A construção do tempo: O tempo do centro e o tempo da periferia: os descobrimentos e a dupla temporalidade
PALESTRA /
Antonio Edmilson Martins Rodrigues* //
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Selecionei uma série de imagens que acho que são poéticas. Quem faz história também tem que ter alguma coisa de poesia ou algum tipo de sentimento para pensar o que seria o tempo do centro e o tempo da periferia, categorias extremamente marcadas por várias camadas de ideologia e, por isso mesmo, minha proposta é encurtar esses tempos. E encurtar esses tempos significa de alguma maneira colocar em discussão aquilo que me é muito caro na cidade do Rio de Janeiro e aquilo que também me é muito caro, que é Portugal, e estabelecer um primeiro confronto entre Rio de Janeiro e Portugal pela inclusão de uma outra espacialidade, que é a espacialidade das cidades italianas ou a espacialidade renascentista.
Meu ponto de partida é que a América também foi renascentista e para isso devo evidentemente fornecer algumas informações e alguns dados que são aqueles com os quais venho trabalhando e que, se servirem a algum tipo de reflexão, já é motivo de satisfação.
É comum, é um lugar comum, fazermos referência a Portugal, ao mundo ibérico em geral, como sendo um espaço em que o processo de formulação de ideias, o modo pelo qual se desenvolvem principalmente os aspectos culturais, estariam forçosamente presos, de um lado, àquilo que são as permanências medievais e, de outro, a certa descoberta de uma referência prática que teria conduzido o mundo ibérico ao processo de expansão.
A primeira questão é que o mundo ibérico jamais promoveu a expansão sem ideias, e as ideias foram, talvez, a parte mais importante daquilo que conhecemos como a cultura dos descobrimentos. Os descobrimentos, ao contrário do que normalmente a própria historiografia portuguesa nos apresenta, não tiveram como ponto de partida o tradicionalmente adotado (1415, na tomada de Ceuta), como se naquele momento histórico tivesse começado o processo de formação dessa dimensão expansionista. O que todos, um dia, ouvem na escola – de que Portugal e também a Espanha se lançaram ao mar, ao oceano, porque tinham uma posição estratégica – é uma grossa mentira, uma leda ilusão. Mesmo com a posição estratégica ou geográfica definida, esses dois países jamais poderiam fazer o que fizeram a partir do século XV.
Sem ter em conta as ideias, julgar por aí acaba se traduzindo em um preconceito, tanto quanto uma outra coisa que impede o reconhecimento de uma visão moderna de Portugal, a concepção do espírito de aventura. A predominância da concepção da aventura acabou-se transformando num obstáculo à possibilidade de conhecermos o fluir das ideias em Portugal.
A concepção da aventura de saída anunciava certa vinculação intuitiva, alguma coisa que levava esses homens, ou pela via do desespero ou pela via da fé, a tomarem essa empresa nas mãos e a se dedicarem a ela, nem é certa pelo lado da intuição e nem pelo da fé. Esse movimento que desencadeia o descobrimento ou que funda a cultura do descobrimento inicia-se com a própria dimensão afonsina dos Henriques e com o processo de reconquistas, o qual, também para nós, é visto sempre como alguma coisa tomada, como a presença da ideologia feudal. Assim, Portugal não seria só um estado forte, mas um estado sacralizado.
E não nos lembramos nessas horas de um pequeno trecho de Maquiavel em O Príncipe, no qual, examinando a dimensão ibérica, chama a atenção para a qualidade de um príncipe de nome Fernão de Aragão e pela sua condição de ‘muso’ da Igreja como instrumento de legitimidade do seu poder. E várias outras coisas são esquecidas exatamente porque ficou marcada a ideia de que Portugal era um Estado absolutista e que tinha uma forte presença dessas recorrências feudais. Deixaram de lado várias informações interessantes dos primeiros reis portugueses, como as que estes defenderam os judeus. Durante o governo de Sanches I, por exemplo, era permitido aos judeus terem escravos cristãos. E tiveram sempre problemas com a ideia que perpassa todo o final da Idade Média em Portugal, de que ninguém poderia ser convertido à fé de forma repressiva, obrigatória, em oposição à conversão pregada pelo Sinédrio de Sevilha, que entrava em Portugal trazida pelos padres da Igreja.
