A construção do tempo: O tempo do centro e o tempo da periferia: os descobrimentos e a dupla temporalidade
COMENTÁRIO/
Carlos Lessa*//
Comentário que segue a palestra de Antonio Edmilson Martins Rodrigues, A construção do tempo: O tempo do centro e o tempo da periferia: os descobrimentos e a dupla temporalidade.
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Não tenho nenhuma procuração para defender o Sérgio Buarque de Holanda e pessoalmente até gosto muito de Visão do Paraíso. Agora, O Semeador e o Ladrilhador é um desses andaimes intelectuais úteis, mas, certamente, é pobre e não pelo lado do semeador, mas pelo lado do ladrilhador.
A Espanha chegou, no Novo Mundo, à antessala do Eldorado, com as minas e acumulações de ouro das culturas Asteca e Inca e tinha que mostrar a presença do Império de forma inequívoca até para disciplinar seus próprios espanhóis migrados. Uma coisa que sempre me chamou muita atenção, na comparação entre Espanha e Portugal, é como os portugueses deixavam a administração colonial ser ocupada por coloniais, enquanto que os espanhóis exigiam certidão de nascimento na Europa para poder ocupar qualquer cargo administrativo na América Espanhola.
Ainda assim, acho que O Semeador e o Ladrilhador chega a ser uma ideia interessante, mas é pobre.
Agora, queria fazer uma pequena retificação, levando em conta que o Rio de Janeiro é minha paixão e antes de entrar no ponto propriamente, que é o fato da tentativa portuguesa de expulsar os franceses do Rio ter sido inspirada um cálculo político absolutamente claro: na verdade, quando se fundou a primeira feitoria em São Vicente, o raciocínio foi pragmático no sentido de que por aqui estava a trilha que entrava em direção ao interior, era o melhor porto do Atlântico Sul e o fato dos franceses terem ocupado a Baía de Guanabara desequilibrava os planos dos portugueses com respeito ao seu sonho de chegar à Prata, conforme se considerava à época.
Aliás, essa expedição foi inspirada fundamentalmente pelos diagnósticos feitos pelos jesuítas, desde que os portugueses cometeram o equívoco de primeiro ocupar a costa paulista e não a Baia de Guanabara.
Então, a razão de fundo é uma razão prosaica, não poética, a de fazer a cidade do Rio de Janeiro a praça de suporte do contrabando com Prata. A dinastia dos Sás, se, por um lado, tem o poeta, por outro, tem o contrabandista extremamente bem sucedido, pois Salvador Correia de Sá eBenevides não apenas controlava o contrabando de africanos para o Prata, como foi capaz de armar com recursos próprios metade da frota de reconquista de Angola, a qual foi paga com recursos próprios de Salvador.
Eu não diria que o Rio foi uma feitoria, nem uma cidade ideal. Acho que se montou aqui uma vasta operação de contrabando, então, no começo, fomos contrabandistas. Também retiraria um pouco de poesia atribuída, pois, afinal, os Barbalhos se revoltaram por que os Benevides estavam cobrando muitas quotas de contribuição do Rio para cobrir os gastos que eles, Benevides, faziam em benefício próprio.
Quando cheguei aqui para esse debate e encontrei um fragmento do filme do Hans Staden, me veio a ideia de que o Hans Stadenera a modernidade e por quê? Porque tinha tanta consciência de fazer história, tanta consciência do tempo histórico, que fez questão de deixar um relato seu, de sua experiência. Já os índios certamente não tinham noção de tempo histórico. Os índios, como qualquer situação do homem ante a natureza, quer dizer, em estado natural, primitivo, não têm a noção do tempo. São ciclos, ciclos de morte, ciclos da Lua, ciclos de fecundação. Dia e noite, sucessão das marés, sucessão das estações, as culturas primitivas não têm ideia de história, têm no máximo uma ideia de múltiplos e divisores comuns entre esses diversos tipos recorrentes.
O que o Hans Stadensignificou realmente foi introduzir a modernidadeentre os índios, tanto que os índios não lhe deram o destino dado a qualquer guerreiro na cultura Guarani, Tupi-Guarani, que era ser comido. Aliás, quer dizer, em tempo e entre parênteses, eu acho muito engraçado porque o movimento feminista não se deu conta ainda que o machismo brasileiro é pré-colombiano.
