A Ética da Libertação de Enrique Dussel e o Bem Viver ameríndio: diálogos e provocações
Introdução
No dia 05 de novembro de 2023, Enrique Dussel se despediu desta existência deixando como legado obras que provocam uma profunda reflexão não apenas sobre as questões políticas da América Latina sob a ótica decolonial, mas também sobre aspectos internos do ser humano. Para repensar a existência a partir de parâmetros não capitalistas, não coloniais e mais fraternos, há que se transvalorar a presente ética (ou falta dela) para outra, inclusiva, diversa, ancestral. Esta reflexão coloca a obra “Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão”[1] do referido autor em diálogo com o conceito originário latinoamericano de Bem Viver, mapa conceitual e afetivo para guiança nestes tempos de colapso do capitalismo, propondo a partir de práticas ancestrais, novos horizontes de ação ética coletiva.
Os princípios do Bem Viver ameríndio têm servido para inúmeras comunidades tradicionais como orientação para um direcionamento político eficaz, pautado nas tradições de Abya Yala, bem como para uma incidência pública mais abrangente, pensada a partir não apenas dos corpos individuais mas também dos corpos sociais e do corpo da terra. Sendo assim, as colocações de Dussel na referida obra, por mais que esta tenha a distância cronológica de mais de três décadas, permanecem úteis a uma construção necessária de parâmetros não apenas decoloniais mas antipatriarcais e anticapitalistas tendo em vista que estes são comprovadamente sistemas predatórios de corpos e territórios.
A obra de Dussel que serviu de base conceitual para o presente artigo não se furta de apontar desafios e ações ainda inconclusas nas formulações de teóricos tanto do norte global quanto latinoamericanos. Diante disto, posiciono aqui as epistemologias e as cosmopráxis que têm sido vivenciadas a partir dos corpos e do locus de enunciação dos povos originários ameríndios que surgem com força política no atual cenário trazendo incômodos ao mesmo tempo que são como uma brisa de ar fresco, oxigenando a reflexão acerca de velhos e novos desafios. Em sua capilaridade de ação, estes incentivam a busca por alternativas de cooperação entre o conhecimento acadêmico e os saberes ancestrais, preservando na tradição oral de suas comunidades, epistemes latentes nas cosmopercepções originárias e transmitidas de maneira intergeracional.
Segundo o líder Yanomami Davi Kopenawa, é nossa responsabilidade evitar a “queda do céu”[2]. Dussel também sentia a urgência de novos horizontes e em seus escritos impulsionava-nos a subverter paradigmas rotos e éticas inúteis. Em suas próprias palavras,
a ética torna-se o último recurso de uma humanidade em perigo de extinção. Só a co-responsabilidade solidária, com validade intersubjetiva, partindo do critério de verdade vida-morte, talvez possa nos ajudar a sair com dignidade no tortuoso caminho sempre fronteiriço, como quem caminha qual equilibrista sobre a corda bamba, entre os abismos da cínica insensibilidade ética irresponsável para com as vitimas ou a paranóia fundamentalista necrofílica que leva a humanidade a um suicídio coletivo. (2000, p. 575)
Para que este “suicídio coletivo” não ocorra, a proposta dos povos originários é retornar aos princípios do Bem Viver, princípios estes que por milênios têm sido bússula ética servindo às comunidades ameríndias e que, nestes últimos anos tem se renovado a partir das vozes das mulheres e das contribuições das novas gerações em Retomada Ancestral (etnogênese). Que a árdua tarefa de decolonizar a academia e a vida seja atravessada por estas confluências[3] e que, ao reflorestarmos as mentes, assumamos compromisso com uma vivência holística, onde os corpos individuais, sociais e de nossa Pachamama, bioma que nos abriga, se entrelacem harmoniosamente na dança cósmica da vida.
1) A atualidade da Ética da Libertação de Enrique Dussel
A obra “Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão” do teólogo e filósofo argentino Enrique Dussel apresenta questões imprescindíveis para repensarmos nossa sociedade atual. Muito embora o livro tenha sido lançado na década de 1990, suas colocações seguem pertinentes. É muito significativo que ele tenha sido, como historiador do cristianismo, um dos fundadores da Comissão para o Estudo da História da Igreja na América Latina e Caribe (CEHILA) posto que não apenas em sua produção como filósofo mas também em sua reflexão teológica decolonial, os marginalizados de latinoamérica sempre ocuparam um lugar de especial atenção na formulação de suas análises e propostas.
A referida obra foi escolhida para embasar o presente diálogo com o conceito de Bem Viver, intimamente atrelado a relevância da cosmopercepção e da cosmopráxis dos povos ameríndios, devido ao fato de que, para Dussel, a escolha deliberada da Teologia da Libertação como lugar de enunciação e do “pobre” como locus não apenas social mas também hermenêutico, era uma decisão política imprescindível para estruturar uma nova categoria de interpretação da realidade civil e religiosa. Em sua escrita, ele apresenta questões incômodas dentro de uma “arquitetônica categorial” que se desenvolve
como um “processo” ético, a partir da realidade de um processo mundial de globalização excludente, o que exige que nos abeiremos de maneira crítica do pensamento de numerosos autores contemporâneos, os mais importantes para nosso argumento, deixando para obras futuras tanto os problemas de fundamentação dos princípios como o tratamento concreto das mais críticas frentes de libertação, da luta pelo reconhecimento de sujeitos sócio-históricos emergentes dentro da sociedade civil em cada país e dentro do horizonte planetário. (2000, p. 12)
Esses “sujeitos sócio-históricos emergentes” são o nosso ponto de partida para o diálogo neste texto, pois o que Dussel chama de ética utilitarista da “felicidade para as maiorias” (2000, p. 13) é tudo que pretendemos subverter ao trazer para o palco principal da reflexão a produção não acadêmica dos povos originários, tidos historicamente como marginalizados e alvo de sucessivas e inclementes ações epistemicidas. Interessa-nos que essas vozes sejam apreciadas como possuidoras de paridade epistemológica nesta troca de saberes, pois isto, além de qualificar o início de uma justa reparação histórica, abrirá portas para aprendizagens mais sólidas posto que entranhadas na memória cultural de nossa gente.
Desejo também precisar claramente que, quando me referir nesta obra ao “Outro”, sempre e exclusivamente me situarei no nível antropológico. É simplista demais pretender refutar a ética da libertação interpretando mal o tema do Outro como o de um mero problema não filosófico (teológico, por exemplo, para G. Vattimo ou Ofelia Schutte). O Outro será a/o outra/o mulher/homem: um ser humano, um sujeito ético, o rosto como epifania da corporalidade vivente humana; será um tema de significação exclusivamente racional, filosófico e antropológico. Um “absolutamente Outro” seria, nesta Ética, algo como uma tribo amazônica que não tivesse tido nenhum contato com a civilização atual, hoje praticamente inexistente. A liberdade do Outro – seguindo, neste aspecto, a Merleau-Ponty – não pode ser urna incondicionalidade “absoluta”, mas sempre uma quase-incondicionalidade referida ou “relativa” a um contexto, a um mundo, a facticidade. Nesta Ética, o Outro não será denominado metafórica e economicamente sob o nome de “pobre”. Agora, inspirando-nos em W. Benjamin, o denominarei “a vítima” – noção mais ampla e exata. (DUSSEL, 2000, p. 17)
Falar de colonização e seus tentáculos implica tocar não apenas nos aspectos epistemológicos mas também na questão econômica por ser esta parte fundamental da Ética da Libertação. Os corpos violentados pela colonização, que se tornaram empobrecidos e marginalizados pelo norte global, a saber, o corpo individual ameríndio (especialmente das mulheres), o corpo coletivo das sociedades originárias e o corpo da terra, são parte deste “Novo Mundo” onde a sanha devoradora de etnias e territórios empreendeu para a exploração e o saque. Como Dussel afirma, “a causa por que mataram e destruíram tantas e tais e tão infinito número de almas os cristãos foi somente por ter por fim último o ouro e encher-se de riquezas em mui breves dias, pela insaciável cobiça e ambição que tiveram.” (2000, p. 62).
Ele expande este debate e inclui os demais críticos nas reflexões quando não só expõe estes corpos marginais, vitimizados pelo colonialismo mas também quando enfrenta “a negação da corporalidade da dita subjetividade, a própria vida humana como última instância – a qual se ligam as críticas à modernidade por parte de Marx, Nietzsche, Freud, Foucault, Lévinas e desta Ética da libertação.” (DUSSEL, 2000, p. 64). A exclusão deste Outro que desde a ocupação européia em latinoamérica foi vítima da deturpação de suas epistemes, de seus sentidos mais profundos como indivíduo, da essencial importância de sua comunidade e das estreitas relações com os biomas que nutrem a vida, é fato que serve como propulsor para Dussel que, por sua vez, faz a ponte entre a crise do capitalismo vigente e as raízes coloniais que permanecem pulsantes e deletérias.
