos corpos e as formas como tais corpos podem se compor, levando um modo de vida já ativo e expressivo.
- E, existe, finalmente, o modo de vida expressivo daquele que detém a ciência intuitiva que permite o conhecimento das essências singulares, da sua respectiva ordem e da maneira mais potente de afirmar uma solidariedade duradoura. Aqui ele conhece a ordem das essências singulares, conhecendo, igualmente, a sua essência, como um grau de potência que é parte intensiva da infinita potência de Deus.
A passagem de um modo de vida a outro configura o vetor da solidariedade como um aumento real de potência. Com ele, torna-se possível ascender do conhecimento pela imaginação à intuição, passando, evidentemente, pela razão. Assim, veremos como pela seleção dos bons encontros podemos encontrar a ocasião de uma compreensão racional das relações, atingindo no ápice a intuição da essência como a condição primorosa de uma solidariedade na diferença. Dito isso, convém explicitar a nossa primeira tarefa preliminar definindo detalhadamente o conceito de potência.
1 – A Potência de Deus e dos modos finitos
De acordo com a definição 6, da parte 1 da Ética, “Deus é um ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consta de infinitos atributos, onde cada um deles expressa uma essência eterna e infinita”. Desdobrando esta definição percebemos, de imediato, que o Deus de Spinoza – a natura naturante – é um ente absoluto que possui por essência uma potência infinita de existir e de agir que se expressa por intermédio de todos os seus atributos; e uma potência de pensar que se expressa especificamente por intermédio do atributo pensamento. Como os atributos são iguais e a essência expressa por eles é a potência de um ser ontologicamente uno; devemos concluir que Deus pensa tal como age, pois pensar e agir são atividades da essência deste ente que produz infinitas coisas de infinitas maneiras.
Com essa definição de Deus percebemos claramente que Spinoza se distancia da ideia de um ser Divino todo poderoso concebido como um tirano ou como legislador esclarecido. O Deus de Spinoza não tem poder (potestas) não se comportando nem como um juiz que cria o mundo através de ideias contidas no seu entendimento; nem como um tirano que cria o mundo por deliberação da sua vontade ilimitada. A vontade e o entendimento no vocabulário de Spinoza são modos pelos quais a potência de Deus pode se exprimir. Em compensação Deus é, em essência, uma potência ativa que existe em ato e produz todas as coisas existentes na natureza. Por essa essência, Deus é causa de todas as coisas que se seguem necessariamente da sua natureza e causa de si mesmo; já que a sua essência envolve necessariamente a sua existência.
Mas como podemos explicar essa identidade da potência e do ato? A ideia de uma potência ativa não nos remeteria a uma concepção produtiva de uma natureza eterna e imanente a si mesma? Nesse caso, O Deus natureza de Spinoza – o ser absoluto – produziria por necessidade da sua potência todos os modos existentes que preenchem o seu poder de ser afetado. A esse respeito Deleuze tem razão quando diz,
Toda potência é ato, ativa, e em ato. A identidade da potência e do ato explica-se pelo seguinte toda potência é inseparável de um poder de ser afetado, e esse poder de ser afetado encontra-se constante e necessariamente preenchido por afecções que o efetuam. A palavra potestas readquire aqui um sentido legitimo: “ O que esta no poder de Deus (in potestare) deve estar compreendido de tal maneira na sua essência que dela se siga necessariamente “ (I,35). Ou seja: à potência como essência corresponde uma potestas como poder de ser afetado, poder que é preenchido pelas afecções ou modos que Deus produz necessariamente. Deus não podendo padecer, mas sendo causa ativa dessas afecções ( DELEUZE, 2002, p. 103)
Em Deus a potência é dupla: é, por um lado, potência absoluta de existir, pela qual Deus produz todas as coisas; e potência absoluta de pensar, que compreende a si e a todas as coisas que podem ser compreendidas por ela. Ou seja, Deus produz por necessidade da sua própria natureza, e tudo que ele produz e compreende deve, igualmente, ser visto como necessário.
Quando passamos da definição do ser necessário para a definição dos modos, encontramos nos seres humanos uma explicação da sua individualidade que supõe a existência de uma essência singular. Ocorre que, no humano, a essência singular deve ser compreendida como um grau de potência que possui um limite e faz parte da potência infinita de Deus. Como diz Spinoza “ a potência do homem, enquanto se explica pela sua essência atual, é uma parte da potência infinita de Deus ou da Natureza” ( IV, 4 ) .
