A construção do tempo: Tempo absoluto, tempo relativo, tempo inexistente
DIÁLOGOS /
Mario Novello* //
Luiz Alberto Oliveira** //
Diálogos que seguem a palestra Tempo absoluto, tempo relativo, tempo inexistente.
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Luiz Alberto Oliveira: o Mário realizou aqui uma tarefa de quebra gelo, aquele quebra gelo que vai rompendo os icebergs. A tentativa de delinear, de conseguir pincelar com contornos precisos um problema de extrema dificuldade que é o de definir qual é a natureza do tempo.
Talvez a dificuldade inicial na abordagem dessa questão esteja no fato de sermos herdeiros e operadores de uma certa imagem do tempo, pois todos nós exercemos uma temporalidade cuja figuração talvez possa ser descrita como uma espécie de força que empurra as coisas, os habitantes do mundo do passado para o futuro. Essa é uma força universal, uniforme, irresistível, unânime, e muitos de nós gostaríamos que certos momentos dessa temporalidade se prolongassem eternamente. Mas não adianta, porque o relógio da central nos diz invariavelmente que a passagem dos instantes está sendo universalmente seguida. Forjamos uma imagem do tempo como uma espécie de linha infinita, e essa linha infinita é percorrida por um barquinho chamado ‘agora’, e no agora que vai se movendo de instante a instante, desde um passado remoto à um futuro inócuo, futuro embarcado que nós chamamos de realidade. O que era real no instante anterior não é mais, e o que vai ser real daqui a pouco não é real ainda. Então, nós vivemos essa imagem do tempo como se fosse uma linha infinita de instantes de pontos de tempo, de unidades de tempo de extensão nula, uma seguindo a outra e a realidade viajando ao longo dessa linha. É dessa forma que nós operacionalizamos a noção de tempo e de tal maneira somos eficazes em fazer isso que nós pensamos que sempre foi assim, ou seja, que essa é a imagem do tempo.
Como o Mário chamou atenção, essa imagem recente, se não fosse o Renascimento, não seria possível conceber o tempo como uma linha, ou seja, geometrizar o tempo. Se não fosse Descartes, não seria possível conceder que essa linha fosse uma sucessão de pedaços de tempo, uma sucessão de unidades de tempo. Ou, pior ainda, uma unidade de tempo de extensão nula, pontos de tempos, instantes. Se não fosse Pascal, não seria possível pensar que essa linha é infinita, portanto, essa imagem do tempo tem 300 anos, essa que está tão entranhada em nós, que até imaginamos uma faculdade do pensamento chamada bom senso que nos permitiria aprender essa imagem do tempo, apreender e exercer essa temporalidade. O que é o bom senso para pensarmos sobre isso? O bom sentido, a boa direção, a passagem das coisas do ontem para o amanhã, que nos permite estabelecer séries causais entre os acontecimentos, relacionar causas, ontem com efeitos sobre o amanhã. Nós até pensamos que temos uma faculdade chamada bom senso, nós fazemos bom uso dela ao praticarmos essa imagem do tempo, o problema que a ciência do nosso século vem mostrar é que essa imagem não é objetiva (uma palavra perigosíssima), ou seja, há outros modos de apreensão da realidade natural nos quais essa imagem não tem nenhuma eficácia. O primeiro momento desse corte, como o Mário mostrou, foi a relatividade. Na relatividade, aquele palco anterior, aquele espaço no qual os personagens e corpos se relacionavam uns com os outros, agiam uns sobre os outros pelas ações de forças e esse enredo ia se desenrolando ao longo de um tempo universal absoluto, esses palcos vão ter seus elementos fundidos, pois o espaço e o tempo vão se assimilar e, da mesma maneira, os personagens e seus movimentos também vão se juntar: espaço-tempo, matéria-energia. Então, a partir dessa ideia, nenhum observador pode medir uma certa dimensão de um acontecimento com uma régua, com uma distância, portanto, e outro observador medir esse mesmo acontecimento com um relógio, como se tivesse uma única duração. Espaço e tempo são unidades evidentemente distintas que não podem confluir uma com a outra, que não podem se confundir uma com a outra. O que a relatividade vem nos dizer é que essa distinção é ilusória, então nós começamos a nos deparar com uma dificuldade terrível, como se nosso cérebro mamífero não fosse capaz mais de produzir imagens visuais, de visualizar a realidade nesse nível fundamental revelado pela relatividade. Ou seja, nós operamos conceitualmente, simbolicamente, nós aprendemos e trabalhamos nesse nível da realidade para não perdermos o poder de fazer imagens. Mas, na verdade, as únicas imagens que nós somos capazes de conceber são imagens paradoxais. Não só os personagens e o enredo se fundiram e o palco se unificou, como agora tudo isso se tornou dinâmico. Ou seja, os personagens atuam sobre o palco e o palco, ele próprio personagem, reage de volta aos personagens da trama, e isso modifica o palco, que, por sua vez, modifica os personagens, numa processualidade infinita.