O desempregado não ganha salário, dinheiro; e o dinheiro é a única mediação no mercado pela qual podem ser adquiridas mercadorias para satisfazer as necessidades. De todo modo, o trabalho não empregável pelo capital aumenta (aumenta a desocupação). Aumenta assim a proporção de “sujeitos necessitados não solventes” tanto na periferia como no centro. E a pobreza, a pobreza como limite absoluto do capital. Hoje constatamos como a miséria cresce em todo o planeta. Trata-se da “lei da modernidade”: esta lei produz uma acumulação de miséria proporcional à acumulação de capital. O sistema-mundo moderno não pode superar esta contradição essencial. A ética da libertação reflete filosoficamente a partir deste horizonte planetário do sistema-mundo; a partir deste duplo limite que configura uma crise terminal de um processo civilizatório: a destruição ecológica da vida no planeta e a extinção da própria vida humana na miséria e na fome da maioria da humanidade. Diante destes dois fenômenos complicantes de magnitude planetária pareceria ingênuo e até ridículo, irresponsável e cúmplice, irrelevante e cínico o projeto de tantas escolas filosóficas (tanto no centro, mas ainda pior na periferia, na América Latina, África e Ásia) encerradas na “torre de marfim” do academicismo estéril eurocêntrico. Já em 1968 Marcuse escrevera, referindo-se aos países opulentos do capitalismo tardio: Qual é o preço que é preciso pagar por todos os bens recebidos, o preço desta cômoda servidão, de todos estes ganhos, que acabam sendo pagos por pessoas que estão muito longe da metrópole e distam muitíssimo de sua opulência? A sociedade opulenta tem consciência do que está fazendo, de como está propagando o terror e a escravidão, de como está lutando contra a libertação em todos os confins do globo? Desta maneira a modernidade enfrenta a impossibilidade de subsumir as populações, as economias, as nações, as culturas que atacou agressivamente desde sua origem, que excluiu de seu horizonte e que confina na miséria. É todo o tema da exclusão da alteridade da América Latina, da África e da Ásia, e de sua indomável vontade de sobrevivência (como reprodução e desenvolvimento da vida humana). Voltaremos ao tema, mas aqui não gostaríamos de deixar de dizer que o “sistema-mundo” globalizador chega a um limite enquanto simultaneamente exclui o Outro, que “resiste” e de cuja afirmação parte o processo de negação da crítica da libertação. (DUSSEL, 2000, p. 68)
Ter a análise epistemológica das tradições dos povos originários como ponto de partida é algo muito caro aos que, assim como Dussel, decidiram tomar para si a decolonização como ethos de suas críticas e práticas. Longe de ser algo trivial ou irrelevante, considerar América Latina, Ásia e África como locus de enunciação legítimo é reforçar a disputa de narrativa tão necessária para “resgatar o contradiscurso não hegemônico, dominado, silenciado, esquecido e até excluído, o da alteridade da modemidade.” (DUSSEL, 2000, p. 73). Ousadamente, ele vai ainda mais longe ao afirmar assertivamente que
a filosofía-centro e a filosofía-periferia (oprimida no sistema-mundo ou simplesmente excluída) são as duas faces da filosofia na modernidade, e seus contradiscursos (tanto no centro como na periferia) são um patrimônio de todos os filósofos do mundo, não só dos europeus. Isto é essencial para nosso projeto filosófico. A filosofia da libertação é um contradiscurso, é uma filosofia crítica que nasce na periferia (e a partir das vítimas, dos excluídos) com pretensão de mundialidade. Tem consciência expressa de sua perifericidade e exclusão, mas ao mesmo tempo tem uma pretensão de mundialidade. Enfrenta conscientemente as filosofias européias, ou norte-americanas (tanto pós-moderna como moderna, procedimental como comunitarista, etc.), que confundem e até identificam sua europeidade concreta com sua desconhecida função de “filosofia-centro” durante cinco séculos. (DUSSEL, 2000, p. 74)
Para estar apto a fazer tal crítica, há que se ter consciência desses fatos, olhos abertos para enxergar o “outro” colonial, também denominado “bárbaro”, classificado como oriundo de uma cultura inferior ou excluída cujo território permeado de significados e significantes foi transformado de ente em recurso. Tudo isso é fator essencial na construção da identidade desse “eu moderno” de caráter nitidamente eurocêntrico. Analisar esta questão foi uma tarefa empreendida com brilhantismo por Dussel e que resultou na constatação do autocentramento como aspecto constituinte da identidade moderna que se constitui excludente, visto ter sido elaborada a partir de uma “alteridade negada”, uma outridade nula.
É aí que se pode detectar a urgência de trazer outros atores para o holofote; para desarticular essa “alteridade negada” nada mais importante do que ampliar as vozes dos corpos que historicamente foram silenciados por camadas de preconceitos, ou seja, os povos ameríndios que lutam pelo Bem Viver. O próprio Dussel considerou essa necessidade de dissecar as camadas de rótulos postos pela opressão, quando mencionou na referida obra a história da jornalista Rigoberta Menchú, repleta de transversalidades potentes e cuja contribuição foi essencial à ampliação de sua análise, conforme cito a seguir:
Em primeiro lugar, a afirmação plena e positiva da própria cultura em nossos dias, no sistema mundial vigente, é impossível sem dois momentos prévios: 1) o descobrimento, feito pelas próprias vítimas, primeiramente, da opressão e exclusão que pesa sobre a sua cultura; 2) a tomada de consciência crítica e auto-reflexão sobre o valor do que lhe é próprio, mas que se recorta afirmativamente como ato dialeticamente anteposto e com respeito a materialidade como negatividade. Tomemos um exemplo testemunhal narrativo excepcional. Uma jornalista venezuelana (urna “intelectual orgânica”) elaborou um livro com a história da líder indígena guatemalteca, Prêmio Nobel da Paz (1992), intitulado (e o título tem clara precisão teórica): Meu nome é Rigoberta Menchú, e assim me nasceu a consciência a) uma mulher dominada, b) pobre, da classe camponesa c) maia, como etnia conquistada há 500 anos, d) de raça morena, e) de uma Guatemala periférica e explorada pelo capitalismo norte-americano. Cinco denominações simultâneas e articuladas! (DUSSEL, 2000, p. 421)
Dussel estende sua Ética da Libertação como ponte entre os acervos reflexivos de outros teóricos fundamentais. Ele traz no seu discurso aspectos importantes do repositório teórico deixado por Paulo Freire apresentado como personalidade que transborda e é muito mais do que um pedagogo: é “um educador da ‘consciência ético-crítica’ das vítimas, os oprimidos, os condenados da terra, em comunidade” (2000, p. 428) cujo diferencial estava na descoberta de que “é impossível a educação sem que o educando se eduque a si mesmo no próprio processo da sua libertação”(2000, p. 436). Essa ação pedagógica processual, autônoma e de conscientização política que abarca não apenas crianças sendo alfabetizadas mas também adultos, torna os educandos de “culturalmente analfabetos” em “sujeitos históricos” num profícuo processo de transformação que os tira do lugar de vítima através da práxis libertadora.
O momento fundamental dessa metamorfose é quando o “oprimido”, comunitariamente, dá o salto da “crítica”, ou seja, quando sua capacidade analítica se torna apta a processar as causas da opressão, fato que lhe permite “uma apreensão explicativa mínima do argumento de caráter reflexivo, teórico, crítico” (DUSSEL, 2000, p. 440). Aqui, cita o próprio Freire: “uma educação dialogal e ativa, voltada para a responsabilidade social e política, [que] se caracteriza pela profundidade na interpretação dos problemas. Pela substituição de explicações mágicas por princípios causais… Por segurança na argumentação.” (2000, p. 440). Dussel denomina o método freireano de “pedagogia transmoderna de libertação” e acrescenta que este
apóia-se em uma comunidade de vítimas oprimidas, imersas em urna cultura popular, com tradições, apesar de analfabetos, miseráveis… “os condenados da terra”. A causa de um educador, em tais circunstâncias, pareceria desesperadora: é o máximo de negatividade possível. No entanto, Freire julga o contrário. Por isso, no Capítulo III da Pedagogia do Oprimido, aborda o tema da “dialogicidade” como o método que permite a prática da liberdade aos não-livres; é a ação discursiva da comunidade dos sujeitos da sua própria libertação. A conscientização continua o seu processo e se vai desenvolvendo como um movimento de radicalização crescente. (2000, p. 442)
Aqui, o argentino, assim como Freire, coloca a esperança como verbo a guiar a travessia nestes tempos de incerteza social. Suas palavras inculcam firmeza e nos inspiram a crer que sim, é possível a partir de referências que não tenham sido engessadas pela falta de fluidez, de organicidade e de vivência cotidiana, reconstruir parâmetros éticos inclusivos, diversos e mais humanos. Acima de tudo, investir em princípios que tenham a potência de subverter ordens que massacram a individualidade e os valores comunitários pelos quais etnias inteiras têm resistido desde a ocupação européia, possibilitando que a estas comunidades que sonhem e construam a partir da utopia pois “se o ‘atual’ não permite que se viva, é preciso imaginar um ‘mundo onde seja possível viver’. A ‘esperança’ como motivação (…) diante do futuro possível. É a ‘utopia’ possível.” (2000, p. 477).
Quando Dussel afirma que a ética da vida é uma “ética crítica a partir das vítimas [e que] são as vítimas, quando irrompem na história, que criam o novo” (2000, p. 502), abre-se um caminho para considerar as tradições dos povos originários da América Latina, sintetizadas nas premissas do Bem Viver. A identificação destas com o pensamento dusseliano e até mesmo com premissas foucaultianas ocorre imediatamente visto que a sustentação de toda análise e de toda luta social é a defesa da vida prioritariamente. Foucault é cirúrgico quando afirma que “a vida, muito mais que o direito, é que está em jogo agora nas lutas políticas, inclusive se estas são formuladas através das afirmações de direito. O direito à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, a satisfação de todas as necessidades … esse direito tão incompreensível para o sistema jurídico clássico.” (2000, p. 504).
Esta disputa epistemológica, territorial e, acima de tudo, ético-identitária, ocorre na realidade cotidiana e é exatamente por isso que é fundamental entrelaçar os aportes teóricos com as vivências comunitárias dos povos tradicionais da América Latina. Dussel segue citando Foucault: “pouco importa se se trata de uma utopia; temos aí um processo de luta muito real; a vida como objeto político foi, em certo sentido, tomada ao pé da letra e voltada contra o sistema que pretendia controlá-la.” (2000, p. 503).
A desobediência metodológica que as vítimas do colonialismo propõem subversivamente como forma de resistência, especialmente as mulheres que tecem no feminismo comunitário uma possibilidade de defesa do Bem Viver, conduz nosso olhar para o sujeito que na materialidade histórica exerce a práxis da libertação quando implementa uma ética que de maneira solidária organiza instituições para esgarçar o tecido social afirmando sua identidade e se torna capaz de transformar sistemas e realizar ações no cotidiano visando a revolução. Por isso que “a ética de libertação é uma ética possível acerca de toda ação de cada dia. No entanto, o próprio desta ética (…) é a vítima ou comunidade de vítimas que operará com o/s “sujeito/s” em última instância.” (DUSSEL, 2000, p. 520).
Para falar sobre esses “sujeitos em última instância”, a próxima parte desta reflexão traz as possibilidades dialogais entre a Ética da Libertação de Dussel e os princípios do Bem Viver, conceito que recebe variadas nomenclaturas visto ser latinoamérica a terra dos mil povos mas possui o mesmo cabedal simbólico e que por séculos tem sido o fundamento das populações ameríndias na manutenção da harmonia individual, coletiva e ambiental. Possui inúmeros nomes: pode ser chamado de “Nhanderekó” entre os Guarani ou de “Sumak Kawsay” entre os povos andinos mas visa a plenitude de todos os seres do bioma onde se enraizam humanos e não humanos, quando irmanados pelo desejo de vida plena compartilhada.