Aqui faço um parêntese: o que era o paraíso Tupi? Era o seguinte: o homem só fazia duas coisas: caçava e abatia as árvores. As mulheres removiam as árvores, aravam a terra, plantavam a mandioca, colhiam-na, produziam a farinha de mandioca, produziam o utensílio de barro onde a farinha de mandioca se convertia em alimento, davam na boca do índio que estava deitado numa rede, tecidas por elas, com o algodão plantado por elas. É uma coisa fantástica, inclusive quando nascia a criança quem ia para o resguardo era o pai, pois a índia ia imediatamente trabalhar.
Então, esse é o paraíso machista mais impecável. O movimento feminista não examinou esse lado ainda, senão ia execrar os índios, pois o modelo é terrível. O português que veio para cá sem a portuguesa e que, ao chegar, recebeu índias em troca de espelhos, canivetes etc. e era servido por inúmeras delas, sentia-se no paraíso real. Por isso, os portugueses nem precisaram procurar o paraíso, eles encontraram a necessidade ideal no paraíso ideal no primeiro momento da descoberta.
O ponto que eu queria chamar a atenção é que, certamente, a ideia de tempo está de modo claro associada à modernidade, ou seja, a noção de tempo não existe nas sociedades primitivas. A verdade é que, na maior parte das sociedades primitivas, as pessoas nem sabem quantos anos têm. Isso não é relevante, sabem que vão morrer e ponto.
Penso que o homem como ator, sujeito de seus atos intervenientes nas sequências temporais, é quem descobriu o tempo. A descoberta do tempo está associada no fundo à ideia do homem quando ele se percebe capaz de transitar do destino que lhe impõem os fados do paganismo e se torna senhor de algum tipo de livre arbítrio ligado à moral do monoteísmo, ou seja, passa a ser um escolhedor, passa a descobrir o tempo.
Esse homem que descobre o tempo é para mim quem transitou para a modernidade. Por isso, o Hans Staden é moderno. Imagine-se em contraponto, por exemplo, que não há nenhum Departamento de História capaz de fazer história dos Yanomamis. Podem até fazer um registro de como os Yanomamis eventualmente se extinguem, mas fazer a história dos Yanomamis é impossível.
Então, certamente, o Brasil, desde o momento em que passou a ter os Hans Staden, fossem portugueses ou de qualquer outra nacionalidade, entrou na modernidade. Existem, porém, modos e modos de entrar na modernidade.
A diferença, o desdobramento da modernidade é quando o homem, feito à imagem e semelhança de Deus, se percebe capaz de interferir na natureza. Então, ele começa a interferir, não apenas nas sequências intertemporais e intra-humanas, mas também em sequências intertemporais de sua atuação em relação a natureza e por aí surge a ideia de progresso. Invariavelmente recai-se naideia de progresso.
O tempo, neste momento, se coloca de maneira inequívoca em paralelo à física newtoniana. O tempo é um determinante objetivo, percebido como externo, inclusive ao homem. E de certa maneira Kant, com a Razão Pura, vai dizer que o tempo e o espaço são a síntese a priori de todo o posicionamento humano. Então, embora inicialmente descoberto pelos atores da modernidade, o tempo claramente se descolou dos seus próprios atores. Estou nessa pedanteria apenas para tentar chegar à ideia de que o homem, esse homem moderno que é o homem que está produzindo, não é o descobridor do tempo: ele se modifica em função do que produz. Quando é camponês tem claramente uma proximidade maior com a ideia do império da natureza, aproxima-se mais do pensamento primitivo. Mas, quando passa, por exemplo, a ser artesão, já começa a ter a ideia de que ele é o sujeito do que faz, é quem controla e faz as coisas, faz com as mãos, faz com a razão, faz com o conhecimento. E quando vira operário se percebe que faz enquanto membro de um grupo coletivo que está aprisionado pela máquina, ou seja, o homem se percebe fazedor membro de um conjunto coletivo.
Estou aqui tentando caminhar, na medida do possível, com rapidez, porque no momento em que se caminhou para essa visão da modernidade, a engenharia do tempo já desdobrada em relação a uma engenharia da natureza, o homem aproximou-se de uma maneira muito clara de uma historiografia que tem uma componente sociológica evolutiva. Deixa de ser uma historiografia pura e completamente factual de registro e eventos e passa a ter como denominador comum a ideia de uma evolução, de uma matriz.