Quando o modo começa a existir – e isto acontece quando uma infinidade de partes extensivas são determinadas do exterior a entrar sob a relação que corresponde à sua essência – o seu grau de potência é determinado como conatus ou apetite; e ele tende a perseverar na existência, procurando renovar as partes que lhe pertencem sob a sua relação. Nessa instância, uma aptidão para ser afetado passa a corresponder à sua essência, sendo essa sempre preenchida por afecções e afetos. Ou seja, o grau de potência do homem e o seu poder de ser afetado entram em variação segundo as afecções e os afetos que podem preenchê-lo a cada momento. Ocorre que, no homem, tais afecções e afetos nem sempre são ativos como no caso de Deus. Por isso, a potência do homem pode aumentar ou diminuir segundo a natureza das afecções ou dos afetos que irão preenchê-lo. E aqui os modos de existência com os seus respectivos gêneros de conhecimento, que descreveremos detalhadamente no item seguinte, podem ser já assinalados.
Em Spinoza as primeiras afecções e afetos que o homem experimenta são ideias inadequadas e paixões. Tudo se passa como se ele ao nascer estivesse formalmente separado daquilo que ele pode. Nessa circunstância o homem é passivo e conhece as coisas de uma maneira inadequada, sendo acometido por paixões que mobilizam o desejo – visto aqui como um apetite acrescido de consciência – por intermédio de encontros fortuitos que ele pode se esforçar para organizar. Ao tratar dos afetos passivos primários do ser humano, Spinoza distingue dois principais que se encontram situados ao lado do desejo: a alegria e a tristeza. Ao pensar o desejo como a essência do homem, Spinoza define a alegria como o afeto que faz com que o grau de potência passe de uma perfeição menor para uma maior; sendo a tristeza aquele que faz com que a potência passe de uma perfeição maior para uma menor. Nesse caso, a tristeza é desvalorizada porque deixa o homem constrangido e mobilizado por afetos que irão indispô-lo contra o seu semelhante. Mas quando dos encontros existe a experiência da alegria passiva, dá-se então a ocasião de uma conexão entre os corpos e ocorre um aumento real das potências por intermédio de um bom encontro. Assim, os bons encontros ou os encontros de alegria unem os homens, tornando-os solidários e mais potentes. Caso eles se esforcem para organizar esses encontros, estarão, com certeza, apostando cada vez mais em uma prática de solidariedade, que pode crescer em potência segundo o nível de conhecimento que o humano pode atingir. Aqui, é o esforço para ser solidário que configura o vetor dos graus que sustentaremos mais adiante.
Entretanto, não nos parece óbvio que o esforço para se tornar solidário seja fato trivial. Afinal, os graus de solidariedade que se configuram pelo vetor de composição tido como a condição do aumento real de potência, exigem que o homem evite de uma forma prudente o acaso fortuito dos encontros que podem favorecer a existência de um modo de vida passivo e insensato. Sendo assim, os graus de solidariedade vão exigir de nós uma breve tipificação dos modos de existência que sustentam a nossa argumentação ontológica. Vejamos detalhadamente como isso se procede.
Os três graus de solidariedade e os gêneros de conhecimento
Ao reafirmarmos que existem três gêneros do conhecimento em Spinoza, e que em cada um deles o ser humano experimenta um aumento real de potência, podemos justificar que a passagem de um gênero ao outro engendra um grau de solidariedade cada vez mais fundamentado no campo ontológico. Dito assim, procuraremos nesse item confirmar que a solidariedade pode ser vivida de três maneiras cognitivas: através da imaginação, da razão e da intuição postos como três gêneros do conhecimento. Vejamos o que Spinoza nos informa a esse respeito: no escólio 2 que sucede a proposição 40 da segunda parte da Ética que trata da Natureza e origem da mente, Spinoza comenta os seus três gêneros de conhecimento,
…De tudo o que foi anteriormente dito conclui-se claramente que percebemos muitas coisas e formamos noções universais: 1. A partir de coisas singulares, que os sentidos representam mutilada, confusamente, e sem a ordem própria do intelecto …. Por isso, passei a chamar essas percepções de conhecimento originado da experiência errática. 2. A partir dos signos: por exemplo, por ter ouvido ou lido certas palavras, nós nos recordamos das coisas e delas formamos ideias semelhantes àquelas por meio das quais imaginamos as coisas…Vou me referir… a esses dois modos de considerar as coisas, como conhecimento de primeiro gênero, opinião ou imaginação. 3. Por termos, finalmente noções comuns e ideias adequadas das propriedades das coisas … A este modo me referirei como razão e conhecimento do segundo gênero. Alem desses dois gêneros de conhecimento, existe ainda um terceiro, como mostrarei a seguir, que chamaremos de ciência intuitiva. Este gênero de conhecimento parte da ideia adequada da essência formal de certos atributos de Deus para chegar ao conhecimento adequado da essência formal das coisas. (SPINOZA, Ética, pgs 133-135)
Com a definição dos três gêneros apresentada pelo filósofo convêm passar à analise da nossa argumentação. Assim, na imaginação, a solidariedade do homem passa a predominar quando ele se esforça para eliminar os maus encontros. Nesse nível, ela consiste precisamente no desejo de eliminar as paixões tristes, conservando as alegres. Trata-se de uma solidariedade resultante do desejo de vencer o medo pela via da união alcançada nos encontros. Como tais encontros são inconstantes, e os interesses dos indivíduos podem mudar, o esforço para a manutenção dos bons encontros deve ser rigorosamente enaltecido como um desejo de organização da vida afetiva. A eliminação dos afetos de tristeza e a manutenção das alegrias passivas, configura, nesse nível uma valoração da solidariedade entre os homens. Assim, quando o homem se esforça para ser solidário, ele torna possível um incremento de potência que é a condição da gênese de um outro gênero de conhecimento. Ao imaginar coisas que favoreçam a produção do conhecimento, ele busca exercer a sua potência para se tornar racional.
