A construção do tempo: Tempo absoluto, tempo relativo, tempo inexistente
PALESTRA /
Mario Novello* //
Mediador: Luiz Alberto Oliveira** //
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Luiz Alberto Oliveira: É com alegria que o aprendiz, por estar ao lado do seu mestre, recebeu o convite para mediar a palestra do professor Mário Novello sobre Tempo absoluto, tempo relativo, tempo inexistente – os horizontes da metacosmologia.
Os gregos, nossos ancestrais, exaltavam acima de todos os sentimentos um afeto a que eles davam o nome de filia. Nós costumamos traduzir esse termo como tendência para, busca, propensão, inclinação, mas o sentido que os gregos honravam acima de tudo, era outro: o sentindo de solidariedade, de companheirismo, de alegria compartilhada.
Os romanos traduziam a expressão filia como uma palavra nobre: amizade, amizade ao pensamento. Então eu queria convidar vocês para compartilhar uma aventura, uma experiência de amizade ao pensamento, isto é, a participar de uma aventura a bordo do conhecimento, até onde o pensamento já pôde ir acerca de um exame da mais difícil e, possivelmente, mais bela entre as questões a determinar a natureza, a constituição, a gênese do tempo.
Nós somos afortunados de termos como piloto dessa aventura, dessa navegação, um dos maiores cosmólogos da atualidade, o professor Mário Novello, pesquisador, escritor, formador de cientistas.
Para começar essa jornada passaremos um trecho do vídeo Alice no País das Maravilhas, onde veremos uma cena fundamental de um livro notável de Lewis Caroll. Esse livro, à primeira vista, parecia apenas uma espécie de sucessão de situações meio sem pé e sem cabeça, narradas numa linguagem feita para encantar menininhas de seis anos. Mas, na verdade, não vamos nos enganar pois é um tratado de lógica do paradoxo, onde os paradoxos são os enunciados que contém um elemento em determinação, são enunciados que parecem excluir eles próprios, são pequenos labirintos verbais dos quais nossa imaginação se perde e se encontra. Então, para examinar essa pequena amostra de um paradoxo, o que vai nos servir muito para a compreensão do que vamos tratar aqui hoje, queria convidar vocês para conhecerem Alice.
(Cena: Alice quando vê o coelho correndo atrasado o segue e cai dentro do buraco da árvore e chega ao ‘país das maravilhas’).
Mário Novello:Nós vimos no trecho do filme Alice no País das Maravilhas, baseado na obra de Lewis Caroll, um exemplo daquilo que conhecemos cotidianamente, que é a queda do corpo e algumas histórias estranhas que ainda não entendemos bem sobre o tempo. Vamos tentar recuperar alguns conceitos e algumas ideias que os físicos têm descoberto e, para isso, iremos dividir nosso tema em três etapas, três fases, que, embora não seja original, é uma parte das análises que os cientistas têm feito ao longo dos séculos.
Vamos começar a nossa viagem no século XVII, onde a ideia de um tempo absoluto foi formalizada e elaborada de uma maneira precisa e rigorosa por Newton e seus seguidores. Newton aqui vai ser um nome que simboliza um conjunto de pessoas, porque, como sabemos, nenhuma atividade humana, e a científica em nossa análise aqui, ocorre de forma isolada. Ela é o resultado da ação de um conjunto complexo de pessoas trabalhando numa determinada área.
A ideia principal que iremos examinar e cuja origem remonta há mais de 400 anos, envolve um conceito que parece à primeira vista trivial, que foi entendido como uma verdade absoluta, isto é, a afirmação de que a noção de tempo é universal: aquilo que é medido por um relógio é também medido por todos os demais relógios, o tempo é único e o mesmo, independentemente da situação ou do lugar em que me encontro.
Essa medida, esse instrumento, o relógio, pode ter várias e diferentes formas. Por exemplo, a Terra girando em torno do sol – pelo fato de seu movimento ser periódico – pode ser considerado um bom relógio. Neste caso, a força que caracteriza esse relógio é a força da gravidade, pois a Terra executa esse movimento cíclico graças à força de atração gravitacional que o Sol exerce sobre ela.
Um elétron girando em torno de um próton no interior de um átomo, por exemplo, também é um bom exemplo de relógio graças à sua periodicidade. Aqui, no entanto, a responsável por esse movimento tem outra origem bem conhecida: trata-se da força eletromagnética.
Esses dois processos são exemplos diferentes de relógios. No entanto, o que é maravilhoso e até certo ponto inesperado é que eles medem o mesmo ‘tic-tac’. Ou seja, embora dependentes de forças distintas –
a força da gravidade, no caso dos planetas, e a força eletromagnética no caso de um elétron em torno do núcleo de um átomo – o que é importante é que ambos os relógios apresentam o mesmo ‘tic-tac’ qualquer que seja a situação que esteja em qualquer lugar do mundo.
Essa ideia dominava o pensamento dos físicos ao longo do século XVII, século XVIII, até o final do século XIX. No século XX ela começou a ser criticada e foi modificada de uma maneira que eu diria radical e bastante estranha para o senso comum. Na verdade, o que estava em jogo naquele tempo absoluto newtoniano era a ideia de simultaneidade. Simultâneos são fenômenos que acontecem ‘ao mesmo tempo’ para qualquer observador e, portanto, parece ser uma ideia tão trivial, simples e obvia, que é difícil até mesmo imaginar como poderia ser diferente. No entanto, no final do século XIX, uma grande mudança aconteceu devido a um movimento de idéias surgidas e defendidas por vários cientistas. Somente para simplificar meus comentários aqui, vou citar uma dessas pessoas para caracterizar esse conjunto de pessoas: Poincaré.
Poincaré simboliza um grupo de cientistas que promoveram uma mudança radical no conceito de tempo. Nesse grupo encontram-se, Lorentz, Fitzgerald, Minkowski, Einstein, entre outros.
Começamos por identificar o ponto inicial dessa caminhada revolucionária a partir de uma observação feita no final do século XIX, de que a velocidade de transmissão de qualquer tipo de informação não pode ser infinita, ou seja, existe um limite máximo para a velocidade com que qualquer informação pode ser trocada entre diferentes partes do universo. O fato de que os relógios parecem – e realmente têm – determinações distintas para diferentes observadores, depende basicamente do fato de que existe uma velocidade máxima de propagação de energia ou matéria sob qualquer forma. Essa velocidade máxima é a velocidade da luz.
A existência de uma velocidade máxima de propagação mudou radicalmente a forma pelo qual os cientistas passaram a determinar a estrutura causal do mundo, abandonando a versão newtoniana que havia sido estabelecida rigidamente, e de modo simples, pelo ‘bom-senso’.
A ideia de que a velocidade de propagação de qualquer processo físico não pode ser arbitrariamente grande não fazia parte do arsenal aprioristico dos físicos. Ao contrário, aceitava-se, como uma verdade natural, que não existia nenhum limite superior para essa propagação. Dessa forma é compreensível que tal qual essa ideia que demorou a ser reconhecida como possível e, mais ainda, para ser aceita como verdadeira, tenha-se ainda hoje, em nosso cotidiano, dificuldades para imaginar seu alcance e o real significado dessa limitação.
Essa foi a maravilhosa descoberta que no final do século XIX deu origem a uma mudança radical no nosso conceito de tempo. A certeza tradicional de que havia um tempo único para todos, um tempo absoluto, foi modificada e dessa maneira, começou-se a desconstrução de uma forma de organização causal no mundo que havia controlado todos os processos físicos nos séculos anteriores.