Essa própria ideia da evolução ou a ideia de transformações, a ideia que traz a descontinuidade como ruptura, como metamorfose, como transformação, leva a ideia de tempo mais além de Newton. Até na Física essa evidência fica clara com Einstein, que relativiza a própria noção de tempo e funde com noção de espaço. Enquanto que o Edmilson nos mostrou, de maneira extremamente interessante, como é possível repensar a história da fundação do Brasil e da fundação do Rio e nela enxergar manifestações da razão moderna, creio que é absolutamente possível tentar pensar em outro tempo, a chamada pós-modernidade com respeito ao tempo.
Pessoalmente, vejo que a pós-modernidade esta literalmente demolindo a ideia do tempo, na verdade, por dois processos: um deles é o volume de informação; é tal o volume de informação disponível no tempo real que as informações atacam informação anterior e como elas são descontextualizadas rapidamente, você retira a informação anterior do seu olhar. Então, Milosevic cancela as eleições municipais no Rio e o conflito do Oriente Médio cancela o Milosevic. Ou seja, tudo isso começa e rapidamente entra na penumbra porque ninguém vai se debruçar no afã de interpretar a marcha eleitoral municipal do Rio, ou de como se passa a questão do Bálcãs e de como se desdobra a questão do Oriente Médio. Simplesmente, você se dá por satisfeito porque teve notícias e teve notícias junto com mais outras mil e duzentas, mil e quinhentas, três mil, quatro mil ou qualquer quantidade. Temos uma onipotência de informação, mas podemos virar perfeitos idiotas por nada saber absolutamente a respeito de qualquer uma delas e como se encadeiam. Somos literalmente esmagados pela imensa massa de informações em tempo real e nem nos preocupamos em reconstruir sequências, que era a postura epistemológica do homem desdobrado sobre sua própria atividade.
Assim, em primeiro lugar, a pós-modernidade está implodindo a noção de tempo; por outro lado, penso que a pós-modernidade está também implodindo a noção do coletivo. A ideia é a seguinte: modificou-se a estrutura da produção industrial e está se construindo o novo paradigma que são as redes, nas quais alguém, dispondo de recursos dados pela telemática, pode operar como sujeito onipotente, ou, pelo menos, aparentemente onipotente, integrado com sistemas mundiais, acessando uma espécie de enciclopédia em tempo real que é a Internet, sendo o coautor dessa enciclopédia, pelo seu site nela, e trabalhando de noite, de manhã, de tarde, amanhã, quando for ou quando quiser. Vai dispensando disciplinas, dispensando horários, se encapsulando. No limite, esse cidadão pós-moderno na ponta de linha de uma rede perde a ideia do coletivo. Ainda que pareça uma coisa brutal, torna-se uma espécie de leitor estúpido de uma enciclopédia.
Essa ideia da enciclopédia iniciou-se com os iluministas ou talvez antes, com Gutenberg. Foi quando se superou o copista e foi possível multiplicar pelo livro a informação. Pensou-se, então, que seria possível multiplicar o conhecimento humano e colocá-lo todo impresso no livro.
Conheci muito idiota no Rio de Janeiro que comprava a Enciclopédia Britânica, botava na sala de visitas, a mantinha em estado virginal e geralmente não falava inglês, mas aquela Britânica na sala de visitas dava a ele a segurança de que todo o saber do mundo estava disponível na enciclopédia.
Bom, essa mesma postura é aplicada ao infinito com a Internet: qualquer idiota que sabe acessar tem a sensação de ter a enciclopédia de todo saber do mundo, sem esperar a edição, quer dizer, em tempo real e, além disso, é coautor da enciclopédia. Imagine-se, então, a sensação de autossuficiência estúpida que dá manejar a Internet.
Estou certamente exagerando, mas quero chamar a atenção para como é possível dissolver a síntese a priori para a referência. Pois o espaço passa a ser o cosmo, a rede e o tempo? É o real, sem passado e sem futuro. Vivemos fascinados pela objetividade do presente, aliás, o presente é tão esmagador que não podemos pensar nem no passado e nem no futuro, quer dizer, estou querendo chamar a atenção para o fato de que há uma possibilidade do lema da quotização na pós-modernidade.
Já se faz carreira universitária curta. Não é interessante? Equivale mais ou menos a comprar a enciclopédia e mantê-la em estado virginal. Aprende-se tão somente uma técnica e não o conteúdo. Depois que a técnica ficou obsoleta, volta-se para a universidade e aprende-se outra técnica. Isso é o que se chama carreira curta. Para que pensar? Vira tudo muito mais fácil: compra-se a enciclopédia e põe-se na sala. Nessa imagem da pós-modernidade insere-se o risco para o qual quero chamar atenção.