Uma vez na razão ele toma conhecimento das causas dos encontros que faz e busca agir pelo entendimento das relações de composições que o une aos outros seres humanos. Ou seja, ele conhece as coisas por intermédio das noções comuns que representam as relações causais que favorecem a composição dos modos. Ao saber das relações comuns entre os corpos, ele aprende a agir com o conhecimento da causa.; e ao agir esse modo ele se torna ativo e causa adequada daquilo que ele mesmo faz. Além disso, o homem determinado pela razão experimenta afetos ativos de alegria pelo vetor de uma solidariedade mais potente, onde nela ele entende que ser solidário é indispensável para aumentar a sua potência. Aqui, o critério da utilidade é acrescido do entendimento das causas e o homem ao agir com conhecimento causal passa a desejar pela manutenção da solidariedade. Nesse nível, ser solidário é uma necessidade.
Na intuição, enfim, ele conhece sua essência singular, se apossando da sua potência de agir e pensar. Ao conhecê-la – sabendo que ela é parte intensa da potência infinita da natureza -, ele passa a buscar uma conveniência maior com as essências dos outros seres humanos, segundo uma ordem intensiva presidida por afetos ativos de alegria que o torna um ser mais solidário. Nesse gênero ele experimenta afetos ativos e constantes de alegria inseparáveis das ideias adequadas das essências singulares. Ser solidário nesse nível é ser singularmente potente, podendo à distancia admirar a potência singular do outro como uma diferença. Ou seja, a solidariedade no terceiro gênero é uma composição de essências singulares que se afirmam como diferenças experimentando afetos intensos e duradouros de alegria
Ora, pode parecer simples dizer que a compreensão adequada das relações e das essências que produzem afetos de alegria ativos seja alcançável por intermédio de um combate travado contra os afetos promotores de tristeza. Mas com Spinoza é assim que o vetor de uma ética da solidariedade ganha seu estatuto ontológico e a sua fundamentação política.
Dito isso, resta justificarmos detalhadamente o seu estatuto ontológico para confirmarmos, finalmente, que os três tipos de solidariedade são sustentáveis na nossa argumentação. Para tal justificativa convém analisar agora como a solidariedade pode ser definida em cada gênero do conhecimento.
A – A solidariedade como esforço de organização dos encontros no primeiro gênero do conhecimento
As teses capitais de Spinoza que constroem a argumentação deste artigo dizem que o homem é um ser singular composto por relações entre corpos simples que se repetem com uma certa regularidade; e que pela relação dominante desse composto se exprime um grau de potência que é, a um só tempo, potência de existir e de agir – referida a individualidade como um todo – e potência de pensar para a mente desse indivíduo. Segundo a primeira tese, Spinoza diz que nós somos coisas singulares compostas por inúmeras partes constituídas por relações de movimento, repouso, velocidade e lentidão entre partículas; de acordo com a segunda, existe em nós uma relação dominante por onde se expressa a nossa essência como um grau de potência inseparável de um poder de ser afetado sempre preenchido por afetos e afecções. Ou seja, somos uma multiplicidade de relações cinemáticas inseparável de um grau de potência que na existência fica sempre preenchido por afetos e afecções.
Entretanto, isto que o homem é – multidão de relações entre partículas e grau intensivo de potência – de início ele não conhece; pois vive na infância e na opinião regido por um conhecimento inadequado dos encontros aleatórios que ele faz segundo uma ordem ditada na cidade.