Essa imagem de uma totalidade dinâmica cria uma totalidade processual que tem historia. É uma imagem espantosa, porque ela significa que o universo e tudo o que existe nele está em estado de inacabamento, essa talvez seja a ideia mais significativa, mais fecunda dos próximos séculos, a ideia de que há uma historia da totalidade e que a historia da matéria, da vida e do pensamento têm como suporte essa historia do todo, essa viabilidade do todo. Só que são imensas as dificuldades para traduzirmos nos termos do cotidiano essas figuras do pensamento e, ali naquele momento, curiosamente, numa espécie de inversão da tradição platônica, os paradoxos, os enunciados ambíguos, indeterminados que contêm um germe de alta contradição e de indeterminação, esses enunciados que eram matrizes de erro, de engano e de falsidade e que, portanto, tinham que ser excluídos do pensamento, os paradoxos hoje, curiosamente, se tornam elementos de produzir inteligibilidade sobre o mundo. Nós podemos nos aproximar de uma compreensão dessas questões que estão sendo postas pela ciência contemporânea e não erradicarmos os paradoxos, mas, pelo contrário, utilizá-los como instrumentos, como ferramentas. Daí a escolha de Alice de Lewis Caroll. Um tratado, como disse no início, da paradoxologia que vai nos servir para ilustrar o problema que é o centro, o núcleo da apresentação do Mário Novello.
Ou seja, nós estamos há três séculos empregando um certo conjunto de instrumentos, um certo conjunto de operadores mentais pelos quais nós entendemos o que é a realidade natural, para entendermos o que é o mundo e para efetivar a nossa presença nele. Mas, de repente, surge um horizonte de validade para esse campo do pensamento, para essas estruturas mentais. Um problema desponta detrás do horizonte, um invisível, o que conhecemos hoje e dizemos no dialeto newtoniano, que algo desponta, que não pode ser apreendido por esse dialeto, então nós nos deparamos com o invisível, com o desconhecido. Isso é uma aventura, mas também traz angústia.
Para procurar uma ideia do que se poderia dizer sobre o tema, e de que maneira nosso espírito poderia tangenciar as bordas ásperas desse problema, a sugestão de usar o personagem de Alice. Na sua história há uma queda, que é a queda da maçã, e Alice por sua vez cai, só que nessa queda uma coisa curiosa acontece: é uma queda indefinida e de duração indeterminada. Pode-se dizer que é uma queda infinita em que alguma coisa acontece. Não há mais sentido distinguir o para cima e o para baixo, portanto. Alice cair significa, ao mesmo tempo, Alice subir, porque não tem mais a diferença entre o para cima e o para baixo, essa indeterminação em sua queda lança a estranha ideia de uma queda que se dá, simultaneamente, para os dois lados, uma ideia evidentemente paradoxal.