Mas por que estou martelando nisto? Porque, da mesma maneira que o Hans Stadenchegou ao Brasil e nos trouxe a modernidade, outros tal como ele, o Bacharel de Cananéia, o Caramuru, o João Ramalho, plantaram o germe da modernidade. Nós, no Brasil todo, os temos em qualquer quantidade, somos absolutamente pós-modernos, aliás, eu diria que somos hiper pós-modernos. Com isso quero dizer o seguinte: tanto a ideia de coletivo, quanto a ideia de tempo como objeto de reflexão, vão sendo desalojados da nossa elite pós-moderna, isto é, quanto mais nós avançamos em direção à pós-modernidade, mais evanescente é a ideia de tempo e de espaço.
Dirão que este senhor de gravata enlouqueceu. Não e a prova, no Rio de Janeiro, não precisa se remeter aos Barbalhos. Se vou à Barra da Tijuca, encontro um cartaz que diz assim: “Sorria, você está na Barra”. Como sei ler, o que ali está escrito é o seguinte: “Sorria, você deixou o horror”. Então, penso que a transição para o pós-moderno se situa depois daquele cartaz. Aí, caminho por aquela avenida que tem o nome daquele herói piloto de Fórmula 1, Avenida Ayrton Senna, e ao andar por ela vejo coisas realmente interessantes, manifestações pós-modernas, por exemplo,o Downtown, uma edificação claramente pós-moderna. E há outras coisas interessantíssimas, que me levaram à conclusão que lá se tenta plasmar um homem do futuro, pois é o único lugar do mundo que tem uma cervejaria sem mictório associado. É emblemático porque lá no Downtown as pessoas têm que entrar em fila para ir ao mictório, que está em média 400, 500 metros afastado dos locais de manifestações do desejo, o que me faz supor que está em transmutação a espécie ou que, na verdade, na Barra da Tijuca se está mostrando um Brasil na vanguarda da pós-modernidade.
Guardo comigo um exemplar precioso de prova iconográfica, testemunhal e documental da maior importância: a propaganda do lançamento de um prédio de belíssima maquete, montada em uma paisagem distinta da Barra da Tijuca, de onde vê-se, no fundo evanescente, a silhueta dos Dois Irmãos e a seguinte chamada comercial: “Se não fosse pelo Dois Irmãos você diria estar em Miami”. A ideia de superar o espaço foi perfeita.
Quero afunilar minha intervenção, observando um pouco mais a Barra da Tijuca em uma outra manifestação: eu afirmei que achava que a idiotia ou o processo de idiotização avança com a pós-modernidade. Então, creio que devemos procurar a manifestação mais inequívoca desse fenômeno na Barra da Tijuca. A mim me assusta muito a violência da Barra da Tijuca; as pessoas falam da violência do Rio, essa violência aí da guerra do tráfico que está acontecendo, mas nada é em relação a outra tipo de violência que se desenvolve praticamente a partir da Barra, produzida por jovens de alta classe média, ou de média classe média, hiper bem alimentados, residentes em condomínios fechados e que tiveram à sua disposição todos os equipamentos dentro do condomínio, que desenvolveram uma cultura social nos shopping centers, ali aprendendo a conviver, a namorar, a se exibirem, a serem exibidos etc. Dentro do espaço do shopping, ou seja, produto de uma paisagem pós-moderna que é a paisagem no interior do shopping, essa turma se dedica, no excesso de sua energia vital, a um esporte que é espancar o próximo. É impressionante o número de atos de violência que acontecem nas boates, nos restaurantes etc.
Mas, enfim, eu diria que a pós-modernidade dissolveu inteiramente o tempo e que o nosso ex-presidente Fernando Henrique, por exemplo, é um presidente pós-moderno, um presidente, aliás, explicitamente interessado em demolir o tempo, já que ele prometeu demolir a Era Vargas. Acho, porém, que, na verdade, demoliu mais do que a Era Vargas. Lembro aquele episodio, das comemorações dos 500 anos do nosso descobrimento lá na praia de Porto Seguro, a Coroa Vermelha. Fernando Henrique pretendeu marcar essa data com a chegada de uma caravela feita em Salvador, mas o mais interessante é que não era uma caravela verdadeira, e sim uma falsa caravela, porque se tratava de uma embarcação a motor com silhueta de caravela. Possuía lá dentro todas as modernidades, como televisões, ar-condicionado e muito mais. Mas apesar do Brasil ter sido nos anos 1970 o terceiro maior produtor naval no mundo, a caravela do Fernando Henrique nesse ano de 2000 precisou de um especialista francês; e o mais engraçado é que saiu do porto, enguiçou o primeiro motor, enguiçou o segundo motor, os marinheiros ficaram enjoados e teve que voltar e ser rebocada para Salvador. Isso foi para homenagear o presidente português e me permitam ver neste episódio um ato simbólico de entrada na pós-modernidade ou de plena pós-modernidade.