O outro dado significativo é o momento do século XIV, quando se realiza a chamada Revoluçãode Avis, que sempre entendemos como uma revolução da arraia-miúda, sem, porém, compreender o seu significado. Não entendemos que esse momento demarca o princípio de uma mudança política significativa no âmbito não só da sociedade portuguesa, mas no processo de recepção dos valores italianos e, principalmente, daqueles ligados ao humanismo cívico, só que evidentemente adaptados a uma forma de Estado, a qual veio a adquirir formato mais definido com a Reconquista.
Em 1385, as Cortes de Coimbra se reúnem, elegem rei, naturalmente, o mestre de Avis, e este se obriga a convocar essas cortes de dois em dois anos; além disso, nega qualquer tipo de direito à nobreza, seja de sangue, seja de qualquer outro privilégio, e anuncia que será a competência o marco fundamental da vida da corte desses reis de Avis.
Há mais algumas questões importantes a serem tratadas, mas o fato é que a Itália de alguma maneira condicionou a própria forma de vermos o Renascimento, o que prejudicou amplamente a avaliação que fazemos do mundo ibérico. Porque, evidentemente, é o modelo italiano que serve de padrão para qualquer tipo de desenvolvimento.
Lembro que o professor Francisco Falcon, em um livro sobre Pombal, fazia questão de dizer que Portugal tinha vivenciado um Renascimento precoce. E esse Renascimento precoce, no início do século XV, está exatamente marcado pela fundação ou refundação de várias universidades e, principalmente, do desenvolvimento das primeiras experiências fora de Portugal com os bolseiros, que eram homens portugueses que viajavam pela Europa, estudavam sobretudo na França e que têm o papel fundamental de desenvolver todo um debate intelectual em Portugal. Um debate que vai fazer surgir no século XV, como ideia fundamental dessa mudança para o moderno, a figura do Infante Dom Henrique, normalmente visto mais como uma figura da epopeia portuguesa do que como uma figura desse pensar moderno em Portugal.
A grande importância do Infante Dom Henrique não é aquela que normalmente conhecemos, mas a de colocar um grupo de intelectuais ao seu lado para discutir a geografia de Ptolomeu. E, com base na geografia de Ptolomeu, começar a costear a África, tentar entender se a África se estendia realmente para o sul e se o oceano Índico era fechado, como se supunha na perspectiva de Ptolomeu. E não só isso, mas também verificar se havia vida na área tórrida do Equador. O dado significativo desse tipo de experiência do Infante, evidentemente está na forma de ocupação da costa africana e é o seu resultado que faz com que, na poesia portuguesa, o Cabo das Tormentas vire Cabo da Boa Esperança. Usualmente, se pensa que Portugal apenas toca as Índias pelo mar, mas a preocupação com o cálculo econômico em Portugal é tão grande que, ao mesmo tempo em que saem os navegadores pelo mar, outros homens, experientes no contato cultural com outros povos, fazem viagem por dentro do Mediterrâneo e chegam tanto à Etiópia quanto à Calicut por terra. É o caso de Pero de Covilhã e Afonso de Paiva, que são homens que, evidentemente, mal conhecemos porque lembramos somente dos Magalhães, dos Gonçalves e de outros, os grandes pilotos, também envolvidos nessa grande iniciativa.
O Tratado de Tordesilhas talvez seja o dado que incorpora a temporalidade, ou a dupla temporalidade – a temporalidade do centro e a temporalidade da periferia. Pouca atenção é dada a eventos como este, como se eles não estivessem presentes na própria forma pela qual o sujeito elabora a noção de tempo. O tempo desse sujeito. E no contexto específico desse momento, século XV, o tempo é de um sujeito ou de vários sujeitos, o tempo dos homens em Portugal, não mais o tempo da Igreja.
O Tratado de Tordesilhas serve como exemplo, pois na discussão inicial do tratado com o Papa Alexandre VI, a questão é se a linha a ser definida se sobreporia à linha do Atlântico. Os intelectuais portugueses solicitam ao Papa que essa linha passe a 300 milhas exatamente desse lugar, não só por causa da África, mas por que, no mapa de Ptolomeu, a despeito deste conter muita água, apontava-se que havia mais terra, evidentemente, um indício muitíssimo importante para que os portugueses se debruçassem sobre essa fórmula.
Há, portanto, uma reflexão matemática, uma reflexão filosófica, uma reflexão sobre as invenções, e, principalmente, sobre a invenção do que hoje chamamos de Novo Mundo.