Na nova formulação, os relógios determinam tempos diferentes para diferentes observadores, ou seja, o ‘tic-tac’ bate diferentemente, dependendo do seu movimento. No entanto, não percebemos isso em nosso cotidiano. E a razão porque não vemos isso ocorrer está ligada ao fato de que esses movimentos precisam ser extremamente elevados para que sejam sentidas mudanças no ‘tic-tac’ dos relógios. Em outras palavras, as mudanças do ‘tic-tac’ do relógio só ocorrem de forma significativa quando as velocidades envolvidas daqueles observadores que se movimentam com os relógios são próximas da velocidade da luz, que é a máxima velocidade permitida de propagação de informação.
Essa alteração na estrutura causal do mundo simboliza a primeira revolução protagonizada por Poincaré e que adquiriu sua formulação popular por Einstein no começo do século XX.
Há uma segunda revolução einsteiniana, feita quinze anos depois. Vou me dedicar brevemente a falar sobre ela. Depois voltaremos para rediscutir o panorama newtoniano. Essa segunda revolução tem a ver com a força da gravitação, como acabamos de ver no filme Alice no País das Maravilhas. Em 1915, Einstein construiu sua teoria da relatividade geral, que nada mais é do que uma teoria para descrever a força gravitacional de um modo radicalmente novo. Essa força, que todos conhecemos e que pensávamos saber como descrevê-la desde o século XVII, adquiriu, na formulação da relatividade geral, uma forma totalmente distinta. Na verdade, introduziu-se um conceito tão novo que produziu uma mudança radical. E que mudança foi essa? No modo newtoniano de descrever o processo gravitacional seguia-se a seguinte formula: quando um corpo material exerce uma ação sobre outro, digamos, quando o Sol se encontra num determinado ponto e a Terra afastada sente a ação gravitacional, isto é, uma força do Sol sobre a Terra, dizemos que é essa força que faz com que a terra gire em torno do sol.
Einstein propôs uma interpretação dessa força totalmente distinta. Segundo ele e colaboradores, o Sol na verdade não age diretamente sobre a Terra, e sim sobre uma estrutura que nada mais é do que o próprio espaço-tempo. Essa entidade – o espaço-tempo – que pensávamos ser apenas uma estrutura mental, nada mais do que um conceito, transformou-se na nova formulação, deixando de ser somente a arena onde os fenômenos físicos deveriam acontecer.
O que se pensava ser nada mais do que uma representação da mente, no sentido kantiano, deveria ser entendido como uma verdadeira substância. Essa alteração do status do conceito espaço-tempo provocou uma mudança radical, que não condiz com nossa percepção cotidiana. Nós não conseguimos identificar essa estrutura material, o espaço-tempo, no nosso cotidiano, mas, no entanto, essa foi a ideia revolucionária com que, desde então, passou-se a descrever os fenômenos gravitacionais.
Uma das consequências mais dramáticas envolve o mecanismo de transmissão da força gravitacional. O Sol não age diretamente sobre a Terra. O que atrai a Terra não é um “fenômeno gravitacional de uma força agindo sobre um corpo”. Segundo a relatividade geral, o Sol age sobre o espaço-tempo, sobre esse meio continuo e entendido como um fluido material que tudo permeia entre o Sol e a Terra. O Sol, sua massa, atua sobre o espaço-tempo que vai então promover mudanças, ondulações, nessa estrutura espaço-tempo. Como consequência da agitação desse meio, ela provoca sobre a Terra mudanças induzidas pelas oscilações do espaço-tempo geradas pela ação do Sol.
Essa ideia era e ainda é bastante estranha. Ela contém uma novidade tão radical que levou algumas dezenas de anos para ser assimilada pela comunidade científica, porque a ideia que tínhamos do espaço-tempo, herança dos primórdios da física, era a de uma estrutura estática, a priori. Tanto o espaço, quanto o tempo tinham um conteúdo formal absoluto. A revolução do primeiro Einstein-Poincaré que comentamos, a mudança que eles produziram na estrutura do espaço tempo resumiu-se a considerá-la não mais como absoluta, mas relativa. Relativa a quem? Relativa aos outros observadores. Mesmo àqueles que se movimentam com velocidade grande em relação à velocidade da luz e, consequentemente, seus relógios marcham diferentemente, experiência essa que nós não temos nem teremos nunca em nosso cotidiano, porque nossas velocidades são muito baixas comparadas com a da luz.
A partir do segundo Einstein, no entanto, mudou-se radicalmente essa estrutura espaço-temporal argumentando que há uma verdadeira ação física sobre ela. Isso certamente foge à noção convencional que tínhamos sobre o lugar dos acontecimentos.
Devemos fazer aqui um pequeno parêntese sobre algumas ideias, algumas mudanças em nossa descrição da realidade feitas ao longo do século XX, associadas a mudanças na Física que alteraram profundamente certos conceitos tradicionais com que lidamos no cotidiano. Não vou me estender nessa ideia, embora ela seja bem interessante e devêssemos em outro momento nos dedicar um pouco mais a ela para compreender seu alcance. Aqui vou somente apresentá-la para tornar nossa conversa mais compreensível. Esses processos extraordinários a que estamos nos referindo ocorrem fora de nosso território de observação usual, em dimensões para além (no universo) e aquém (no interior dos átomos) de nosso cotidiano. No interior do microcosmos e lá longe no macrocosmos, no universo, vamos encontrar situações não usuais, com as quais não nos deparamos em nosso mundo, no dia a dia, e que levam a uma mudança radical do modo de descrever o mundo, aquilo que chamamos a realidade fisica.
De modo geral costumo chamar de dialeto newtoniano o modo pelo qual descrevemos, usando a linguagem convencional, o nosso mundo cotidiano, as coisas que nos cercam, nosso dia a dia. Newton, claro está, é um nome, e iremos usá-lo como o cientista que simboliza a ordenação das observações que foram feitas sem a utilização de máquinas muito complexas com que observávamos o mundo até o final do século XIX.
No século XX, em dois territórios extremos, mudanças foram feitas nesse cenário que geraram alterações radicais no modo pelo qual os cientistas hoje descrevem o mundo. Uma dessas mudanças está precisamente relacionada ao fato de que as velocidades com as quais nos movimentamos são extremamente baixas se comparadas com a velocidade da luz. No microcosmos, no entanto, podem ser atingidas velocidades próximas dessas velocidades extremas, o que certamente não acontece no nosso cotidiano. Situações curiosas então aparecem. Por exemplo, relógios que se movimentam a essas velocidades extremas, passam a ter um ‘tic-tac’ diferente. Isso acontece devido a esse movimento estar com uma velocidade próxima da velocidade da luz. Certamente estranhamos essa propriedade, essa dependência do tempo medido por um relógio, qualquer que ele seja, com seu movimento, pois isso não faz parte de nosso mundo convencional, isso não ocorre com corpos não microscópicos, da dimensão humana. Não entendemos isso bem, mas de qualquer maneira faz parte do cenário da física moderna, e é compreensível o que os cientistas estão querendo dizer, pois alguma coisa está acontecendo com o relógio que implica na mudança de seu ‘tic-tac’.
Por outro lado, sabemos vagamente que o microcosmos é regido por leis da física quântica. Física quântica é o nome de uma parte da física moderna que introduziu uma série de conceitos novos, de conhecimentos, de técnicas e leis que começaram a aparecer nas primeiras décadas do século XX e se consolidaram quando aumentou nosso conhecimento sobre o microcosmo, quando começamos a entender as propriedades dos átomos e seus constituintes, prótons, nêutrons e elétrons – pois esses corpos exibiam características diferentes das que eram conhecidas na física newtoniana, naquilo que se convencionou chamar desde então pelo nome de física clássica. Essa física clássica é precisamente a física newtoniana, que dominou o cenário do conhecimento cientifico desde o século XVII até o começo do século XX.
Algumas coisas muito estranhas acontecem com efeito, no microcosmos. Talvez o símbolo maior dessa estranheza seja o conceito de vácuo. O vazio ou vácuo, no sentido clássico da palavra, tem um significado bem claro e preciso para todos nós, como por exemplo, uma caixa vazia que não contenha nada. Se conseguimos, ao menos em princípio, ao menos em nossa imaginação, retirar todo o ar que está lá dentro, esvaziá-la por completo, essa caixa assim despojada de toda substância, matéria ou energia, representa a ideia, a imagem mental que nosso senso comum permite chamar vazio clássico. O vazio quântico não se identifica com essa estrutura, não lhe é equivalente. O vazio quântico possui propriedades, qualidades, potencialidades – e a palavra potencialidade nesse contexto representa bem o que está acontecendo nesse mundo quântico – capazes de se manifestar em uma ação no mundo. Ora, sabíamos – ou assim pelo menos se acreditava – que o vazio não age sobre coisa alguma. Por definição, se um dado lugar não há nada, uma caixa vazia, não pode haver nenhum efeito do interior dessa caixa sobre o resto do mundo.
Nada semelhante ao nível quântico. O vazio quântico é um vazio cheio de potencialidades, como se fosse um vazio aparente, um zero construído por partes, consequência de ‘alguma coisa’ que possui partes positivas e negativas que se cancelam: esse nada que é um zero é o resultado de uma soma algébrica, matéria ou energia positiva e seu oposto. Então essa estrutura, extremamente rica, esse estado que chamamos o vazio, esse vazio quântico é a representação de situações típicas no microcosmos e suas propriedades se afastam bastante do nosso cotidiano, esse mundo newtoniano que nos cerca e a partir do qual construímos uma representação do mundo gerando aquilo que chamamos o senso comum.
Voltando nosso olhar agora para o extremo oposto, lá no macrocosmos, nessa imensidão de centenas de bilhões de galáxias que compõem o que chamamos nosso horizonte observável, ocorrem situações igualmente estranhas que se afastam por demais do senso comum e cujo significado iremos agora comentar.
Nessas dimensões fantasticamente grandes, ao observarmos a estrutura do universo através das teorias com que descrevemos a realidade em nossa vizinhança, aparecem situações nas quais o conceito de tempo não faz sentido, ou melhor, não possui o significado convencional (exibindo assim a origem do titulo de nossa palestra envolvendo o conceito de tempo inexistente e que tentarei agora explicar).
Antes de qualquer comentário, devemos notar que é uma tarefa difícil – eu chegaria a dizer mesmo quase impossível – verbalizar o que acontece nessa configuração. Parece que estamos em frente a uma ruptura conceitual profunda. O dialeto newtoniano não pode ser usado, pois ao usá-lo, aparecem contradições formais.
Ou seja, o cenário organizado tendo seus alicerces fincados na estrutura conceitual newtoniana, com base na física newtoniana – aquilo que os físicos desde o século XVII organizaram em termos de conceitos do senso comum, toda a estrutura da física clássica – parece que deve ser interrompida. Só para dar um exemplo: como se poderia descrever uma realidade, um evento, qualquer que ele seja, um processo, uma caneta que cai ou um átomo que simplesmente risca algum movimento em algum lugar sem uma representação espacial? Sem poder descrever, localizar esse evento, situá-lo face a outros acontecimentos, outros movimentos, como abandonar essa descrição de sequência de acontecimentos no espaço e no tempo, ou seja, no espaço-tempo? Embora, como vimos, Einstein argumentava que ele é uma substância, ainda assim ele pode preencher a função de produzir uma representação do mundo.
Não temos a possibilidade, nem ao menos a capacidade, a não ser, talvez, em alguns momentos psicóticos, de imaginar um acontecimento, qualquer evento, qualquer acontecimento no mundo que não seja localizável no espaço e no tempo.
Pois bem, nós vamos ver mais adiante uma consequência de estudos cosmológicos que pode levar a isso, eu diria mesmo que seriamos obrigados a empreender um discurso sobre o mundo onde o espaço-tempo não existia. Onde ele, a partir de um momento singular ao qual não temos acesso, teria sido criado. Como é isso possível?
Um primeira síntese do que vimos até aqui nos leva a pensar na limitação do que chamei dialeto newtoniano. Lembremos uma vez mais esses dois movimentos que vimos organizando no micro e no macrocosmos, a saber:
1) No interior do microcosmos nos deparamos com o estranho conceito envolvendo a noção de vazio, que não é adequado à noção de vazio que usamos no cotidiano. Não são os vazios newtonianos que estamos acostumados e reconhecemos;
2) No macrocosmos, nas imensidões siderais, podemos perder a noção de que certas circunstancias do nosso universo, até mesmo a estrutura formal mais simples, qualquer acontecimento, possuem por definição uma representação corpórea, podem ser descritos no espaço-tempo. Ao retirarmos a possibilidade dessa representação no espaço-tempo, perdemos aquilo que chamamos ‘representação do mundo’.
Esses dois exemplos mostram que estamos no final do século XX abandonando, ou melhor, sendo obrigados a abandonar o que venho chamando de dialeto newtoniano.
A ciência se organizou a partir de conceitos retirados da experiência de cada um de nós, em nosso cotidiano. O dialeto newtoniano, consiste nesse modo de descrever a realidade baseados em nossas experiências pessoais. A física iniciou sua organização formal a partir desse conjunto, ela trabalhou com eles, deles extraiu sua operacionalização, suas leis foram descritas usando esses conceitos, que são bem determinados e claros, são conceitos utilizados no cotidiano, tais como temperatura, peso, comprimento, massa. São conceitos convencionais. Quando o físico fala de suas leis, elas podem parecer complicadas, e algumas delas para os não cientistas são difíceis de serem compreendidas, parecem verdadeiramente muito complicadas. No entanto, entendemos o que está sendo dito. Por exemplo, quando o físico diz: um gás, ao ser colocado no interior de um recipiente tende a ocupar todo seu espaço. Podemos não entender a razão pela qual isso ocorre. Mas entendemos o que está sendo dito, pois nesse nível, o cientista está usando o dialeto newtoniano. No entanto, no microcosmos e no macrocosmos isso pode não ocorrer e é preciso recorrer a conceitos novos, alguns até mesmo em contradição com propriedades que estávamos habituados a aceitar.
Com efeito, no século XX houve mudanças, algumas delas somente de intensidade, nesse dialeto newtoniano; mas outras maiores gerando uma ruptura. Essa ruptura é mais do que uma simples mudança de ênfase do dialeto newtoniano, ou seja, fomos obrigados a empreender um discurso sobre o mundo diferente daquele que estávamos acostumados. Isto é o que a física estava acostumada a fazer desde o século XVII. Essa situação não aparece devido a um delírio individual que tenta escapar da rigidez das leis físicas absolutas. Não! É de dentro da própria estruturação da lei física do mundo que ele aparece.
Ou seja, a física newtoniana estabeleceu uma ordem na natureza a partir de conceitos associados à dimensão humana que representam situações comuns: baixas velocidades, baixas pressões, baixas intensidades de campos gravitacionais, pequenas velocidades se comparadas com a máxima velocidade permitida que é a da luz (300.000 km/s). O que os cientistas descobriram ao longo do século XX envolvendo situações extremas, quer no microcosmos, quer no macrocosmos, vai muito além da dimensão humana. Envolve situações que não encontramos no nosso dia a dia. E é por isso que elas criam dificuldade de compreensão, pois envolvem características novas em situações com as quais não temos – e muito possivelmente, nunca teremos – nenhuma possibilidade de observação direta, usando somente nossos sentidos.
Esse comentário fecha um parênteses, talvez longo demais, mas necessário para o que queremos entender aqui.
Voltemos a pensar a revolução do segundo Einstein do século XX. Nos anos 1920 ele produziu uma explicação da força gravitacional de modo muito pouco convencional. Pensava-se, de modo newtoniano – e em nosso cotidiano, ainda usamos essa interpretação – que a ação de um corpo material sobre o outro através da força da gravidade – o que faz com que as canetas caiam, que as maçãs caiam, e que nos impede de voar – era uma ação direta entre corpos. No entanto, no modo de ver einsteiniano se trata de uma ação sobre o espaço-tempo. Isso é, sem dúvida, difícil de entender, pois como já dissemos, o espaço e o tempo não possuíam realidade como os corpos. Tratava-se de algo diferente, que pertencia ao território da imaginação. Era uma representação, não era o fenômeno, não era uma substância. No entanto, na nova interpretação da relatividade geral, o espaço-tempo é tratado como uma substancia, possui uma realidade real, é alguma coisa que pode ser atuada, e que atua sobre os corpos, sobre qualquer coisa que existe. Isso levou até mesmo a uma caracterização nova do que significa existir. Nessa visão, qualquer coisa que existe atua sobre espaço tempo. Essa passou a ser uma nova definição sobre o conceito existir: existe aquilo que atua sobre o espaço-tempo, posto que não há nenhuma possibilidade de um corpo que existe não produzir uma ação gravitacional sobre o mundo. Ou seja, tudo que existe atua sobre o espaço-tempo. Podemos mesmo afirmar, de um modo brincalhão, mas totalmente correto, que vale a sentença ‘caio, logo existo’.
Como consequência desse segundo movimento einsteiniano da década de 1920, apareceu uma ideia fantástica referente precisamente ao que acontece no macrocosmo, no universo em larga escala e à qual iremos comentar agora.
Talvez a descoberta mais desconcertante e contrária à ideia prevalecente nos séculos anteriores, de que vivemos em um universo estático, tenha sido feita no século XX, quando os cosmólogos produziram um cenário dinâmico para nosso universo. Depois da revolução copernicana de que a Terra não é o centro do universo, passou-se a um cenário cósmico no qual o universo era muito maior do que se pensava. Entretanto, ele guardava uma propriedade bem difundida: ele estava pronto e acabado. Consequentemente, como tudo que era pensado como uma tarefa acabada, perfeita, deveria ser estático. O universo não deveria sair de sua quietude. Por que procurar outro estado, se aquele estado em que está é perfeito? Para onde deveria ir aquilo que é perfeito?
E no entanto, como mais um rude golpe nas ideias pré-concebidas, essa certeza de um universo estático foi alterada. Mais uma vez as certezas antigas, moldadas até mesmo antes da revolução cientifica, foram submetidas a um novo golpe.
Como consequência das aplicações da relatividade geral ao universo, o matemático russo A. Friedmann propôs pensar o universo em que vivemos como um processo, possuindo uma dinâmica. Mais especificamente, aceitar que o volume total do espaço – o que chamamos espaço tridimensional – se expande. Nós não vemos esse espaço expandindo no nosso cotidiano, pois esse é um fenômeno extremamente lento. Nosso corpo não vivencia essa expansão.
Foi em 1929 que o astrônomo americanoE. Hubble descobriu que as galáxias estavam se afastando umas das outras, ou seja, que o universo como um todo estava em um processo de expansão. Eu considero essa descoberta de Hubble uma das mais importantes da espécie humana e explico por quê. Ao tratarmos o universo como a totalidade do que existe, aparece uma questão formal que inibiu durante muito tempo a aceitação da cosmologia, ao longo do século XX, como uma ciência convencional.
Na verdade, essa é uma questão maior, envolvendo não somente a cosmologia. Pelo menos no território da ciência – não estou comentando outras áreas do saber –, mas o conceito ‘totalidade’ no território da ciência sempre foi olhado com cuidado e muitas vezes, como indo além do território válido de investigação. Aquilo que é observado, é disso que trata a ciência. Ora, diziam físicos, é extremamente difícil observar uma totalidade. A razão, argumentava-se, é que toda experiência, toda a ação observada no mundo é localizada no espaço e no tempo. Assim, quando faço uma experiência qualquer – digamos, deixar cair uma caneta – essa experiência é localizada no espaço e no tempo, ela leva um certo tempo para ser percebida. Qualquer observador em seu laboratório, qualquer pessoa, em seu cotidiano, faz experiências que são limitadas espaço-temporalmente. Isso nos parece muito simples, óbvio e natural. Segue então a afirmação de que é impossível observar aquilo que chamamos a totalidade-universo. Não temos a capacidade, não temos a possibilidade de vivenciar, de observar essa totalidade que é o espaço-tempo global. E, no entanto, foi exatamente isso que Hubble conseguiu. Ele mostrou que nós homens finitos e limitados podemos, sim, observar o universo como um todo.
Ou seja, pela primeira vez na história os cientistas conseguiram demonstrar que o universo como um todo era observável. Hoje, a possibilidade de observação da totalidade universo parece trivial. E, no entanto, houve uma longa batalha formal entre os cientistas para chegarmos a esse ponto de considerar a expansão do universo como um conhecimento quase banal, pois a constatação de que toda experiência é limitada no espaço e no tempo exerceu uma forte dominação contrária à ideia de totalidade. Foi por isso que a observação de Hubble levou alguns anos, mais de uma década, para ser realmente entendida como a demonstração de que vivemos em um universo em expansão.
Essa revolução no modo de entender o universo afetou fortemente vários outros conceitos que a física newtoniana havia imposto como hipóteses sólidas. A própria ideia de ordenação espaço-temporal exigia uma mudança. E aos poucos, à medida que essa ideia começava a ser aceita, outros tabus eram quebrados. Devido ao grande avanço de várias partes da física durante os anos 1930 e 1940 mostrou-se que situações semelhantes aconteciam nas estrelas. Isto é, as estrelas que também eram pensadas como estruturas estáticas, eternas e sem evolução passaram a ser compreendidas como um processo. Não eram mais consideradas como objetos fixos e imutáveis, mas, sim, como um processo extremamente complexo. Passaram a ser entendidas como possuindo nascimento, um tempo finito de existência e um final, como uma morte. Isso foi consequência da compreensão da proveniência de sua energia, graças ao avanço da física nuclear aplicada à astrofísica. Com efeito, uma estrela consome muito a sua energia. Como consequência, em um dado momento – assim como certas pessoas que gastam demais seu cartão de crédito – ela joga energia muito rapidamente para fora, para o meio interestelar. Essa ejeção de energia continua até o momento no qual o equilíbrio do balanço de forças, que mantém a estrela como uma configuração estática, se perde. Quando a intensidade das forças que tendem a fazer a estrela expandir-se é inferior às forças gravitacionais que tendem a fazer com que a estrela colapsasse, ela inicia um processo de contração. A estrela joga luz e outras partículas para fora, perde energia, e ao despender energia para o meio interestelar ela começa um processo chamado de colapso, que não pode mais ser interrompido. Esse colapso pode eventualmente gerar filhotes que são buracos negros, estágios finais de certos tipos de estrela que consumiram muito sua energia.