2) O Bem Viver ameríndio em diálogo com a Ética da Libertação
A fim enraizar a Ética da Libertação, conforme proposta pelo filósofo e teólogo argentino, na realidade ameríndia latinoamericana e, mais especificamente, na brasileira, consideremos a existência de um potente legado originário que resiste apesar da brutal dominação que ocasionou o epistemicídio de culturas inteiras que aqui habitavam, bem como as múltiplas explorações impetradas pelo colonialismo que ressoam até hoje na forma como nossa sociedade se organiza.
Há pressupostos básicos para a compreensão da mentalidade dos povos originários que moldaram de variadas formas a sociedade brasileira. Para tal, cito aqui as palavras do antropólogo Mercio Gomes que como indigenista de ampla convivência entre diversas etnias, sintetizou importantes características destas estruturas sociais pré-capitalistas. Tal análise favorecerá muito o entrelaçamento entre essas realidades que existem na América Latina há centenas de anos e as propostas exequíveis de Dussel. No exemplo da etnia Guajá, Gomes cita:
- Grupos de produção e consumo são o mesmo na maior parte do tempo Ocasionalmente, são formados grupos maiores em que solidarizam socialmente para fins religiosos e sociais (obtenção de parceiros matrimoniais)
- A troca interna é do tipo generalizada.
- As relações de produção são baseadas no parentesco
- Os fatores de produção incluem território, instrumentos e técnicas de caça e coleta, o que, necessariamente, exige um conhecimento refinado do meio ambiente, o qual é compartilhamento de conhecimento e uma sociabilidade intensa.
- A divisão social do trabalho é mínima, obedecendo a diferenças entre homens e mulheres, adultos e jovens. Até a capacidade de cura se distribui igualmente por todos os homens.
- Às mulheres cabe o maior esforço de cuidar dos filhos, acompanhar os maridos nas caçadas e coletas e ajudá-los nesses misteres. Entretanto, se necessário, a mulher saberá se virar na mata, inclusive caçando.
- A caça é a atividade mais valorizada que dá suporte ao poder masculino, permitindo a poliginia.
- A liderança se apresenta por características psicológicas individuais que exigem capacidade de dissuasão de conflitos, generosidade e dedicação O poder é exercido por líderes, sancionado por consenso grupal.
- Diferenças de personalidades e capacidades individuais não resultam em privilégios O bom caçador não é superior socialmente ao bom coletor ou pescador, ou ao bom cantador. Prevalece uma ideologia de igualitarismo social como regulador das relações sociais.
- As rivalidades surgem em função da competição por mulheres, mais escassas demograficamente do que rapazes, ou intergrupal por recursos escassos. (2019, p 110)
Sobre os Tenetehara-Guajajara, ele diz:
o trabalho de roças é feito por grupos de famílias expensas, com arranjos interfamiliares de troca de serviço, ou adjutório, como é chamado regionalmente. “Trabalhe hoje comigo em minha roça que amanhã eu ajudo na sua.” O produto da colheita é familiar sendo também sua responsabilidade na estocagem de sementes para plantio vindouro. Na eventualidade de uma roça de alguém não ter produzido, a família é socorrida por patentes, na expectativa de eventual retribuição futura. Assim, a troca se dá, no seio de uma aldeia, pelo modo generalizado. Entre aldeias diversas, a troca tende a ser equilibrada, com o reconhecimento mais explícito de uma certa contabilidade de valores. (…) Tudo isso constitui as características de um modelo econômico tradicional, do qual outros povos indígenas brasileiros partilham. (2019, p 112)
As citações acima oferecem uma boa amostragem de como a mentalidade das comunidades tradicionais é construída a partir de valores como solidariedade, empatia e partilha sejam estes valores direcionados para outros seres humanos, para o território onde se habita ou para as formas de vida não humanas. Aprofundando ainda mais esta abordagem, vejamos algumas especificidades da relação com a terra.
Acerca da relação com a terra e com o território, a antropóloga Berta Ribeiro em sua obra “O índio na história do Brasil” (2009) inicia a narrativa rememorando os idos do Brasil colonial para que o leitor possa acompanhar o processo de contato entre culturas que, mais adiante, iria ocasionar o esfacelamento do conceito da terra e do território como ente, parte de si mesmo e da família para algo estranho a si, separado do próprio indivíduo, local a ser explorado.
Nas palavras da antropóloga, desde os primeiros momentos da invasão, a atitude dos europeus foi de dependência dos indígenas apesar do domínio dos recursos bélicos que favoreceu a dominação. Como ela afirma, “a superioridade numérica do índio em relação aos minguados contingentes que vinham nas caravelas era avassaladora. (…) Os colonialistas tiveram que aprender com eles a viver nos trópicos, a cultivar seus frutos, a comer suas raízes.” (RIBEIRO, 2009, p 101). Muitas das práticas indígenas permaneceram vivas no DNA cultural da população que se formou a partir da miscigenação. Ribeiro declara:
do indígena aproveitou a colonização europeia a técnica de coivara (clarear os campos a fogo), que até hoje não foi substituída por processos mais modernos, constituindo-se numa prática sumamente nociva à economia agrícola. Enquanto indígena utilizava essa técnica para limpar um pequeno trato de terra, extinguindo pelo fogo, as pragas, os insetos dinhos e a vegetação rasteira, que à falta de enxada e outros instrumento de ferro não poderia extirpar, o latifundiário aplica a mesma técnica para fazer extensas plantações agrícolas ou pecuárias. As grandes queimadas utilizavam madeiras preciosas e a terra desprotegida de vegetação para o fundo dos rios e lagos. (…) A queima em pequena escala praticada pelo indígena e o apodrecimento de galhos e troncos, deixados sem queimar, devolvem ao solo nutrientes necessários para alimentar os brotos. O revolvimento da terra com arado e trator a danifica irremediavelmente ao contrário do que ocorre quando o índio usa simplesmente uma estaca de cavar para a semeadura O cultivo de espécies diversas favorece a recaptura parcial dos nutrientes e evita a propagação de pragas, como acontece nas plantações monocultoras. (…) Como se vê, desconhecendo embora o uso de instrumentos de ferro, as técnicas agrícolas indígenas eram bastante eficientes e perfeitamente ajustadas às condições de seu meio ambiente. Baseiam-se, como ainda hoje, num saber milenar – o conhecimento objetivo da natureza e suas leis – advindo da observação e da experimentação. (2009, p 105)
Sendo assim, para que haja uma compreensão mais aprofundada desta questão, há que se compreender a relação estabelecida pelos indígenas com a terra e o território. Darcy Ribeiro em suas andanças pelo Brasil, nas observações que teve oportunidade de fazer e registrar, levantou questões muito pertinentes que precisam entrar na pauta de discussão a fim de que o ecossocialismo realmente seja entendido como oportunidade viável de construção social a partir de outras relações com o meio ambiente.
A posse de um território tribal é condição essencial à sobrevivência dos índios. Tanto quanto todas as outras medidas protetórias, ela opera porém como barreira à interação e à incorporação. Permitindo ao índio refugiar-se num território onde pode garantir ao enis sua subsistência, faculta-lhe escapar às compulsões geradas pela estrutura agrária vigente, as quais, de outro modo, o compeliriam a incorporar-se à massa de trabalhadores sem-terra, como seu componente mais indefeso e mais miserável. Os casos concretos observador no Brasil de tribos que perderam suas terras e foram levadas a perambular, aos magotes, pelas fazendas particulares como reservas de mão de obra, demonstram que, embora tivessem oportunidade de mais intensa interação com os trabalhadores não indígenas e, teoricamente, por via desta comunicação e convívio, maiores chances de se dissolverem na população nacional, isto não ocorreu. Na prática, seu despreparo para as “tarefas da civilização”, a conservação de ideias e motivações da cultura original e outro fatores os levaram a tamanho desgaste que estariam fatalmente condenados ao extermínio se não fossem recolhidos a um posto de proteção. O direito do índio à terra em que vive, embora amparado por copiosa legislação que data dos tempos coloniais, jamais se pôde impor de fato. Ainda hoje continua impreciso, dando lugar a perturbações de toda ordem, sob os mais variados pretextos ou mesmo sem eles. (2017, p 173)
As redes de afeto, pertença e parentalidade que fazem parte da relação dos povos indígenas com seus territórios, faz com que seja necessário trocar as lentes coloniais que contemplam a natureza como recurso, alheia a própria humanidade em si pois esta é considerada como algo a parte e, por isso, independente da grande teia da vida que a tudo engloba. No tocante a isto, não se pode esquecer do que Dussel afirmou:
Sendo a natureza, para a modernidade, só um meio de produção corre o risco de ser consumida, destruída e, além disso, acumulando geometricamente sobre a terra os seus dejetos, até pôr em perigo a reprodução ou desenvolvimento da própria vida. A vida é a condição absoluta do capital; sua destruição destrói o capital. Chegamos a essa situação. O “sistema dos 500 anos” (a modemidade ou o capitalismo) enfrenta seu primeiro limite absoluto: a morte da vida em sua totalidade pelo uso indiscriminado de uma tecnologia anti ecológica constituída progressivamente a partir do único critério da “gestão” quântica do sistema-mundo na modernidade: o aumento da taxa de lucro. Mas o capital não pode autolimitar-se. Enquanto tal, torna-se o perigo supremo para a humanidade. b) O segundo limite absoluto da modernidade é a destruição da própria humanidade. O “trabalho vivo” é a outra medida tão essencial do capital como tal; o sujeito humano é o único que pode “criar” novo valor (mais-valia, lucro). O capital, que vence todas as barreiras, põe cada vez mais tempo absoluto de trabalho; quando não pode superar este limite, então aumenta a produtividade pela tecnologia; mas tal aumento diminui a proporção do trabalho humano; há assim humanidade sobrante (desprezada, desempregada, excluída). (2000, p. 68)
A iminência do desaparecimento do ser humano diante das violações ao corpo da terra empreendidas pelo capitalismo predatório nos impulsiona a valorizar mais a forma como as comunidades tradicionais lidam com o que é produzido e usufruído comunalmente posto que tal fator tem ligação direta com a relação estabelecida com o território. As comunidades tradicionais, reconhecidas não só pelo estado mas também a partir de suas vivências preservadas historicamente que se podem detectar em diversas camadas das manifestações não materiais como sua cultura alimentar, seus festejos populares e até mesmo seus maneirismos linguísticos, são estruturas sociais que preservam um DNA afetivo e colaboram não só na identificação como também na existência e resistência da ancestralidade, especialmente no tocante às técnicas de manejo do solo, no labor agrícola estruturado a partir da ética da solidariedade e da reciprocidade, do usufruto respeitoso da terra e na forma de partilha comunitária.