Ao pensarmos assim, devemos dizer que na cidade o homem se relaciona, primeiramente, com um outro homem mediado por afetos que ora aumentam e ora diminuem a sua potência de existir, de agir e pensar. De acordo com o primeiro vetor, ele experimenta alegria quando faz um bom encontro com um outro ser humano; já na direção contrária ele experimenta a tristeza. Entretanto, no âmbito casual dos encontros, os seres humanos podem ser movidos por paixões variáveis, flutuações de ânimos, ambigüidades afetivas, inconstâncias de temperamento e signos os mais variados que circulam no campo social. Por não cuidarem dos encontros que fazem, não sabendo, igualmente, a causa dos encontros que eles experimentam, eles podem viver em uma inconstância afetiva de uma forma desastrosa, pois se vêem lançados em acasos fortuitos e sujeitos a signos das mais variadas espécies. Se pensarmos os signos como efeitos dos encontros que fazemos com os outros seres humanos, podemos, inicialmente, distinguir os signos escalares – como aqueles que indicam mais um estado da nossa mente do que a natureza do corpo conhecido- e os signos vetoriais, também denominados de afetos passivos ou paixões. Os signos escalares são afecções, sensações ou percepções; os signos vetoriais são variações continuas de potência que ora aumentam, ora diminuem a nossa potência. De acordo com Gilles Deleuze a situação é um pouco mais complexa pois existem um número variável de signos escalares.
Os signos escalares dividem-se em quatro tipos principais: os primeiros, efeitos físicos sensoriais ou perceptivos, envolvem tão-somente a natureza a natureza de sua causa, são essencialmente indicativos e indicam nossa própria natureza mais do que outra coisa. Em segundo lugar, nossa natureza, sendo finita, retém daquilo que a afeta somente tal ou qual característica selecionada ( o homem animal vertical, ou racional, ou que ri). Esses signos são abstrativos. Em terceiro lugar, sendo o signo sempre efeito, tomamos o efeito por um fim, ou a ideia do efeito pela causa ( visto que o sol esquenta, acreditamos que ele é feito para nos esquentar; já que o fruto tem um gosto amargo, Adão acredita que ele não “deveria” ser comido). Nesse caso, trata-se de efeitos morais, ou de signos imperativos… Os últimos signos escalares, por fim, são efeitos imaginários: nossas sensações e percepções nos fazem pensar em seres supra-sensíveis, e, inversamente, nós nos figuramos esses seres à imagem desmesuradamente aumentada daquilo que nos afeta ( Deus como sol infinito, ou então como Príncipe ou legislador). São signos hermenêuticos ou interpretativos. ( DELEUZE, p. 157, 1997)
Cabe lembrar que a situação do homem no primeiro gênero, quando não se esforça para compreender a causa das coisas que ele faz, é a de um ser regido por tais signos e lançado na cidade como um ser passivo, apaixonado e inconstante. Ora, tal circunstância corrobora uma tese cuja conseqüência ética e política deveremos agora enfatizar: o homem não nasce livre, pois não se encontra em plena posse da sua potência de agir e pensar, e cresce, circunstancialmente, utilizando o esforço da sua imaginação para agir segundo as determinações das forças dos afetos que são sempre passivos em uma certa situação social .Nessa circunstancia ele vive no acaso dos encontros e se mostra, na cidade, como um ser incapaz de governar a si mesmo por causa da oscilação das suas opiniões e da inconstância da suas variações afetivas.
Ora, um homem vivendo dessa maneira tipifica um modo de vida baixo, cujo grau de potência é reduzido, pois se encontra preenchido, com mais freqüência, por afetos de tristeza e ideias inadequadas que mobilizam a imaginação para o ódio, gerando um desejo de destruição. Quem vive assim é insensato e persevera no ser determinado pela força dos afetos passivos de tristeza e pela oscilação midiática dos signos que condicionam um desejo de destruir. Trata-se, na verdade, de um modo de vida impotente, pois nele não verificamos a existência de uma prudência indispensável para eliminar os maus encontros.
Ora, é aqui que a diferença entre o prudente que procura organizar os seus encontros e o insensato que vive no acaso dos encontros, pode ser melhor fundamentada: embora ambos sejam passivos, o insensato mostra-se mais impotente na cidade na medida em que vive subjugado aos afetos passivos produzidos pela opinião; já o prudente, do primeiro irá se distinguir por se esforçar para cuidar dos seus encontros avaliando e selecionando os seus afetos para viver, predominantemente, na alegria. Sendo assim, é o esforço para organizar os encontros e eliminar aqueles que causam tristeza que justifica o contexto político de uma solidariedade sustentada nessa argumentação. Mas como podemos explicar esse esforço ? Passando em revista os malefícios políticos do homem imprudente.