É importante o tema que foi proposto aqui: a ideia da temporalidade do Centro e da Periferia. Nesse sentido, eu avançaria a tese de que, na periferia, a temporalidade foi implodida junto com o espaço, quer dizer, se Kant conhecesse o Brasil do tempo do Fernando Henrique, ele certamente não afirmaria ser espaço e tempo a síntese a priori da humanidade. Não sei bem o que ele colocaria no lugar, mas certamente não faria tal afirmação.
Pergunta do público:
Há muito tempo Vianna Moog, em Pioneiros e Bandeirantes, explicou que a principal diferença no desenvolvimento dos Estados Unidos e do Brasil residia no tipo de colonizadores. De um lado os religiosos e peregrinos, e do outro os degredados e condenados que foram mandados para o Brasil. Você acha que essa explicação procede? Ela tem alguma sustentação histórica?
O livro do Vianna Moog, Bandeirantes e Pioneiros, não é um livro de andaimes, como mencionei acima. Na verdade é um livro que está dentro daquela linha de trabalhos de prospecção histórica, de que faz parte Oliveira Viana e uma quantidade de outros. A proposta deles era buscar tipos e explicações, em última instância, de por que o Brasil era o Brasil. É uma redução absolutamente espantosa, se bem que é indiscutível, no caso de Vianna Moog, que o vetor ético protestante tem importância na constituição da sociedade brasileira.
Todas as vezes que me debruço sobre a história do Brasil procuro isolar um vetor que seja importante pelas permanências e pelas redundâncias, e que se mantenha presente. Nesse sentido, o vetor que percebo mais importante é do escravagismo. Esse, sim, me parece ser a dimensão mais estruturante e ao mesmo tempo maldita da vida brasileira. Um dos recursos que uso para apoiar a ideia da força do escravagismo é o que chamo de comportamento de sinhozinho e sinhazinha. Que é, simplificando, o comportamento típico nosso de jogar lixo na rua. Não gosto de jogar lixo na rua, entre outras coisas, porque existe sempre a presunção de que alguém mais humilde catará esse lixo. No fundo é sempre a ideia de uma sociedade estamental em que a disponibilidade de gente por baixo é ilimitada. Aliás, é nisso que a Barra da Tijuca, sendo pós-moderna na sua configuração aparente, é absolutamente brasileira no seu padrão, pois é a região do Rio onde a taxa de favelas cresce mais rapidamente. E por quê? Porque a elite brasileira não pode viver sem o favelado. O favelado é que presta os serviços lícitos e ilícitos que definem parte importante do bem estar da elite. Como a Barra da Tijuca é onde a nova elite pós-moderna está se consolidando, a favela, como uma sombra, vai junto. Então o condomínio é fechado, mas a guarda do condomínio é recrutada na favela. Se o metro quadrado mais caro do Rio é São Conrado, ao mesmo tempo dá vista para a maior favela do Rio, que é a Rocinha.
Assim, a nossa pós-modernidade continua rigorosamente à brasileira e transporta consigo a marca do escravismo. Então, se eu tivesse que fazer algum exibicionismo e tentasse isolar um vetor para explicar Brasil, começaria com o escravo; se me pedissem um segundo vetor, diria um outro escravo, e se me pedissem um terceiro, eu diria mais uma vez, um outro escravo.
Mas penso que há escravos e escravos e tentar pensar o escravo como uma categoria homogênea é um equivoco brutal. Quer dizer, o escravo ligado à produção é totalmente diferente do escravo ligado ao consumo, chamo escravo ligado ao consumo aquele que é doméstico, que pertence ao dono da casa, o escravo que é como um eletrodoméstico.
Uma coisa é o sonho de consumo de um milionário francês, residente à Avenue Foch, de eventualmente ter um criado, um mordomo filipino. Outra coisa é ver que qualquer pessoa de classe média nessa cidade pode ter dois a três empregados domésticos. Não estou fazendo juízo de valor, apenas o que quero dizer é que esse é um traço permanente e estruturante da vida brasileira. Em outras palavras, prefiro essa ideia à proposta do Vianna Moog.
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*Carlos Lessa é economista e professor emérito de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ.