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A distopia como questão atual do Pensamento

Por Flavia Bruno 18 de junho de 202518 de junho de 2025

         Uma das questões atuais no século XXI é o tempo distópico em que vivemos. Diferentemente das utopias que projetam um mundo ideal não realizado — e, por  que não dizer, irrealizável, as distopias são reais. O termo distopia foi usado pela primeira vez em 1868, por Stuart Mill e, em tradução livre do grego, quer dizer “lugar ruim”. Em meu livro “qual a distopia de hoje?” eu divido a questão em 3 partes: política, psicologia e lógica.

         Do ponto de vista político, a distopia está diretamente ligada à ascensão do horizonte neoliberal como uma nova razão do mundo, a consequente produção de um novo tipo de sujeito, personagem de um cenário em que se foge da dor e busca-se o constante aperfeiçoamento. Ainda nesse cenário, desidrata-se a vida política e falseia-se a democracia por meio do capitalismo de vigilância e a manipulação dos afetos para se obter os efeitos de dominação desejados. Vive-se uma analgesia política ao mesmo tempo em que a democracia sofre um brutal ataque, seja em razão do exacerbado individualismo, seja em razão da vida tecnológica que, a partir do superávit de dados comportamentais, manipula e controla o comportamento dos indivíduos, tornando real ações e efeitos desejados pelo poder dominante.

         Do ponto de vista psicológico, cria-se a nova utopia do homem empresa, reforçada pela motivação do psicologismo positivo, amplamente disseminado no trabalho, na religião e na vida em geral. Em nossa sociedade o homem se vê como um ator cansado do seu papel, cansado de si mesmo. Instado a mais produzir, mais alegrar-se, mais aprimorar-se, mais performar, este homem acaba por afundar em sofrimento. Empreendedor de si, autoexplorador, esteta e panopticon de si mesmo, este sujeito está exausto diante do que Chul Han chama de “violência da positividade” (2018a, p. 48). Mesmo diante de psicofármacos, da analgesia política, do esforço de produzir saúde, da visão de que não há sentido em experimentar a dor, esta não desaparece, mas ao contrário, se multiplica. São dores silenciosas que se desdobram em novas patologias, como as violências que os indivíduos cometem contra si mesmos ou os comportamentos autoagressivos.

         Na distopia da sociedade pós-disciplinar do desempenho, produzem-se patologias das quais ninguém escapa completamente. Violência, esgotamento, cansaço, depressão são as dores de uma sociedade que se pretende sem dor; são os sintomas de uma sociedade algofóbica, que vive o neoliberalismo não apenas como modelo de política econômica, mas como o sistema normativo que regula a existência, espraiado por todo o mundo e comandando as formas de relação social.

         Entretanto, vou me deter aqui no ponto de vista lógico da distopia de hoje, em que altera-se por completo as referências clássicas dos valores de verdade, produzindo mudança na estrutura lógica do pensamento, elegendo-se o que eu chamo de noverdade, como construção discursiva corrente. Este conceito se faz necessário a partir da natureza singular das informações que circulam nos tempos de hoje.       

         Sendo o conceito de verdade um conceito fundamental à vida prática humana em várias esferas de sua existência, a postura cética — segundo a qual nenhum critério de verdade é eficiente, ou seja, não haveria efetivo caminho de distinção entre o verdadeiro e o falso (BROCHARD, 2009, p. 69) — não triunfa ao longo da história do pensamento ocidental. Ao contrário, a disposição em crer em um critério confiável e, sobretudo, na habilidade do intelecto humano, consagrou a fórmula medieval de que a verdade é adequação entre o intelecto e a coisa, ou seja, a verdade é expressa em termos de concordância entre o que se pensa (ou diz) e o que a coisa é. Somente na modernidade se colocará em questão essa concordância, e é Descartes quem inaugura o ceticismo moderno ao questionar se entre o pensamento e a coisa existe ou não identidade. Confiando na capacidade da razão, os modernos desenvolveram o discurso racional, criaram novo método científico, pretenderam decifrar as leis de funcionamento do cosmos, certos de terem construído um critério confiável da verdade que, doravante, passa a ser chancelada pela ciência.