É que quando Spinoza denuncia as paixões tristes, dizendo que elas são inseparáveis de maus encontros que diminuem a nossa potência de agir; e que nelas sofremos constrangimentos que decompõem o preenchimento das relações constituintes do nosso ser; ele trata, igualmente, de denunciar os poderes que se exercem na cidade pelo domínio do homem entristecido. Sendo assim, um homem entristecido que não se esforça para organizar os seus encontros leva um modo de vida com pouca potência, pois vive constrangido na cidade por afetos de tristeza e pelos malefícios dos maus encontros regulamentados pelos poderes do estado e da religião que administram as suas paixões tristes, para garantir um domínio pela oferta programada de um conhecimento que visa suscitar esperanças. Nesse caso, as relações de poder existentes promovem tristeza e insegurança causando o medo e a vulnerabilidade entre os homens; para manipulá-los por ofertas de uma vida melhor , suscitando um afeto passivo de esperança. Os poderes se exercem criando o apanágio de uma segurança inseparável de uma esperança construída sobre a inadequação da imaginação. Um homem ignorante das causas é facilmente manipulável pelo “ouvir dizer” promovido pelas mídias que trabalham a serviço dos poderes vigentes que se exercem dosando o medo pela oferta insidiosa de esperança.
Nesse caso, para sair dessa circunstância, não há outra possibilidade senão aquela que exige que ele se esforce para organizar os seus encontros e se aproprie, por intermédio desse esforço, das condições reais de uma solidariedade mais potente. E isto em Spinoza significa seguir o vetor da alegria passiva, procurando se esforçar para eliminar todos os maus encontros de tristeza. Pois é só na alegria, mesmo passiva, que existe composição de relações e aumento real de potência. Como na cidade, o homem só convém ao homem quando faz encontros promotores de alegria, é no vetor das relações solidárias que ele pode aumentar ontologicamente a sua potência e ganhar condições de ter uma compreensão adequada de si através da sua razão e da sua intuição.
Assim, a potência de ser solidário se justifica parcialmente no desejo de fazer bons encontros, combatendo os encontros de tristeza e os poderes que se constroem na lógica perversa de administração da tristeza. Junto com os homens entristecidos, Spinoza denuncia os tiranos, os sacerdotes e todos aqueles que vivem usufruindo da tristeza da humanidade para orquestrarem os seus governos. Diz, primeiramente, que a solidariedade é o meio promotor de um aumento real de potência conquistado por afetos passivos de alegria; diz também que ao procurarmos ser solidários estamos efetivamente evitando os afetos de tristeza pela organização cotidiana dos nossos encontros; e diz ,enfim, que essa é a condição de um entendimento racional que pode ocasionar uma compreensão ontológica da solidariedade que a torne necessária.
Isso deve significar que a solidariedade é, primeiramente, a condição de um cidadão que busca consolidar o seu aumento real de potência, procurando fazer composições com os seus semelhantes. Entretanto, na ordem dos encontros ele ainda não possui a condição necessária de ser solidário, e age movido pelo desejo de vencer aquilo que o deixa vulnerável. Nesse nível ele é solidário por imaginar aquilo que garante o seu desejo de perseverança, mas não possui o conhecimento da causa de tal desejo. Ele age movido por afetos passivos e procura, com esforço, eliminar os encontros de tristeza que o tornam constrangido. Enfim, a solidariedade, no primeiro gênero, consiste precisamente no desejo de vencer o medo pelo esforço de estabilização dos bons encontros.
Mas quando o homem se esforça para organizar os seus encontros notamos também aí uma diferença fundamental na sua inserção social. Tal homem já se coloca na cidade menos vulnerável às ofertas efêmeras dos meios promotores de opiniões, pois se mostra mais prudente na organização dos seus encontros sociais. Por outro lado, ele promove para a potência da cidade um incremento de saúde através de vínculos solidários que tendem para uma menor dependência dos poderes que se asseguram na manutenção da tristeza. Quando os homens são solidários a cidade se torna mais saudável e afetivamente mais alegre.
Ora, é de tal esforço que a ocasião forjada para o advento da razão é construída. Sendo assim, a razão do ponto de vista da sua gênese – já que em Spinoza o homem não nasce racional – surge do esforço empreendido pela imaginação. Existe, de fato, um esforço a mais, pois a gênese formal da razão é concomitante a uma apropriação maior da nossa potência que nos coloca na existência já ativos e expressivos, por termos um conhecimento da causa daquilo que nos estrutura e do que precisamos conhecer para desenvolvermos vínculos solidários mais constantes.