Entretanto, esse tempo de Portugal é encurtado no sentido de centro, pois Portugal, tanto quanto a Itália, vive essa dimensão do início dos tempos modernos de uma maneira também nova. E aí cabe a primeira conclusão pontual: quem descobre e inventa o Novo Mundo é uma Europa também inventada há pouco, também nova. São as discussões de duas dimensões novas que aparecem exatamente nesse momento.
Eu diria que Portugal, assim como a Itália, sofreu as mesmas mudanças nesse período que vai do século XV ao XVI, embora as singularidades históricas coloquem do lado de Portugal a ideia de uma monarquia eletiva na qual existe a soberania do povo, o que está claro nos textos da época dos Avis, principalmente da de Dom João III, uma referência clara ao que em paralelo ocorre na Itália com o humanismo cívico na forma da república. Tendo Florença como exemplo principal, diria que essa vivência é uma vivência que encurta o tempo do centro, porque inicialmente imaginei que Portugal era o tempo da periferia com relação à Itália e cheguei à conclusão, depois de muito ler sobre a questão, que, isso também não ocorria. Tratava-se de temporalidades também distintas no sentido daquilo que a temporalidade significa como percepção cultural, como forma de agir, de viver essa referência cultural e de fazer, tanto em Portugal como na Itália, com que, no século XV, esses homens se imaginassem como indivíduos e cidadãos. Mais do que isso, que elaborassem uma ideia de cidade, conhecida como cidade ideal, que era menos o espaço construído e mais as ideias, aquilo que podia parecer como um compromisso moral e ético que resguardava esses homens do desastre. Desses homens que estão passando do século XV para o XVI e que estão vivendo uma série de crises – as mesmas em Portugal e na Itália –, cuja saída, tanto em Portugal como na Itália, é uma coisa muito próxima do que é traçado no livro de Baltasar Castiglione, O Cortesão, ou seja, a substituição da cidade ideal pela cidade modelo, a normatização da experiência.
E a normatização da experiência indica a possibilidade de se ter o acúmulo de experiências que não precisam mais ser vividas pelo homem; daí, no século XVI, ao contrário do, e comparativamente ao, século XV, em vez da cidade república tem-se o Estado moderno. E também em Portugal os processos se darão dessa maneira.
Além, evidentemente, da questão da aventura, que é um obstáculo, pois que intui um processo sem ideias, a própria associação dessa dimensão expansionista pura e simplesmente a uma estratégica econômica também limitou a possibilidade de conhecermos a vida e, principalmente, as ideias. Não que evidentemente os interesses mercantis não estejam presentes, é claro que estão. Mas, há por outro lado uma preocupação etnográfica, uma preocupação cultural que está exposta de alguma maneira na carta do Caminha.
Lembremos que a carta do Caminha foi sempre um problema para os historiadores, porque em algum momento nessa carta o Caminha se desvincula da descrição do Brasil e pede um emprego para o seu sobrinho, e aí desmorona o documento enquanto certidão de nascimento de qualquer coisa.
Essa síntese, se por um lado invoca os interesses mercantis, representa também a cabeça de um humanista: em se plantando tudo dá. Ele olhou a natureza e viu a mata atlântica como ela era. Ao olhar aquilo poderia ter optado pelo paraíso, não? Porque as configurações do paraíso eram essas: árvores, papagaios que falavam, possivelmente a grande ave do paraíso. Sérgio Buarque deHolanda – acho que de forma equivocada – num belíssimo livro, datado, todavia, mas importantíssimo de ser lido, Visão do Paraíso, faz uma diferença entre visão e fantasia, trazendo a experiência para os portugueses e a fantasia para os espanhóis. Ou seja, Colombo é o homem da fantasia porque fica maravilhado com o Adão do novo mundo, fica perplexo, abobalhado, dizem alguns, e não entende o sentido do que seria uma herança ainda religiosa de cunho feudal em sua cabeça, fica perplexo e tenta dar conta daquilo. Enquanto que os portugueses, achando que Deus já tinha criado tudo, apenas descobrem a criação de Deus e não se dispõem a inventar absolutamente nada. Trata-se, evidentemente, de um equívoco.
Tomando ao pé da letra o título dessa conversa de hoje, poderíamos atribuir a essa situação o ‘Tempo do Centro’, embora esse tempo do centro se expresse naquilo que chamamos de periferia, mas que prefiro denominar de Novo Mundo, até porque naquele momento seria muito difícil dizer que isso era periferia. Poderia até ser enquanto expressão geográfica: periferia, porque está fora do centro.
Mas a minha relação com a periferia começa exatamente por conta dessas ideias e por conta da cidade do Rio de Janeiro. É minha homenagem à cidade, embora eu não seja daqui, sou de lá. Nasci no Arquipélago dos Açores, numa ilha chamada Ilha Terceira e numa cidade que é a própria epopeia portuguesa: Angra do Heroísmo. Só podia ter esse nome em Portugal. Eu vim para cá muito pequeno e de algum modo diria como um amigo português, o Prof. Luis Adão: “Caminha quando aqui chegou achou que tinha voltado à infância”. E eu perguntei: é o Novo Mundo o quintal da casa dele? A resposta teria que ser necessariamente afirmativa.
Essas formas de tentar atenuar a importância da presença humanista é que me levaram a enveredar pela cidade do Rio de Janeiro e, uma vez na cidade do Rio de Janeiro, tomá-la como um objeto passível de explicar a presença dos valores renascentistas na America.
E mais uma vez me choquei, embora não quisesse, com Sérgio Buarque de Holanda. Além de todos esses livros que escreveu, há um que é clássico, chamado Raízes do Brasil, em que, num capítulo intitulado O Semeador e o Ladrilhador, novamente compara portugueses e espanhóis.
Tal comparação é um pouco mais delicada, na medida em que a própria ideia de semeador e ladrilhador vai estar associada a topos recorrentes, a um topo recorrente na literatura, mas que vem desde a Grécia pré-clássica para o agir e fabricar, que caminha pela Idade Média e nos chega dessa forma aos tempos modernos. Mas a ideia principal que aí está é uma ideia que vou tomar como mote para poder expor o que penso da cidade, que opõe portugueses e espanhóis não só no sentido da experiência e da fantasia, mas ancora a diferença que, para os portugueses a América é um lugar das feitorias e para os espanhóis, o lugar da cidade. E é exatamente nessa forma de oposição entre cidade e feitoria que faço a inclusão da cidade do Rio de Janeiro.
Partindo do pressuposto anterior, como estamos vivendo a passagem do século XV para o XVI, a cidade é vista como uma obra de arte, por ser uma construção da razão humana. Isso não quer dizer que se tratava necessariamente, no primeiro período da Renascença, de um espaço construído. Aliás, não o era. Era um projeto, projecto, e essa ideia de projecto acaba fazendo com que seja, de alguma maneira, possível dizer-se que a cidade do Rio de Janeiro é um projecto, um projecto que vem de forma muito interessante marcado por ideias. É menos o espaço construído e mais o idealizado. Não idealizado no sentido do idealismo, mas pensado como um projeto à frente.
E digo isso porque o Rio de Janeiro, na verdade, tem duas fundações, não apenas uma. Tem uma fundação francesa e uma fundação portuguesa e a fundação francesa evidentemente é causa de uma enorme polêmica, não? Porque nós sempre aprendemos que naquele momento os franceses eram invasores, pois para a primeira invasão francesa Villegagnon era claramente um homem do Conde de Coligniycom vistas à destruir a hegemonia portuguesa no Atlântico.
É um momento em que a França vive um dos piores tempos de sua história, que são as tensões entre protestantes e católicos e que, evidentemente, homens como o vice-almirante da armada Nicolas Durand de Villegagnonestariam envolvidos com essa guerra, como também, em lados opostos, duas figuras importantes: André Thévet e Jean de Léry. Villegagnon conquistou esse título por demonstrações de suas qualidades; mais do que isso, Villegagnon era um teólogo antes de tornar-se o vice-almirante da armada. Havia estudado na Universidade de Paris, onde encontrou um colega chamado Calvino. E foi sempre usado pelos padres da Universidade de Paris para demover as teorias inflamadas de Calvino.
Esse homem é o que aporta na Guanabara e que a associamos a um invasor. Na verdade, a ideia de uma cidade ideal é o que se passa na cabeça de Villegagnon, uma cidade equidistante daquilo que, para ele, nesse momento desponta como uma coisa suja, uma coisa imoral, sem sentido.
A outra utopia, a utopia portuguesa, é a de Mem de Sá. Com relação a Mem de Sá, nós também o militarizamos: assim como Villegagnon era vice-almirante da armada, Mem de Sá era o Governador-geral e, como tal, tinha o poder militar, além de todos os poderes fiscais etc. Nem imaginamos que ele traz para cá toda a sua família, todos, deixando apenas as mulheres nos conventos de Lisboa. Além disso, Mem de Sá tem uma qualidade muito especial: ele é irmão de Sá de Miranda, o grande poeta renascentista português.
