A cartografia do pensamento
Deleuze e Guattari (1997c) ensinam que um sujeito se constitui por uma cartografia e, buscar compreender um sujeito não é uma operação de interpretação ou de significação; não é buscar seus vínculos com memórias, pessoas e objetos. Perguntar por uma cartografia é perguntar pelas linhas que compõem uma pessoa, que compõem o seu traçado.
A vida humana passa por entre linhas que se interpenetram e fazem um rizoma. Há três tipos de linhas: as linhas de corte, de segmentaridade dura ou molar; as linhas de fissura, linhas de segmentação fina ou molecular e as linhas de ruptura, linhas não segmentares, as linhas de fuga.
As primeiras linhas são as mais fáceis, dado que podem ser facilmente vistas e percebidas. Nossos segmentos duros expressam os estratos que nos compõem: onde vivemos, onde trabalhamos, como ocupamos nosso tempo. Até mesmo em nossa casa os cômodos que a dividem revelam que há segmentarização: aqui é onde se cozinha, lá onde se dorme. Claramente também há as segmentarizações binárias clássicas, a partir de grandes oposições como as das classes sociais (rico/pobre), de gênero (homem/mulher), de idade (velho/criança). Então, nossa linha mais visível implica diversos segmentos que nos compõem e que reunimos nos vários aspectos sociais a que estamos vinculados. Também chamadas linhas de corte ou de percepção molar, elas incidem sobre elementos bem delineados, bem repartidos, endurecidos e em razão disso, parecem que são as únicas que nos constituem. Ocorre que cruzam essa linha outras linhas que trazem novos traços, novos ângulos e novas possibilidades de vida.
Deleuze e Guattari falam da novela de Henry James, Na gaiola, que trata de uma jovem telegrafista, que trabalha ao lado da mercearia do noivo, com quem planeja o casamento e o futuro de acordo com linhas de segmentaridade dura bem evidentes. Mas ao entrar um jovem casal rico na agência de correios, a jovem toma contato com uma outra vida de telegramas cifrados, assinados com pseudônimos, onde não se sabe quem é quem nem o que significa o que. Ou seja, o telégrafo se revela como um fluxo maleável, marcado por pequenas segmentações. Eis um segundo tipo de linha, que é como um enfraquecimento da primeira ou uma linha que permite que se passe de um segmento a outro de modo muito mais rápido, ou seja, está-se diante de uma segmentaridade flexível ou maleável. No nível da linha molecular já não se tem a determinação do sujeito, já não se pode operar por binaridades, mas por fissuras. As linhas de fissura podem ser ditas o processo do devir ou de desterritorialização, não para ir de uma identidade a outra (de um segmento a outro), mas para fazer vacilar sempre a identidade, para quebrar o segmento duro, como se os segmentos se invadissem e se confundissem. É preciso dizer que o devir não é uma progressão, uma regressão, uma evolução ou mesmo uma imitação. O devir não nos conduz a parecer, ser, equivaler ou produzir. Ser atravessado por um devir é estar em uma ordem de aliança, em uma coexistência de durações, em uma efetuação de potência que faz vacilar qualquer identidade (DELEUZE; GUATTARI, 1997d, p. 18-21). O devir é sempre molecular, está sempre na fissura e não nos objetos ou formas segmentares. Ele também não tem começo nem fim; nem origem ou destino, constituindo sempre uma zona de indiscernibilidade.
Aos olhos da racionalidade acostumada com as segmentaridades duras, essa fissura parecerá sempre uma incongruência, um desacordo, uma ambiguidade, porque a racionalidade tem dificuldade em lidar com fissuras. Isso porque a esse segundo tipo de linha não se apresenta à percepção, daí os autores a chamarem de linha molecular, inapreensível às práticas comuns das nossas faculdades. Ou seja, para além dos segmentos molares que somos, há micromovimentos, minúsculas fissuras, desterritorializações desorientadoras, segmentos que nem sequer suspeitamos.
E, há, pois, uma terceira linha, linhas de ruptura que são as linhas de fuga, as linhas pelas quais ou através das quais a criação é possível. É preciso esclarecer que não são linhas que possibilitam o ato da fuga, como uma fuga consciente das responsabilidades que lhe pesam ou da família que constituiu e não mais se suporta, ou qualquer coisa que o valha. Fuga aqui significa o ato da criação, da demolição do que estava segmentarizado, rígido, territorializado. É mesmo uma ruptura, um corte irreversível, uma abolição do passado, tornando os velhos territórios fora de alcance. Estamos aqui nas linhas dos devires imperceptíveis em que não se pode mais fazer qualquer juízo atributivo do que se é. Todos os grandes estratos molares como a família, a profissão, o gênero, a raça, etc, são desfeitos e já não é mais tempo de certezas, mas a experimentação de pequenas impessoalidades. Ou seja, não é linha de fuga no sentido de que o sujeito é que foge, mas é linha de fuga no sentido de que se faz fugir o mundo para que outro mundo possa se constituir.