A solidariedade na ordem racional das relações causais
Sendo assim, quando o homem compreende pela razão que fazer composições de relações é a condição real do seu exercício expressivo de potência; ele passa a querer ser mais solidário e mais potente pela via de uma compreensão adequada. No domínio da razão a solidariedade passa a ser a condição efetiva de uma cidade mais potente com indivíduos mais alegres. Além disso, ao compreender adequadamente que sua composição racional com outro ser humano produz nele uma alegria ativa nascida do seu entendimento; ele conquista, enfim, a certeza ontológica de que a busca da solidariedade coincide com a expressão da sua potência e que isto é, na realidade, um exercício ético de liberdade que ele pode expressar na cidade. Nessa circunstância, ser solidário é ter a sabedoria das relações e buscar compreender, por meios racionais, as “noções comuns” aos vários indivíduos humanos; para construir uma sociedade mais potente, solidária e alegre.
Mas o que são as noções comuns? São as ideias adequadas do segundo gênero. Por intermédio delas compreendemos as causas das coisas que fazemos e aprendemos a agir com tal conhecimento. Ao compreendermos tais causas nos tornamos ativos e expressivos por experimentarmos afetos ativos de alegrias. É que a razão em Spinoza dá ao homem um conhecimento adequado das relações de composição do seu modo de ser e confere, a ele, a capacidade de se unir aos outros seres segundo uma compreensão causal das relações. Nesse sentido, as noções são ditas comuns porque podem ser atribuídas a vários corpos, e constatam, naquilo que elas elucidam, que existem relações comuns entre os modos, segundo as quais eles podem se compor de uma forma mais potente. Dito assim, as ideias adequadas da razão vão dar ao homem um conhecimento da ordem das relações de composição entre os modos, dando igualmente, a ele, condição efetiva de viver de uma forma mais solidária. Ao conhecer as causas eles passam a ter uma sabedoria da ordem das relações constituintes dos modos compostos, ultrapassando o conhecimento fortuito dos efeitos que o condicionava a viver na ordem dos encontros devidamente selecionada. Assim, ao agir com conhecimento de causa o homem passa a ser causa adequada daquilo que ele faz e se torna, como queremos demonstrar, mais solidário na cidade. Dito isso, talvez seja a ocasião de sabermos com um maior detalhamento a concepção de noção comum e a sua função na ordem da solidariedade.
Diremos, em primeiro lugar, que as noções comuns representam algo de comum aos corpos e que podem variar no seu grau de generalidade. Elas “são mais ou menos gerais segundo a extensão dos corpos que estivermos avaliando” ( Espinosa, 2003, cap. 7). Sendo assim, todos os corpos apresentam relações comuns nas suas estruturas que devem explicar o modo de constituição da sua individualidade. Em segundo lugar, um corpo só se compõe com um outro corpo por intermédio da comunidade das suas respectivas conexões. Conexões afins entre corpos podem compor um corpo mais potente e mais consistente. Aqui, a composição de coisas singulares forma um corpo mais potente que exprime o desejo de tornar comum uma conexão entre potências que funcionam no âmbito prescrito pela solidariedade. Enfim, a função de tais noções é tornar comum um tecido social construído por composições reais de relações produtoras de afetos de alegria. E aqui justificamos a solidariedade no segundo gênero: ao entrarmos na razão nosso esforço por tornar comum as relações de composições entre os corpos condiz com um gênero de conhecimento cuja lógica justifica uma solidariedade racional. Nela, fazer conexões com outros homens exprime o desejo de aumentar a potencia pela via de um conhecimento que faz da composição do comum uma necessidade.Mas como poderíamos precisar este movimento? Vejamos o que Gilles Deleuze tem a nos informar sobre isto, estabelecendo algumas premissas sobre a natureza dos corpos. Talvez assim compreendamos melhor a função das noções comuns.
Cada corpo existente caracteriza-se por certa relação de movimento e de repouso. Quando as relações que correspondem a dois corpos se compõem, os dois corpos formam um conjunto de potência superior… Numa palavra, noção comum é a representação de uma composição entre dois ou vários corpos, e de uma unidade dessa composição. O seu sentido é mais biológico que matemático; ela exprime as relações de conveniência ou de composição dos corpos existentes.” (DELEUZE, pgs. 98-99, 2002)
Ora, com tal explicação podemos dizer que as primeiras comuns que nós formamos são as menos gerais, e que elas se formam pelo exercício de potência favorecido pelo esforço de conservação dos bons encontros. Nesse caso, somente a alegria-paixão pode oferecer a causa ocasional para que o homem se torne razoável. Jamais a tristeza nos conduziria a uma noção comum. Ao eliminar a tristeza, pela promoção de bons encontros, o homem cria a ocasião para se tornar racional. Mas criar a ocasião e efetuá-la são duas coisas solidárias, porém distintas: sendo assim, não basta acumular bons encontros. É preciso se esforçar para entrar em plena posse da sua potência de entendimento, ultrapassando os limites ofertados pela imaginação. O homem só se torna racional ao se esforçar para compreender o comum e viver no comum a condição real do seu aumento de potência pela composição solidária de suas relações.
Agindo com conhecimento de causa, o homem racional busca relações solidárias para implementar na cidade um incremento real de afetos alegres, ativos e potentes. Descobre, nesse intermezzo, que uma cidade mais potente é aquela que expressa alegrias resultantes de um agenciamento solidário de seres ativos em trabalho de cooperação. Se nesse nível de entendimento ele for conduzido a intuição da sua potência, talvez ele tenha aí atingido a compreensão imediata de que em essência ele é parte intensa da imensa potência da natureza. Ora, não devemos presumir que a solidariedade no seu grau mais elevado de potência é a condição de uma liberdade total conquistada pela certeza de que na natureza tudo convém com tudo quando compreendemos que o nosso grau de potência é parte intensiva da imensa potência da natureza? Sim, e isso exige de nós um maior detalhamento da solidariedade no terceiro gênero do conhecimento. Só assim a potência de ser solidário pode, enfim, ganhar a sua justificativa ontológica prenunciada no desejo racional de formar um todo comum
A potência de ser solidário no terceiro gênero do conhecimento
O conhecimento dos atributos de Deus como formas comuns garante ao homem o ingresso em um terceiro e último gênero de conhecimento. Nele, o ser humano passa a ter uma ideia adequada da sua própria essência e sente-se, curiosamente, no limite daquilo que pode ao experimentar uma alegria eterna e duradoura. Ao se conhecer como um grau de potência; ao ter a representação da sua essência como um individuo singular, ele experimenta afetos de alegria de terceiro gênero e passa a desejar de uma maneira mais potente e ativa. Ou seja, ele se torna ativo de uma outra maneira, uma vez que conhece nesta instância a sua essência singular. Sendo assim, existe uma diferenciação rigorosa entre os dois modos de vida ativos por nós analisados que definem os dois tipos de solidariedade aqui propostos. Mas como compreender essa diferença?
Dizendo, primeiramente, que no segundo gênero a solidariedade ainda depende de conveniências relativas, mais ou menos gerais, entre os modos existentes; enquanto no terceiro, a conveniência ocorre entre coisas particulares, onde cada essência convém com todas as outras. Dizendo, igualmente, que no segundo gênero a busca do comum ainda supõe um conhecimento parcial das conexões plausíveis entre as relações de movimento, repouso, velocidade e lentidão; enquanto no terceiro gênero entramos no conhecimento da nossa essência intensiva pela intuição de um conhecimento imediato da essência de Deus. Dizendo, enfim, que pela intuição da essência de Deus entramos na solidariedade intensiva cuja conseqüência exige, de nós, uma distinção final: afinal, ser solidário na imanência é ser um grau de potência inerente a uma multidão de diferenças, todas elas se expressando pelas formas comuns dos atributos de Deus. Aqui comum tornou-se sinônimo de unívoco, de um ser comum que se afirma em um único e mesmo sentido de tudo aquilo que difere.
Sendo assim, ao entendermos que a nossa essência é um grau de potência da infinita potência da natureza, passamos a ter um conhecimento adequado do que somos e, conseqüentemente, desejamos. E aqui entramos, finalmente, no terceiro gênero do conhecimento com o propósito de justificarmos o título que ensejou nossa argumentação. Nele, adquirimos o conhecimento da potência por intermédio de ideias adequadas formadas no nível daquilo que Spinoza chama de ciência intuitiva. Nesse grau extremado de conhecimento alcançamos o limite da nossa potência e experimentamos afetos de alegria do terceiro gênero. Tais afetos – também chamados ativos – são, não obstante, afetos que configuram um modo de vida diferenciado cuja solidariedade compete analisar.
Um homem ativo que alcança o terceiro gênero do conhecimento, mostra-se mais expressivo na existência tanto pela constância de temperamento, quanto pela potência de agir e pensar. Ele atinge o limite do que pode, compreendendo, nessa esfera, sua essência imanente e coexistente com as demais, buscando ser solidário com a essência de Deus intuído como principio imanente de uma natura naturante. Ao alcançar essa imanência absoluta, ela expressa sua existência singular sobre o plano da natureza e faz da sua capacidade de ser solidário uma necessidade ontológica.