A utopia é interessante porque ela é a defesa dos valores do século XV, é a visão humanista que defende os valores do século XV contra aquilo que está acontecendo no século XVI. A qualidade do humanismo de um Morus se revela em sua noção de utopia, que se mistura a essa noção de cidade ideal e que configura esse primeiro aspecto intencional do registro de um novo lócus, o qual deixa de ser espaço na medida em que é cotejado e assumido por essas ideias e passa a ser um lugar.
O mais interessante nos relatos, tanto de Mem de Sá,quanto deVillegagnon, é que eles transformam esse espaço num lugar, num lugar definido enquanto espaço próximo daquilo que eles imaginam como sendo uma cidade ideal e incorporando tudo aquilo que era a natureza dessa área.
Essa fundação do Rio de Janeiro, essa dupla fundação do Rio de Janeiro, por si só já define a existência de uma cidade e não de uma feitoria.
O segundo passo importante é que a cidade foi fundada desse modo, sendo desde o início uma cidade. Nunca foi uma vila, nunca foi um povoado, já nasceu cidade e, mais do que isso, nasceu cidade do Rei, o que é realmente importante. Imaginem por exemplo, que, em 1640, depois de rompida a União Ibérica, a cidade do Rio de Janeiro, por meio de sua câmara municipal, manda uma carta para o Rei de Portugal, dizendo: “Oh! Rei de Portugal, nós o reconhecemos como Rei”. Tal postura deve ter criado uma situação tão desconfortável em Portugal que, logo a seguir, a cidade ganhou uma série de títulos de fidalguia por conta dessa atitude de altivez e arrogância. É, por outro lado, uma cidade aberta e diferente de uma feitoria. Tem duas portas: uma porta para a Europa e outra para o interior; por isso mesmo, não é só uma cidade como em Angola que luta para defender os interesses portugueses. Logo depois de fundada estabelece conexões com Buenos Aires e desenvolve, então, um enorme comércio, objeto de uma bela análise no livro da professora Alice Canabrava, que trata das relações entre o Rio de Janeiro e Buenos Aires durante esse período inicial, ainda no processo de formação da cidade. Cabe lembrar que Estácio de Sá, ao fundar a cidade, doa uma légua e meia de terra para o seu povo.
Isso, aparentemente, parece um equívoco entre aqueles que querem descobrir uma cidade construída, mas, para mim é a forma de imaginarmos como essas ideias, esses valores da Renascença, penetram nesse espaço da América Portuguesa e aqui ganham força. Evidentemente que a cidade do Rio de Janeiro pode ser considerada como um espaço meio afastado daquilo que é a lógica maior do sistema ou daquilo que seria a vontade de Portugal de um sistema fechado.
Recorro como cúmplice a uma outra professora, uma intelectual formidável de quem gosto muito, a professora Eulália Lobo, que, em seu livro sobre o Rio de Janeiro, atesta de alguma maneira essa proeminência da cidade no sentido da recepção dessas ideias. Ela diz que, a partir de 1580 com a União Ibérica, o Rio de Janeiro ascendeu em termos do seu processo de ocupação colonial especialmente por que foi a única cidade que possuía os setores mercantis. O livro de Fernand Braudel, Felipe II e o Mediterrâneo, explica bem isso, pois o rei espanhol estava mais interessado na Europa e em se transformar em Imperador e essa questão abriu a perspectiva desses homens do Rio de Janeiro de poderem cobrir espaços importantes no âmbito da colônia. Mais do que isso, nesse tempo é o Rio de Janeiro a única cidade que têm colônias, como a de Sacramento. Tal dinâmica é ilustrada nas palavras do Prof. Ilmar de Mattos: “uma cidade de colonos, uma cidade de colonos que não é necessariamente uma cidade de colonizadores, com as relações estabelecidas no âmbito dessa cidade sendo de um apuro incrivelmente interessante”.
