A construção do tempo: tecnologia e multitemporalidade
PALESTRA /
André Parente e Paulo Vaz //
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André Parente: Vou discutir aqui essa espécie de pesadelo, esse título um tanto pomposo. As redes do tempo: tecnologia e multitemporalidade. Na verdade, não tratarei muito do conceito de tempo, quer dizer, do ponto de vista da filosofia ou das ciências exatas. Mas, sobretudo, da temporalidade que hoje estaria sob aspas, sendo jorrada ou segregada pelas novas tecnologias, as tecnologias digitais.
Queria começar por lembrar que, em um livro que no Brasil teve uma certa repercussão, Pierre Lévy fez uma espécie de classificação do que ele chama de tecnologias da inteligência, estabelecendo uma correlação entre as tecnologias cognitivas, por exemplo, a oralidade, a escrita e a informática, e as principais formas de temporalidade, ou seja, uma temporalidade cíclica anterior ao nascimento da escrita, uma temporalidade linear a partir da invenção da escrita e da história e uma temporalidade múltipla e isso desde a pré-história.
Parece-me que essa classificação foi o que Lévy fez de mais interessante. Ele, que passou a ser considerado como o filósofo das novas tecnologias, tem como o mais interessante em todo o seu trabalho justamente essa classificação das três formas de temporalidade.
E do que se trata exatamente?
Na verdade, ele diz como o homem transformou, desde sempre, o mundo em informação e ao transformar o mundo em informação, dependendo da tecnologia utilizada, adquiria uma certa visão diferente do mundo. O homem vivenciava o mundo, o espaço e o tempo de uma forma diferente.
Por exemplo, do tempo da cultura oral, que é um tempo cíclico. E por que o tempo é cíclico?
Porque ele depende dos rituais e mitos que se perpetuam ciclicamente como uma forma que determinada coletividade tem para transmitir de uma geração a outra a sua memória coletiva, suas crenças, por exemplo, sua cultura.
Então, na medida em que não há inscrição, em que só existe uma memória biológica, o que se pode fazer para transmitir de geração em geração uma determinada cultura? Aquilo que se criou como cultura, que são as explicações dessa coletividade a respeito da origem do Universo, do espaço e do tempo, da relação entre as pessoas e as famílias e assim por diante, noções sobre a vida etc. O mais interessante aí é que as pessoas poucas vezes percebem que o mito é uma espécie de tecnologia da inteligência, uma certa forma de se contar a história de maneira a tornar essa história fácil de ser memorizada e, assim, de ser transmitida de geração em geração.
Em certa época da História, quando a ciência ocidental atacou o mito, o fez pelo conteúdo do mito, mas, na verdade, o que interessa no mito não é o conteúdo e sim, a forma, a estrutura, algo realmente interessante. Em realidade, o mito seria uma estrutura, a melhor forma de se estruturar uma determinada informação de maneira que ela passe para as gerações posteriores.
Depois, veio o tempo da escrita, que é um tempo que rompeu com esse tempo cíclico, dos rituais, das narrativas e, de uma certa forma, da própria natureza. O tempo da escrita é um tempo que, de determinado ponto de vista, coloca a memória fora do homem, pois cria uma série de suportes e um processo de inscrição que vai possibilitar existir uma memória, um arquivo, fora da memória humana.
Daí cria-se uma série de situações, calendários, datas, listagens, índices, ou seja, se instaura uma espécie de ordem da memória que pode ser consultada, comparada, que pode ser corrigida, comentada e assim por diante.
Essa memória, esse arquivo, supõe e reforça a linearidade do tempo cronológico, o tempo cumulativo, e também um saber que se diz enciclopédico. Isso é muito conhecido de todos. Qual seria a novidade hoje?
Muitas pessoas, por exemplo, confundem a informática e os bancos de dados e acreditam que a informática continua essa espécie de obsessão de tudo acumular, de tudo registrar e assim por diante. Mas, na verdade, não é o que se passa. A informática vem romper com essas duas formas, a linear e a cíclica, e instaurar um tempo mais complexo, um tempo múltiplo.
Basta lembrar que uma das palavras-chave do trabalho com a informática ou com as tecnologias da informação é o just in time, ou seja, trata-se de obter uma determinada informação que é necessária pontualmente, naquele exato momento em que se precisa dela para desempenhar bem uma determinada tarefa.
Alguns exemplos dessa espécie de não linearidade que está sendo, digamos, vivida por nós hoje ou desse atual tempo, mais complexo e múltiplo em várias atividades, na escrita e na leitura, mas também na própria aprendizagem, são de que estes não se fazem mais da mesma forma. Assim, hoje não se escreve mais como antigamente; hoje, o ato de escrever é quase um ato de fazer uma espécie de colagem. Não se começa o texto pelo início, estamos sempre no meio, sempre editando o texto mais do que propriamente escrevendo.
A leitura também é assim, salta-se de um ponto a outro e eu me refiro ao hipertexto eletrônico. Obviamente, a leitura eletrônica e a escrita eletrônica não se fazem mais de forma linear, elas rompem com essa linearidade: quem está acostumado a usar o computador ou a navegar na Internet sabe bem disso. Mas também o próprio processo de aprendizagem hoje já não se faz mais da mesma forma. Por exemplo, não se considera mais uma separação entre tempos: tempo adulto e um tempo que seria anterior ao tempo adulto, o tempo de formação. Isto é, a partir de um momento em que nós obtemos um diploma, estamos prontos e formados para o resto da vida.
Não é mais isso, a formação hoje é continua e permanente, é um processo. Um processo permanente de modulação, que não tem início, nem meio, nem fim, e que não acaba nunca. Não paramos de aprender e de nos reatualizar, reciclar e remodelar.
Eu diria que nós vivemos em uma espécie de mundo kafkaniano, no qual não paramos de recomeçar sem ter terminado nada. Quer dizer, é uma coisa meio paradoxal, não parar de recomeçar sem ter terminado, uma situação um tanto, digamos, inacreditável. É um processo perturbador, enfim.
De qualquer forma, em se tratando de hipertexto, se aplicarmos esse conceito à rede telemática, pode-se dizer que a rede não tem unidade orgânica, por exemplo, um início, meio e fim. Abundam muitas outras redes que atuam sem que nenhuma delas se imponha às demais, elas coexistem. Assim como coexistem, por exemplo, essas diversas temporalidades às quais me referi anteriormente.
Ou seja, hoje pode-se dizer que essa temporalidade da cultura oral e da cultura escrita coexiste juntamente com essa outra temporalidade; trata-se, portanto, de uma multitemporalidade. Essas temporalidades anteriores continuam, na verdade, se conservando.
