O devir humano e a questão técnica
Os últimos desenvolvimentos da tecnologia parecem ter reavivado os questionamentos a respeito dos limites da vida humana. Muito se discute sobre a ética que deverá pautar um mundo condicionado pelos avanços exponenciais da Inteligência Artificial; sobre como se darão os processos políticos guiados pelos protocolos que automatizam e padronizam o mundo online; sobre as condições materiais que de fato são necessárias para a manutenção de uma realidade que parece se desmaterializar em nuvens de dados etc.
A meu ver, talvez seja oportuno repor, em torno dessas questões, o dado originário, por assim dizer, que ao mesmo tempo embasa e abisma o que possa haver de atual no problema. Trata-se do fato de que, dentre os viventes, o homem – a humanidade, claro está – parece ocupar uma posição muito singular: somos animais dotados de uma natureza não-natural, ou de segunda ordem, já que atravessada pelas várias técnicas – a começar pela mais elementar e, por isso, decisiva: a linguagem – que criamos, e que também nos criam. Em outras palavras: nascemos fadados aos condicionamentos de uma biologia que a rigor nos é estranha, mas também às contingências de uma cultura sempre circunstancial, produtora de efeitos que tendem a escapar a qualquer predeterminação; desse modo, embora inadaptados ao mundo que nos cerca, somos também capazes de submetê-lo a transformações drásticas, assim transformando, continuamente, a nós mesmos.
Com isso entendemos a recorrência das considerações a respeito de nossas formas de vida. Mais do que viver, para o homem, o problema é saber como viver bem. As formulações platônicas em torno da arte dialética como caminho para a verdade, assim como as prescrições de uma justa medida encontradas em Aristóteles já nos diziam, há muitos séculos, que, no caso da vida humana, o viver mostra-se sempre dependente de uma suplementação que, no entanto, deveríamos acrescentar, nunca garante a sua completude (ideal ou histórica). Daí podemos compreender as definições do humano que foram elaboradas a partir de uma perspectiva relacional ou contrastiva, com a qual a caracterização do homem se dá pelo que nos diferencia dos outros animais. E, nessa perspectiva, o que nos diferencia é, basicamente, o fato de a nossa espécie ser marcada pelas demandas provenientes de uma falta que nos é constitutiva. Afinal, não nos definimos como animais, simplesmente, mas sim em termos de uma animalidade qualificada: somos animais cuja existência, desprovida de uma essência, uma substância ou uma natureza autossuficiente, parece ser sempre dependente de uma especificação eventual, isto é, de um caráter suplementar que se torna, vicariamente, a marca da espécie. Humana, portanto, é a espécie que é excessiva em sua existência, porque carente em seu ser.
Podemos dizer que foi em torno desse problema originário que Aristóteles pôde afirmar que, ao contrário dos demais animais, possuidores de uma voz natural coincidente com os limites de sua vida biológica, o homem é o animal que possui a fala articulada (logos)sendo, em razão disso, mais que um animal: o homem é um animal político. E também foi ao redor dessa diferenciação qualificadora de nossa animalidade superior que, em A cidade de Deus, Santo Agostinho concebeu que o supremo e verdadeiro Deus “fez do homem um animal racional, composto de um corpo e de uma alma”. Com seu gesto desmistificador, Montaigne, por sua vez, sugeriria em seus Ensaios que a vida do homem não é, em si mesma, boa ou ruim, dependendo do modo como nos encaminhamos para a morte, ou seja, dependendo da nossa mediação – do que fazemos com a vida, dia a dia, meditando sobre o inevitável da morte – a definição da sua qualidade. Já Descartes, em outra chave, mas insistindo na mediação técnica do devir humano, buscou conduzir seu o pensamento por meio da dúvida metódica, reafirmando, por esse caminho, que a verdade não pode ser um a priori para o homem: somente pode alcançá-la o domínio da razão sobre a matéria, isto é, a prevalência da racionalidade matemática, cartesiana, sobre o corpo.
Embora divergentes em seus desdobramentos, são abundantes, assim, os exemplos que remetem ao mesmo problema originário e seguem acompanhando os movimentos da história ocidental, que em grande medida coincide com a titânica história da humanização do mundo. Obviamente, um mundo mais humano não designa a emergência de condições históricas nas quais prevalecem o respeito, a igualdade, a harmonia, ou qualquer ideal proveniente de um humanismo ingênuo. Ao contrário, trata-se do mundo gerado pelo progressivo processo de conversão de toda a natureza em recurso produtivo, disponível para ser explorado e capitalizado pelo homem; um processo que contou com o significativo reforço das formas de administração da vida biológica dos indivíduos e das populações, nos marcos dos Estados liberais burgueses e das modernas tecnologias disciplinares, com as quais se articulam, sempre, a produção do saber e o exercício do poder.