Berta Ribeiro ressalta que esta questão sensível da realidade brasileira é multifatorial e ela assim a apresenta:
no que tange ao problema da terra, devem ser destacados dois aspectos. Em primeiro lugar, a terra é para uma tribo indígena “o meio básico de produção”. Em segundo lugar, o território tribal é “o sustentáculo da identidade étnica” (J.P.Oliveira F 1983:3). Em função disso, o território tribal abrange não só a terra necessária para as atividades agrícolas, de caça, pesca e coleta – designada geralmente área de perambulação do grupo – como também os locais das antigas aldeias com os respectivos cemitérios, os lugares sagrados ou míticos, assinalados, em alguns casos, com inscrições rupestres ou acidentes geográficos, que simboliza os locais de origem de seus ancestrais Esses componentes simbólicos de sustentação da identidade tribal, a par da adaptação ecológica – não raro milenar – a um território, respondem pelo apego do índio as suas terras e explicam sua dispersão por todo o território nacional. (2000, p. 163)
Considerar os exemplos de convívio dos povos originários como parâmetros alinhados à ética da libertação, faz com que se perceba que esta forma de vivência comunitária implica variadas maneiras de “convívio ecológico” nas comunidades tradicionais que, para além de incluir o território na perspectiva afetuosa onde a terra, as águas, a vegetação e demais seres vivos são entes e não recursos, é possível testemunhar uma agenda onde a distribuição dos frutos da terra está mais próxima dos princípios igualitários do que as encontradas nos sistemas sociais vigentes no contexto da urbanidade.
Quando a solidariedade e a reciprocidade estruturam a mentalidade social de um determinado grupo, os contrastes diante dos parâmetros capitalista ficam gritantes visto que, como afirmou Dussel, “a vida humana que não é um conceito, uma ideia, nem um horizonte abstrato, mas o modo de realidade de cada ser humano concreto, condição absoluta da ética e exigência de toda libertação. Não deve estranhar, então, que esta Ética seja uma ética de afirmação total da vida humana.” (2000, p. 12). Sendo assim, se faz pertinente neste contexto explorar um pouco os conceitos de Nhanderekó e Sumak Kawsay que são diretrizes originárias para outras realidades sociais, perfeitamente alinhadas à Ética da Libertação. Apresento então o conceito de Nhanderekó, segundo Kerexu Yxapyry, coordenadora Tenondé da Comissão Guarani Yvyrupa e da Comissão Nhemonguetá, integrante da Coordenação Executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB):
ekó pra nós significa vida, cada ser tem o seu ekó. […] E a gente tem também o tekó, o eu, a minha vida, o meu corpo físico carregando a minha vida dentro do meu corpo. Esse corpo é uma casa, um templo da vida. E a gente tem tekoá, para nós o espaço, o ambiente onde vivem os corpos com vida. O nhanderekó é onde a vida está e é relacionado com todos: com o corpo, com o espaço, com a parte do ambiente. E nós conseguimos fazer circular essa vida, esse respiro, que eu consigo compartilhar com as plantas, com os animais, e com outros seres humanos. (PORTAL CATARINAS, 2021)
Pode-se afirmar que o Nhanderekó é, para o povo Guarani, um conceito que abarca a ideia de um sistema de vida onde está tudo interligado. Yxapyry (2021) afirma a partir da análise da cultura alimentar, por exemplo, que para os Guarani não vale a pena investir em algo no qual não se sabe a origem e nem o benefício que traz para o corpo social da comunidade, visto que tudo é uma troca.
O que eu fortaleço lá tem que ser fortalecido aqui. Então, é essa troca que a gente carrega. (…) a gente vê hoje no mundo, no planeta, muita gente falando “precisa reflorestar, precisa fazer isso, precisa fazer aquilo”, mas às vezes as pessoas não plantam árvores, não buscam fortalecer quem planta, não fazem esse apoio. Então, para nós, nhanderekó é isso. Você tem que saber o que você está fazendo, para que você está fazendo, o porquê. (PORTAL CATARINAS, 2021)
Esta cosmopercepção da existência, e do cuidado devido a ela, perpassa não só o território mas também o corpo físico individual visto que este é compreendido a partir de parâmetros coletivos, enquanto parte de um todo maior e mais amplo onde todas as criaturas vivas estão conectadas.
Por exemplo, ekó pra nós significa vida, cada ser tem o seu ekó. […] E a gente tem também o tekó, o eu, a minha vida, o meu corpo físico carregando a minha vida dentro do meu corpo. Esse corpo é uma casa, um templo da vida. E a gente tem tekoá, para nós o espaço, o ambiente onde vivem os corpos com vida. O nhanderekó é onde a vida está e é relacionado com todos: com o corpo, com o espaço, com a parte do ambiente. E nós conseguimos fazer circular essa vida, esse respiro, que eu consigo compartilhar com as plantas, com os animais, e com outros seres humanos. Então, isso para nós é o nhanderekó, é viver esse Bem Viver com todos, compartilhar isso com todos. Não tem tradução. (PORTAL CATARINAS, 2021)
A conceituação acima, dada a partir da cosmopercepção Guarani, dialoga não apenas com os ideais da Ética da Libertação enquanto alternativa viável de coexistência não predatória e harmoniosa mas também com outros entendimentos e ações de comunidades tradicionais acerca do Bem Viver que, apesar de ser uma terminologia recentemente descoberta e difundida, conceitua a forma como as comunidades tradicionais se organizam desde tempos imemoriais a partir do senso de coletividade e pertença. É um modo de vida que inclui toda forma de relacionamento: interpessoais, com o meio ambiente e outros seres vivos, e também o modelo econômico que não tem no capitalismo o único modelo de organização.
Os princípios do Sumak Kawsay (“Bem Viver”), estruturados a partir do pensamento e das práticas do povo Quéchua, indígenas da América do Sul, majoritariamente na região da Cordilheira dos Andes, englobam conceitos amplos e complexos que podem ser compreendidos por aproximação mas não literalmente visto possuir muitas dimensões e significados. Expressam simultaneamente memória e horizonte: por um lado, memória pré-colonial e tradicional do mundo andino e, por outro lado, protesto e luta contra os excessos do capitalismo agroindustrial globalizado que roubou dos povos originários, primeiros moradores deste território, sua dignidade de vida quando os alienou da terra e da possibilidade de manter o modo tradicional de vida.
Longe do ideal da monocultura, o Sumak Kawsay é uma proposta que abarca a pluralidade e se fundamenta em cinco princípios, a saber: 1) sem conhecimento ou sabedoria não há vida (Tucu Yachay); 2) todo viemos da mãe terra (Pacha Mama); 3) a vida é plena (hambi kawsay); 4) a vida é coletiva (sumak kamaña); e todos temos ideais ou sonhos (Hatun Muskuy)[4]. A concepção andina do Sumak Kawsay preza o equilíbrio entre o “pensar bem” (‘Allin Yachay’) e “sentir-se bem” (‘Allin Munay’) que, unidos, resultam na harmonia do “fazer bem” (‘Allin Ruay’). Segundo Acosta,
Bem Viver – enquanto filosofia de vida – é um projeto libertador e tolerante, sem preconceitos nem dogmas. Um projeto que, ao haver somado inúmeras histórias de luta, resistência e propostas de mudança, e ao nutrir-se de experiências existentes em muitas partes do planeta, coloca-se como ponto de partida para construir democraticamente sociedades democráticas.” (2016, p. 29)
Um bom ponto de partida para avaliar as possibilidades dessa cosmopercepção que desemboca numa cosmopráxis efetiva nos territórios em termos de avanços sociais, é analisar mais detidamente o plano nacional de desenvolvimento do governo do Equador, denominado “Plan Nacional para el Buen Vivir”. Esta ferramenta para articulação de políticas públicas propõe uma radical ruptura conceitual com a noção de desenvolvimento baseado em crescimento e em produção cada vez mais rápida e descartável, em função de lucro, como preza a agenda neoliberal. É notório que esta ética anticolonial se baseia nos três princípios da filosofia andina que são: reciprocidade como solidariedade entre os seres humanos, complementaridade do dual (distinto ao maniqueísmo e demais dicotomias ocidentais, esta moldura analitica apresenta os opostos como complementares) e, por último, a correspondência do todo com as partes. É imprescindível notar que nas matrizes filosóficas dos povos andinos o conceito de “individualidade” não existe pois o homem está sempre em relação com a natureza humana do coletivo ou não humana do seu bioma circundante.
Há muita conexão entre os princípios ancestrais andinos e os dos povos originários do Brasil, especialmente no que tange a harmonia coletiva entre comunidade e território, na ênfase em sociedades não hierarquizadas sob dominação e na valorização de uma realidade onde o consumismo e a lógica do acúmulo não são preponderantes. Por isso que, neste momento em que estamos testemunhando o declínio da civilização ocidental eurocêntrica, as lógicas do Bem Viver e os princípios do Sumak Kawsay oferecem uma valiosa contribuição baseada em princípios éticos, que muitas vezes são incompreendidos visto não serem um “modelo de desenvolvimento” baseado em abordagens puramente economicistas, mas na plena realização do ser humano, constituído coletivamente e em harmonia com seus verdadeiros valores éticos originários.