Justificamos tal argumentação oferecendo, com um maior rigor, as três características principais das essências particulares: primeiramente, “elas são particulares e, por isso, irredutíveis uma às outras” (Deleuze, 2017, p. 340); por outro lado, “cada uma delas convêm com todas as outras; pois todas as essências se encontram compreendidas na produção de cada uma” (Deleuze, 2017, p. 340); enfim, elas são expressivas; já que ao exprimir o que ela é, exprime, igualmente, todas as outras no princípio da sua produção para, no limite, exprimir a Deus como princípio que contém todas as essências e da qual cada uma depende em particular. Nesse caso, a solidariedade se mostra em um nível de conveniência total, sem que a singularidade de cada essência seja anulada.
Na imanência absoluta do conhecimento, conquistamos o grau supremo da solidariedade e vivenciamos alegrias ativas do terceiro gênero estáveis e potentes. Nele, buscamos conhecer um número maior de coisas singulares e pautamos nossa existência em um desejo de perseverança já não abalado pela inconstância das paixões; nem pela inconveniência das relações. Alcançamos a expressão plena do conhecimento de nós como graus de potência e aprendemos, enfim, a buscar a conveniência total na imanência de Deus.
Para findarmos nossa argumentação, cumpre acrescentar que, no terceiro gênero do conhecimento, a solidariedade torna-se uma necessidade ontológica, apresentando-se como o vetor social e político de uma provável argumentação: afinal, é necessário construir um tecido potente para vivermos em uma sociedade expressiva e alegre; sendo tal exercício uma expressão intuitiva de uma essência particular afirmada e conhecida. Ou seja, a solidariedade no terceiro gênero é o limite do conhecimento da potência e da sua conveniência com todas potências pela afirmação de uma alegria eterna do terceiro gênero do conhecimento. No plano político, por mais utópica que possa ser essa consideração nossa final – afinal vivemos em um mundo repleto de conveniências relativas mediadas pelas regras estatais – inferimos com Espinosa um estado democrático considerado na via da sua plenitude solidária. Mas, afinal o que vem a ser nas nossas considerações finais da filosofia de Espinosa uma plenitude solidária? Uma democracia plena não mistificada pela concepção jurídica do Estado. Como diz Antonio Negri,
Pode-se dizer que Spinoza coloca o problema da democracia no terreno do materialismo, criticando então como mistificação toda concepção jurídica do Estado. A fundação materialista do constitucionalismo democrático se inscreve em Spinoza no problema da produção. O pensamento spinozista une a relação constituição-produção num nexo unitário. (…) No imanetismo spinozista, na concepção especificamente spinozista do político, democracia é uma política da multitudo. ( Negri, 1993, p. 24)
Ou seja, a potência de ser solidário se expressa na esfera política pela concepção de um ser descrito como produção material. A política da multitudo, o governo da multidão, a critica ao transcendentalismo estatal, fazem de Espinosa um pensador da potência contra o poder. Nessa solidariedade plena podemos situar Espinosa em uma tradição antijurídica, cuja concepção da constituição ontológica do ser irá se opor à via contratual que reina em Thomas Hobbes e em todos que defendem a mediação do Estado para a constituição da vida pública. Sendo assim, existe uma tensão política na filosofia de Espinosa que se estabelece no seio de um combate contra a construção burguesa da doutrina do Estado. Sendo verdadeira a tese de que a tensão exposta no “ Tratado Político” ao longo dos seus quatro capítulos iniciais ( Espinosa, 2009 ) deixa entrever os direitos de uma potência da multidão em confronto direto com os transcendentalismos estatais; podemos dizer que há, no espinosismo, uma filosofia política da potência em confronto direto com o poder.
Não entraremos na consideração detalhada desta tese democrática e antijurídica. Diremos, isso sim, para findarmos nossa argumentação, que a solidariedade plena é um possibilidade civil no estado atual das instituições democráticas, mas é, na nossa argumentação, uma necessidade ontológica na via lógica de uma afirmação plena de potência.
Referências Bibliográficas
DELEUZE, G. Espinosa e o Problema da Expressão. São Paulo: Ed: 34 Letras, 2017
_____________. Espinosa – Filosofia Prática. São Paulo: Ed: Escuta, 2002
_____________. Spinoza e as três éticas in Crítica e Clínica. São Paulo: Ed: 34 letras, 1997 .
SPINOZA, B. Ética. Edição Bilíngüe. São Paulo: Ed: Escuta, 2007
_____________. Tratado Teológico- Político. São Paulo: Ed: Martins Fontes, 2003
_____________. Tratado Político. São Paulo: Ed: Martins Fontes, 2009
NEGRI, A. A anomalia Selvagem – Poder e Potência em Spinoza. Rio de Janeiro: Ed: 34 Letras, 1993.