Essa é uma questão que gostaria de trazer como uma possibilidade de começarmos a discutir de forma sucinta o problema que o Mário apresentou. Isto é, quando nós procuramos idealizar aquilo que seria o máximo da culminância da ciência do século XX, o casamento da nossa descrição do universo em escala microscópica do mundo, dos átomos, dos seus componentes, as partículas elementares, com a descrição da totalidade, da expressão do universo astronômico, enquanto expressão máxima da existência, quando nós procuramos aproximar, combinar, as descrições extremamente eficazes que nós dispomos dessas duas escalas da natureza, alguma coisa muito estranha começa a emergir, algo muito diferente começa a surgir desse limite do dialeto newtoniano e vai apontar para o que seria a irrelevância ou a inexistência do tempo nesse estágio primordial que o micro ou o macro tem. Nesse momento primordial é como se o tempo fosse irrelevante e, de uma maneira mais precisa, poder-se-ia dizer que é como se tivesse deixado de ter importância a distinção entre o antes e o depois, tanto faz, ou seja, o tempo deixaria de ter direção. Sequer a distinção entre o antes e o depois seria relevante, mas essa irrelevância imediatamente coloca um outro problema: então quando é que o tempo começa? Quando é que o tempo é produzido? Há, então, momentos que não há o tempo, que o tempo inexiste ou é irrelevante? Há um momento em que o tempo começa, há um quando que o tempo começa? Como poderíamos conceber uma matriz do tempo? Um útero para o tempo? Que estrutura poderia dar lugar a esse cenário do universo que nós costumamos apreender pelo dialeto newtoniano, usando as estruturas mentais que nós herdamos dos últimos três séculos?
Se estamos falando de uma instância na qual o tempo não existe ainda, então poderíamos pensar em uma imagem de eternidade. Encontramos duas imagens de eternidade na história do pensamento, uma é a eternidade pascaliana, ou seja, o tempo, a eternidade da infinita extensão do tempo, a linha infinita do tempo, o tempo sem limite. Pascal, quando se deparou com as concepções de Newton sobre o mundo, sofreu um golpe, porque percebeu que se o espaço é infinito, a rigor não há um onde, se o tempo é infinito a rigor não há um quando, e Pascal pergunta: “quem somos?”
Então, uma eternidade da infinita duração, do tempo infinito não é mais interessante para nós. Os filósofos cristãos nos legaram uma imagem bem mais rica de eternidade, que é a imagem do ‘complicado’. ‘Complicar’ significa dobrar em latim, então complicado significa dobrado junto, não quer dizer confusão. E explicado é aquilo que se desdobra, é aquilo que estava junto e se separa. Complicado é o que estava separado e se junta. Então podemos pensar numa figura de eternidade que corresponderia a um colapso, a um redobramento disso que para nós está desdobrado às dimensões do tempo. Nós concebemos o tempo como tendo três dimensões: um passado, um presente e um futuro. E para nós essas dimensões são inteiramente distintas, não se combinam, não se penetram de nenhuma maneira, tanto que ficamos perturbados, como o Mário assinalou, quando surge a existência de possibilidades no universo, tais como os ‘buracos de minhoca’, nos quais andar para o futuro seria encontrar o próprio passado. Ficamos realmente perturbados com essa possibilidade. Daí que então as três dimensões do tempo: o presente, passado e futuro – o presente confinado a este instante chamado agora, habitado pelo real – quem sabe, poderiam ser concebidas como uma figura de eternidade na qual estivessem justapostas, como se fosse uma espécie de botão de rosas onde as futuras pétalas estariam ali presentes, em contato e de forma inseparável umas das outras, com o surgimento da rosa. Em outras palavras, o surgimento da existência, da ordenação, essa distinção entre as coisas, corresponderia ao desdobrar dessas pétalas, corresponderia à explicação do que estava até então complicado. Podemos assim imaginar um tempo no qual há um presente, e esse presente não é um intervalo de um passado e um futuro já dado, ou seja, ele não é um pedaço de uma linha, ele é um botão do qual passado e futuro se desdobrariam, uma injeção sobre o qual o tempo poderia se engendrar.
