A Cosmologia segue os passos do filósofo Karl Marx
De tempos em tempos uma revolução ocorre na ciência alterando suas perspetivas e sua descrição do mundo. Embora essa mudança ocorre no interior da atividade científica, sua verdadeira natureza e o seu alcance são compreendidos somente mais adiante quando a base que sustenta a estrutura da nova formulação da lei física, em geral de natureza filosófica, é apreendida. Foi assim que percebemos as críticas profundas ao sistema da mecânica newtoniana que controlava a descrição dos processos e fenômenos por mais de quatro séculos, efetuadas por Poincaré e Einstein na teoria da Relatividade Especial.
Foi assim também quando a teoria da Relatividade Geral de Einstein alterou profundamente a descrição do movimento dos planetas, estrelas, galáxias e do próprio universo entendido como uma unidade global. E, para citar um outro exemplo notável, com a descoberta da teoria quântica que permitiu penetrar no mundo microscópico e descrever não somente os átomos, mas seus constituintes elementares, as partículas fundamentais. Alguns conceitos da teoria quântica nos parecem estranhos ainda hoje, cem anos depois do seu surgimento. Isso se deve à dificuldade de penetrar nos meandros filosóficos que essas teorias se sustentam e que não reconhecemos no cotidiano.
Pois uma nova revolução está em andamento com a sistematização da análise da dependência cósmica das leis físicas. Dito de modo simplista, os cientistas estão pondo em dúvida a extrapolação das leis físicas terrestres ao universo. Seriam elas válidas em qualquer parte no espaço-tempo, para além de nossa via láctea, no universo profundo, no território das centenas de bilhões de outras galáxias que observamos? Essa alteração se daria em especial naquelas regiões de campos gravitacionais extraordinariamente fortes.
A hipótese de trabalho que conduziu à aceitação da extensão ilimitada das leis físicas terrestres a todo o cosmos associou o universo a um sistema rígido, fechado, completo. Essa orientação se baseou na conjectura de que, ao examinar as leis físicas nos laboratórios terrestre, os cientistas estariam desvendando a estrutura das leis cósmicas, válidas
para todo o universo.
Imaginar que as leis da física são eternas e imutáveis, dadas por um decálogo cósmico é ter uma visão a-histórica dos processos no universo. Somente introduzindo a dependência cósmica das interações é possível retirar qualquer resquício de irracionalidade na descrição dos fenômenos na natureza e afirmar a força do modo científico de pensar o cosmos.
É ingênuo pensar que no século 20 se tenha introduzido a função histórica na cosmologia graças à descoberta da expansão do universo.
A extensão do alcance de aplicação das leis físicas para além da região onde elas foram efetivamente observadas é um modo natural de iniciar a descrição científica do desconhecido. No entanto, seu uso absoluto resultou ser tão impositivo e foi usado de modo tão amplo que inibiu qualquer forma de crítica, mesmo naqueles territórios onde essa extensão das leis não possuía nenhuma confirmação observacional.
Essa forma de limitar o pensamento, na tentativa da descrição racional do universo levou à subordinação a leis rígidas, fixas, imutáveis e cuja origem estaria para todo o sempre inacessível. Uma tal amplidão de uso da lei física está nas origens de sustentação formal do nefasto pensamento único que controla e corrói a sociedade nos dias atuais, uma utilização indevida da prática científica.
Nós só reconhecemos uma só ciência: a ciência da história, afirmaram Marx e Engels em A ideologia alemã. Essa sentença deve ser entendida, no interior da atividade científica, exibindo as origens de sua refundação na Cosmologia – a ciência histórica por excelência.
No primeiro momento, os físicos não consideraram aquela afirmação de Marx e Engels seriamente porque a quase totalidade dos cientistas acreditava que aqueles filósofos estavam se referindo às questões humanas, o território natural da historicidade. A Física, a ciência da natureza, sempre foi associada a uma prática que lida com processos que não se submetem à evolução e transformação que aquela asserção sub-repticiamente remete.
No entanto, um movimento renovador estimulado por cientistas como os ingleses Paul Dirac e Fred Hoyle, o russo Andrei Sakharov, o brasileiro Cesar Lattes, o indiano Jayant Narlikar e outros alterou profundamente a visão tradicional e a hipotética rigidez do universo ao instaurar o exame da possível variação temporal das leis físicas com a evolução do universo. Isso induziu a geração de argumentos sólidos segundo os quais a afirmação daqueles filósofos pode efetivamente ser aplicada igualmente à natureza nas dimensões cósmicas, enfatizando o caráter histórico da Cosmologia. Pode-se então afirmar que as leis físicas ao serem extrapoladas para o universo adquirem uma dependência com o tempo cósmico global, através da interação da matéria com a. curvatura do espaço-tempo. Ou seja, as leis cósmicas estão em permanente mutação.
Seguindo essa orientação, somos levados a concluir que o universo é inacabado e constitui um processo contínuo de formação, criação e destruição. Assim como esse universo se autocriou a partir de um vazio quântico, quando ele se autodestruir só sobrará o vazio que dará origem a um novo universo.
Através do reconhecimento da historicidade das leis físicas, a Cosmologia está trazendo o pensamento de Marx para o centro da explicação da evolução do universo.