         A filosofia contemporânea desfez a ilusão da palavra plena pretendida pelos positivistas modernos, mostrando que a vida, em sua riqueza imensa, não se esgota no que aparece e sua tradução em palavras não elimina por completo o equívoco. Ou seja, o mundo contemporâneo, ao apontar para a desconstrução da ontologia clássica, para o ultrapassamento da verdade dogmática em favor da multiplicidade, altera o eixo de problematização: ao invés de limitar a questão da verdade à evidência fornecida pela experiência, à certeza manifesta, à aplicação de um método rigoroso, enriquece sua natureza fazendo ver que um discurso pode sempre desvelar outro discurso ou pode, pelo menos, apontar para um excesso que nunca se aprisiona nos balizamentos do intelecto e da linguagem.

         Nietzsche, mais do que qualquer outro, realizou um forte combate à vontade de verdade, revelando seu caráter moral, uma vez que esta produz no homem uma nítida paixão de alegria. Além disso, o filósofo alemão mostrou o caráter ficcional e idealizado da verdade, uma vez que esta ideia remete ao que não se contradiz, ao que não muda, ao que não tem sofrimento (1992).

         Se o século XX apontava para os desdobramentos da filosofia nietzscheana, o século XXI parece ter dado a outra volta do parafuso. Os conceitos de singularidade, multiplicidade, duração, movimento, diferença que expressam o pensamento não dogmático acabaram cedendo espaço a uma nova relação do pensamento com a verdade.

         Tomando como ponto de partida um pressuposto relativista e uma dose de ceticismo, o caminho percorrido não foi o da construção de uma ciência menos dogmática, mas, ao contrário, a de um discurso que faz proliferar o dogmatismo mais fanático. Se a crítica da ciência no final do século XX pretendia incorporar ao discurso científico conceitos menos rígidos e pré-fabricados, como ensina Bergson (1979) em favor da compreensão da vida em sua mobilidade e variação, vê-se surgir no século XXI a orgulhosa desqualificação da ciência, a descrença de suas verdades não porque estas seriam incapazes de traduzir a exuberância múltipla da realidade, mas sim porque opta-se pelo critério do fanatismo, da religiosidade como única autoridade e, sobretudo, em favor de uma nova fala, liberta das referências e do modo de proceder científico, mas da mesma forma, extremamente poderosa, porque, em nome dos interesses mais escusos, sabe fazer surgir a realidade que politicamente se deseja.

         Um episódio bastante conhecido deu-se em 1938, na rádio CBS em que se conduziu um estudo sobre a psicologia do medo. O episódio The Mercury Theatre on the air era a adaptação de A guerra dos mundos, de H. G. Wells, feita por Orson Welles e Howard Koch. A história da chegada de máquinas marcianas mortíferas a Nova Jersey parecia aos atores envolvidos absolutamente implausível e o próprio Welles afirmava, ao longo do programa, que tudo não passava de ficção. Mas nem o caráter implausível nem o alerta de Welles serviu para dar ao episódio o sentido que efetivamente tinha. Os ouvintes de fato acreditaram na transmissão e entraram em pânico. Jornais, rádios e delegacias receberam inúmeras ligações e chegou-se ao ponto de acusar esses canais de encobrimento da verdade por não terem noticiado a invasão.

         Esse episódio serviu para mostrar o quanto os dispositivos tecnológicos são dotados da capacidade de manipulação da opinião pública e da construção de uma realidade que recebe uma adesão de forma quase que espontânea. O primeiro ponto a se destacar aqui é a autoridade dos meios de comunicação no século passado e, no século atual, a autoridade das redes sociais. Jason Stanley (2022) ensina que os tempos totalitários de hoje são caracterizados pelo que ele chama de “anti-intelectualismo”, ou seja, por um discurso que ataca, desvaloriza e rejeita a educação e as instituições educacionais que abrigam vozes independentes ou divergentes do discurso dominante, só sendo aceitas e valorizadas as narrativas que servem de eco à política de natureza fascista. Randall Swingler nesse ponto é cirúrgico: os nazistas explicavam, à população que, dada a relatividade de todas as verdades, era impossível saber ou entender qualquer coisa… isso absolvia o homem comum do esforço de entender (apud LYNSKEY, p. 263).