Em 1660, o povo do Rio de Janeiro expulsa um dos descendentes importantes dos fundadores da cidade: Salvador Correia de Sá e Benevides. Ele é expulso, mandam-no embora. E não só o mandam embora, como o acusam de traição com correspondência para o Rei constando que ele roubava o tesouro real. E o fazem de uma maneira ultraespetacular. As atas da câmara municipal desse período, refeitas por Baltazar da Silva Lisboa, são interessantíssimas porque se mantém a burocracia oficial e, no final da ata, o escrivão diz: “isso foi o que me mandaram escrever”.
São fatos pitorescos e eu não poderia deixar de contar outro episódio que ilustra a tolerância do Rio de Janeiro com relação à situação do negros. Aleixo Manuel casou com uma mulata, uma negra muito bonita, dizem as más línguas que de olhos verdes. Dois dos chamados homens bons da cidade do Rio de Janeiro resolvem raptar a negra no dia de Natal, de 24 para 25. O AleixoManuelé informado, prepara uma armadilha para os sujeitos: quando eles lá chegam, na hora em que estão tentando raptar a negra, os que ficaram para fazer a ceia acendem as tochas e os lampiões e tal coisa e os dois homens são pegos desprevenidos. E o Aleixo Manuel diz: “Ah! Vieram aqui para me ajudar na ceia, que bom, então que trabalhem.”
E é esse o espírito da cidade nesse momento, não um espírito de repressão e nem de exclusão. Então, há marcas próprias muito interessantes nesse cenário do Rio de Janeiro, mas esses exemplos são exemplos importantes e eu gostaria de concluir com um final, o dessa rebelião de 1660. O povo da cidade elege, então, por conta própria um governador, o Barbalho, que é amigo do Salvador Correia de Sá e Benevides. Este alega como impedimento sua condição de amigo e foge para um convento. Nesta época, não havia embaixadas, os locais para se pedir asilo eram os conventos, mas as ordens religiosas tinham aqui uma configuração diferente, eram ouvidas, mas não determinavam. Mas as pessoas tiram o Barbalho do convento e ele diz: “Eu estou doente, venham à minha casa para decidir as coisas”. E o povo rebate: “Não, em sua casa não; sua casa é seu lugar privado, as coisas da cidade devem ser decididas na Câmara”.
Isso era toda a tradição que vinha de Portugal, toda a tradição dos Avis, da monarquia eletiva, da forma de organização da municipalidade, dos conselhos que até hoje são extremamente fortes e que permaneceram muito fortes durante esse período inicial da Reconquista.
Uma das coisas mais interessantes que li sobre os portugueses foi uma oração para Dom João III feita pelo navegador Diogo de Teive, na qual diz: “Devemos não só nos preocupar com os excessos nas Índias [Índias geográficas], mas devemos também [vejam!] dar voz ao adversário, ele deve falar.” E numa sexta-feira santa em Leiria, creio que em 1478, há o assalto à casa de judeus portugueses na cidade e o Rei manda matar todos aqueles cristãos que as invadiram.
Era isso que eu queria chamar a atenção como encurtamento de temporalidade ou encurtamento da relação entre centro e periferia. Prefiro ficar com isso a discutir subdesenvolvimento ou desenvolvimento nessa época. Ou pura e simplesmente a selvageria que, evidentemente, existiu em alguns momentos; no entanto, num primeiro instante, a ideia da noção de paraíso, da viagem horizontal e vertical do povo ibérico, manteve essa conexão tanto com a Itália quanto com o Brasil.
Perguntas do público:
1 – Edmilson, você acha que a pós-modernidade nesse caso, se é que ela existe, é inexoravelmente ruim sob o aspecto da organização da cidade e do tempo das pessoas que aí vivem?
Primeiramente, acho que isso não é pós-moderno, isso é o modernismo, é a etapa de radicalização do modernismo, visto evidentemente no estilo pós-moderno daquilo que é a representação urbana. Acho que o pós-moderno ainda não conseguiu avançar no sentido da sua reflexão sobre o mundo, mas, com certeza, há algumas evidências muito claras que nós precisamos mudar. Lembre-se que o pós-moderno, no sentido das ideias, é ancorado no neobarroco. Estou falando no sentido das ideias, pois no sentido especifico da prática, concordo com o Professor Lessa, e acho que é uma decorrência do modernismo e com a linearidade absoluta do modernismo.