O Bem Viver não é compreendido pelas comunidades ou lideranças tradicionais como algo exclusivo ou uma propriedade particular dos indígenas, mas sim como uma colaboração dos povos originários para toda sociedade humana, todas as etnias de Abya Yala. Vale enfatizar que os conceitos de desenvolvimento social sustentável, inclusivo e não predatório também estão presentes em comunidades africanas como aponta Alberto Acosta (2016), acerca da filosofia do ubuntu da África do Sul. Não são conceitos acadêmicos ou ligados aos espectros políticos mas oriundos de experiências práticas que têm seus valores vivenciados no dia a dia da vida comunal. Desta forma, o conceito de “Bem Viver” em sua riqueza ancestral sinaliza uma filosofia historicamente reconhecida pelas comunidades tradicionais pelos seus desdobramentos concretos, e que por isso mesmo serve como base a múltiplas formas de organização social de centenas de povos e culturas tradicionais da América Latina.
Dussel resgata a perspectiva das culturas ancestrais que permanecem enraizadas nas práticas de diversas etnias em latinoamérica como uma bússola ética ainda válida e plenamente pertinente:
Na cultura inca-quéchua, o sexto núcleo de alta cultura, no extremo oriente do Oriente, exprimiu-se de urna maneira paradigmática a concepção moral universal do império – sobre centenas de culturas particulares – com os três imperativos formais: Ama Llulla; Ama Kella; Ama Sua (Não mentirás; Não deixarás de trabalhar; Não roubarás). O sentido destas exigências morais nos levaria muito longe. Com efeito, trata-se da negação universal de urna máxima não generalizável, que sistematiza toda uma compreensão prática da existência. Sebastião Sperandeo me explicava, numo festa do Inti Raimi de 1994 em Quito, que a primeira ordem estabelece as exigências práticas das normas que regulam a relação intersubjetiva comunitária: Ama Llulla (Não mentirás) rege a pretensão de sinceridade transparente e autêntica. A segunda inclui as normas poiéticas com respeito às relações cósmico-ecológicas porque aqui “trabalho” é atividade reprodutora do universo: Ama Kella (Não serás ocioso, trabalha) e indica a participação na reprodução da vida co-responsavelmente para afastar a morte. É preciso guardar um controle disciplinado e manter-se ativo. A terceira (Ama Sua: Não roubarás) refere-se às relações propriamente econômico-políticas do império; nada tem a ver com respeito a bens privados, mas o fato de se apropriar de algo não produzido acarreta um desequilíbrio, um dano, uma negação (Kajta) que é preciso reparar:trata-se de urna “síntese” ética de alto grau abstrato de racionalidade moral. Entre os astecas, para dar um exemplo, a ética (a tlacahuapahualiztli: arte de criar e educar seres humanos) continha princípios de um grande humanismo. Mesmo que fosse pobre ou miserável mesmo que sua mãe e seu pai fossem os pobres dos pobres…não se via a sua linhagem, só se atendia ao seu gênero de vida, a pureza de seu coração, a seu coração bom e humano, firme, dizia-se que tinha o divino em seu coração, que era sábio nas coisas divinas. A partir dos “costumes (Huehuetlamanitiliztli)” – que juridicamente alcançaram um alto grau de precisão, com códigos de leis e tribunais de justiça,sempre entre os astecas – os tlamantinime racionalizaram urna doutrina unitária sobre o sentido da práxis humana individual e comunitária.Tudo isto mereceria um estudo particular, já que constitui o ethos ainda atual de milhões de indígenas no continente latino-americano, na cultura popular mestiça e especialmente entre os camponeses. Desejamos, finalmente, indicar um aspecto: o conceito ético náhuatl de macehuai. Para os astecas, Quetzalcoatl tinha oferecido sangue de seu corpo para com ele ressuscitar os ossos do quinto género humano, dando assim origem a presente humanidade. Desta maneira, cada ser humano é um “merecido (macehual)”: é um ser que recebeu seu próprio ser gratuitamente pelo sacrifício de outrem. Este “ser-merecido” a partir da Alteridade constitui o ser humano num estado de dívida, mas não por urna falta anterior (como entre os “indo-europeus”: o próton kakón, ou como a Schuld kierkegaardiana), e sim como uma afirmação originária da Vida que se doa e se recebe gratuitamente. Desta maneira, a “macehualidade” é um “modo de existência”, o viver positivamente desde a gratuidade não merecida e originada na “alteridade”. A justiça para com os membros da comunidade é um ato de exigida gratificação. (2000, p. 33)
Não se pode ignorar tantas orientações proveitosas para a sociedade e para a sobrevivência planetária, formuladas há milhares de anos e marginalizadas pelo colonialismo e pelo racismo estrutural. Essas culturas tradicionais cujas epistemes foram intencionalmente apagadas e cujos corpos foram subalternizados são construídas coletivamente a partir de princípios básicos que podem ser sintetizados em reciprocidade, fraternidade, convivência respeitosa com todos os seres da natureza e compreensão do território como ente. Sendo assim, vemos aqui uma possibilidade dialogal plena com a Ética da Libertação, posto que para o filósofo esta não tem a intenção de ser guia apenas apenas em momentos históricos críticas, pelo contrário: é uma filosofia crítica e como tal deve ser antropofagizada pelas minorias, apropriada pelos que estão às margens e utilizada na dialética da vida comum. “Trata-se de uma ética cotidiana, desde e em favor das imensas maiorias da humanidade excluídas da globalização, na presente ‘normalidade’ histórica vigente.” (DUSSEL, 2000, p. 16).
O Bem Viver enquanto processo social que molda a mentalidade segundo a qual deve-se considerar todos como sujeitos de direito, humanos ou não, todos sendo e atuando como parte integrante fundamental de uma grande teia da vida onde cada um exerce uma função necessita indissociável do outro, tem como principais objetivos a construção de uma sociedade que seja mais justa, diversa, plurinacional e intercultural por meio de políticas sociais que garantam os direitos fundamentais dos cidadãos. Ampliando a discussão, saindo dos termos privados e atingindo o contexto público, significa também redirecionar os recursos do Estado para educação, saúde e pesquisa científica como parte do desafio, bem como dar prioridade a democratização do acesso à água e à terra, ao crédito e ao conhecimento, fazendo com que estes sejam acessíveis a todos os cidadãos e cidadãs igualmente.
Sendo assim, o ser humano não deve ser considerado como o principal ator e sujeito de direitos nesse contexto; ao fazer isso, ao colocá-lo numa situação de paridade com as outras formas de vida, pode-se então verdadeiramente combater às violências ao corpo da terra, das pessoas e das demais formas de vida, bem como agir pela a diminuição das injustiças, dos privilégios e dos mecanismos geradores de desigualdade.
Para a pesquisadora Iara Bonin (2015), o conceito de Bem Viver está na contramão do presente modelo de desenvolvimento imperialista que herdamos na colonização que entende e trata a terra, a água e demais seres vivos como um mero recurso, ou como ela diz, “apenas como insumos para a produção de mercadorias de rápido consumo e, mais rápido ainda, descarte.”. Ela faz uma dura crítica ao apontar para o fato de que “é para sustentar o modelo capitalista que os governos priorizam os mega investimentos, as grandes barragens, a exploração mineral, as monoculturas que degradam o ambiente e envenenam a terra, as águas e todos os seres vivos.” (BONIN, 2015)
Em diálogo com essa perspectiva, Dussel apresenta que o equilíbrio proposto pelo Bem Viver, não só de distribuição mais igualitária de recursos e frutos da terra mas também da harmonia espiritual comunitária, são ameaçados e passíveis de extinção no contexto capitalista. Para ele “a acumulação de riqueza num pólo é ao mesmo tempo acumulação de miséria, tormentos de trabalho, escravidão, ignorância, embrutecimento e degradação moral no pólo oposto” (2000, p. 109). Exatamente por isso que essas questões são tão centrais à sua Ética da Libertação. Ele pontua de forma certeira que
de fato, é impossível (impossibilidade não lógica mas empírica) que a totalidade da população seja real e completamente feliz distributivamente dentro do atual sistema econômico. No capitalismo se acumula riqueza objetiva (conseguindo os proprietários do capital felicidade subjetiva) em mãos de poucos, e aumenta a “pobreza” da maioria (isto é, a “dor” e a “infelicidade”). (DUSSEL, 2000, p 114)
Ao colocarmos o conceito de Bem Viver amerídio lado a lado, numa postura dialogal com a Ética da Libertação de Enrique Dussel, promovemos uma reflexão que une princípios originários que têm sido a cada dia mais visibilizados devido à situação de emergência social e climática que vivemos. O colapso do capitalismo e a agenda devoradora do neoliberalismo acentuam a proposta de decolonização do filósofo e teólogo argentino como aporte teórico que consiste não apenas em olhar para novas perspectivas mas retomar princípios éticos de resgate às identidades, tanto individuais e sociais, em conexão ao corpo da terra e ao legado das epistemologias ancestrais. Os povos ameríndios têm sido guardiões deste entendimento; por isso nos debruçaremos sobre suas cosmopráxis a seguir.