O hipertexto é uma espécie de galáxia mutante com diversas vias de acesso, sem que nenhuma delas possa ser qualificada como principal e os códigos que ela mobiliza são absolutamente indetermináveis.
Enfim, se fôssemos um pouco mais adiante, poderíamos afirmar que hoje existem pelo menos dois tipos diferentes de multitemporalidades nas redes. Uma delas é essa temporalidade de que eu falei ao dizer que o passado se conserva, ou seja, que permanecem hoje a oralidade, a escrita e a informática, juntas.
Uma outra forma de multitemporalidade é algo um pouco diferente; é, na verdade, o fato novo das redes telemáticas, das redes digitais.
Como é que essa novidade se articula com o que veio antes?
Muitos acreditam que há uma ruptura pura e simplesmente, que a novidade é tão grande que há quem faça uma comparação do que a gente está vivendo hoje com o que foi vivido na época em que se introduziu, digamos, ou a escrita ou a eletricidade, ou até mesmo a própria linguagem articulada, ou seja, a fala.
Quer dizer que, de repente surgiu uma coisa nova, muito bem expressa pelo filme Matrix. Suponhamos que o que se vê no filme não seja apenas o futuro, mas que já estejamos vivendo isso de alguma forma.
Mas, então, o que é que acontece quando se tem o novo? Como é que esse novo se relaciona com o passado? Se olharmos para o passado com os olhos de quem não podia prever que haveria a emergência desse novo, que nos surpreendeu, então, de fato, veremos esse novo como uma ruptura, mas se olharmos para o passado em função do nosso conhecimento do que é essa novidade, certamente perceberemos que existe lá no passado uma série de coisas que já nos permite pensar que essa mudança em curso começou há bastante tempo.
O que acontece, então?
Vamos, de fato, encarar o passado de uma forma diferente, vamos transformar o passado, reconstruí-lo em função dessa novidade e dizer: “Está vendo, olhe, já existiu isso, isso e aquilo, coisas que já apontavam nessa direção, só que não sabíamos porque não podíamos prever o futuro e, naquele momento, era ainda cedo para elas, pois a nossa atenção estava voltada para outras coisas”.
Tal movimento de ruptura e de continuidade, ou de continuidade e descontinuidade, é que me parece um movimento tipicamente cultural. E por quê?
Porque acho que todo fato cultural é multitemporal no sentido a que acabo de me referir, ou seja, todo fato cultural, qualquer que seja, no campo da ciência, no campo da arte, ou no campo da tecnologia, são coisas que, de certo ponto de vista, remetem ao passado, são presentes e já contêm neles algo que diz respeito ao futuro. Por exemplo, tomemos um exemplo muito banal, o do carro. O carro, do ponto de vista da tecnologia, possui rodas, que são coisas que remontam ao neolítico, à pré-história, tem uma mecânica que foi desenvolvida lá pelo século XVIII, um motor que é alguma coisa que só foi criada a partir da termodinâmica, já mais para o século XIX e tal, e tem componentes eletrônicos que são de hoje mesmo ou talvez de amanhã.
Por conseguinte, enxerga-se nesse objeto extratos tecnológicos que remetem a temporalidades diferentes, a épocas diferentes.
Pois, então, se formos pensar o tempo em relação à multitemporalidade, vamos concluir que ele não se dá como uma linha. Podemos até dizer que ele é mais complexo, que, se formos mais adiante, poderemos chegar à conclusão de que o tempo é o que passa, ele passa e não passa, e até mesmo funciona com uma espécie de filtro, um filtro que deixa passar certas coisas e impede a passagem de outras.
Isso é, em parte, a multitemporalidade. Mas, toda tecnologia é algo que cria uma aceleração, uma mobilidade social, mudanças etc., mas na medida em que ela se naturaliza, que passa a ser uma reificação da tecnologia e considerada como alguma coisa que já se estabeleceu, passa a também criar resistências à mudança. Então, quando se sai do mundo da escrita para entrar no mundo da informática, as pessoas vivem uma série de resistências, como se o livro e a escrita fossem uma coisa absolutamente natural do homem. Mas não é natural do homem, é algo que faz parte da história do homem e que, em certa época, não existia. Passou a existir em uma outra época, ou seja, esse algo é datado, da mesma forma que o livro é datado, a escrita é datada, a biblioteca é datada, é tudo datado. Quando, porém, uma tecnologia tende ao desaparecimento, isso de alguma forma nos toca profundamente. Por quê?
Porque habitamos essas tecnologias assim como habitamos os nossos hábitos, nem mais nem menos. Certos objetos, como o carro, parecem hoje uma extensão do nosso corpo. De uma forma ousada, podemos mostrar que a tecnologia não é apenas uma extensão do nosso corpo, ela é parte integrante do nosso corpo, ou seja, seria mesmo impensável esse corpo sem essas tecnologias: a visão que temos do mundo com a escrita ou com a televisão ou com a informática são visões completamente diferentes. É diferente a minha relação com o espaço e com o tempo se eu ando a pé, a cavalo, de carro ou de avião; ela muda completamente, é radicalmente diferente.
Então, para resumir a questão da multitemporalidade, podemos até dizer que o tempo pode ser comparado a um rio, desde que observemos com atenção as turbulências do rio, desde que observemos com atenção seus movimentos. Nem toda água que passa por Manaus, por exemplo, chega necessariamente a Belém. Existe água que reflui e sobe o rio, um fenômeno bastante conhecido na mecânica dos fluidos. Estudando a turbulência, a mecânica dos fluidos, as teorias do caos, vamos entender que o tempo pode ser considerado como um rio que passa, algo que escoa, sendo que esse algo, se olharmos bem para ele, constatamos que está cheio de lacunas, cheio de flutuações, cheio de turbulências e assim por diante. Não é um escoar, um fluir contínuo, não é como uma linha apenas.
Obviamente que está aí o básico da ideia da temporalidade. Por quê?
Porque, obviamente, se a ideia do tempo não é mais a de uma linha, cabe o exemplo que é utilizado pelo filósofo Michel Serres: tenho um lenço, coloco o lenço no plano, passo esse lenço a ferro e vou escrever nesse lenço uma serie de pontos e linhas, mas se eu dobrá-lo e colocá-lo no bolso, isso que nele estava longe ou estava próximo, uma vez dobrado o lenço, pode passar a ser o contrário, ou seja, dois pontos que eram próximos podem se tornar distantes e vice-versa. Na verdade, a multitemporalidade das teorias vai nesse sentido, o de alguma coisa que se faz em função de relações que se constroem no tempo. É claro que é um grande passo para a história e para a ciência pensar hoje o tempo, não mais em função de leis eternas ou então do universo como um mecanismo de relojoaria, mas, pelo contrário, em função de certos fenômenos que nos geram incertezas, que geram flutuações que são mesmo caóticas. Se existe uma ordem por trás da desordem, se existe uma certa regularidade e uma certa ordem, que é o que nos apresenta a teoria do caos, pouco importa, de qualquer forma, se não se tem uma linearidade pura e simples, se não se tem uma coisa fixa que se pensa conhecer, alguma coisa que seria, numa analogia ao Demônio de Laplace, algo como dada uma determinada situação, informa-se o Demônio minimamente sobre essa situação e ele vai poder prever o que era antes e o que vai ser depois dela.
Uma história interessante para se pensar isso seria, por exemplo, o conto do Borges, O jardim decaminhos que se bifurcam, pois se relaciona a esse tempo flutuante, caótico, em que temos a imagem do personagem que chega diante de uma situação e várias coisas podem acontecer, com vários desfechos, vários desenlaces. Na história O jardim de caminhos que se bifurcam, a ideia é que todas elas ocorrem simultaneamente nesse universo. É curiosamente a lógica de um tempo que bifurca sem cessar, criando universos paralelos e é isso que a física quântica chama hoje de a teoria dos muitos mundos. O tempo como uma linha que bifurca sem cessar, criando universos simultâneos e paralelos, ou linhas de uma trama de tempo que coexistem nesse universo em que vivemos.
Mas, voltando à questão da tecnologia, queria agora retomar a questão do Matrix.
Todas as culturas definem as formas de real para um além do real imediato, ou seja, nenhuma cultura se restringe apenas a viver o real imediato.
Em todo caso, hoje, o nosso aqui e agora ganhou uma espessura bastante diferente do que poderia ter no passado. Pela primeira vez, estamos vivendo um aqui e agora imerso em uma temporalidade que é propriamente produzida pelas máquinas. Hoje em dia, quando eu digo aqui e agora, a que me refiro? Em minha casa, tenho à disposição rádio, televisão, Internet, uma porção de outras coisas e posso fazer convergir, nesse aqui e agora, uma série de outros tempos e de outros acontecimentos que estão muito distantes de mim, desse meu aqui e agora. É como se estivéssemos em uma espécie de redação do ‘jornal das oito’ em que se recebem notícias do mundo inteiro, via telex, fax, telefone, e-mail e outras tantas imagens de televisão via satélite, milhares de coisas de todas as sucursais, se pensarmos, por exemplo, na Rede Globo.
O que isso significa? Temos um ponto no espaço e no tempo e esse ponto torna-se, de repente, alguma coisa tão espessa que é capaz, digamos assim, de abranger acontecimentos que estão distribuídos no espaço e no tempo de uma forma simultânea. De fato, é um fenômeno no mínimo curioso, pois nos faz pensar que vivemos a era do simultâneo, na qual o próximo e o longínquo podem ser trazidos aqui à nossa mão.
Trata-se de um fenômeno extraordinário e que cria uma situação, do ponto de vista do espaço e do tempo, realmente bem nova.
Existe um pensador chamado Paul Virilio, que, em seu texto O último veículo, tem uma visão muito parecida com um pesadelo de Kafka, porque diz que a transparência dos nossos percursos tende a ser substituída pelas articulações desse veiculo do ciberespaço, o veículo ciberespacial, o último veículo dos nossos trajetos, tão potente, tão potente que vai gerar uma espécie de inércia polar, porque podemos estar em todo lugar sem sair do lugar. Com ele, podemos trazer aqui e agora todo o mundo.
É, portanto, uma visão radical do ângulo dessa temporalidade nova que estamos vivendo, que é a questão do ponto. Ou seja, se pensarmos uma temporalidade pontual em função desse aqui e agora, podemos, no mínimo, dizer que esse aqui e agora é mais espesso e que nunca foi tão tramado por uma maquinação do tempo no sentido literal, de um tempo produzido pela máquina.
Por outro lado, se pensarmos bem, é claro que existe aí uma verdade, pois, em se conhecendo um pouco a história da técnica, podemos supor, como Virilio, que isso vá gerar um movimento de sedentarização do corpo.
Ora, toda a história da técnica, da invenção do fogo, da roda, passando pela cadeira, pelo automóvel, pelo elevador, pela escada rolante e tudo mais, se afigura clara a sedentarização do corpo. Diria que Virilio tem uma certa razão quando diz que este é o último veículo, um veículo potente demais e com o qual não precisaremos de nenhum outro mais, pois com ele o espaço não se estende mais. Cita até uma frase do Von Braun: “No futuro vai ser absolutamente inútil aprender a dirigir um carro, você não vai precisar se deslocar no espaço”.
Borges, em A Biblioteca de Babel, já havia antevisto este pesadelo, esse lugar que contém todo o mundo, todo o passado, todo o presente e todo o futuro. Digam-me, então, se isso já não é o último veículo.
Por outro lado, eu queria agora entrar no filme Matrix, trazendo para cá uma espécie de outro pesadelo.
Nós conhecemos aquele fenômeno, aquele distúrbio psicológico chamado déjà vu, o qual tem o nome científico de paramnésia. Ou seja: temos a sensação, certo dia, numa certa tarde, esperando o ônibus num ponto, de que já vimos isso, já vivemos isso antes. Por que no ponto de ônibus? Porque em situações mais banais, como no ponto de ônibus, já as vivenciamos antes. Claro, sabemos que não é uma repetição do passado, mas temos uma nítida sensação de que estamos revivendo aquilo, que o passado está retornando de alguma forma. O que está acontecendo exatamente? Na verdade, temos uma percepção da situação atual e temos uma memória que está agindo em tempo real tão instantaneamente que reduplica a imagem que temos desse presente atual.
É como se o tempo se desdobrasse: por um lado, temos a percepção do atual e, por outro, por conta dessa intromissão em tempo real da memória, temos uma reduplicação do tempo, que se divide entre presente e passado, sendo que o passado passa a ser simultâneo ao presente.
Esse desdobramento do tempo é a sensação da paramnésia. Essa imagem da paramnésia é interessante porque pode ser protótipo desse pesadelo se pensarmos pelas teorias de Baudrillard em seu livro Simulacro e Simulações, aliás, citado no filme. Mas, por outro lado, essa mesma imagem, o fenômeno da paramnésia, pode ser um protótipo da ideia do tempo como invenção.
Na verdade, Virgílio e Baudrillard acham que o tempo da eletro-ótica é um tempo que cria um desdobramento na realidade, uma imagem real e uma imagem virtual, sendo que a imagem virtual tende a substituir a imagem real. Acham que o mundo virtual é um mundo que tende a engolir o outro, a substituir o outro.
Dou um exemplo para que isso fique mais claro. Há um computador na Rede Globo, comprado só para isso, que é utilizado da seguinte forma: quando a Rede está transmitindo um jogo de futebol, por exemplo, ela é capaz de, usando esse computador através de um pequeno delay, de um pequeno atraso milimétrico no tempo, criar um processamento daquela imagem que ela está transmitindo e sobre esta inserir uma imagem de alguma coisa que não está lá, por exemplo, no campo de futebol. A pessoa tem a nítida sensação de que aquela coisa está lá, o computador recalcula a imagem e a imagem 3D totalmente recalculada coloca um placar publicitário lá por trás. Ora, em torno do campo existem aqueles placares publicitários. Ela vai colocar um placar publicitário sobre um placar real, mas que é uma imagem de uma publicidade que está colocando naquele momento, em tempo real. Ela está reprocessando a imagem. O que está fazendo, na verdade?
Na verdade, está alterando a imagem através de um processo de digitalização e reconstrução da imagem que vai inserir um virtual sobre o real.
Essa é também a ideia não só do filme Matrix, mas, da mesma forma, da metáfora da caverna de Platão.
Platão disse que viver prisioneiro do mundo das aparências é como viver acorrentado em uma caverna subterrânea, com os presos olhando de cabeça para baixo para o fundo da caverna e tomando as sombras que são projetadas no fundo da caverna como sendo a realidade, uma projeção da realidade que está lá fora.
O que se passa com o Matrix é algo semelhante.
As pessoas estão lá acorrentadas, deitadas, alimentando esse sistema que é o sistema Matrix do ponto de vista da energia. Enquanto isso, para mantê-las ali, o sistema cria uma ilusão de realidade, que as pessoas vão viver como sendo a própria realidade; daí, alguns poucos conseguem dela escapar, escapar desse sistema e da ilusão por ele criada.
Na verdade, o que Platão, Baudrillard e o filme Matrix dizem é que somos prisioneiros das imagens que a cultura produz em uma determinada época e que essas imagens nos cegam. Vemos o mundo através delas e não conseguimos ver a própria realidade, como se fosse possível ver o mundo sem ser por intermédio de uma subjetividade criada pela cultura. Assim, a visão da realidade é sempre mediada; quando vemos algo, vemos em função de tudo isso que, em realidade, nos constrói como seres, como sujeitos, o que envolve até a linguagem que falamos, uma das tecnologias mais poderosas.
Há quem diga, os linguistas, por exemplo, que não podemos nos relacionar com qualquer realidade que não seja pré-linguisticamente formada, ou seja, qualquer realidade com a qual nos relacionamos, já é intermediata pela linguagem, não temos como lidar com ela de uma forma bruta, sem ser pela intermediação da linguagem.
Da mesma forma, pode-se dizer desde sempre que todos os sistemas culturais de alguma forma nos aprisionam, nos permitem ver certas coisas e não outras e assim por diante.
Essa é a grande crítica, a questão que coloco é: por que hoje? Por que não desde sempre? Porque o mais interessante é ver que isso ocorre desde sempre e não apenas a partir de hoje. Claro, hoje existe uma forma diferente de se produzir subjetividade e também é claro que, em cada época, isso foi feito de uma forma diferente.
Passo agora a uma outra imagem usando a mesma questão do déjà vu, a paramnésia, recorrendo a uma arquiteta alemã chamada Monika Fleischmann, que criou um sistema de realidade virtual, que é um sistema bastante simples, que nos permite penetrar nos espaços urbanos de Berlim e ver Berlim de antes e depois da queda do muro.
O que Monika Fleishmann faz é basicamente o seguinte: através de uma imagem do presente, do passado de Berlim de antes e depois do muro, tentar dissolver esse muro que as pessoas carregam na cabeça e que impedem que elas vejam a nova realidade: a Berlim sem muros. Na verdade, o que ela está fazendo?
Ela está rompendo com essa imagem que é um dejà vu, que é uma imagem petrificada, mas que é um déjà vu porque leva a pessoa a ver uma coisa lá onde ela não está.
É isso precisamente a neurose, pois a neurose, dada uma certa situação traumática, passamos a partir desse momento a repetir os mesmos comportamentos que tivemos diante daquela situação. Então, mesmo a situação tendo mudado, vamos nos relacionar com as novas situações, como se de alguma forma fossem uma repetição da primeira. A neurose são esses muros, esses passados petrificados que carregamos conosco.
Mas, há uma diferença aí, no caso da Monica, a paramnésia, ou seja, esse desdobramento do presente e do passado é feito para criar uma abertura de tal forma a dissolver essas imagens, essas verdades preexistentes que carregamos em nossa cabeça e que nos impedem de ver a novidade, o novo, o que emerge como novo, uma nova realidade, enfim. É realmente bastante interessante pensarmos sobre essa diferença da paramnésia entre duas concepções diversas do virtual. O virtual como alguma coisa que produz o mesmo, sempre o mesmo que nos escraviza, que nos impede de ver, e o virtual que nos libera, que nos leva a ver o novo, que abre uma porta, que cria uma abertura.
Como não acredito em uma essência da técnica, acho, além do mais, que a nossa relação com a técnica é uma relação muito diversa, que a apropriação social da técnica é alguma coisa muito diversa em relação a cada uma das tecnologias e das épocas em que vive a humanidade. Diria simplesmente que, se por um lado, é verdade que toda tecnologia é multitemporal, por outro, as tecnologias nos levam a ver coisas diferentes, a viver espaços e tempos diferentes, nem piores nem melhores, simplesmente diferentes.
E que, de algum modo, isso acaba integrando o nosso corpo, pois que a tecnologia vai até onde vão os nossos hábitos. Passaremos depois para o Visorama, que também é um sistema de realidade virtual com o qual estou trabalhando, em parceria da Escola de Comunicação e do IMPA, o Instituto de Matemática Pura e Aplicada, que desenvolve esse sistema junto conosco e que tem tudo a ver com esse tema aqui tratado, com a questão da tecnologia digital, do virtual e, sobretudo, da multitemporalidade, na medida em que nos permite ver a paisagem carioca em momentos diferentes.
Vou concluir com uma menção ao sistema Visorama e suas possíveis utilizações. Trata-se basicamente de um sistema que permite que se veja em torno de si, uma imagem que é fotorrealista, ao contrário da grande maioria dos sistemas de realidade virtual. Ou seja, o que se está vendo parece com a imagem fotográfica e, fundamentalmente, ele nos permite criar uma navegação; é, por isso, um sistema hibrido de realidade virtual de hipermídia, que nos permite, na verdade, nos deslocarmos no espaço e no tempo. Como na exposição do MAM, podemos ver a paisagem como se estivéssemos no Corcovado e isso em três épocas distintas. Mas podemos fazer a mesma coisa para qualquer outro ponto do espaço; então, estando em qualquer lugar podemos nos deslocar para vários outros lugares, o que significa que, se colocarmos o Visorama lá no Corcovado, por exemplo, podemos ir para o Pão de Açúcar, para o Morro do Castelo, para outros lugares e a estrutura de navegação a rigor não tem limite: o limite é o disco rígido com o qual se está trabalhando.
Paulo Vaz: Não vou me propor, até porque seria um pouco redundante, a trabalhar como o André fez até aqui. De certo modo, ele pega a tecnologia enquanto tal e, a partir daí, extrai as mudanças nas quais podemos pensar em termos de temporalidade. A realidade que vou apresentar é parte de uma pesquisa que desenvolvo há muitos anos e que se interroga sobre a relação entre novas tecnologias da cultura contemporânea. Essa é uma questão muito ampla e podemos até brincar, dizendo que o que eu faço agora, o que vou apresentar, é uma história do futuro. Obviamente, isso parece ser algo contraditório: a história, aparentemente, é só uma história do passado, mas aqui se trata de uma história do futuro, significando muito claramente as histórias das crenças que nós tínhamos sobre o futuro. Acho que todos nós reconhecemos, com alguma facilidade, que o futuro não é mais o mesmo e essa mudança do próprio futuro decorre, com toda a certeza, do próprio surgimento das novas tecnologias.
Então é isso que proponho: que se pense que, de certo modo, assim como o passado, todo futuro é o futuro do presente, isto é, é quase um lugar comum dos historiadores dizerem que todo passado é um passado do presente, que a cada momento histórico você pode olhar o passado de um modo diferente. Pois eu gostaria de propor a mesma coisa: todo futuro é um futuro do presente, porque, na realidade, não estou fazendo nenhum nível de distinção aqui entre crenças que estejam na ordem do cálculo, ou crenças que estejam na ordem do sonho, trata-se sempre de uma antecipação.
Aceitamos com alguma facilidade que, durante determinados períodos históricos, certas crenças sobre o futuro conquistam uma certa estabilidade, elas duram muito. Podemos imaginar, por exemplo, que a crença do paraíso como futuro do homem, isto é, a crença na salvação dura milênios, mas houve alguns momentos da História, nos quais ocorreu uma descontinuidade muito rápida nessa forma de pensar. Imaginemos a Revolução Francesa e o que ela pode ter gerado no pensamento humano.
A Revolução Francesa tornou incrível a tarefa tal como, por exemplo, exposta por Lenin, de construir o paraíso na Terra.
A História, portanto, deve ser contada com esses longos períodos de continuidade e essas súbitas descontinuidades. O que eu proponho é exatamente pensar que, a partir da Revolução Francesa até o final da década de 80 deste século, para ser preciso, houve uma certa estabilidade do futuro como revolução ou, ao menos, liberação. E nós estamos assistindo, em menos de 20 anos, com toda certeza a uma descontinuidade semelhante. Tal descontinuidade é de responsabilidade das novas tecnologias – só se propor a fazer uma história do futuro é, de certo modo, fazer uma história do imaginário –, e um filme como Matrix atende a essa proposta, porque um dos modos de exatamente se fazer história do futuro é fazer uma história do imaginário tecnológico, uma história da ficção científica. E é possível fazer essa história, já que se torna possível ver que houve uma mudança no imaginário da ficção cientifica.
Mas, sobretudo, se propor uma história do futuro é um modo de colocar a questão: o que é o tempo hoje?
Pode-se interpretar essa questão – o que é o tempo hoje – como demandando uma resposta à seguinte pergunta: o que sabemos hoje sobre o tempo, que não sabíamos antes?
E essa pergunta é certamente endereçada à ciência, especialmente à física e à biologia. Em outras palavras, diz-se: “Veja os novos conhecimentos científicos sobre o tempo: são mais interessantes ou superiores àqueles do passado?”.
Certamente é uma pergunta que denominei epistemológica, porque ela diz respeito ao conhecimento que podemos ter sobre o tempo e ao conhecimento que aqui se diz ser ciência. Há vários autores, especialmente aqueles mais críticos, que dizem que nossa cultura, devido a fenômenos como o das janelas, referido pelo André, janelas como interface de um computador, seria marcada pela desordem, por aquele tipo de desordem que é o déficit de atenção.
Ou seja, é uma cultura na qual temos coisas demais na cabeça, fazemos coisas por demais dispersivas etc., e isso seria, na realidade, uma espécie de perda diante do que é o tempo próprio, da reflexão, da antecipação da identidade. Não é a perspectiva que eu adoto quando me proponho a fazer uma história do futuro, exatamente porque recuo diante da questão de dizer o que é a verdade do tempo. Eu recuo diante disso porque acho, enquanto pensador, que é impossível dizer o que é, sem simultaneamente você fazer a história do que já se pensou sobre o que é.
Dizer o que é o tempo é simultaneamente fazer uma história das diferentes visões que os homens tiveram sobre o tempo. Uma história do futuro, portanto.
Qual futuro? O futuro como ética.
O centro da minha questão é, exatamente, como as tecnologias transformam a nossa ética.
O método, quando nos propomos a algum futuro, é partir do presente, dele detectar limites, dele detectar força, simultaneamente estabelecer tendências e nos empenharmos para realizar o antecipado ou para evitá-lo. Isso, naturalmente, varia no tempo, pois depende daquilo que definimos como limite, como forças do presente etc.
Então, o que estou propondo é muito simplesmente dar um outro viés a uma discussão bastante usual no nosso mundo de hoje, que é a discussão sobre a passagem da modernidade a pós-modernidade. Discutir isso é fazer uma história do futuro.
Vejamos rapidamente e de modo bastante fenomenológico as mudanças.
Primeiramente, acho que as mudanças residem sobre o conteúdo das antecipações.