O pós-moderno vai fazer a crítica ao modernismo, mas ainda não definiu com clareza quais são as suas linhas, e talvez nunca as defina. De uma coisa tenho certeza: é necessário colocar em discussão um paradigma de conhecimento que vem do final do século XIX. Assim, com certeza, não dá mais para se pensar idade, globalidade, totalidade, são categorias que, embora presas ao tempo e ao espaço, ficaram velhas. Hoje não posso mais analisar nem a arte e nem a vida, nem mesmo a economia, se continuar trafegando por aqueles que foram os lugares comuns do modernismo. Pensar, por exemplo, a cidade no vinculo modernista é imaginá-la através do espaço construído por Le Corbusier, Frank Lloyd e outros, os quais foram extremamente importantes no sentido da defesa da referência da arquitetura, e que ainda contribuem de forma importante no sentido da recuperação dessa tradição. Para mim, o pós-moderno está em várias manifestações artísticas em geral e está começando a definir seus parâmetros. De sorte que o que chamamos de pós-moderno hoje, com muita autoridade, é o desenvolvimento do modernismo, é apenas o ‘deserto’ modernista.
Há quem chegue de Orlando e ache que ao invés da Barra esteja em Orlando, ou seja, explode-se com a noção de tempo-espaço na cabeça desse coitado; então é preciso, no sentido da diferenciação da ideia de pós-moderno, fixar essa ideia de pós-moderno que é o desdobramento do moderno, mas considerar, por outro lado, que há pensadores sérios que começam a pensar o pós-moderno como uma categoria conceitual, não como uma ilustração daquilo que é o processo de degeneração do modernismo.
Acho que a categoria pós-moderna, hoje, está como esteve o modernismo de outros tempos. As vanguardas começavam a surgir, o modernismo não se definia, até que chegamos a representar o modernismo pela Semana de Arte Moderna de 1922. E aí dissemos que tudo o que vinha antes era pré-modernista. A ressalva que gostaria de fazer é que tanto pré como pós são em si categorias complicadíssimas para serem definidas.
2- A ideia de pós-modernidade pode acarretar uma maior difusão do que hoje se chama de “fim da história”?
Depende de que pós-modernidade seja, eu acho que há uma pós-modernidade que radicaliza a ideia da diferenciabilidade e do descentramento de um processo absolutamente ausente de qualquer tipo de formalidade, e acho que essa é perigosa, além de autoritária.
Na cidade existem vários exemplos de impossibilidade de desenvolvimento urbano por conta de atitudes que, aparentemente, são pós-modernas. Recentemente no Rio de Janeiro, mais precisamente em um bairro chamado São Cristovão, havia uma figueira enorme no meio de uma rua em que passavam ônibus, caminhões, carretas e com um sinal vermelho avisando que ali havia uma árvore. Depois de muitos protestos a favor e contra (os ecologistas) a retirada da árvore, fizeram um canteiro em volta para proteger a figueira e continuou o problema que tanto tumultuava o trânsito local. Até que um dia uma carreta destruiu a figueira, resolveu-se o problema e não se falou mais no assunto. Ou seja, embora irracional a permanência da árvore do ponto de vista do trafego urbano, a atitude contrária à sua retirada era uma atitude dita pós-moderna.
A pós-modernidade pode ser a radicalização de determinado tipo de tema que até então não havia ingressado na cultura política, e que ao ingressar, torna-se pós-moderno apenas por que é novo.
Por outro lado, acho que há uma modernidade que se pensa historicamente e daí o neo-historicismo ser uma das vertentes do pós-moderno. Daí a recuperação pela história da ideia da narrativa, e da variedade de narrativas que a história pode ter. Não é que antigamente estivéssemos presos àquela narrativa eventual, onde se juntava os eventos e dava-se uma forma mais sofisticada. Produzia-se, via modernismo, uma coisa que faz parte do tempo: o contexto e a conjuntura. E essas palavras, entretanto, são velhas para a história. Hoje não há como você produzir contexto, porque sempre parece uma coisa artificial. O contexto é produzido na própria forma de ordenação da narrativa, então eu não preciso ler um capítulo anterior de contexto para as pessoas entenderem do que quero falar sobre um acontecimento histórico. Falava-se de qualquer assunto dos anos 1930, por exemplo, e tinha que se tocar necessariamente na Revolução de 30 e aí ficava tudo igual, sem nuance.
Então eu diria, para encerrar, que há um pós-modernismo que discute o paradigma e que tenta inverter velhas categorias. O que não é o caso, certamente, desse grande equívoco denominado “fim da história”.
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*Antonio Edmilson Martins Rodrigues é historiador e professor da PUC-Rio nas áreas de História Cultural e História da Arte.