Essa imagem é extremamente adequada para descrever a paradoxal entidade para a qual o Mário chamou a atenção e que apelidou de ‘vazio’. Quando pensamos uma instância prévia a partir da qual fórmulas podem ser conduzidas, nesse estágio não há formas, então seriam estágios informes. O informe para nós tem duas imagens: a primeira é a do caos, do desordenamento. A imagem que nós usamos do caos é uma imagem da desorganização espacial, a perda das relações estruturais que dizem aonde cada parte deve estar. A imagem mais cotidiana para nós, fora a economia, é o pânico. O pânico quando se perdem completamente o sentido das relações sociais, quando avós pisam no pescoço dos netinhos porque se romperam todos os elos e referências. Mas essa imagem do caos é uma imagem de desordem espacial, de desorganização espacial, perda das especificidades dos lugares. Não é essa a imagem que cabe aqui. A que se aplica aqui é um caos de multiplicidade de tempos possíveis. É como se em cada botão de rosas, todas as rosas futuras, todas as rosas em potencial, estivessem ali presentes dobradas, apenas uma delas vai se desdobrar mas todas estão presentes nessa instância genética. Portanto, não se trata de um caos como uma imagem espacial, mas como uma figura temporal, um emaranhado de linhas de tempo.
A outra imagem que nós dispomos para falar do informe, é a figura do vazio, que supostamente é a mais simples das estruturas. Se não tem forma nenhuma, se é vazio tem forma nenhuma, ou quem sabe possa ser uma boa representação uniforme? Mas o que novamente parece paradoxal é que não há entidade mais plena do que esse vazio, ou seja, mais rica de potencialidade, é como se imaginássemos todos os universos, se algum dia e de algum modo, pudessem vir a existir. Todas as cores, todos os matizes, todos os tons, como se em nossa paleta tivéssemos todas as cores, e cada nuance de cor fosse um universo. Imaginemos se misturássemos todas essas cores, produzindo uma pasta, uma amálgama incolor que parece não ter cor nenhuma, parece não ter substância alguma porque é o resultado da sobreposição de todas as possibilidades possíveis. Então, nesse estágio de pré-universo no qual está o embrião de todos os universos, é que corresponderia à essa imagem do vazio. Vemos que a dificuldade que nós temos de enfrentar o surgimento de um limite de eficácia para o dialeto newtoniano é o fato de que os nossos modos tradicionais de pensamento têm que ser obrigatoriamente renovados. E essa renovação não é uma experiência trivial; é uma experiência, porque não dizer, poética. Então é necessário que os cosmólogos leiam Ezildo, Lucrécio e Manoel de Barros para se instrumentalizarem de conceitos rigorosos para poderem produzir um novo tipo de inteligibilidade para o qual os nossos sistemas tradicionais não vão ser capazes de dar conta.
A grandeza da exposição do Mário foi procurar nos presentear com esse anuncio, com essa previsão, com essa possibilidade e nos anunciar uma crise por estarmos à beira de necessitarmos de um novo modo de falar e de entender o mundo.
Nesse sentido, gostaria de pedir que ele discutisse um pouco mais as características dessa superação do dialeto newtoniano. Nós usamos, tanto eu como você, a imagem de um cenário, mas me parece que talvez fosse mais conveniente deixar de lado esse cenário e procurar uma outra imagem, quem sabe mais dinâmica e de interação.
Mário Novello: Vou alterar um pouco a questão para dar um exemplo que nos permita entender as mudanças que são necessárias de se fazer nesse dialeto newtoniano. E a ideia crucial para isso me parece estar contida na seguinte questão: qual a imagem que se pode construir sobre o começo da fase expansionista do universo?
Luis Alberto fez referência a uma imagem poética sobre a flor que desabrocha e que pode servir muito bem para entendermos alguns aspectos do universo.