         Com a repetição constante dessa tática de propaganda, as diversas instituições são desacreditadas ao ponto de se fazer eliminar a confiança em seus enunciados, suas pesquisas e suas ideias. Como consequência, as vozes da intelectualidade, das Escolas, da produção científica são substituídas pelas vozes do líder e de seu exército de multiplicação de mensagens nas redes sociais. Ora, “uma vez que se deslegitimam as universidades e os especialistas, os políticos fascistas se veem livres para criar suas próprias realidades, moldadas por sua vontade individual” (STANLEY, 2022, p. 62-63).

         Portanto, altera-se a referência tradicional onde historicamente se buscou a verdade e o conhecimento. Se os intelectuais, professores e expertos passam a ser considerados os titulares do pensamento vicioso, há que se acreditar tão somente no discurso do líder qualificado por sua infalibilidade. Como diz Arendt, os líderes fazem com que a realidade se ajuste às mentiras que proclamam, exibindo desprezo pelos fatos em si e os qualificando exclusivamente por meio do homem de poder que os inventa (2021, p. 438). Ou, dito de outra forma, o discurso do líder se torna o único discurso que pode espelhar a realidade — a verdade é trocada pelo pronunciado de Um. Quando todo espaço de produção de informação genuína é destruído, a verdade é substituída pelo poder.

         Eis o que se assiste com fartura dos tempos distópicos de hoje: a ininterrupta produção da crença vazia por meio das redes sociais e demais canais de (des)informação. As ideias aqui produzidas circulam amplamente, consagrando-se como sólidas e inabaláveis crenças, embora não reflitam qualquer consistência conceitual ou epistemológica. Ou seja, o discurso que mobiliza as massas é totalmente desvinculado do preceito clássico da prova de realidade, não são confrontados com o que se experiencia do modo mais superficialmente evidente, seja mostrando fatos, números, argumentos, ou o que for. Aparece a certeza delirante do discurso do Um, multiplicado infinitamente por eficientes canais de comunicação das redes sociais, que, a cada compartilhamento, se reforça ainda mais como expressão cristalina dos acontecimentos do mundo. Como o discurso do líder se multiplica na multidão que o acompanha, forma-se um novo critério de distinção do verdadeiro e do falso: o que é dito pelo grupo do líder, o chamado ingroup e o que é dito pelos que estão fora desse grupo, o chamado outgroup.

         Como demonstrou Adorno em seu estudo sobre a personalidade autoritária, feito na década de 1940 nos Estados Unidos (2019), o discurso produzido pelos sujeitos será de hostilidade contra os outgroups, ao passo que o ingroup é preservado de todo e qualquer ataque. Ou seja, há o discurso “nosso” e o discurso “deles” e, na mesma proporção que o “deles” é zombado e desvalorizado, o “nosso” é legitimado e respeitado.

         Tudo o que ilustra o interesse e as ideias de um sujeito tende a ser real para este sujeito, enquanto o inverso, ainda que possa ser real, é tido como mera fantasia e abstração. No infantilismo próprio dos discursos autoritários será fraude, trapaça ou burla o que for proveniente do outgroup e será verdadeiro, correto e referendado o que provém do ingroup.

         Dito de outro modo, já que os clássicos critérios de verdade foram desacreditados, já que o relativismo da verdade passou a ser usado para desqualificar o discurso científico como um todo, o novo critério é o discurso do Um, do líder que se investe de uma nova forma de autoridade, maior do que a voz dos estudiosos e maior do que o desenrolar dos acontecimentos. Na distopia dos dias de hoje, alteram-se por completo as referências dos valores lógicos tradicionais de verdadeiro e falso. Além disso, não se pode sustentar a premissa ingênua de que a verdade possui, por ela mesma, um valor tal que garante sua prevalência sobre a mentira. Como diz Orwell, ao comentar o texto de Bertrand Russell, intitulado O poder: uma nova análise social de Bertrand Russell, “‘a verdade é forte e irá prevalecer’ é uma prece e não um axioma” (2004).

         Nas narrativas que permeiam a vida política dos tempos atuais, as categorias de verdade e falsidade se tornaram irrelevantes para influenciar o pensamento do homem comum, que já não acredita nos enunciados intelectuais, mas apenas na palavra do líder, que claramente, não pode estar errada, assim como não estava errada a ciência do estado único da distopia de Zamiátin. A palavra do líder tem um efetivo alcance, independentemente do seu valor de verdade. Ela tem o poder de mobilizar a imaginação das massas, que se torna alvo da capturada de qualquer disparate.

         Fanatizado pelo grupo ao qual se vincula, o sujeito torna-se refratário ao que lhe mostra a experiência e ao que demonstram os argumentos, quase como se sua capacidade de perceber e interagir tivessem sido afetadas. Por outro lado, mesmo sendo uma fraude factual ou intelectual, as histórias inventadas e difundidas pelo ingroup ganham um entusiamo crescente e tal entusiasmo retira de suas proposições o caráter de absurdo e insensatez que essas mentiras utilitárias possam carregar.

         O excesso de dados do capitalismo digital e a consequente estimulação do falso afirmam mentiras cada vez mais tenazes. Orwell diz que a mentira praticada pelos Estados totalitários não é um expediente temporário, mas parte integrante do seu modo de ser, já que a história não é algo a ser conhecido, mas a ser criado de acordo com as conveniências partidárias (2020, p. 150).

         Hanna Arendt disse que o súdito ideal do domínio totalitário são “as pessoas nas quais não mais existe a distinção entre fato e ficção (isto é, a realidade da experiência) e a distinção entre verdadeiro e falso (isto é, os critérios do pensamento)” (2021, p. 632). Esse é o sujeito do mundo distópico de hoje. Em realidade, opera-se uma modificação semântica nesses próprios conceitos e a mentira já não se chama mentira, mas, como nomeia a assessora do ex-presidente americano Donald Trump, Kellyane Conway, “fatos alternativos” (alt facts).

         Em um artigo de 1943 sobre a Guerra Civil Espanhola, Orwell mostra de onde veio a inspiração para sua mais conhecida distopia, 1984: De fato, a teoria nazista nega especificamente a existência de algo denominado ‘a verdade’. Não existe, por exemplo, algo que se chama ‘ciência’. Há apenas a ‘ciência alemã’, a ‘ciência judaica’, etc. O objetivo implícito dessa linha de pensamento é um mundo de pesadelo no qual o Líder ou algum grupo dominante controla não só o futuro como também o passado. Se o líder afirma que tal evento ‘nunca aconteceu’ — bem, então nunca aconteceu. Se ele diz que dois mais dois são cinco — então dois mais dois são cinco. Essa perspectiva me apavora bem mais do que qualquer bomba — e, depois da nossa experiência dos últimos anos, não me parece que esta seja uma afirmação frívola (2020, p. 102-103).

         George Orwell descreve com clareza e precisão essa questão lógico-política. O ministério da verdade que se ocupava de notícias, educação e artes, exibia em sua fachada os três lemas do Partido: “Guerra é paz; liberdade é escravidão; ignorância é força”. Primeiro ponto: dá-se uma alteração semântica de ideias comuns, fazendo com que tais ideias passem a expressar exatamente a negação do seu sentido original. Por isso que hoje os discursos dos que ocupam posições políticas divergentes parecem se equivaler, sendo comum a presença dos mesmos termos, de modo que se pode confundir um ingroup com um outgroup, ao se observarem apenas alguns termos utilizados. A título de exemplo, pode-se analisar que os defensores de atos antidemocráticos e golpistas no Brasil contemporâneo clamam a favor da “democracia”, da “liberdade” e em nome da “Constituição”. Após a invasão dos Três Poderes, na tarde de 08/01/2023, quando atacaram, destruíram e vandalizaram seus prédios-sede, os agentes da insurreição fascista gritavam que agiam em defesa do país. Le Bon, em seu texto Psicologia das Multidões, ao fazer uma análise psicológica das massas, afirma que, reunidos em multidão, os homens não anseiam pela verdade e que, para eles, o irreal possui tanta importância quanto o real, tendo os membros do grupo evidente tendência em não os diferenciar (2018, p. 68).

         Quando a mentira é incorporada de tal modo no mundo, já não se pode discernir entre o verdadeiro e o falso e quem ouve ou reproduz um fato alternativo muitas vezes nem mesmo pode ser capaz de perceber a sua desonestidade. Quando não se está mais na prática epistemológica da comprovação ou da refutação, o fato mais inequívoco pode ser descaradamente negado.

         Acusa-se o outgroup dos crimes e malfeitos cometidos pelo próprio ingroup. A ambiguidade é de tal ordem que é possível apontar o dedo e julgar uma ação inexistente quando aquele que ponta o dedo pratica exatamente essas ações. Ou seja, a verdade das acusações está precisamente no oposto do que se diz. O manejo das palavras cria as narrativas mais extravagantes. A circulação dessas extravagantes narrativas resulta da completa credulidade, além de “prodigiosas deformações que os acontecimentos sofrem na imaginação de indivíduos reunidos” (2018, p. 43). Os acontecimentos se desfiguram, perdem a logicidade, a coerência, a plausibilidade. Ou seja, impera o mecanismo das alucinações coletivas (2018, p. 44), embora nada disso seja percebido pela multidão. Como é próprio das alucinações, toda elaboração imaginativa ganha a vivacidade das coisas reais, não sendo possível diferenciar o real do irreal. Aliás, quanto mais impactante for uma ideia, quanto mais for capaz de atormentar o espírito, mais a multidão fica por ela impressionada e é esse o caminho que os líderes utilizam para governar as multidões.

         Na distopia de hoje elimina-se por completo a estranheza da contradição, porque o poderia parecer contraditório deixa de sê-lo. Na obra de Orwell, o controle e a manipulação da realidade vêm do que se chama, no Novidioma, “duplo pensar” — a capacidade de aceitar crenças contraditórias e, portanto, não voltar-se para a evidência da contradição, mas ser capaz de realizar uma grande fraude mental, em que a mentira está sempre uma volta na frente da verdade (idem, 2022, p. 230).

         A produção do enunciado falso tem, no entanto, um alcance no tempo, posto que não altera somente a realidade presente, mas também a realidade passada. Em 1984, o personagem Winston tinha por tarefa, no ministério da verdade, atualizar o passado, ou seja, fazer as devidas alterações dos fatos, da história passada e a sua consequente destruição, a fim de que novos documentos fossem produzidos, substituindo os originais, que, no presente, se tornam desconformes às diretrizes políticas. Jornais, livros, revistas, panfletos, filmes, músicas, fotografias, a tudo era aplicado o mesmo proceder substitutivo — tudo era reescrito e republicado como se nunca houvera sido diferente. “A história era um palimpsesto raspado a zero e reincido com a frequência exata da necessidade” (ORWELL, 2021, p. 49). Claro que nunca seria possível provar quaisquer atos de falsificação.

         Na distopia de Orwell, fala-se uma nova língua (Novidioma), o idioma oficial da Oceania criada para atender às necessidades ideológicas do regime político local. A expectativa dos homens de poder era que o Novidioma, única língua do mundo cujo vocabulário encolhia a cada dia, substituísse o Velhidoma em 2050. Qual o objetivo desse Novidioma? Estreitar o pensamento, tornar impossível a sua expressão, fazer com o que o alcance da consciência passasse ser a cada vez menor (idem, p. 61). Como consequência direta do uso do Novidioma, o pensamento tenderia ao desaparecimento. A ideia é que, no futuro, quando fosse extinta a riqueza do pensar, qualquer indivíduo, ao se expressar, encontraria um caminho unívoco, único e mesmo, pois quanto menor a possibilidade de escolha para o falante, menor a tentação de pensar e maior o respeito à ortodoxia.

         Quando se é inibido ou proibido de pensar, dita-se ao sujeito as suas ideias e sentimentos, guia-se sua alma para a crença ou para a dúvida de acordo com intenções e predileções políticas e toda a história vai sendo escrita não pelo que efetivamente acontece, mas pelos “fatos alternativos” que os donos do poder decidem divulgar.

         A realidade objetiva é negada ou, antes, torna-se desimportante frente ao sistema de crenças. A realidade deixa de ter uma existência objetiva, externa e existente por conta própria e passa a ter uma existência interna, existindo na mente humana e em nenhum outro lugar (idem, 2022, p. 269). Nada em si é verdadeiro, mas pode se tornar verdadeiro dependendo do interesse e da conveniência das esferas de poder sob o comando do líder.

         Arendt chama a atenção para a razão pela qual as massas são levadas a abraçar mentiras de modo tão vigoroso. A autora destaca a tentativa de fuga da realidade como fonte importante da negação do realismo e a capacidade do líder de isolar as massas do mundo real. Para ela, o que as massas fazem é pronunciar um veredicto contra um mundo no qual são obrigadas a viver e no qual as condições de vida lhes são adversas (2021, p. 486-488). Ou seja, como conceituou Nietzsche, o niilismo, a negação deste mundo a favor de outro, produz o desprezo pela vida que se tem. Neste caso, o desprezo da realidade tal como ela se apresenta, em favor do mundo forjado pelo líder com fins à manipulação dos sujeitos.

         Apaga-se a linha divisória entre ficção e realidade, amplia-se o leque da verossimilhança ou da plausibilidade e passa-se a proteger o mundo fictício por meio de constantes mentiras, porque é o vínculo com o líder e com o ingroup que lhe impede a evidência do engano, ainda que provas irrefutáveis lhes sejam apresentadas. Alimentadas por chavões ideológicos capazes de mobilizar as massas, qualquer declaração se torna prova fática. A lealdade ao líder, diz Arendt, funciona como um talismã, que “assegura a vitória final da mentira e da ficção sobre a verdade e a realidade” (2021, p. 524).

         Em razão desse modus operandi próprio da discursividade, popularizou-se a expressão “fake news” para as assim chamadas narrativas falsas amplamente disseminadas pelos diversos canais comunicativos. Ocorre que usar os conceitos de falso e de mentira para esse tipo de construção discursiva não atende ao problema que se apresenta. Ou seja, o nome adequado para esse tipo de enunciado não é notícia falsa. Observe-se que o que é chamado de “fake news”, como já foi dito, não pode ser contrastado com a realidade. O falso é o que se opõe ao verdadeiro e o que perde sua credibilidade quando contrastado com a realidade fática.

         Ou seja, a notícia falsa está em embate direto com a notícia verdadeira e, esta última precisa ter a capacidade de desmoralizar o conteúdo mentiroso. Mas para tais enunciados não adianta fazer prova de realidade, pois qualquer contraste que evidencie a inadequação entre o que se diz e o que é não elimina a adesão a essa suposta verdade. O imaginário próprio dos sujeitos atingidos por esses enunciados não se relaciona com a experiência real, ou não se contamina pela realidade ou nem mesmo se perturba por ela. Além disso, tal prova também não elimina a sua circulação e expansão para novas mentes, fortalecendo de modo renovado, seu caráter de veracidade. As tentativas de desmascarar as “fake news” ainda que dignas, são intempestivas e ineficientes.

         Finalizando, não se trata de um erro lógico, de confundir a verdade com a mentira apenas, porque ela tem um segundo componente: é um enunciado que produz a realidade. Ela tem um efeito de constituir a realidade substituta. É uma noverdade, para seguir o texto de Orwell. A noverdade é a notícia que, ao circular, mobiliza as ideias e os sentimentos dos indivíduos, conduzindo sua alma para a crença mais tenaz. Ela não corresponde, como já foi dito, à realidade fática, mas impacta seu imaginário de modo mais violento do que o real. Ela tem, por assim dizer, um alcance cosmogônico, uma vez que tem o poder de construir um mundo, de fazer surgir uma realidade. Isso porque o que ela comunica não é apenas uma informação sobre um acontecimento, mas sim um novo horizonte de existência. Ela mobiliza os afetos mais caros ao sujeito e justifica as paixões mais violentas, estabelecendo com precisão quem são os ingroup e os outgroup. Quando se acredita, por exemplo, que as escolas irão distribuir um “Kit Gay” às crianças em tenra idade, não se trata apenas de mentir sobre uma ação governamental. Com essa noverdade é todo um novo mundo que se avizinha, em que as crianças são incentivadas a se tornarem homossexuais, em que o modelo de família tende a desaparecer em um futuro próximo, em que as liberdades individuais serão suplantadas pela ação de um governo perverso, violento e repressivo. O mundo imaginário ao qual essa perversidade pertence passa a ser o mundo ao qual esse sujeito real também pertence. Daí o traço cosmogônico da noverdade.

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Autor

  • Flavia Bruno

    Doutora, Mestre e Graduada em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Graduada em Psicologia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Professora Adjunto da Universidade Candido Mendes e da Faculdade São Bento do Rio de Janeiro.profabruno@gmail.com.

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