3) Tecendo redes ancestrais de esperança e luta
No desejo de instaurar o Bem Viver, por territórios onde a dor e a infelicidade mencionadas por Dussel sejam passageiras e não habitantes, há que se valorizar o legado que tem sido deixado pelas comunidades tradicionais em suas construções de redes de resistência e cuidado, redes estas que abarcam seus territórios e comunidades e, epistemologicamente, estão estruturadas a partir de seus conhecimentos tradicionais, tanto individuais quanto coletivas. Aqui trago o conceito de corpo-território[5] conforme desenvolvido por Veronica Gago que nos auxiliará numa análise mais acurada deste movimento dos povos indígenas na atualidade que tem em alguma mulheres indígenas lideranças fundamentais e vozes imprescindíveis na organização da luta, tais como Julieta Paredes, indígena da etnia aymara e militante feminista decolonial, uma de suas fundadoras do movimento popular das mulheres indígenas na luta contra o neoliberalismo e sua agenda de privatizações. As conexões com as práticas políticas de preservação da cultura ancestral bem como a luta por terra e território, são alguns dos aspectos que se conectam profundamente com a Ética da Libertação de Dussel e fazem valer seus princípios na esfera pública. Nas palavras de Gago isto seria
reivindicar a indeterminação do que se pode, do que podemos—isto é, entender que não sabemos do que somos capazes até experimentar o deslocamento dos limites em que nos convenceram a acreditar e que nos fizeram obedecer. Não se trata de uma teoria ingênua do poder, mas de compreender a potência como desenvolvimento de um contrapoder (inclusive, de um duplo-poder). E, finalmente, a afirmação de um poder de outro tipo, que é invenção comum contra a expropriação, usufruto coletivo contra a privatização e ampliação do que desejamos ser possível aqui e agora (…) o desejo não é o contrário do possível, mas a força que impulsiona o que é percebido coletivamente e em cada corpo como possível. (2020, p. 7)
As epistemologias ancestrais, tecidas a partir de valores holísticos, possuem estreita relação com os biomas onde habitam. Desta forma, suas identidades são forjadas a partir da perspectiva da parentalidade com a terra e neste contexto, a cosmopercepção ameríndia, por estar inevitavelmente relacionada aos seus territórios de origem, faz com que o conceito de corpo-território seja o guia para novas possibilidades, não só de habitar o planeta mas também de viver comunalmente. Trazendo Dussel para esta conversa, a terminologia “consciência ético-crítica” que ele utiliza, pode ser vista a partir das organizações de inúmeras etnias indígenas da atualidade como uma ação “monológica e comunitária, com um superego responsável e criativo, como “tomada de consciência” progressiva (a “conscientização”), negativamente, acerca daquilo que causa a “negação originária”” (2000, p. 416). Neste contexto, esta camada da população historicamente vitimizada pelas desigualdades sociais, exerce sua “razão crítico-discursiva” (…) o que coloca estes povos no lugar de aptidão para discernir
a partir da imaginação criadora (libertadora) alternativas utópico-factíveis (possíveis) de transformação, sistemas futuros em que as vítimas possam viver. Aqui deveremos refletir sobre a articulação teoria-práxis; filosofia, ciências sociais críticas e militância; vanguarda e sujeito comunitário-histórico (líderes, movimentos e povo); diferenciando entre mera emancipação ou reformismo e real transformação ou libertação. (DUSSEL 2000, p 416)
Estas ações de resistência pautadas a partir da preocupação com o bem-estar coletivo e da preservação do meio ambiente, tão caras às tradições indígenas, têm extrapolado os territórios aldeados onde são nascidas organicamente a partir da luta de todos os dias e, sendo assim, estamos vendo acontecer diante de nós a concretização de alguns aspectos práticos da Ética da Libertação proposta por Dussel. Ao nos orientar no cultivo de uma sociedade em harmonia com a natureza e de nossa própria harmonia interior, caminhamos na contramão das tendências capitalistas cujo foco no consumismo célere nos faz esquecer da importância de fazer memória e apreciar não só as lutas mas também as tradições. Estas fazem referência a uma perspectiva holística da existência cujos valores ancestrais de conexão com a Terra e com a comunidade atravessam as palavras da ativista Moira Millán, liderança mapuche: “não estamos pedindo a propriedade da terra, estamos propondo outra arte de habitar a terra” (GAGO, 2020, p. 90).
O desafio de olhar de frente para essa Abya Yala violentada pela colonização, saqueada sistematicamente em seus biomas que ao invés de entes passaram a constar como “recursos naturais” como dito anteriormente, faz com que conceitos como resistência, território e comunidade estejam imbricados posto que os princípios que guiam o cultivo no corpo da terra estão também presentes no cuidado comunal e com a vida em todas as suas múltiplas formas. A citação a seguir, redigida por mulheres indígenas no documento publicado neste ano pela Fundação Luterana de Diaconia (FLD) em parceria com o Conselho de Missão entre Povos Indígenas (COMIN) e a Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA)[6], nos mostra essa cosmopercepção com clareza.
Quando falamos de corpo-território, dizemos que, embora possamos estar em um outro lugar que não é mais o nosso território dito tradicional, nosso bioma ou as nossas aldeias, carregamos no nosso corpo a marca da coletividade dos nossos povos, a sabedoria das nossas anciãs, a nossa ancestralidade e espiritualidade. Quando nascemos, já fazemos parte de um coletivo, nascemos numa comunidade e é a partir dali que vamos nos formando. Com a sabedoria e o ensinamento das mais velhas e dos mais velhos e fortalecendo a aprendizagem com as crianças, que também ensinam. (SCHWINGEL, 2023, p.7)
É notório que as mulheres ameríndias sejam os principais corpos vitimizados pelo colonialismo no sul global e é a partir dos valiosos relatos de experiências e conhecimentos destas, construídos coletivamente a partir do enraizamento nos contextos geográfico, histórico e étnico que a luta por liberdade e autonomia mostra sua verdadeira extensão e alcance. Para Enrique Dussel é a voz de quem sofre na pele e tem a história como testemunha das privações e múltiplas violências impostas pelo imperialismo aos territórios de Abya Yala, que precisa denunciar os desmandos das estruturas de opressão. Ampliar o alcance dessas vozes originárias, especialmente as das mulheres, é uma maneira eficaz de plantar as sementes da Ética da Libertação dentro e fora do ambiente acadêmico e nutrí-las com o questionamento da hegemonia da pseudo validade única das epistemologias impostas desde o norte global e autenticadas pelas instituições formais onde há pouco espaço para as narrativas originárias.
Bartolomeu de las Casas não poderia ter criticado a Espanha sem ter residido na periferia, sem ter escutado os gemidos e visto as torturas que os índios sofriam. Esse Outro é a origem do contradiscurso europeu. É evidente que a Europa, como a parte visível do iceberg, tivesse a hegemonía cultural (económica e política), a “gestão” a partir da “centralidade” do sistema dos bens ideológicos (diria Pierre Bourdieu) da humanidade, a “informação” como poder, e fosse o “lugar” (o “espaço”) privilegiado do planeta para a “discussão” dos problemas mundiais, também filosóficos (isto é, a “filosofía moderna”). Mas essa produção intelectual, quando é anti-hegemónica, mesmo filosoficamente europeia (por exemplo, Montaigne, Pascal, Rousseau ou Marx), não é só europeia: não o é nem por sua exclusiva origem nem tampouco por seu significado. Além disso, na periferia havia também urna produção intelectual e filosófica (por exemplo, a de Francisco Javier Clavijero, 1731-1787, no México, contemporâneo de Kant), mas como contra discurso ininteligível para a Europa, já que supunha um horizonte ou visão mundial anti-hegemônica, e apenas com os recursos (sources) escassos, provinciais, regionais. Clavijero não pode publicar suas obras em castelhano (no México) mas em italiano (na Itália, no exílio). Mantiveram-se as culturas periféricas isoladas e sem contato entre elas; só se ligavam através da Europa, tendo sido previamente reinterpretadas pela Europa-centro. A filosofia “européia” não é só produto exclusivo da Europa, mas é produção da humanidade situada na Europa como “centro”, e com a contribuição das culturas periféricas que estavam num diálogo constitutivo essencial. (DUSSEL, 2000, p. 72)
Para este debate, consideraremos como essencial o protagonismo das mulheres ameríndias na resistência às forças de opressão. Tratadas como sujeitos subalternizados desde a ocupação europeia no continente, elas permanecem na luta pela necessária representatividade e pela valorização das epistemologias tradicionais que têm se mostrado proponentes de parâmetros distintos dos propostos pelo ambiente eurorreferente. São corpos são políticos e entrelaçados aos territórios como dito anteriormente, por isso elas afirmam:
quando nós lutamos pela demarcação de terras, estamos também lutando pela continuidade da nossa existência enquanto o corpo indígena daquele território. Quando o movimento das mulheres indígenas articula de forma mais sistemática os diálogos, fica evidente que o nosso corpo também é um território de conhecimento. (SCHWINGEL, 2023, p.8)
A atual insurgência indígeno-camponesa feminina na América Latina tem reafirmado que, para que haja Bem Viver e uma vida mais justa para humanos e não humanos na materialidade do momento histórico atual, há que se perceber a conjuntura social, histórica, religiosa e política, de maneira radicalmente inclusiva as questões de gênero, comunitárias e ambientais. Estes “corpos em aliança”[7] tecidos na pluralidade e na emergência subversiva de seus grupos tradicionais sempre na luta pela sua própria emancipação, têm agido como catalisadores das críticas à crise desta cosmopercepção da europa como epicentro econômico, político e social a partir das diretrizes neoliberais. Dussel faz uma síntese de como essa estrutura de poder fere os princípios da dignidade humana:
A “racionalização” da vida política (burocratização), da empresa capitalista (administração), da vida cotidiana (ascetismo calvinista ou puritano), a descorporalização da subjetividade (com seus efeitos alienantes tanto do trabalho vivo – criticado por Marx -, como em suas pulsões analisado por Freud), a não-eticidade de toda gestão econômica ou política (entendida só como engenharia técnica), a supressão da razão prático-comunicativa substituída pela razão instrumental, a individualidade solipsista que nega a comunidade, etc., são exemplos de diversos momentos negados pela indicada simplificação formal de sistemas aparentemente necessária para uma “gestão” da “centralidade” do sistema-mundo que a Europa se viu obrigada a realizar peremptoriamente. Capitalismo, liberalismo, dualismo (sem valorizar a corporalidade), instrumentalismo (o tecnologismo da razão instrumental), etc., são efeitos do manejo dessa função que coube a Europa como “centro” do sistema-mundo. Efeitos que se tomam sistemas, que terminam se totalizando. A vida humana, a qualidade por excelência, foi imolada a quantidade. (2000, p. 64)
A envergadura teórica e prática do que tem sido produzido pelos povos indígenas a partir de sua ética ancestral precisa ter sua pertinência reconhecida pela academia como tem sido fora dela, nos espaços das ruas e das incidências políticas pois as lutas organizadas organicamente e de maneira autônoma a partir do campesinato indigena, possuem significado ainda maior por incluírem no debate e nas ações seus territórios originários. Há que se considerar seus biomas envolventes como topos de produção de estruturas econômicas anticapitalistas, de epistemes criativas, de sentipensares e de reprodução da vida no sentido mais abrangente possível num giro eco-corpo-territorial. A proposta aqui é nos situar a partir destes que lutam desde o primeiro momento da colonização por sua comunidade e seu território. Veronica Gago considera que este método de construção conceitual faz toda a diferença:
Quero chamar a atenção para algumas questões de método sobre o pensar situado (…) Porque se algo nos ensinou a história das rebeldias, de suas conquistas e fracassos, é que a potência do pensamento sempre tem corpo. E nesse corpo se congregam experiências, expectativas, recursos, trajetórias e memórias. Um pensar situado é inevitavelmente parcial. Parcial não significa uma pequena parte, um fragmento ou um estilhaço, mas sim um retalho em uma arte de bricolagem, uma montagem específica. Como tal, funciona como um ponto de entrada, uma perspectiva, que singulariza uma experiência. Um pensar situado é um processo (…) que inaugurou uma paisagem capaz de sustentar novos territórios existenciais. Um pensar situado é inevitavelmente um pensar internacionalista. Cada situação é uma imagem do mundo, uma totalidade aberta ao sabor do conceito e à empiria infinita do detalhe. Assim se trama um transnacionalismo que é prática cartográfica e que constrói ressonância mundial a partir do Sul. Tem sua força enraizada na América Latina, em camadas múltiplas de insurgências e rebeliões. (2020, p. 8)
Esta construção comunitária e originária ameríndia resgata através da valorização das lógicas ancestrais, diretrizes para a reconstrução de éticas que sirvam de guia a mundos mais justos, bem como a valorização das epistemes que entrelaçam as reflexões sobre a necessidade de despatriarcalização, a resistência às agendas predatórias do capitalismo e a decolonização dos territórios e dos corpos. Esta região considerada historicamente como periférica tal qual os corpos das mulheres, corpos-territórios compostos a partir das características, necessidades e exuberâncias de seus biomas e que por séculos foram subalternizados e violados assim como o corpo da terra, trazem a realidade que Dussel sintetiza aqui:
a filosofía, e a ética ern especial, portante, precisa libertar-se do “eurocentrismo” para devir, empírica e faticamente, mundial a partir da afirmação de sua alteridade excluída, para analisar agora desconstrutivamente seu “ser-periférico”. A filosofia hegemônica foi fruto do pensamento do mundo como dominação. Nao tentou ser a expressão de uma experiência mundial, e muito menos dos excluídos do “sistema-mundo”, mas exclusivamente regional, porém com pretensão de universalidade (quer dizer, negar a particularidade de outras culturas). (2000, p. 78)
Exercer incidência política desta forma é provocar a sociedade não indígena a refletir nas suas práxis e impulsioná-las a agir de outras formas posto que o respeito à dignidade de todas as formas de vida que compartilham a existência coletivamente no mesmo tempo e espaço. Dussel considera que, “são exatamente estas situações-limite que interessam a Ética da Libertação (os múltiplos processos cotidianos assimétricos da dominação exercida sobre as mulheres, as etnias discriminadas, as culturas populares e indígenas sufocadas” (2000, p. 418). Este artigo tem por motivação primeva aproximar estes corpos que são intrinsecamente políticos e coletivos às premissas básicas de uma ética que se atrela tanto a cosmopercepção quanto a cosmopráxis originária, tornando viável o estabelecimento de novas ações afirmativas nos territórios e na academia. Com o bioma que nos gestou podemos aprender a ser coletivamente, na diversidade, como está presente na escrita das mulheres indígenas que cito a seguir:
Os corpos-territórios são coletivos, por isso, quando uma indígena está ocupando um espaço, junto com ela está todo seu povo. Somos carregadas do conhecimento de nossas avós e a continuidade nessa geração. Corpo-território como corpo político coletivo também quando estamos reunidas entre nós. Vamos aprendendo umas com as outras, para além do corpo-território que carregamos de nossos povos, firmando nossa voz coletiva e ativa. Porque nos entendemos como elos fortes de uma grande rede, apesar de sermos de povos diferentes. (SCHWINGEL, 2023, p.9)
Perante o enfrentamento ao atual modelo de suposto desenvolvimento econômico capitalista que não respeita nem a terra e nem o ser humano e segue devorando sociedades inteiras na sua ânsia insaciável por acumulação e lucro, o Bem Viver e as propostas da Ética da Libertação dusseliana, caminham na direção oposta. Nesta agenda das pequenas revoluções que ocorrem todos os dias, coletiva e territorialmente, as propostas são pautadas na partilha e na reciprocidade. A resistência se manifesta nos corpos que dançam e cantam de braços dados no toré[8] pois “tudo é alternância, ritmo (…) Não seria exagerado dizer que o ritmo é a arquitetônica do ser (…) Eu danço, portanto vivo (…) Esta expressão poderia realmente resumir perfeitamente toda a Ética da libertação: ética da corporalidade e da vida”. (DUSSEL, 2000, p. 76)
Esses corpos-territórios que se revestem da terra, das florestas e das águas, preservam nas suas práxis e em suas sabenças, valores culturais que permanecem em processo de sucessivas tentativas de dissolução porque a colonialidade não está extinta na América Latina. Pelo contrário, ao trazer lampejos da questão de gênero para esta reflexão visto ser este um posicionamento de resistência, modulo a temática intencionalmente para e pela coletividade, no intuito de que não se perca de vista esta conexão milenar com os biomas que geram a vida e todas as estruturas sociais que nos permitem vivenciar este modo de ser-no-mundo. Acerca disso, Gago faz uma interessante observação:
Quais são os territórios multi linguísticos, migrantes, em movimento, que fazem com que o internacionalismo se teça como força concreta a partir de cada luta? O enraizamento dos feminismos, a reinvenção comunitária a que dão lugar, a imaginação geográfica que alimentam são parte de uma cartografia que está em plena expansão. (2020, p. 12)
É notório que a América Latina é um locus geográfico e discursivo potente: é fértil enquanto espaço epistemológico e político, onde medidas de superação da modernidade eurocentrada, predatória e epistemicida por definição podem ser viáveis. Como defende Dussel,
chegamos, assim, ao momento crucial da Ética da Libertação, onde reatualizamos, depois da queda do muro de Berlim em 1989, debates antigos (sustentados já por R. Luxemburg, A. Gramsci, C. Mariátegui e tantos outros) para, desde esta meta-ética da libertação, situar novos horizontes no tocante a razão ético-estratégica e tática, onde se mostrará a complexa articulação das massas vitimadas que emergem como comunidades críticas, tendo militantes críticos como núcleos de referência. Trata-se dos novos movimentos sociais, políticos, econômicos, raciais, ecológicos, do “gênero”, étnicos, etc., que surgem no final deste século XX. Luta pelo reconhecimento de vítimas que operam transformações em diversas “frentes de libertação”, que esta Ética da Libertação fundamenta e legitima, podendo dar uma certa orientação, a partir de critérios e princípios éticos, no dia-a-dia, para o exercício da práxis de libertação, desde as vítimas, de normas, ações, microestruturas, instituições ou sistemas de eticidade, sem ter de esperar o tempo das revoluções quando estas são “impossíveis”. (2000, p. 14)
Quanto a perspectiva de gênero no debate sobre direitos humanos, despatriarcalização de corpos, terra, território e justiça social, Haesbaert (2020)[9] assevera que são as “pesquisadoras feministas (ou ecofeministas) e do movimento indígena, que atentaram para o poder da corporeidade ao mesmo tempo como objeto de exercício do poder e como sujeito (corporificado) de resistência” (p.76). Valorizar as mulheres como parte fundamental da construção geopolítica do saber, leva nossa análise a considerar o aspecto ressaltado por Grosfoguel (2009)[10], para quem “não tem a ver apenas com valores sociais na produção de conhecimento nem com o fato de o nosso conhecimento ser sempre parcial. O essencial aqui é o locus da enunciação (…) o lugar geopolítico e corpo político do sujeito que fala” (p. 386).
Os corpos-territórios que enunciam a partir das fronteiras e dos entre-lugares, têm proposto outro mapeamento para as revoluções sociais, baseando suas trajetórias na visão holística da existência que se constrói dialogalmente e na abertura à alteridade visando o fortalecimento dos laços comunitários.