Agora, para o que nos interessa aqui, eu diria que há um autor a quem coube uma síntese decisiva para o problema. Não penso em Heidegger (embora sugerido desde o título). Refiro-me ao Freud de O mal-estar na civilização. Nesse ensaio incontornável, o psicanalista nos diz que, em nosso poder desmedido, alcançado por meio das inúmeras técnicas que sustentam o desenvolvimento contínuo da cultura, enfim nos assemelhamos a divindades, sim, mas com acessórios: somos deuses protéticos – artificiais, portanto. Quase ilimitados no alcance promovido por essas próteses, não nos encontramos, no entanto, mais felizes ou mais livres: nos marcos dessa cultura que, afinal, tanto nos cobra e nos culpa, individual e coletivamente, prevalece o mal-estar, uma condição para a qual, aliás, segundo Freud, não há cura. E é pela sobrevivência dessa mesma cultura, cultivada coletivamente desde tempos imemoriais, que nós também destruímos – até o limite, quem sabe, do próprio planeta.
Em suma, em poucos exemplos, vemos a recorrência de um pensamento que, ao salientar a disjunção constitutiva do nosso ser, aponta como a principal característica da humanidade o seu dado negativo, faltoso, desamparado, e assim mobilizador de uma busca ambivalente, mediada por inúmeras técnicas, que nunca se esgota. Daí que a nossa natureza seja um devir como construto, já que sempre dada a posteriori, por meio das técnicas que a suplementam e, com isso, ao mesmo tempo, a engendram. Contemporaneamente, ao investigar nossas relações com as imagens, Giorgio Agamben afirmou que o homem é o animal que vai ao cinema. Emanuele Coccia, por sua vez, escreveu que o homem é o animal que se veste. E assim por diante, em várias formulações: o homem é o animal que joga, que trabalha, que cozinha, que guerreia, que simboliza etc. Em suma, o homem não é, definitivamente, em si ou por si mesmo; ele é o ser que… pode fazer, e que, fazendo, é feito, faz-se: vem-a-ser.
A aparente digressão nos reconduz ao cerne do problema do qual partimos. Ainda que ambivalente, o desenvolvimento técnico parece ter sido frequentemente associado a uma promessa: de potência, de esclarecimento, de ampliação da vida, de emancipação humana etc. Acredita-se, nesse sentido, que o avanço da tecnologia, necessariamente auspicioso, conduzirá à superação de nossas falhas e limitações, liberando o homem de si mesmo, por assim dizer. Vimos que não é esse o horizonte; mas ainda assim caberia a pergunta: o que acontece quando, em larga medida, a abertura aparentemente promovida pela técnica coincide, na verdade, com a máxima captura e a exploração última da vida? Quando não há separação entre o desenvolvimento da técnica e a progressiva exaustão do mundo?
Colocados nesses termos, os questionamentos podem parecer exagerados; contudo, é o que está em jogo, quando levamos em conta, não as vantagens, e sim o custo hiperbólico das apostas feitas num presente-futuro ditado pelo avanço exponencial da Inteligência Artificial, dos algoritmos, das redes etc. Isso porque, na configuração expansiva do chamado mundo virtual, quase não há o que escape à lógica do capital. E a lógica do capital é, como sabemos, a lógica da exaustão do planeta. Projetar um futuro coletivo sobre as bases vigentes do capitalismo é, por isso, alimentar o cinismo ou a ilusão. Realmente devemos considerar, então, como sair desse quadro: pois um futuro somente será possível fora da máquina capitalista.
Para reforçar essa consideração, seria importante, por exemplo, relembrar que, em sua gênese, a internet foi uma técnica bélica, projetada pelos Estados Unidos, no contexto da Guerra Fria, como instrumento de retaliação em rede – isto é, descentralizado e com uma redundância inerente de rotas –; instrumento que já pressupunha, com seu sistema interconectado de mísseis nucleares, que a ação e a existência humanas eram, no limite, dispensáveis. E seria relevante não esquecer as implicações materiais (as quantidades exorbitantes de água, de minerais, de terreno livre etc.) da produção e da manutenção continuadas das redes, dos data centers e dos variados componentes eletrônicos envolvidos. Além disso, seria preciso ter em mente as relações coloniais que são perpetuadas, de diferentes maneiras, nos lugares onde ocorrem as extrações dos recursos necessários a tais equipamentos e instalações. E creio que seria preciso, ainda, retraçar ostensivamente, uma e outra vez, a cadeia econômica que, ao redor do globo, converte os dados pessoais, os hábitos e as formas de vida mais singulares em valor financeiro, que redunda na obscena riqueza de bilionários, acionistas de empresas online e investidores de big-techs.
Finalmente, a meu ver, não podemos deixar de questionar, seriamente, o que restará do humano – do nosso vir-a-ser, sensível e inteligível, por meio da técnica – quando a imaginação, o sentimento, o pensamento, o desejo (etc.) forem delegados a programas que poderão “realizá-los” através de sínteses de padrões informacionais. Se, ao longo do tempo, na relação com as técnicas, mantivemos sempre alguma capacidade de agência, ou seja, de decisão – instância onde se coloca, justamente, o problema da ética –, o que passaremos a ser quando abdicarmos, enfim, de nossa falta constitutiva, em favor de uma “inteligência” artificial que parece tender, cada vez mais, à autossuficiência, isto é, a uma suposta completude que, afinal, faz do humano, não um devir, mas um dado – previsível e, por isso, descartável?