Começamos por lembrar que algumas partes do universo podem nunca ter trocado informação e se desconhecem suas respectivas existências. A razão disso se deve ao fato de que existe um limite máximo de propagação de informação. Isso significa que é possível – se o universo for suficientemente grande – que haja regiões desse universo que nunca trocaram informação e nem nunca vão poder trocar, isto é, ao representarmos essa totalidade que chamamos universo, devemos nos preparar para usar praticamente a todo momento o principio de Copérnico, isto é, nós não estamos num lugar privilegiado no mundo. Somente assim, ao observarmos nossa vizinhança cósmica, poderemos extrapolar e construir uma imagem de uma totalidade que não observamos diretamente e que poderemos então chamar a totalidade universo.
Ou seja, a imagem que temos do universo não é completamente baseada em cenas de observações, há um principio fundamental que está por trás dela e é o principio de que nós não estamos vendo uma região particularmente importante ou particularmente especial do universo, mas sim uma região ‘típica’.
Talvez devêssemos citar uma ideia curiosa que apareceu na física nos anos 1960, que na verdade eu tenho a impressão de que já tinha sido colocado de outro modo por Pierre Duhem, Pierre Chardine outros cientistas em outro contexto, que consiste na hipótese de que o universo foi produzido para no futuro ser habitado por seres humanos. Alguns ingleses que desenvolveram essa esdrúxula proposta deram o nome de principio antrópico a essa conjectura que em síntese pretende que o mundo é o que é porque nós somos o que somos. Uma tal hipótese permite pensar em uma multiplicidade de universos. Dentre esses, alguns poderiam exibir leis físicas distintas. Certamente haveria escolhas, por exemplo, podemos imaginar que em um desse universos não haveria ingleses. Uma coisa é clara, no entanto: nós não temos acesso a esses hipotéticos universos. Se a física, a cosmologia amanhã provar que realmente existiram ou existem – e é difícil usar a palavra existir para falar desses outros universos aos quais não temos acesso nem nunca teremos, reflexo do uso irrestrito do dialeto newtoniano –, teremos dificuldades em propor um discurso sobre eles. Isso porque o dialeto newtoniano foi produzido para um cenário dentro de um universo único. Ao pensarmos vários universos o discurso tem que ser alterado. Por exemplo, cada universo teria uma representação espaço-temporal. Como conciliar essa imagem do nosso universo que possui uma estrutura espaço-temporal determinada, com a hipótese de outro universo que pode ser que não tenha a mesma estrutura espaço-temporal?
Isso levaria a outra forma de indagação, para além do dialeto newtoniano, mas bem mais aceitável como pensar que as leis da natureza pudessem ter uma evolução, pudessem depender da evolução cósmica. Essa ideia começou a ser examinada ao longo do século XX e levaria a pensar se as leis da natureza sempre foram as mesmas. Haveria afinal uma dependência cósmica das interações? Afinal, o que determina uma mudança de uma lei física?
Mas essas são questões para outro lugar. Obrigado.
Dentre as perguntas feitas pela platéia, selecionamos uma:
Pergunta da platéia: Você poderia falar um pouco mais sobre esse wormhole, o ‘buraco de minhoca’?
Mário Novello: Talvez não devêssemos falar do wormhole, mas, sim, de alguns argumentos científicos que permitem entender qual a novidade que essa configuração gravitacional contém. Em 1950, Kurt Godel, um matemático austríaco que se mudara para os Estados Unidos, fez um curioso trabalho sobre a relatividade geral para servir como uma homenagem a Einstein.
Godel era famoso e muito mais conhecido por seus maravilhosos trabalhos em lógica. Na física, ele fez poucos trabalhos, mas um deles criou uma questão que ainda hoje gera muita discussão e sua compreensão ainda não possui unanimidade entre os cientistas.
Segundo Godel ao aceitarmos que a gravitação é a responsável pela geometria do espaço-tempo, ao tratarmos esse espaço-tempo como uma substancia – que foi o que fez a teoria da relatividade geral – segue como consequência que é possível conceber configurações gravitacionais na qual é possível existir caminhos que levam ao passado. Luis falou sobre a dificuldade que é até mesmo falar dessa questão. É tão óbvio, é tão natural que eu sempre caminhe para o futuro e consequentemente me afaste de meu passado, que é difícil comentar usando nosso discurso convencional, tais situações para as quais não temos nenhuma possibilidade de vivenciar na Terra.