O problema que se descobre é o esgotamento de um sistema civilizatório que chega ao seu fim. A superação da razão cínico-gerencial (administrativa mundial} do capitalismo (como sistema econômico), do liberalismo (como sistema político), do eurocentrismo (como ideologia), do machismo (na erótica), do predomínio da raça branca (no racismo), da destruição da natureza (na ecologia), etc., supõe a libertação de diversos tipos de vítimas oprimidas e/ou excluídas. É neste sentido que a ética da libertação não se define como transmoderna (já que os pós-modernos são ainda eurocêntricos). (DUSSEL, 2000, p. 66)
Os movimentos sociais de base ameríndia e suas ações pedagógicas são uma forma de agir criticamente embasados por uma ética da libertação que cria novas mentalidades onde se questionam a colonialidade do saber, tão determinante nas produções conceituais que nos chegam a partir do norte global. Enquanto a colonialidade apregoa que a terra é recurso apenas e por isso deve constar como propriedade, os povos originários na luta que parte de seus corpos vitimizados e tidos como subalternos, nos provocam a debater o que é necessário “para a renovação metodológica das ciências em sua totalidade, questionando, inclusive, os fundamentos que estruturam o status quo científico de um saber local que se quer global.”[11]
Fato é que não se pode compreender a abrangência das lutas que ocorrem diariamente neste território desde a implementação da colonialidade sem considerar os afetos que movem as comunidades tradicionais. Arturo Escobar (2018)[12] entende que quando falamos sobre a relação que uma comunidade tem com uma montanha como um antepassado ou até mesmo como uma entidade sensível, “estamos a referir-nos a uma relação social, não a uma relação sujeito-objeto. Todas as relações sociais com não-humanos podem ter os seus protocolos específicos, mas não são (ou não são apenas) relações instrumentais e de uso.” (p. 103,104 tradução minha). Este posicionamento se afina com o que Dussel afirma sobre a forma como a modernidade e o capitalismo marginalizam esta relação com a terra. Em seu texto na obra que nos embasa a reflexão, em diálogo com o pensamento de Chomsky, ele sentencia:
Desde sua origem, a modernidade constituiu a natureza como um objeto “explorável” com vistas a aumentar o lucro do capital: pela primeira vez a natureza se transforma puramente em objeto para o homem, em coisa puramente útil; cessa de ser reconhecida como poder para si . Uma vez constituída a terra como um “objeto explorável” em favor do quantum, do capital, que pode vencer todos os limites, todas as barreiras, manifestando assim “the great civilising influence of capital”, toca finalmente seu limite insuperável, quando ele mesmo for seu limite, a barreira intransponível para o progresso, e estamos chegando a esse momento: A universalidade a que tende sem cessar [o capital] encontra travas em sua própria natureza, as quais em certa etapa do desenvolvimento do capital farão com que seja reconhecido como a maior barreira para essa tendência e, por conseguinte, tenderão a abolição do capital por meio de si mesmo. (2000, p. 66)
Tecer redes ancestrais de esperança e luta significa insistir em tornar audíveis as vozes que ecoam por latinoamerica e para as quais a academia se tornou surda. Dussel enfatiza que esses corpos “invisíveis” para os do sistema euro referenciado, podem agora, “como ‘fonte’ trans-ontológica, como fonte originária, lançar a ‘interpelação’ àqueles que têm ‘consciência ética’ ou sabem escutar no sistema vigente: ‘Eu te interpelo pela justiça que devias cumprir conosco!’” (2000, p. 427)
Considerações finais
Entendo que é fundamental tomar como ponto de partida a realidade atual e avaliar o que pode ser feito tendo em nosso horizonte de análise os conflitos sociais, éticos e ecológicos que nos abalam globalmente e nos fazem concluir que é urgente pensar estratégias para que se possa compartilhar a existência coletiva neste planeta de outra forma, mais harmoniza, ética e dialogal. Não basta apenas elucubrar sobre… há que se pôr em prática uma estrutura social onde a Ética da Libertação pensada por Dussel seja uma contribuição relevante ao nosso sentipensar[13], uma alternativa viável que caminha de mãos dadas com o conceito ancestral de Bem Viver e que nesse projeto de outro mundo possível todas as vozes, especialmente as das mulheres ameríndias silenciadas há séculos em suas experiências ancestrais, ofereçam guiança e passagem para quem deseja viver numa comunidade mais fraterna, multifacetada e sábia. O ponto em que chegamos atualmente grita questionamentos que demandam ações efetivas. Löwy[14] é realista quando afirma que
a civilização capitalista / industrial, baseada na expansão e na acumulação ilimitada do capital, na “mercantilização [commodification] de tudo” (Immanuel Wallerstein), na exploração desumana do trabalho e da natureza, no individualismo e na competição brutais, na massiva destruição do meio ambiente, está em crise. A ameaça crescente de ruptura do equilíbrio ecológico aponta para um cenário catastrófico – o aquecimento global – que coloca em perigo a própria sobrevivência da espécie humana. Estamos diante de uma crise civilizatória que requer uma mudança radical, isto é, uma Grande Transição. (2021, p. 471)
A Ética da Libertação na Idade da Globalização e da Exclusão, obra que oferece farto referencial teórico e que serviu de base às ressonâncias aqui apresentadas, têm sido um importante ponto de apoio e incentivo para quem se aventura a combater. Seja no ambiente acadêmico ou nos movimentos populares por justiça social que se erguem neste conturbado momento histórico, vivemos tempos onde a necessidade de novas opções diante do caos e do colapso do capitalismo se faz patente e inegável. Para os que possuem o desejo de igualdade entre os seres e investem em práticas que sejam inclusivas, eivadas de princípios concretos de aprendizado e preservação ecológicos, deixo o convite: bebamos na fonte dos que vieram antes de nós!
Ao mapearmos a rota do conceito originário de Bem Viver que é, nas palavras de Gonçalves (2018)[15], “Sumak Kawsay em quéchua (…) é Suma Qamaña em aymara – língua de povo tradicional do mesmo nome existente na Colômbia, Equador, Bolívia, entre outros países. É também o Teko Porã, Guarani ou ainda o Nhanderekó, do Guarani Mbya” podemos atestar que tudo está interligado e os saberes ancestrais conversam entre si há milênios. Nos imbricamentos das lutas sociais e ecológicas está a melhoria da qualidade de vida das pessoas e de todo o planeta, a partir de éticas libertárias que deseja alcançar parâmetros de justiça social como a proposta por Dussel, de engajamento dos trabalhadores na administração dos bens e recursos assim como do processo de transformação estrutural das forças produtivas como provoca Löwy e tantos outros. Tracemos então diálogos possíveis com esses acadêmicos tendo em nosso horizonte analítico, político e epistemológico que a mentalidade das comunidades tradicionais pauta sua organização em lógicas de reciprocidade e partilha, e desta forma, as necessidades básicas de água, comida, vestuário e habitação são supridas pelo grupo a partir da produção produzida e usufruída comunalmente, o que é um alvo a ser alcançado pelas demais estruturas sociais.
Ao ponderarmos a sociedade envolvente não indígena, detectamos que os indicadores sociais de desenvolvimento apontam que outras necessidades, igualmente importantes e ligadas a infraestrutura como saúde, educação, transporte e cultura, aspectos fundamentais e que precisam ser supridas pelo Estado de maneira equânime para todos os cidadãos. Se examinarmos as necessidades éticas então, perceberemos o quão longe estamos de vivermos em harmonia com o cosmos que nos cerca. O capitalismo causa uma “ruptura metabólica” entre as comunidades humanas e o meio ambiente e por isso esta pauta deve ser uma das mais importantes, visto que o conceito de progresso deve ser questionado se este exaure os recursos naturais e não dá ao homem tempo livre para ser. Como afirma Löwy,
Marx e Engels, que desenvolveram uma compreensão profunda e acurada de questões ecológicas a partir de uma perspectiva socialista, podem ser considerados os precursores do ecossocialismo. É verdade que essas questões não ocupam um lugar central em seu dispositivo teórico, mas isso simplesmente reflete o fato de que, no século XIX, a crise ecológica estava apenas começando, estava longe de ter se tornado tão catastrófica quanto em nossos dias. Ainda assim, pode-se encontrar em seus escritos um conjunto de argumentos e conceitos que são essenciais para a compreensão da conexão entre capitalismo e destruição do meio ambiente, e também para definir uma alternativa ecológica e socialista ao sistema atualmente prevalecente. (2021, p. 476)
No território brasileiro as centenas de economias informais movidas pelas comunidades tradicionais ameríndias continuam na luta para encontrar um espaço onde tenham sua sabedoria ancestral e suas práticas de Bem Viver valorizadas e essas características possuem desdobramentos econômicos. Num mundo governado pelo capital e suas mazelas, onde a lógica predatória da acumulação dá as cartas, vale relembrar que, segundo Gomes, os povos originários contribuem “para se entender como o valor econômico é determinado pela troca e como essa troca tem uma função de equilíbrio social para a busca de igualdade social.” (2019, p. 113).
É essencial que sentipensemos que não é possível considerar o homem como sujeito desligado da natureza posto que ele é uma parte dela e, a partir dessa premissa, façamos todos os esforços que pudermos empreender como sociedade civil, como construtores de pontes entre as sabenças originárias e as epistemes da academia formal. Pelo bem da terra, pela continuidade da vida, pela utopia da harmonia possível em uma sociedade fraterna, finalizo com as palavras impulsionadoras de Dussel:
Libertar não é só quebrar as cadeias (o momento negativo descrito), mas “desenvolver” (libertar no sentido de dar possibilidade positiva) a vida humana ao exigir que as instituições, o sistema, abram novos horizontes que transcendam a mera reprodução como repetição de “o Mesmo” – e, simultaneamente, expressão e exclusão de vítimas. Ou é, diretamente, construir efetivamente a utopia possível, as estruturas ou instituições do sistema onde a vítima possa viver, e “viver bem” (que é a nova “vida boa”); é tomar livre o escravo; é culminar o “processo” da libertação como ação que chega a liberdade efetiva do anteriormente oprimido. É um “libertar para” o novum, o êxito alcançado, a utopia realizada. (2000, p. 567)
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[1] DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
[2] KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras. 2015.
[3]SANTOS, Antonio. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu Editora/PISEAGRAMA, 2023.
[4] ¿Qué es el Sumak Kawsay? El Telégrafo (em espanhol), 07/04/ 2013. Disponível em: https://encurtador.com.br/jxX37 Acesso em: 01/12/ 2023
[5]Corpo-território é um conceito político que “evidencia como a exploração dos territórios comuns e comunitários (urbanos, suburbanos, camponeses e indígenas) implica violentar o corpo de cada um e o corpo coletivo por meio da espoliação” (GAGO, Veronica. A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo. São Paulo: Editora Elefante, 2020, p. 79.)
[6] SCHWINGEL, Kassiane (org.) Mulheres:corpos-territórios indígenas em resistência! Porto Alegre : Fundação Luterana de Diaconia : Conselho de Missão entre Povos Indígenas, 2023. Disponível em: https://encurtador.com.br/wyPV0 Acesso em: 28/10/2023
[7] BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas – Notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
[8] O Toré é um ritual comum a várias etnias indígenas brasileiras e envolve música, religiosidade originária, tradição e folguedos coletivos.
[9] HAESBAERT, Rogério. (2020). Do corpo-território ao território-corpo (da Terra) contribuições decoloniais. GEOgraphia, 22(48). Disponível em https://doi.org/10.22409/GEOgraphia2020.v22i48.a43100 Acesso em 23/11/2023.
[10] GROSFOGUEL, Ramón. Para Descolonizar os Estudos de Economia Política e os Estudos Pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. In: SANTOS, Boaventura de Sousa e MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009.
[11] FERREIRA OLIVA , V.; PÉREZ, G.; DA ROCHA, W. S. Dos movimentos e do corpo-território: gramáticas originárias para pensar as geo-grafias no/do feminino. Terra Livre, [S. l.], v. 2, n. 59, p. 102–132, 2023. Disponível em: https://publicacoes.agb.org.br/terralivre/article/view/2922. Acesso em: 08/10/2023
[12] ESCOBAR, Arturo. Sentipensar con la tierra: nuevas lecturas sobre desarrollo, territorio y diferencia. Medellín: UNAULA, 2018.
[13] Sentipensar é um conceito desenvolvido pelo antropólogo Patricio Guerrero Arias que implica dar afetividade à inteligência. ARIAS, Patrício. Por una antropología del corazonar comprometida con la vida. Disponível em encr.pw/lmjqk . Acesso em 05/11/ 2023.
[14]LÖWY, Michael. O que é o ecossocialismo: o que é, por que precisamos dele, como chegar lá. Germinal Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v. 13, n. 2, p. 471-482, ago. 2021.
[15] GONÇALVES, Juliana. O Bem Viver e a radicalidade de sonhar outros mundos. Disponível em https://bitlybr.com/HaBBC Acesso em: 15/01/2023