Majoritariamente, no século XIX até grande parte do século XX, nossas antecipações sobre o futuro eram antecipações desse paraíso terrestre. Uma sociedade na qual todos seriam livres, uma sociedade igualitária, uma sociedade onde, enfim, teríamos superado o reino da necessidade, como diz uma famosa frase.
Hoje, quando antecipamos o futuro, a antecipação majoritária é uma de catástrofe. Quando se trata de tecnologia, basicamente o que vemos ser revivido é o mito do aprendiz de feiticeiro.
Podemos pensar que, na realidade, o filme Matrix nada mais é do que a velha história do aprendiz de feiticeiro. Os homens criam máquinas, no caso, computadores, inteligência artificial, mas, ao mesmo tempo, não dominam esse poder, não tem sobre ele controle e, por isso mesmo, a criatura se descontrola e derrota o criador.
Então, é o mito do aprendiz de feiticeiro, a relação entre criatura e criador, mas isso obviamente não vale só para o filme Matrix, mas vale para esse conteúdo novo das antecipações, por exemplo, para a ecologia. Anteriormente, tratava-se de realizar todo potencial da ação humana, mas hoje se trata, sobretudo, de temer o enorme potencial da ação humana. Antes, pensávamos no que, em breve, iríamos poder; atualmente, pensamos que podemos demais. Tratava-se, então, para cada um de nós de participar da construção do futuro. Para alguns era até um dever e, se não o fizéssemos, era porque éramos alienados.
A terceira consideração é um pouco mais difícil de explicar em pouco tempo, mas proponho que há uma dependência extrema entre aquilo que nós pensamos ser e aquilo que nós somos capazes de fazer. Por exemplo, se imagino que, na história humana, o que nós podemos fazer é conquistar o paraíso de imediato, tenho que conceber o homem com alma racional que foi capaz de um desvio. Do mesmo modo, se penso que o homem é um ser capaz de mudar a sua cultura, resulta imediatamente pensar que ele é um ser capaz, um ser cuja marca é a memória e a história. Ele é, portanto, um ser de cultura.
Hoje, o que nos caracteriza, sobretudo são nossas proezas tecnológicas. Podemos interferir e simular o que nos marca como seres vivos, por isso mesmo quando formos pensar no que nós somos e no nosso passado, a origem do nosso pensamento, normalmente diremos que somos seres vivos, ou melhor, matéria organizada capaz de técnica. Essa é uma mudança fácil de compreender se concordarmos, por exemplo, que o que importa hoje, ou aquilo que define a humanidade, é uma espécie de hibridação ou de híbrido entre homem e tecnologia ou a figura do ciborgue. No entanto, aquilo que dá origem ao modo como nós pensamos e aquilo que nós podemos ser é uma história cuja lei de funcionamento não pode ser diferente daquela que vale para a matéria ou para os demais seres vivos.
Cada vez mais se pensa a evolução da matéria, a evolução dos seres vivos, a partir da teoria da complexidade da seleção natural. Isso significa que, ao mesmo tempo em que podemos fazer uma história do futuro sem sermos contraditórios, podemos fazer uma história do passado sem sermos redundantes, exatamente por que essas duas dimensões, com as quais estávamos acostumados na modernidade, entram em crise e são transformadas. O que quero demonstrar é que, se houve uma mudança do futuro é por que mudou a própria mudança. Ou melhor, mudou o próprio modo como a sociedade muda; esta é a essência do argumento.
A primeira imagem que eu gostaria de traçar é que, enquanto na modernidade aquilo que nos assustava, ao pensar a nossa identidade, era nossa pertinência ainda à animalidade, um certo tipo de temporalidade muito presente no final do século XIX. A temporalidade do progresso ameaçado, ou a temporalidade do retorno do recalcado, o temor da besta humana.
Pensamos que o homem é um ser de cultura, cujo pensamento é constituído pelas regras culturais, mas essas regras culturais estão sob ameaça dessa animalidade, a qual, ao mesmo tempo, está em nós. Isso vale para o pensamento mais conservador, do qual, claro, Freud não partilhava.
Na realidade, o que está sendo dito aqui é uma espécie de retorno do recalcado, a temporalidade do progresso ameaçado sendo a temporalidade do retorno do recalcado. A animalidade que foi recalcada resolve se vingar exatamente aqui e agora e nosso progresso está, portanto, ameaçado.
Um primeiro exemplo disso é o de um cidadão que foi muito importante para Freud, Hughlings Jackson, um neurologista que diz que existiria uma consciência no nosso cérebro que seria aquela ligada à animalidade, instintiva, instintual e mecânica, e, portanto, automática. E existiria uma consciência que expressaria uma divisão do cérebro, uma divisão social, na qual, de um lado, está a elite e, de outro, está o popular. Naturalmente, o popular está mais próximo da animalidade do que o resto. Por conseguinte, a Comuna de Paris nada mais é do que um animal que em nós se rebela e tenta ameaçar o progresso social.
Do mesmo modo, um outro pensador (bem, talvez a expressão pensador seja demasiada para ele), Lombroso, que foi um teórico da criminologia, construiu a trilha do criminoso nato, estava preocupado com qual seria a fase própria do criminoso para identificá-la na massa e poder perceber quem é perigoso antes mesmo que um crime seja cometido.
Lombroso conseguiu ter a brilhante ideia de que, na verdade, todo crime é um atavismo, ou seja, todo crime é uma herança do animal. Todo criminoso tem uma parte animal mais forte que o restante, logo, todo criminoso se parece com um macaco.
Não se trata de uma brincadeira e poucos sabem que o Bram Stoker, quando escreveu o Drácula, copiou da descrição que Lombroso fez do criminoso nato. Então, esse temor da animalidade, essa história do progresso ameaçado, do retorno do recalcado é também a mesma que vai marcar os filmes de terror, Lobisomem, Drácula e outros.
O que acontece hoje é que assistimos a um outro, a um novo terror. Esse novo terror é não tanto o terror do animal, mas, sim, o terror da matéria organizada, ou o terror da indistinção entre o nascido e o feito ou entre o nascido e o programado. Isto é, pela primeira vez na história, nós, humanos, conseguimos simular, fazer um correspondente no mundo real. Em outras palavras, simular não apenas o corpo do homem, mas, enfim, conseguimos com o computador simular o pensamento humano. Desde então, o que se torna necessário a ser pensado é que, na realidade, o pensamento nada mais é do que matéria organizada. O chip do computador nada mais é do que silício organizado de um certo modo.
E o que nós somos? Também matéria organizada, programada, de um certo modo. Somos apenas matéria organizada com grau maior de complexidade. Nesse momento mesmo, nosso terror é essa indistinção entre o nascido e o programado, como aparece na ideia do filme, quando o personagem diz que não somos mais nascidos, mas, sim, criados, isto é, nós passamos a ser artificiais.
A maior parte dos filmes de ficção cientifica na década de 1980 quando trata dos humanos que enfrentam malvados extraterrestres, estes últimos sempre se parecem com insetos. Por quê?
No Matrix é a mesma coisa e a resposta é simples. É porque o inseto é no reino animal aquilo que mais se parece com algoritmo, o que mais se movimenta puramente como um computador. Então, quando lutamos com extraterrestres, estamos na realidade lutando contra insetos, ou melhor, contra o computador. Pois estamos temendo a distinção entre o pensamento espontâneo e o pensamento programado, assim como temíamos antes que nosso pensamento pudesse se perder pela pressão da animalidade. E esta é a passagem do terror.
A segunda questão que eu gostaria de propor é sobre as novas tecnologias. Elas vão provocar um mundo de incertezas, incertezas que se tornam cotidianas e permanentes. Estas dão margem à noção de que, hoje, o que pode funcionar como o limite ao que nós fazemos é o futuro que se antecipa. Nós, os homens, antecipamos catástrofes para evitá-las, o que pode fazer com que nós deixemos de fazer isso ou que façamos aquilo. Trata-se do futuro antecipado: vivemos, então, um feedback novo entre o presente e o futuro.
Usualmente, se pensa muito simplesmente que o presente é o lugar da ação e o futuro é o lugar apenas da realização dessa ação. Quando o futuro torna-se também não apenas alvo do desejo, mas catástrofe a ser evitada, exatamente por que toda boa ação implica um efeito colateral, nesse exato instante e por esse mesmo movimento, o futuro passa a depender da antecipação do futuro. O que será o futuro depende daquilo que o presente espera que ele seja e, por isso mesmo, vivemos um mundo de incerteza, de luta pelo cenário, de luta pela simulação e de extrema instabilidade.
Até bem pouco tempo atrás, havia uma coincidência entre a manifestação da doença, a experiência subjetiva da doença, ou seja, a experiência da restrição de normas vitais, como quando estamos gripados e a nossa vitalidade fica reduzida, e o seu diagnóstico. Havia, pois, essa coincidência entre a experiência subjetiva da doença e o diagnóstico da própria doença.
A medicina está paulatinamente fazendo com que esses dois momentos não mais coincidam; ao contrário, anda fazendo com que o diagnóstico anteceda de muito a experiência subjetiva da doença. Podemos estar doentes sem sabermos ainda que estamos doentes. E, literalmente, estar doente sem, em suma, estar experimentando ainda as restrições das normas vitais.
Pensando alto, cada vez mais o que a engenharia genética promete fazer é isso. É saber o que cada um de nós carrega no seu genoma que dá a possibilidade ou a probabilidade de adoecer. E isso diz respeito à nossa relação com o futuro.
Anteriormente, se havia coincidência entre o diagnóstico e a manifestação, cuidavam de nós na hora em que adoecíamos e com a intervenção de um médico. Agora, podemos antecipar doenças, até ataques do coração, pelos dados da nossa família. O que é recomendável fazer? Modificar nossa vida, modificar nossos hábitos.
É claro que trabalhamos essa questão em diversos contextos, mas o que acontece é uma mudança radical em nossa relação com a morte, passamos a nos limitar diante da catástrofe que antecipamos como possível.
Gostaria de propor três características gerais sobre o que as novas tecnologias promovem na transformação da experiência de tempo hoje.
A primeira é que, hoje, pensar é fazer uma passagem do possível ao provável.
E o que quero dizer é que muito mais coisas são possíveis de acontecer do que aquilo que é provável que aconteça. Por exemplo, é possível um raio cair daqui a um minuto no Planetário, mas isso é muito pouco provável de acontecer. E pensar, portanto, torna-se exatamente fazer esse movimento de restrições dos possíveis acontecimentos para estabelecer probabilidades negativas, de modo que estes possam ser evitados.
Um exemplo é a diferença de uma frase do Georges Canguilhem, um epistemólogo preocupado com a liberdade do indivíduo e que dizia: “Não é preciso ser um anarquista para perceber que existem mil e uma maneiras de viver”. O que essa frase quer dizer é: viva, aproveite, experimente, não pense que você tem uma norma só.
Richard Dawkins diz uma frase muito parecida, com uma diferença fundamental: “Por mais que existam mil e uma maneiras de viver, existem infinitamente mais maneiras de morrer”. Viver torna-se exatamente antecipar catástrofes para conseguir viver.
A segunda: pensar cada vez mais em simular futuros para estar um passo à frente do desastre. Vemos a importância dos conceitos de tempo real e, simultaneamente, a simulação do futuro.
Um exemplo, que é um exemplo econômico, refere-se à Internet, onde é difícil cobrar dinheiro pela informação, mas, ainda assim, pode-se cobrar de forma diferenciada segundo o tempo no qual você recebe a informação. Digamos que eu tenha um site para bolsas de valores para as pessoas que querem informação em tempo real sobre o seu movimento; então, delas vou cobrar U$40 dólares por mês, mas, para as pessoas que recebem 10 minutos depois, não cobro nada.
Isso é pensar, é simular futuros para estar um passo à frente de um desastre, o que significa dizer que a informação é recebida a tempo de se fazer alguma coisa.
E, por fim, a terceira característica geral é essa indiscernibilidade entre nascido e programado, esse reforço de uma concepção materialista de vida e de pensamento, para o qual a engenharia genética contribui, dizendo que somos meramente programa.
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Perguntas do público:
Pergunta 1 – Como você vê as relações humanas nesta multitemporalidade? Como ficam os sentimentos nessa multiplicidade de caminhos que aparecem?
André Parente: Poderia começar a responder, evocando algo sobre o qual o Paulo já falou. O Paulo perguntou: O que é o tempo hoje? Eu tentei responder com a ideia de multitemporalidade, mas, na verdade, essa ideia de multitemporalidade tem a ver com a redescoberta, hoje, do tempo. Ela exprime uma espécie de reaproximação das ciências exatas e das ciências humanas, na medida em que as ciências estão cada vez menos ligadas, por assim dizer, às leis eternas.