Quando digo que isso pode acontecer em certas circunstâncias onde o campo gravitacional é muito intenso, chega a ser chocante para nosso mundo do dia a dia. E, no entanto, é isso que pode ocorrer nessas situações onde, por exemplo, se forme um wormhole. Existem diversas formas dessa configuração formal, mas no tipo que nos interessa aqui, ocorre o que podemos falar de ‘volta ao passado’. É como se o tempo fosse cíclico, podemos falar assim, como se ao andar para o futuro não me afaste do passado, ao contrário, me aproximo do passado. Isso só faz sentido se você imaginar que o tempo não é essa linha reta a que o Luis se referiu, ‘ligando um passado ao futuro’. Na verdade é como se houvesse uma mudança da topologia, quer dizer, da estrutura topológica do espaço-tempo. Isso é difícil de conceber, pois não vivenciamos isso, nosso tempo terrestre é linear e por isso uma tal ideia – voltar ao passado – nos parece fantasiosa, uma simples questão de imaginação.
O que se está dizendo é que agora podemos saber a razão pela qual essa experiência de volta ao passado não é possível de ser realizada na Terra: não podemos voltar ao passado porque o campo gravitacional da Terra é fraco. Isso é a um só tempo espantoso e maravilhoso. Segue então a pergunta óbvia: quer dizer então que se existir uma região onde o campo gravitacional for intenso capaz de produzir esses caminhos fechados sobre si mesmos, poderia acontecer essa experiência de ‘volta-ao-passado’? Sim, é possível. Na verdade, isso é possível de acontecer exatamente na solução cosmológica inventada por Godel.
Eu gostaria de aproveitar essa pergunta e fazer um último comentário sobre algumas novidades da física envolvendo uma vez mais a propagação da luz. De novo, a luz está balizando nosso conhecimento do mundo, pois parece que estamos no limiar de uma revolução parecida com a que aconteceu no final do século XIX e que deu origem a essas duas relatividades que estávamos comentando: a primeira, a relatividade especial que esclareceu que é a luz, os fótons, que possui a velocidade máxima possível; e a segunda, a relatividade geral que sustenta que a gravitação modifica a estrutura do espaço-tempo, comprovada em Sobral, no Ceará, em 1919, graças ao desvio dos raios luminosos pelo Sol.
Pois bem, é possível que estejamos próximos de uma terceira revolução no conceito do espaço tempo e uma vez mais graças a análises do comportamento do fóton em circunstâncias especiais. Como diria meu amigo, o filósofo Cláudio Ulpiano, temos que examinar um movimento de ideias muito difícil. Por exemplo: que imagem mental deveríamos atribuir à informação de que um fóton pode observar o seu passado? E se isso pudesse ocorrer em laboratório terrestre? Uma tal afirmativa entra em choque com alguns conceitos que nos parecem trivialmente verdadeiros.
Na verdade, fótons não-lineares em circunstâncias desenvolvidas em laboratório terrestre podem produzir uma representação equivalente a um processo gravitacional desses que eu acabei de falar, tipo wormhole, onde existiriam curvas que voltam ao passado. Ou seja, em certos processos não-lineares os fótons podem ter a propriedade que se identificaria com a imagem que temos de ‘volta-ao-passado’. Ora, nós não podemos seguir um desses caminhos do fóton, mas podemos extrair informação desse fóton realizando essa experiência de voltar ao passado. Embora essa experiência ainda não tenha sido realizada, sua realização não é proibida por nenhuma lei da física. Assim, podemos esperar ver esse fenômeno em nossos laboratórios, pois, como dizem nossos colegas biólogos, tudo aquilo que não é proibido de acontecer na natureza, acontece.
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*Mario Novello é físico e cosmólogo do ICRA/CBPF.
**Luiz Alberto Oliveira é físico do ICRA/CBPF.