A energia das estrelas só pode ser entendida com o avanço da física nuclear. Em particular, nós brasileiros somos ligados à esse processo, que recebeu o nome de processo Urca, graças ao bairro da Urca, pois foi o físico brasileiro Mario Schenberg, junto com George Gamow, um físico russo radicado nos Estados Unidos, que nos anos 1940 descobriu o mecanismo pelo qual as estrelas emitem energia. Elas podem fazê-lo de um modo quase ilimitado sem que haja uma contabilidade razoável. A estrela parece não ter controle sobre esse tipo de emissão e ao final ela colapsa gerando o buraco negro que é a estrutura final ou melhor, que é o resto de uma estrela.
Aqui há uma propriedade interessante e talvez seja importante abrir um pequeno parêntese e comentar sua relação com a vida. É muito difícil para um físico falar sobre a origem da vida, mas só para dar uma ideia – e eu não estou querendo absolutamente diminuir o papel que outras partes da ciência têm na definição do conceito de vida –, mas talvez todos nós, incluindo os biólogos, acreditamos que a vida é um processo que envolve carbono e que dificilmente nós poderíamos imaginar a vida (pelo menos do jeito que nós conhecemos) sem o carbono, sem uma grande cadeia de carbonos. O carbono que existe no universo foi basicamente produzido no interior das estrelas. Ora, se a estrela não morresse desse jeito, ou seja, se estrela não colapsasse, emitindo o resto de elementos químicos pesados – como o carbono – para fora, para o meio interestelar, o carbono não poderia sair do interior das estrelas e lá dentro das estrelas não poderia se iniciar o processo que chamamos vida. Isso porque a temperatura no interior das estrelas é extremamente elevada, da ordem de alguns bilhões de graus centigrados. Assim, devido ao fato de que a estrela pode sofrer um colapso gravitacional e de que ao morrer jogue para fora esse carbono é que mais adiante vão poder se formar grandes cadeias de carbono e eventualmente a vida. Assim, como disse um amigo astrônomo, “nós somos os restos mortais de uma estrela”. E ele tem razão, pois se a estrela não morresse, não colapsasse, não jogasse o carbono para fora, não haveria a possibilidade de termos carbono livre permitindo a construção de longas cadeias e, possivelmente, não haveria vida no sentido que nós conhecemos.
A ideia de que o universo é um processo se estendeu para todas as estruturas. Até mesmo configurações localizadas, como estrelas, também passaram a ser consideradas não mais como estruturas estáticas. Esse movimento, essa ideia de que a realidade é um processo em todos os níveis, mudou bastante o cenário da física. Nos anos 1960 consolidou-se a ideia de que o universo era um processo em expansão, ou seja, que o volume total do espaço estava aumentando com o tempo. Pode-se perguntar, depois do que comentamos acima, mas de que tempo estamos falando? Esse é um tempo cósmico, global, um tempo absoluto parecido com o de Newton – embora esse tempo absoluto nada mais seja do que uma escolha de representação à qual vamos nos referir para descrever o universo de uma maneira simplificada.
Essa expansão do universo, segundo esse tempo global, nesse tempo cósmico, mostra que o volume do universo foi menor no passado. Aparece então a pergunta natural: quão pequeno foi o universo? A resposta mais simples que foi dada, embora não explicasse muita coisa, afirmava que esse começo poderia ter sido singular, isto é, poderia ter sido um ponto geométrico, a partir do qual, como em uma falsa explosão, ‘tudo-que-existe’ aparecesse. Esse cenário postulava que o universo teria tido um começo a uns poucos bilhões de anos, e que esse começo foi extremamente quente. Isso significa que deve existir no universo um resquício sob forma de um gás de fótons que foi bastante quente no passado e se resfriou com o passar dos tempos. Ou seja, se você andar pra trás no tempo, quanto mais condensado for o universo mais quente é sua temperatura, pois ela varia com o inverso do raio do universo. Ou seja, quanto mais condensado, maior a temperatura, de tal maneira que se existisse mesmo o ponto inicial, onde o volume total do universo fosse zero, nesse ponto a temperatura seria infinita.
George Gamow, a quem nos referimos anteriormente, além de ser um excelente físico, era muito brincalhão. Como ele não gostava da ideia desse começo explosivo, para ridicularizá-la, referiu-se a essa teoria como o modelo do big bang. Para ele tratava-se de uma brincadeira e o big bang deveria ser entendido como um termo jocoso e até mesmo desagradável. Entretanto, os astrofísicos, por volta dos anos 1960, incorporaram a ideia do big bang. Ela começou a crescer e ganhar a mídia, até que nos anos 1970 foi decretado pela mídia, internacional e nacional, que os cientistas haviam descoberto que o universo tinha tido um começo há uns poucos bilhões de anos. Devemos, a bem da verdade, registrar que os jornalistas se aproveitaram dessa ideia fantástica, mas os verdadeiros responsáveis por sua difusão foram os físicos que deixaram essa ideia ser veiculada. Insisto nisso porque embora eu venha há mais de 20 anos comentando criticamente esse cenário, ele continua ainda hoje como a grande vedete do noticiário nacional.
Em resumo, podemos afirmar que o volume total do universo foi bem menor no passado, mas não se pode, tecnicamente falando, identificar esse momento de extrema condensação com seu ‘começo’. Essas duas ideias são separadas. Não há duvida de que houve realmente momentos extremamente quentes no universo há poucos bilhões de anos, ou seja, o universo foi realmente extremamente condensado, mas aqueles momentos de condensação não se identificam com a ideia de volume zero.
Aqui começa a terceira parte desse seminário, contendo a ideia do que iremos chamar tempo inexistente. Começamos por perguntar: por que esse nome? Porque iremos ver que é essa a situação que nos conduz à ideologia do big bang.
Tentemos fazer um panorama geral do que conversamos até aqui. Começamos com a descrição da estrutura microscópica, isto é, átomos, seus componentes mais elementares, nêutrons, prótons e elétrons. Sabemos hoje que essas quantidades não são mais entendidas como ‘elementares’. Prótons e neutrons são estruturas complexas e seus componentes mais elementares são quarks e gluons cuja interação, chamada forte, é intermediada por estes últimos, os quais desempenham um papel semelhante ao desempenhado pelos fótons no caso das interações eletromagnéticas. Por outro lado, tratamos da grandiosidade do universo, essas centenas de bilhões de galáxias que estão em nosso horizonte observável, cada uma delas contendo centenas de bilhões de estrelas. Nossa galáxia, a Via Láctea, por exemplo, contém centenas de bilhões de estrelas, companheiras de nosso Sol. Esses números são certamente impressionantes.
E então a questão aparece: mas esses extremos tem ponto de contato? O mundo microscópico de elétrons e quarks e essa grandiosa coorte de galáxias com centenas de bilhões de estrelas admitem um tratamento formal unificado?
Aqui aparece um movimento de ideias fantasticamente interessante. Vimos que o universo teve um processo de expansão. Se imaginarmos essa situação cósmica no passado longínquo, reconhecemos que o universo foi menor, bem menor. Tão pequeno ele foi, que em um dado momento, o micro e o macrocosmos se confundiram. As leis do mundo quântico (que controla o microcosmo) e as leis da gravitação (que controla o mundo macroscópico) devem se interconectar, influenciando-se mutuamente, em um tal momento. Essas leis do universo em seu momento tão reduzido, não são nem macroscópicas, nem microscópicas, mas uma união entre elas que deve produzir uma visão unificada do mundo.
Precisamos usar os conhecimentos de toda a física para descrever o que acontece nessa situação, ou seja, como nós vimos de uma maneira simplificada, o mundo microscópio é controlado pela física quântica e o macrocosmo é regido pela gravitação e suas leis clássicas. O universo deve ser tratado como uma só e solidaria unidade, ou seja, temos que usar a união desses dois grandes movimentos de pensamento – a física quântica e a cosmologia – para tentar descrever o que aconteceu na história do universo, em particular naqueles primórdios da atual fase de expansão.
Aqui aparece a grande limitação do cenário big bang e que vou explicar resumidamente e que leva ao limite do pensamento convencional, pois a descrição do que acontece nesse cenário não admite representação no espaço e no tempo e produz como resultado uma estrutura que não pode ser mentalmente representada em termos convencionais no espaço-tempo. Trata-se de um exemplo dramático daquilo que eu chamo de a grande crise do dialeto newtoniano.
Com efeito, começamos por produzir um cenário do mundo a partir de Newton, usando conceitos convencionais, a partir da percepção de nossos sentidos, estruturas simples de nossa mente elaboradas a partir de uma extensão de nosso corpo. Esse pensamento newtoniano se apodera de nosso corpo, faz dele um padrão universal e estende indefinidamente sua aplicação sem limites. Não há nada de espantoso nisso. Ao ler Newton, compreendemos os acontecimentos do cotidiano.
No entanto, no final do século XX, compreendemos que os avanços da física limitam a aplicação desse modo de pensar e que esse dialeto newtoniano não pode ser aplicado indiscriminadamente em todos os níveis da realidade. Porém, estamos tentando produzir esse modo novo de descrever a natureza, posto que um cenário completo, desde o microcosmos até o universo, se faz necessário. E, para isso, devemos ir além do dialeto newtoniano. Talvez mesmo ir além da ciência da física, produzindo sua refundação – que é o que a Cosmologia está pretendendo, ou pelo menos é o que dela se esperaria.
É por isso que creio que essa sessão, ou melhor, essa série de palestras de diferentes modos de ver a construção do tempo, envolvendo pessoas com diferentes especialidades, tem uma importância que transcende essa simples junção de pensamentos diversos.
Essa mudança de pensamento para além do dialeto newtoniano, ao ser feito no interior da física, transborda para outras áreas do conhecimento racional posto que a física, por ser a ciência que sempre foi creditada como na fronteira do pensamento racional, serve de guia para as outras.
É verdade que uma critica do dialeto newtoniano começou a ser realizado ao longo do século XX. Isso poderia ter acontecido em qualquer outra região do pensamento. No entanto, como o pensamento da física é montado em cima da visão newtoniana, que teve e ainda tem uma grande influência no pensamento em geral, seria razoável que essa critica partisse de dentro da física. Não foi o que aconteceu no primeiro momento com a Cosmologia. Ao contrário: através dela, o pensamento newtoniano foi atualizado para ser compatibilizado com as diversas revoluções do pensamento cientifico.
Somente agora, no século XXI, é que estamos descobrindo que não é possível preservar esse dialeto newtoniano em casos extremos, como no mundo quântico da microfisica e nos primórdios da atual fase de expansão do universo, quando este estava tremendamente concentrado a um tal ponto que até mesmo as leis convencionais da física devem ali ser alteradas. Nessas circunstâncias, preservar o dialeto newtoniano é ir contra o pensamento em movimento, posto que fica claro então que a estrutura mental do mundo construída a partir de nosso corpo, de nossa vizinhança, de processos da dimensão humana, não podem ser aplicados em qualquer circunstância.
Graças a esse processo reacionário de manutenção e atualização do dialeto newtoniano na década de 1970, o big bang, ao ser identificado como o começo do mundo, foi entendido como uma boa e definitiva solução do problema criado pela união da descrição do micro e do macrocosmo. E porque isso foi possivel? Como vimos, a observação das ultimas décadas permite concluir que vivemos em um universo em expansão e que foi extremamente condensado no passado, possivelmente muito quente. Entretanto, concluir e aceitar a ideia de que houve um momento único de criação, não é mais uma afirmação da ciência, mas uma especulação a partir de uma extrapolação indevida. Eu gostaria de chamar a atenção para a constatação de que se o universo ‘tivesse começado como uma explosão’, como o quer a extrema utilização do cenário big bang, então essa totalidade, o universo em que vivemos não seria racional. Por que posso afirmar isso? Porque a evolução de ‘tudo-que-existe’, a descrição completa do universo dependeria desse momento irracional, o big bang, ao qual não temos acesso. E por que não temos acesso a ele? Porque desse momento singular da história do universo – se realmente fosse verdade que o big bang pudesse ser identificado com o começo do mundo – não se poderia extrair nenhuma informação. Ou seja, nenhuma informação a que deveríamos recorrer para descrever o mundo a posteriori, poderia ser extraída desse momento singular, esse big bang idealizado e identificado como ‘começo-do-mundo’.
Mas por que uma solução tão pobre e de consequências tão desagradáveis pode ter sido considerada boa? Como pode, ainda hoje, ter adeptos fervorosos e contar com a quase totalidade da mídia a seu lado? Estou convencido que a resposta a essa questão é: porque essa solução é muito simples para ser compreendida por todos – em especial por aqueles que não são cientistas – e se encaixa perfeitamente nos cânones propagados por algumas religiões de extrema popularidade.
Com efeito, as demais propostas para descrever a evolução do universo são muito mais complexas e algumas delas dificilmente possuem uma versão popular de fácil compreensão.
O problema com o qual nos deparamos é esse: como descrever uma realidade se ela se organiza em circunstâncias tão especiais que teriam ocorrido no começo dessa fase expansionista do nosso universo, no qual a representação do mundo espaço-temporal que usamos cotidianamente não poderia ser aplicada? Ou seja, a representação espaço-temporal não é mais aplicável exatamente no momento onde aquilo que chamaríamos universo se estrutura.
Resumindo a questão que nos ocupa aqui e que de modo simplificado indagamos: qual a origem do universo? Duas principais soluções tem sido examinadas com ênfase nos últimos anos:
1 – Big-bang
2 – Bouncing ou Universo Eterno
A primeira já comentei acima. Vamos então considerar brevemente a segunda.
Há aqui uma circunstância que talvez fosse interessante chamar a atenção, porque os físicos começaram a desenvolver a partir da tentativa de unificar o microcosmo, o mundo das partículas elementares com o macrocosmos, o universo. Criou-se diferentes cenários, modos e mecanismos de criação do mundo. Quando digo criação do mundo, estou querendo me referir à criação da atual fase de expansão do universo, mas o segundo modo de compreender o universo, o Bouncing, permite ir além e perguntar: e o que houve antes dessa fase, desse começo expansionista?
Há (pelo menos) duas soluções para esse problema: há alguns poucos bilhões de anos, por uma razão que nós não sabemos e possivelmente nunca saberemos – e aí aparece o que chamei a pouco de irracionalidade do mundo –, houve uma explosão chamada big bang. Essa ‘solução’ parece agradar aos religiosos, eu realmente não consigo entender por quê.
Outra solução para esse problema baseia-se na existência de uma fase anterior à atual fase expansionista. Essa outra seria uma fase colapsante, ou seja, o universo teria colapsado, com seu volume total diminuindo, passado por um valor mínimo difrente de zero e, a partir daí, iniciado a atual fase de expansão.
Aqui nos deparamos de imediato com a transformação de uma irracionalidade – a explosão inicial sem a possibilidade de uma causa – em dois novos problemas, a saber: por que colapsou e por que esse colapso parou, transformando seu movimento em uma expansão.
Por que o universo teria colapsado? Os cosmólogos elaboraram um cenário que está relacionado ao que comentei lá atrás: nem todo vazio é um vazio clássico. Esse vazio com que os cientistas estão trabalhando não é o vazio clássico, aquela estrutura do cenário newtoniano. Estamos falando de um vazio cheio – cheio de potencialidade – e os físicos sabem como lidar com esse vazio cheio, ou seja, não só formalmente – através de equações –, mas também por observações. Ou seja, a ideia de que se possa realmente observar o vazio é convencional, não se trata de especulação ou fantasia, mas é uma realidade: possui um embasamento teórico e observações associadas.
Podemos observar efeitos desse vazio no laboratório, desde os anos 1950. Não se trata de uma novidade. A grande novidade que quero enfatizar aqui é de outra natureza e está ligado à descoberta de que esse vazio é instável. Poderíamos dizer, que se não existe nada, esse nada que não existe é instável. Aplicada essa noção ao universo, penetramos no que eu chamaria de meta-cosmologia, pois ela produz uma resposta à questão tradicional da filosofia: por que existe alguma coisa ao invés de nada?
A resposta que os cientistas estão produzindo nos leva a afirmar que o vazio não se mantêm eternamente vazio, ou seja,o universo em que vivemos é uma dessas coisas que acontece de tempos em tempos, pois não há possibilidade de não existir o mundo. Ao contrário do que se argumentava no passado, o vazio não é a coisa mais simples que pode existir. Ao contrário, sua permanência é a coisa mais difícil. Dito de modo mais livre, nada é suficientemente forte para poder não existir.
Os antigos argumentavam que a natureza tem horror do vazio. Esse ditado, comum no século XVII – por outras razões – está renascendo com vigor nos dias atuais, graças a essa união entre a microfísica e a cosmologia. Dessa união está surgindo uma nova interpretação para a origem de ‘tudo-que-existe’ e que podemos simplificar na afirmação de que uma estrutura – chamada vazio – sofre instabilidade a partir da qual gera um universo. É quase impossível produzir uma imagem simples do que está sendo dito nessa sentença. E é precisamente esse o problema que apontei acima: fora do cenário simplista do big bang – que em verdade, não constitui uma explicação –, ficamos sem uma representação no dialeto newtoniano sobre a origem do mundo.
Assim, optou-se por deixar que uma imagem simplista, mas sem consistência formal, ganhasse um status elevado na explicação da origem do universo. Entendemos agora um pouco melhor pois, devido à dificuldade em produzir uma versão dentro da linguagem convencional, dentro do dialeto newtoniano, a versão simplista e irracional do big bang foi alçada ao seu status de representante cientifico da origem do universo. O principal responsável foi a dificuldade em poder transformar cenários mais realistas do que chamaríamos começo do mundo – ou melhor, começo da atual fase de expansão do universo – em uma representação simples.
Entendemos também porque o dialeto newtoniano teve esse sucesso fantástico que dominou completamente o cenário do pensamento ocidental nos últimos 400 anos: ele permite a tradução das leis físicas dentro da representação convencional do mundo. Entretanto, o século XX pouco a pouco limitou essa descrição.
Note que se trata de uma contradição entre as novas leis da física e o dialeto newtoniano, uma contradição da sua representação no seguinte sentido. Ao aceitarmos a aplicação indefinida e em qualquer circunstância da representação de mundo newtoniana, somos levados a uma situação onde não se pode mais produzir uma representação do que acontece nos termos do dialeto newtoniano. O físico não está querendo esconder informações sob uma camada simbólica a que só os especialistas teriam acesso. Trata-se de entender que essas leis da física nessas situações extremas que comentamos não admitem descrição em termos do dialeto newtoniano. Repito: esse dialeto newtoniano, espero que eu tenha deixado claro, é o dialeto com os quais descrevemos o mundo, é o modo convencional de falar sobre o mundo e descrever suas leis.
Quando digo que se você chegar próximo a uma velocidade de 300 mil quilômetros por segundo – que é um número fantasticamente grande –, você vai ver que esse relógio não mede mais o que outro relógio parado está medindo, isso significa que há no mundo real mudanças que não fazem parte do nosso cotidiano. Isso se deve ao fato de que aquela velocidade fantasticamente grande não nos é accessível. Assim, somos levados a fazer uma transformação sobre o modo pelo o qual descrevemos o mundo, pois há novas propriedades que vão além das que descrevemos com a física newtoniana. Mas isso ainda não exige uma mudança completa do dialeto newtoniano, mas, sim, uma mudança de ênfase. No entanto, o que comentamos na união entre microcosmos e macrocosmos é de outra natureza, é uma estrutura totalmente diferente, e o que descobrimos é que o próprio tempo não tem a sua importância na descrição dos fenômenos. Poderíamos nos perguntar: mas então o que é um fenômeno, se não existe espaço e nem tempo? Essa pergunta significa: como se pode representar o que existe, fora do conceito espaço-tempo, permanecendo ainda dentro do dialeto newtoniano? Esse é nosso problema, e é exatamente por onde uma crise se instala no pensamento racional na aceitação desse cenário explosivo.
No passado tivemos alguns momentos significativos da quebra do orgulho da espécie humana, com Copérnico, Darwin e Freud. Aqui, estamos em face de uma nova quebra. Explico-me. Nós acreditávamos que o modo pelo o qual descrevemos a natureza, usando nossa razão e traduzindo nossos conhecimentos para o dialeto do cotidiano, esse dialeto newtoniano, é verdadeiro e único. Estamos descobrindo ao longo desses últimas décadas que a natureza é bem mais complexa. A extensão de nosso conhecimento está mostrando que essa visão, essa representação do mundo que estruturamos ao longo dos últimos 400 anos é na verdade uma imagem mental limitada e que deve ser radicalmente modificada.
Talvez devêssemos ir além de Newton, pois na verdade ele fez uma reciclagem do conhecimento vindo de séculos anteriores e de conhecimentos dispersos de várias áreas. Giordano Bruno, por exemplo, queimado na fogueira e que não adquiriu igual sucesso em seu modo de refletir sobre o mundo, seria muito mais atual.
Resumindo: montamos ao longo desses quatro séculos um cenário do mundo dentro do que chamo dialeto newtoniano. Entretanto, chegou-se a situações extremas nas quais não sabemos e não podemos continuar essa descrição, pondo esse cenário em xeque. Onde procurar um novo cenário para substituí-lo? Como isso pode ser possível, posto que no final das contas eu não vou sempre querer uma representação do mundo em termos do que diz respeito ao meu corpo?
Bom, essa é uma questão aberta e que esta sendo discutida em vários lugares e uma das soluções para esse problema diz respeito precisamente ao pensamento da cosmologia.
Vamos fazer um breve passeio a um curioso exemplo do que estamos tratando. Trata-se somente de um exercício mental, mas serve para exemplificar bem onde reside nossa dificuldade.
Trata-se de uma configuração semelhante a um buraco negro chamando wormhole ou buraco de minhoca, uma consequência formal da teoria da relatividade geral que altera profundamente o conceito de tempo. Na vizinhança dessa estrutura existem caminhos descontínuos no espaço-tempo. Como se houvesse labirintos semelhantes a caminhos de minhoca – que não vemos à superfície pois eles se desenvolvem sob a terra – fora da estrutura espaço temporal.
Esses caminhos fora do espaço-tempo são configurações, digamos assim, alternativas, que podem eventualmente ser usados. Nós não os vivenciamos, esses caminhos não são dados no nosso convívio cotidiano, nós não vemos esse caminho na nossa vizinhança, porque esses processos só podem ocorrer em campos gravitacionais extremamente intensos.
Esses caminhos existem, assim pelo menos o permite a teoria que aceitamos para descrever o universo. Eles ainda não foram observados, como também buracos negros stricto sensu também não foram observados – embora para esses, exista uma quantidade grande de candidatos. Se você perguntar a um astrofísico profissional, ele muito provavelmente dirá que sim, observamos já buracos negros, embora ele também afirme que nunca se viu um wormhole. De qualquer maneira, todos estão de acordo que há uma possibilidade real de existência desses wormholes, esses caminhos de minhoca que produzem mudanças temporais incrivelmente distintas do que ocorre em nosso cotidiano. Um exemplo dramático seria a possibilidade de passar duas vezes pelo mesmo ponto no espaço e no tempo, realizando aquilo que chamamos volta ao passado. Esses caminhos de ‘volta-ao-passado’ transformam radicalmente a estrutura convencional do universo.
A ideia de que pode existir uma estrutura no universo capaz de permitir a experiência de volta ao passado, é certamente estranha ao pensamento racional e completamente fora do dialeto newtoniano. No entanto, essa é uma das propriedades que estão sendo examinadas pelos cosmólogos.
A física do século XX produziu uma mudança em vários conceitos tradicionais no dialeto newtoniano com o qual o cientista convivia em perfeita e absoluta convicção até o final do século XIX. Hoje a situação é bem diferente e o cenário newtoniano se restringiu ao lugar ao qual Newton iniciou sua descrição do mundo, ou seja, aspectos cotidianos, corpos em movimento a baixas velocidades, baixas temperaturas, movimento de planetas…
A inesgotabilidade do real nos leva a pensar se uma revolução semelhante àquela realizada no começo do século XX não estaria em marcha nesse começo de século XXI. Parece, com efeito, que estamos no limiar de uma nova crise, e curiosamente essa crise de agora viria do mesmo território que iniciou aquela revolução do século XX. E qual é esse lugar?
Vimos que o grande salto do tempo absoluto newtoniano para o tempo relativo produzido pela relatividade se deveu à observação de que havia uma velocidade máxima de propagação de informação, uma idéia que não pertencia ao quadro newtoniano. E qual era essa velocidade máxima? Era a velocidade da luz. Então, a propagação da luz, ou seja das ondas eletromagnéticas, desempenhou um papel primordial naquela revolução einsteiniana. E nos dias atuais? O papel dos fótons continua a ser fundamental. Basta notar que é a luz que traz praticamente todas as informações que temos de fora da Terra, é a luz que nos informa sobre a expansão do universo, sobre as propriedades desses objetos que existem no universo, sobre estrelas, sobre o colapso das estrelas, sobre praticamente todo nosso conhecimento do cosmos.
Pois bem, uma vez mais, e quase repetindo o que aconteceu na primeira década de 1900, nesse século XXI acontece algo semelhante. Os físicos pensavam saber tudo sobre a luz, mas propriedades novas estão aparecendo. Por exemplo, recentemente examinou-se processos físicos descritos como se a propagação das ondas eletromagnéticas fosse distinta da que tradicionalmente tem sido considerada.
Estamos vendo acontecer uma mudança nas propriedades conhecidas da luz, mostrando que os processos eletromagnéticos possuem uma riqueza formal inesgotável, capaz de produzir uma ponte do dialeto newtoniano para esse novo dialeto que estamos tentando construir. No entanto, essa evolução e mudança vamos deixar para comentar em outra ocasião, pois estou vendo que o tempo de minha palestra já se esgotou. Então eu gostaria de terminar fazendo dois comentários.
No século XX mostrou-se que o universo em que vivemos é um processo, não é estático: o universo foi extremamente condensado no passado, mas não se deve identificar esse momento de alta condensação com a criação do mundo.
O segundo comentário diz respeito ao dialeto newtoniano. Ao examinarmos algumas das estranhas propriedades descobertas ao longo das ultimas décadas e da análise unificada do micro com o macrocosmo, levou-se a uma critica do modo pelo qual aceitamos uma representação do mundo. A versão newtoniana de produção dessa representação, elaborada nos últimos 400 anos e entendida como ‘natural’, passou a ser contestada. Seu status de verdade incondicional foi abalado e a produção de uma nova forma de representar os diferentes níveis da realidade – desde o mundo quântico microscópico até o horizonte observável dos grandes espaços cósmicos – começou a ser empreendido. Isso, claro está, não é tarefa para uma pessoa, mas uma produção coletiva. Talvez consigamos realizá-la nas próximas décadas. De qualquer forma, uma coisa parece clara: o dialeto newtoniano deixará de ser o único modo pelo qual descrevemos a realidade.
Essa constatação lança uma ponte para outros saberes que a versão newtoniana havia sido incapaz de negociar. Em particular, me remeteria à descrição do começo da fase expansionista do universo que nós vivemos, ou seja, produzir uma linguagem para explicar os diferentes modos de criação do universo – e que não tem contato com a fantasia dos moldes newtonianos de criação a partir de um ponto singular.
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Estamos, parece, no limiar da meta-cosmologia. A dificuldade dessa análise no interior do dialeto newtoniano conduz ao tratamento do tempo como inexistente, dificuldade esta que aparece ao aceitar-se, em um momento singular ou não do universo, a impossibilidade de um discurso sobre o real baseado em uma análise espaço-temporal. Esse tempo que não existe é produzido concomitantemente com o universo. Mesmo em uma representação desse tipo do universo – singular ou não – nós não conseguimos ainda abdicar da tentativa de produzir uma representação do mundo no dialeto newtoniano.
Eu não sei se essa minha análise da cosmologia e da física moderna parece fantástica aos meus colegas de outras áreas. O que posso afirmar é que ela representa o cenário produzido pelos físicos nas ultimas décadas e exibe o momento que estamos vivendo, com uma interface muito complexa entre as ideias que os físicos construíram nas últimas décadas e o cenário newtoniano com o qual vivenciamos a realidade em nosso cotidiano.
Assim, depois do que vimos, posso afirmar que tudo leva a crer que teremos que nos acostumar com novos modos de apreensão da realidade. Quais são esses novos modos? Essa á questão que está à nossa frente, esperando que possamos pensar e produzir juntos uma resposta que nos satisfaça.
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*Mario Novello é físico e cosmólogo do ICRA/CBPF.
**Luiz Alberto Oliveira é físico do ICRA/CBPF.