Por exemplo, uma ciência como a que foi produzida por Newton, que falava apenas do mundo externo, afirmando que a água ferve a 100 graus aqui ou na China, ou seja, um tipo de lei que não tem história, que acontece independentemente de nós, esse tipo de coisa já não é mais a visão que a ciência tem hoje.
Assim, pela primeira vez na história da ciência, o tempo passa a ser uma espécie de operador que põe em crise o tempo da verdade. O que isso quer dizer?
Significa uma ideia diversa daquela de que o tempo é a imagem móvel daquilo que não muda, da eternidade, o tempo como uma linha, o universo como um grande mecanismo de relojoaria, segundo a ciência clássica, mecanismo esse reversível no sentido de que se poderia mexer tanto na direção do passado como na direção do futuro e as equações que explicam o passado e o futuro seriam as mesmas.
Ou seja, a mudança era indistinta tanto no sentido do passado como no sentido do futuro. Na verdade, a ciência clássica ainda nos dava uma imagem do tempo, quer dizer, pensava o tempo como uma imagem móvel de alguma coisa que se transformava, mas que permanecia igual porque as leis que explicavam a mudança eram permanentes. Enquanto que, hoje em dia, o que está em crise são as próprias leis, porque tudo entrou em uma espécie de regime de incertezas, de flutuações e assim por diante.
Em relação a essa questão das relações humanas e da multitemporalidade, acho que as novas tecnologias, de um certo ponto de vista, estão nos trazendo uma imagem que é basicamente a de que há uma espécie de promessa no sentido da humanidade conseguir, pela primeira vez, resolver certos problemas que eram considerados insolúveis. Mas não se trata de uma democratização dos meios de comunicação.
Por exemplo, hoje se uma pessoa está trabalhando com digital ela pode ser ao mesmo tempo o escritor e o editor de um texto ou de um livro, porque é muito fácil publicar uma página um hipertexto na internet. Ou seja, é o poder de se apropriar desses meios de produção com maior facilidade. Que é um pouco o que estava em discussão tanto na época do Iluminismo como, mais tarde, com o marxismo, isto é, a apropriação dos meios por quem produz e realiza alguma coisa e, com isso, acabar com a separação na cultura – que é uma coisa muito grave – entre quem produz e quem recebe passivamente uma mensagem veiculada.
E outra questão é a da fragmentação social, pois uma das grandes promessas das novas tecnologias é a de que, em tese, a rede pode colocar em contato todos com todos.
Essas são duas questões que têm surgido no horizonte como uma espécie de utopia no uso dessas novas tecnologias, ou seja, como poderão resolver dois problemas que eram aparentemente insolúveis em relação à nossa cultura.
E como a tecnologia está contribuindo para, de fato, mudar isso? Essa que é a grande questão.
Excluindo quem não faz parte desse mundo e tem acesso a essas tecnologias, pode-se, ao invés de solucionar os problemas mudando o mundo, simplesmente criar um outro mundo, e dele só vai fazer parte quem já tem esses problemas resolvidos.
Pode parecer uma brincadeira perversa, mas para mim a exclusão em relação a essas novas tecnologias não está apenas na questão da acessibilidade para todos, mas no fato de se estar criando um novo mundo que, de fato, resolveu problemas aparentemente insolúveis até esse ponto da história da humanidade. Só que a esse outro mundo só tem acesso certas pessoas. Essa que na verdade é sempre a questão fundamental. Por isso acho curioso que haja essa visão catastrófica e também salvacionista da técnica. Só que essa visão salvacionista está mais relacionada aos problemas do passado do que aos do futuro.
Pergunta 2 – Se imaginarmos que o homem se comporta em relação à tecnologia como um artesão que se esculpe e que, politicamente, são alguns homens que esculpem a humanidade, qual a dimensão necessária de uma ética que norteie os horizontes tecnológicos para que Matrix, no que ele apresenta de dominador, não seja um futuro escravizador?
Paulo Vaz: Interessante é que a pergunta já contem a própria relação nova com o futuro para a qual tinha chamado atenção acima. O que acho é que estamos assistindo a crise de uma separação entre ciência e sociedade, a crise de uma separação entre lei e contrato.
Segundo o filósofo e antropólogo francês, Bruno Latour, a sociedade moderna se constitui exatamente pela separação entre ciência e sociedade, pela separação entre lei e contrato. E diz também que o cientista só faz natureza, não faz sociedade. O que cada vez mais a gente descobre é que aquilo que faz sociedade hoje, e muito concretamente modifica nossas vidas e nossas relações sociais, é a ciência. E que, portanto, a gente tem que acabar com essa separação. E já se percebe que as revistas, os jornais e as pessoas que se preocupam com o espaço público e com a democracia, cada vez mais, dedicam espaço à ciência e à tecnologia.
A segunda questão importante é que não basta só abrir a ciência à sociedade. É preciso que se passe a apostar no futuro, pois pensá-lo apenas como catástrofe leva a uma relação muito reativa com ele e corre-se o risco de apenas evitar e não de participar de sua construção. É importante, pois, acabar com a passividade. Desde a passividade da ordem da salvação que está próxima, como da ordem do horror que se avizinha.
Como nós vamos conseguir querer esse futuro tecnológico que é o nosso, isso é, como vamos poder ser ciborgues e querer a Internet mesmo com as dificuldades que isso nos traz? Acho que, talvez, uma solução razoável para isso fosse fazer uma analogia com a questão do limite.
O cosmos se expandiu enormemente nos últimos 50 anos e tornou-se gigantesco. Por mais que a gente viaje na mesma velocidade da luz está além do limite da ação humana percorrer o cosmos. Isso é, por mais que a nossa tecnologia se desenvolva, não vamos conseguir o paraíso. Tampouco é possível acreditar em uma salvação na tecnologia ou que ela traga o paraíso que foi prometido na forma de outro mundo, ou prometido na forma de utopia. A tecnologia não vai fazer com que a gente acabe com os nossos limites, eles vão continuar existindo. Por outro lado, nossos limites também são móveis, isso significa para mim uma atitude pragmática de lidar com os limites, sabendo que eles são simultaneamente necessários de serem colocados, mas transitórios.
E, por fim, acho que pensar em investir no futuro é também deixar de pensar que basta um dispositivo tecnológico para se resolver tudo. Essa demanda tem uma complicação inicial, pois já parte do suposto de que o dispositivo tecnológico por si mesmo é bom. Quando na realidade não é isso o que acontece. Há um princípio básico de justiça que supõe que se algo é bom tem que ser distribuído. Para mim é o contrário, o dispositivo técnico não é nem bom, nem ruim, ele nos transforma e cabe a nós investir nele.