Tais linhas coexistem misturadas e eventualmente se transformam umas nas outras, desenhando o rizoma que somos (1997c, p. 103). No senso comum só vemos as primeiras linhas, e pode-se dizer que buscamos nos agarrar aos nossos segmentos duros, à pretensa segurança da organização molar que nos sustenta, aos estratos binários que nos identificam. Cultivamos e buscamos sempre retornar para a primeira linha, endurecemos nossos segmentos e pensamos fincar pé em territórios, mas como diz Blanchot: “os valores, as morais, as pátrias, as religiões e as certezas privadas que a nossa vaidade e autocomplacência generosamente nos outorgam, são diferentes moradas que o mundo arranja para aqueles que pensam, desta forma, manter-se de pé e em repouso entre as coisas estáveis. Eles nada sabem desse desarranjo no qual eles próprios se vão… fuga diante da fuga” (apud Deleuze, p. 109).
Se transpusermos essas linhas para a história do pensamento, vemos que existem claramente construções teóricas de segmentação dura, que buscam a estabilidade de um estrato, a identidade molar com sua sede de permanência e segurança. Há também os experiências de pensamento que fissuram esses grandes segmentos rígidos e já mostram uma abertura de indeterminação e de incerteza. E por fim, há o pensamento da criação, o pensamento como linha de fuga, como desejo de novidade, como abandono de todas as seguranças úteis ao homem e mergulho naquilo que para ele é insuportável do ponto de vista da existência, mas a ambição maior daquele que deseja pensar.
O século XX foi pródigo em fazer multiplicar tais pensadores. Em todos os campos do saber foi possível encontrar transgressores que apontavam o caminho de um pensamento livre, imanente e, por que não dizer, inumano, com o abandono das referências caras ao intelecto e suas necessárias segmentações duras. Parecia que o século XXI seria o século de transgressões ainda maiores, em que se deixaria para trás velhos dogmas e crenças pueris. Mas como ensinam Deleuze e Guattari, as linhas se misturas e coexistem e, as linhas não param de interagir, de reagir, de interferir umas sobre as outras, de introduzir cada uma na outra uma corrente de maleabilidade ou mesmo um ponto de rigidez. É por isso que um caminho de livre criação pode redundar em pensamento ainda mais rígido e dogmático do que já se havia experimentado. Nesse sentido, toda perspectiva evolucionista se mostra inadequada, posto que sempre há experimentação transgressora do pensamento ao lado de experimentação rígida e por isso não se pode datar em um século específico o pensamento mais livre. Em outras palavras, o vício positivista de acreditar num aperfeiçoamento crescente das ideias, numa progressão que ultrapassaria princípios a serem descartados, não se sustenta em uma perspectiva cartográfica. Há transgressores e conservadores desde sempre ao longo da história do pensamento ocidental, em qualquer tempo sempre houve linhas de fuga e também endurecimento que impediram essas fugas ou mesmo o lançamento em um segmentaridade ainda mais rígida.
Há um interesse humano, demasiadamente humano nas segmentaridades molares do pensamento como caminho de certeza e segurança, como autoadulação. Daí a construção de instâncias de poder que buscam tamponar as linhas de fuga em favor de uma segmentaridade dura cujo efeito é autoadulador. Quanto mais esse segmento rígido parece cumprir as promessas das ambições humanas, mas ele será valorizado e replicado pelas instâncias de poder. Quanto mais adulador um estrato é, mais se confia no estrato e se fecha os olhos para as fissuras e para as revoluções moleculares que não cessam de interferir nas construções do pensamento. O fato das três linhas comporem o rizoma que é próprio da atividade de pensar, faz com que paradoxalmente o pensamento conviva com forças que o movem ao mesmo tempo com condições que se contrapõem ao pensamento.
Logo, estamos sempre no risco que uma transgressão ou uma revolução redunde em um horizonte ainda mais conservador. É nessa dinâmica entre velocidades e paradas, desterritorializações e reterritorializações que o pensamento caminha, sem que se possa fazer um desenho linear deste caminho. Se formos capazes, devemos tentar em nosso esforço de pensar, traçar linhas de fuga, sem que se caia na paixão de abolição, no total desmoronamento; sem que caia na vontade de arriscar tudo, de apostar na morte, de tudo destruir. Dizem Deleuze e Guattari: “seguir sempre o rizoma por ruptura, alongar, prolongar, revezar a linha de fuga, fazê-la variar, até produzir a linha mais abstrata e mais tortuosa, com n dimensões, com direções rompidas”. (1997a, p. 20).
Referências:
- Bruno, Flavia. Por um pensamento que supere a autoadulação. In: https://cosmosecontexto.org.br/por-um-pensamento-que-supere-a-autoadulacao/. Acesso em: 11 jan. 2024.
- Deleuze, Gilles. Guatarri, Felix. Mil Platôs. Volume 1. São Paulo: 34, 1997.
- Deleuze, Gilles. Guatarri, Felix. Mil Platôs. Volume 2. São Paulo: 34, 1997.
- Deleuze, Gilles. Guatarri, Felix. Mil Platôs. Volume 3. São Paulo: 34, 1997.
- Deleuze, Gilles. Guatarri, Felix. Mil Platôs. Volume 4. São Paulo: 34, 1997.
- Deleuze, Gilles. Guatarri, Felix. Mil Platôs. Volume 5. São Paulo: 34, 1997.
- Deleuze, Gilles. Guatarri, Felix. O Anti- Édipo. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
- Deleuze, Gilles. Dois regimes de loucos. São Paulo: 34, 2016.
- Deleuze, Gilles. A ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, 2006.
10) James, Henry. Na gaiola. In: https://laboratoriodesensibilidades.wordpress.com/2017/03/15/na-gaiola-henry-james/. Acesso em: 11 jan. 2024.