PROBLEMATIZAÇÃO SOBRE O VAZIO* – Física, literatura, filosofia e psicanálise
* Conferência realizada no colóquio intitulado “O horror do vazio”, que ocorreu no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, em 08 de agosto de 2024.
- Preâmbulo
A intenção e o objetivo fundamental deste ensaio é a de realizar de forma condensada e sintética diversas problematizações[1] em torno do problema[2] do vazio, nos diferentes discursos teóricos da física, da literatura, da filosofia e da psicanálise, nos quais a questão do vazio ocupou uma posição estratégica nesses discursos.
Entretanto, é preciso destacar de forma preliminar que a dita questão teórica do vazio se constituiu inicialmente no discurso da física, na Antiguidade, em conjunção com o problema do horror do vazio, que permaneceu de forma incólume na tradição teórica ocidental até o século XVII, quando a revolução científica de então promoveu então uma inflexão teórica decisiva nesta problemática em pauta. Com efeito, no contexto histórico e epistemológico das revoluções científicas do século XVII,[3] o horror do vazio se transformou numa questão eminentemente moral e até mesmo teológica com a matematização ocorrida então no discurso da ciência, representado de forma eloquente pela astronomia e a física.
Assim, como disse Koyré na importante obra intitulada “Do mundo fechado ao universo infinito, nos deslocamos assim do mundo restrito, finito e qualitativo, configurado pelo mais ou menos no universo infinito e quantitativo do rigor matemático. Em consequência, o vazio perdeu a aura do absoluto que o caracterizara outrora e se tornou então relativo, deixando assim de ser representado como o horror do abissal como outrora.[4]
Se esta ruptura teórica eloquente foi problematizada inicialmente por Pascal, nos diferentes registros da física, da teologia e da filosofia,[5] por um lado, ela foi posteriormente problematizada pela filosofia com Nietsche, em a“ Genealogia da moral,”[6] com o filosofema da “morte de Deus”[7], de modo que a emergência da ciência moderna evidenciou a dessacralização e o desencantamento do mundo, como nos disse rigorosamente Weber, no século XX.[8]
Assim, foi no campo destas transformações teóricas radicais que os discursos da filosofia, da literatura e da psicanálise retomaram o problema do vazio na modernidade nos seus discursos teóricos específicos, delineando diferentes destinos e desdobramentos teóricos para a problemática do vazio.
Este ensaio vai se desdobrar finalmente no discurso psicanalítico, de forma que ao enunciar o conceito do inconsciente e ao mesmo tempo formular a crítica da filosofia consciencialistacom Freud, com a proposição correlata de que a consciência seria descontínua 9, colocou em pauta diferentes formulações sobre o vazio e o horror do vazio, através dos diversos conceitos de angústia do real[9] e da angústia sinal, [10] que possibilitaram em contrapartida a problematização das categorias do desamparo e do desalento, como formas de subjetivação.[11]
Além disso, no ensaio de 1918 intitulado “A inquietante estranheza”[12] Freud elaborou frontalmente o conceito do horror do vazio como angústia do real, inscrito nas bordas das cenas existentes entre o que seria familiar e o não familiar, delineando assim a ruptura entre os registros do vazio e do horror do vazio.
Desta maneira, o que nos propomos realizar então neste texto é a leitura genealógica do problema do vazio, dos pontos de vista teórico e metodológico da crítica contundente realizada por Nietzsche do discurso da história no ensaio “Segunda consideração intempestiva”, onde propõe o conceito da genealogia pela crítica das concepções de origem e de telelogia[13]Além disso, a leitura crítica da história por Nietzsche se fará em conjunção com a leitura de Foucault nos anos 60, no ensaio intitulado “Nietzsche, a genealogia, a história”[14]
Dito tudo isso, de forma preliminar e introdutória, como podemos então iniciar para as nossas problematizações sobre o vazio.
- Vazio e ficção
Em uma leitura brilhante e até mesmo surpreendente do romance de Joseph Conrad, intitulado “No coração das trevas,[15] o crítico literário Tzvetan Todorov demonstrou de maneira notável que a obra em questão não se restringe a ser uma pitoresca história de aventuras pelo exótico continente africano, modulado por um olhar colonialista ocidental no século XIX, mas se evidencia, em contrapartida, como uma ousada construção do espaço literário como espaço de ficção, na qual o vazio enquanto tal na sua especificidade seria o centro gravitacional da narrativa em questão. Portanto, o que estaria assim em pauta neste romance fascinante seria uma “narrativa de conhecimento”, segundo a formulação rigorosa de Todorov, de forma que a “narrativa mítica” remeteria certamente então para a “narrativa de conhecimento” propriamente dita. Enfim, a produção de conhecimento se articularia intimamente com o espaço ficcional para promover assim a construção de espaço literário.
Assim, percorrendo a oposição crucial entre o Ocidente e a África, assim como entre Europa e África, norteadas pelas oposições brancos e negros e trevas e luz,[16] o romance em pauta vai se constituindo como um espaço de ficção na sua especificidade, como marca por excelência que seria da literatura na modernidade.[17] No dito espaço de ficção as suas linhas de força e de fuga convergem para o registro do vazio, como condição de possibilidade que esse seria assim para a narrativa literária na modernidade ocidental.
Evidentemente, a figura do vazio em questão remete para a autonomia da linguagem em relação dos registros da coisas, de forma que o registro linguístico do significante se autonomizaria face ao do significado, evidenciando mais ainda de forma eloquente o registro do vazio como constituinte da narrativa (ficcional) da literatura no Ocidente moderno.
Entretanto, a leitura pertinente de Todorov, sobre a constituição do espaço literário na modernidade, fundado na centralidade do vazio como constituinte da ficção, nos remete também para outras leituras teóricas sobre a modernidade, no campo discursivo da filosofia.
- Semiologia, hermenêutica e vazio
Assim, em 1966, Michel Foucault numa obra teórica original no campo (filosófico) da arqueologia do saber” no qual opunha de forma surpreendente os registros das palavras e das coisas, no campo histórico constitutivo do Ocidente, destacou no tempo histórico da longa duração as gramáticas civilizatórias do Renascimento, da Idade Clássica e da modernidade, respectivamente. Portanto, foi por este o espaço teórico empreendido meticulosamente por Foucault em “As palavras e as coisas”,[18]que teve como subtítulo “Uma arqueologia das ciências humanas”.[19]
Neste contexto, ao opor decididamente as problemáticas civilizatórias do Renascimento e da modernidade, passando pela Idade Clássica, Foucault enunciou assim a indistinção inicial entre os registros das palavras e das coisas no Renascimento, passando em seguida pela oposição entre as palavras e as coisas na Idade Clássica e atingindo outro limiar distintivo e opositivo na modernidade, com a autonomia dos registros das palavras e das coisas. Com efeito, só na Idade Clássica se constituiu uma modalidade nova de interpretação intitulada de semiologia,[20] onde os registros das palavras remetia especularmente ao registro das coisas, de forma que as palavras teriam uma origem nas coisas e vice-versa. Na modernidade, em contrapartida, o registro das palavras se autonomizaria em fase do registro das coisas, de maneira que as palavras se descolariam assim a noção de origem e de forma correlata as palavras remeteriam agora ao registro exclusivo das palavras de forma infinita, inaugurando assim uma nova modalidade de interpretação denominada de hermenêutica.[21]Vale dizer, nesse contexto as palavras se invaginariam no campo das palavras, numa torção infinita sobre si mesmas.
Portanto, se nesta obra teoricamente Foucault concebe o campo do pensamento pela articulação distintiva entra as palavras e as coisas, nos contextos históricos de diferentes gramáticas civilizatórias, procurando circunscrever assim as diferentes modalidades de interpretação, não resta qualquer dúvida que a concepção do vazio, como centro gravitacional da narrativa literária e ficcional moderna em Todorov como indiquei anteriormente, remete para a concepção de perda de origem da palavra em relação as coisas na leitura de Foucault.
Por isso mesmo, ainda nesta mesma obra, Foucault pode formular de maneira original que a literatura como formação discursiva, se constituiu somente na modernidade histórica, quando o registro das palavras se autonomizou decisivamente do registro das coisas,[22]com a constituição da hermenêutica e da linguagem ao infinito.
Num ensaio de 1967, intitulado “Nietszche, Freud e Marx,”[23] Foucault retomou a mesma problemática [24] enunciado em “As palavras e as coisas” para formular de forma decisiva como Nietzsche, Freud e Marx seriam os fundadores da hermenêutica como formas modernas de interpretação como vimos acima, na medida em que nos seus diversos campos discursivo o registro das palavras assumiu a posição de autonomia face ao registro das coisas, de forma que as palavras perderam a origem (vazio), por um lado, e o registro das palavras passou a se voltar para si próprio de forma infinita, pelo outro, configurando assim de forma virtual as linhas de força e de fuga do espaço ficcional.
Portanto, da filosofia à psicanálise, passando pela economia política, a hermenêutica e a interpretação ao infinito constituiram outros domínios do saber na modernidade ocidental.
É claro que, por esta oposição entre palavras e coisas, se constituiu o registro específico do pensamento com a constituição da hermenêutica na modernidade, seria a condição concreta de possibilidade para a constituição do discurso teórico da linguística no século XX, em oposição ao discurso teórico da filologia clássica, com Saussure, no famoso “Curso de Linguística Geral”[25] onde o registro do significante se oporia decisivamente ao registro do significado.[26]
Portanto, todas essas transformações no campo da linguagem evidenciariam a perda do conceito de referência no campo da significância.
- Do númeno à história.
É possível indicar ainda que a formulação filosófica de Foucault na arqueologia do saber remeteu também para o deslocamento histórico e epistemológico decisivo ocorrido na filosofia clássica alemã, na passagem crucial da filosofia de Kant para a de Hegel, no que concerne a problemática das relações intrincadas entre os registros do sujeito e do objeto na promoção do processo do conhecimento.
Assim, se para Kant não haveria a possibilidade do sujeito em apreender a coisa em si na produção do processo do conhecimento, mas apenas para a coisa para si, de maneira que o conhecimento do númeno(coisa do si), se faria assim impossível.[27]Em consequência, a experiência do conhecimento passaria sempre pelo registro do fenômeno, diante do vazio representado pela apreensão da coisa em si.
Em contrapartida, Hegel criticou frontalmente a filosofia clássica de Kant ao demonstrar que, se a coisa de si não poderia ser diretamente apreendida, ela poderia ser indiretamente apreendida historicamente, no tempo da longa duração, no campo discursivo da “ A Fenomenologia do Espírito”,[28] como realizou Hegel na sua obra magistral de 1807, de forma que no tempo histórico e epistemológico do saber absoluto. Com efeito, neste contexto seria finalmente possível a conjunção entre as coisas em si e para si, de forma que ocorreria enfim a articulação entre os registros do sujeito e do objeto, assim como entre os registros gas coisas e das palavras.[29]
Seria assim também numa leitura arqueológica da modernidade, na perspectiva realizada pelo filosofia de Foucault, que podemos também circunscrever a emergência histórica e epistemológica da psicanálise, no final do século XIX, com a constituição do discurso freudiano no final do século XIX.
- Inconsciente e vazio
A constituição teórica da psicanálise se realizou pela formulação axial do conceito do inconsciente, realizado pelo discurso freudiano, de forma sistemática na “Carta 52”[30] da comunicação de Freud com Fliess e formulado de forma sistemática no capítulo VII da obra intitulada “A interpretação dos sonhos”[31] Pela formulação do conceito de inconsciente o discurso freudiano realizou à critica ao discurso da psicologia clássica centrado nos registros da consciência e do eu, enunciando assim que o registro do inconsciente teria então sua condição de possibilidade na descontinuidade da consciência, que se inscreveria nos intervalos e nas descontinuidades da consciência, que deixaria assim de ser concebida como plena como outrora, se manifestando então nas suspensões periódicas da consciência.
Portanto, o inconsciente como o Outro da consciência e como a Outro cena do sujeito, que seria assim descentrado face ao eu e a consciência, não seria então um registro subjacente e paralelo ao da consciência, mas que se constituiria nos intervalos desta, quando a consciência se manifestaria de forma descontínua. Enfim, o inconsciente como registro psíquico não seria a inconsciência, mas se constituiria positivamente como formação psíquica, no pluralo, na descontinuidade e nas dobras da consciência.[32]
Desta maneira, os intervalos da consciência (vazios) seriam as condições de possibilidade para que as formações do inconsciente pudessem assim se constituir efetivamente.
De 1893 a 1905, o discurso freudiano enunciou a existência das diversas formações do inconsciente, a saber, o sintoma[33], o sonho[34], o ato falho,[35]o lapso,[36] o humor[37] e a transferência[38]. Portanto, a psicanálise como saber e prática clínica se empreenderia pela interpretação das diferentes formações do inconsciente, por onde o psiquismo procuraria se confrontar com os conflitos psíquicos originários.[39]
Nesta perspectiva, a teoria psicanalítica foi denominada assim de metapsicologia, na medida em que centrada no inconsciente a psicanálise estaria então além da consciência e da psicologia consciencialista, de forma que o sujeito estaria numa Outra cena. Assim, segundo Freud a metapsicologia implicaria numa tripla leitura dos processos psíquicos, a saber, a tópica¸ a dinâmica e a economia psíquica, de forma que o conflito e a divisão psíquicas serão assim correlatos no campo da metapsicologia.
Assim, se o conflito psíquico seria a marca fundamental do psiquismo segundo Freud, seria este conflito que conduziria a divisão psíquica (tópica), ainda por intensidades diferentes Nesta perspectiva, Freud elaborou uma primeira tópica, onde o inconsciente se oporia ao pré-consciente e à consciência,[40]assim como uma segunda tópica, onde o isso, o eu e o super-eu[41] marcariam a nova versão da divisão psíquica encontrada na obra “O eu e o isso”.[42]
Contudo, o que tem que ficar claro é que o registro psíquico do inconsciente, que se enunciou nos intervalos e descontinuidades do registro da consciência, como disse acima, e que foi representado pelas formações do inconsciente, evidencia-se aqssim algo da ordem do vazio, como formulei acima. Para formular esta questão em termos filosóficos, podemos dizer então que o inconsciente se evidenciaria como uma forma de não ser, como enunciou Lacan em um dos seus “Escritos”[43]
Daí a importância no discurso freudiano do processo de negação na sua articulação com a operação do recalque, como nos disse Freud num ensaio sobre a negação,[44] devidamente comentado por Lacan e por Jean Hyppolite no seminário inicial de Lacan sobre os “Escritos técnicos de Freud”.[45]
Po, que foi então rém, é necessário destacar ainda com Lacan no ensaio intitulado “Ciência e verdade”, que o discurso psicanalítico é tributário historicamente (tempo de longa duração) pela emergência epistemológica prévia do discurso da ciência, no século XVII, com Descartes,[46] de forma que se ocorreu então a foraclusão do sujeito inicialmente, no final do século XIX a psicanálise restaurou o registro do sujeito no campo do inconsciente com a constituição histórica da psicanálise no século XIX, com a emergência do discurso psicanalítico com Freud..
Por este viés, podemos destacar como a emergência epistemológica do discurso da ciência no século XVII, promoveu outra leitura sobre o horror do vazio, com a matematização daquele, de forma a sustentar cientificamente o vazio, sem a dimensão do horror. Vale dizer, a concepção de vazio permaneceu sem a caracterização anterior do horror do vazio, de forma que é preciso aquilatar esta transformação teórica crucial no discurso da física.
Enfim, se o horror do vazio foi enunciado na antiguidade por Alexandre de Afrodisíaca, no quadro do paradigma aristotélico, sobre o Cosmos, de forma que o vazio era considerado um problema da física e não da matemática( geometria ) como enunciou Aristóteles na sua obra A física. Portanto, [47] desde o século XVII o vazio passou a ser um problema especificamente filosófico, de maneira que a mensuração do vazio e a matematização da natureza pela ciência relativizou a noção de vazio.
- Horror do vazio,
Foi no século XVII, que Pascal realizou suas experiências cruciais sobre o vazio, retornando os trabalhos de Torricelli[48]. A importância científica da investigação de Pascal é múltipla, evidenciando assim de forma eloquente a ruptura teórica com a Antiguidade.
Antes de mais nada, Pascal opôs inicialmente as problemáticas do vazio e do horror do vazio, enunciando que essa seria de ordem subjetiva e moral, enquanto que aquela seria especificamente de ordem científica.[49] Neste contexto, Pascal enunciou a nova leitura sobre a natureza oriunda da revolução científica do século XVII, segundo o qual o Cosmos antigo foi transformado radicalmente em Universo. De acordo com Koyré, na obra intitulada “Do mundo fechado ao universo infinito”,[50] se o Cosmos seria fechado e finito, o universo, em contrapartida, seria marcado pelo, infinito.[51]
Esta transformação implicou ainda uma outra transformação radical na concepção da quantidade, segundo Koyré, onde nos deslocamos desde então do mundo qualitativo do mais ou menos, para a invenção da precisão matemática.[52]
Desta forma, a um problema do sujeito e não do objeto do conhecimento, de ordem subjetiva e moral e não da ordem da natureza, pois Pascal foi diretamente afetado com a sua experiência de angústia (vazio), face ao que existia de abissal face ao universo infinito. Com efeito, enunciava que quando olhava para a imensidão sem contornos do céu estrelado era tomado vertiginosamente pela angústia face ao universo infinito.[53]
Portanto, Pascal, como metafísico passou a ser o primeiro teórico a problematizar o tédio e a angústia, sendo por isso considerado por muitos como sendo o primeiro filósofo existencialista, na medida em que como sabemos a problemática da angústia ocupou uma posição estratégica e fundamental na filosofia existencialista [54]
Esta leitura surpreendente de Pascal evidencia a transformação epistemológica da concepção de natureza com o advento da revolução científica no século XVII, com a transformação do Cosmos em Universo, por um lado, mas evidenciando também como o horror do vazio da Antiguidade foi radicalmente transformado numa concepção ética de vida e morte, assim como uma problemática de ordem religiosa.
Assim, Pascal profundamente religioso, marcado pela ética jansenista de filiação augustiniana, passou a interpretar o vazio como marca eloquente da ausência de Deus no mundo marcado pelo pecado original, de forma que o apaziguamento do horror abissal do vazio e da angústia que lhe evidenciaria, seria possível de acontecer pela inscrição teológica do sujeito na saga de Cristo.[55]
Não precisamos sustentar as implicações teológicas da leitura de Pascal sobre o horror do vazio, mas apenas a pertinência e do impacto no sujeito da problemática ética da angústia, que vai implicar, se desdobrar e que vai conduzir posteriormente à noção de falta na psicanálise, como condição de possibilidade do inconsciente em psicanálise, como enunciou Lacan de forma pertinente.[56] isso, a psicanálise problematizou o conceito do horror do vazio como signo da angústia e da falta, constituindo assim o conceito do inconsciente e do discurso psicanalítico sobre o sujeito no registro psíquico do inconsciente, como desdobramento posterior do advento da ciência moderna.[57]
No entanto, como dissemos na introdução deste texto, foi em decorrência disso que Nietzsche enunciou o filosofema da morte de Deus no séciko XIX e Weber na sua sociologia das religiões enunciou o desencantamento do mundo como contrapartida a racionalização do mundo decorrente da racionalização do mundo promovido pela constituição do discurso da ciência no século XVII.
- Angústia real e angústia sinal
Contudo, é preciso considerar agora como o discurso psicanalítico procurou introduzir nuances, matizações e diferenças na leitura do horror (angústia) do vazio, procurando opor o vazio aniquilante presente em certas condições psíquicas limites ao vazio com contornos reassegurantes.
Assim, ao propor a diferença entre angústia sinal e angústia real, na obra intitulada “Inibição, sintoma e angústia”,[58] Freud formulou que na angústia sinal o sujeito se antecipa ao perigo possível pela produção do sinal da angústia, o que lhe permite assim agenciar defesas para fazer frente ao perigo possível, configurando uma forma de subjetivação caracterizada pelo desamparo, enquanto que na angústia real o sujeito se defronta com a surpresa algo da ordem do inesperado numa experiência francamente horripilante, onde a morte possível se enuncia de forma eloquente como desalento, promovendo o gosto amargo de morte , no sujeito. Seria isso assim que configuraria a experiência do trauma propriamente dito, no registro do real, descrito por Freud.[59]
Portanto, a angústia real remete à experiência da inquietante estranheza enunciada por Freud nas bordas entre o que é familiar e o que não é familiar, que comentamos na introdução deste ensaio. Em decorrência disso, no seminário X sobre “A angústia”, Lacan enunciou que a angústia seria o único afeto que não mente, pois se enunciaria diretamente no registro real do corpo 60.
No entanto, a transformação da angústia real em angústia sinal, com a produção da operação do recalque, implicaria assim na transformação do vazio absoluto (morto) num vazio relativo e com contornos. Numa dialética psíquica regulada pela oposição entre ausência e presença como Freud descreveu esta simbolização e metaforização com a produção da compulsão a repetição como operador psíquico face aos efeitos do trauma 61
Seria então pelo viés da oposição entre presença e ausência, de forma simbólica e metafórica que seria preciso ultrapassar a desolação face à morte e ao horror do vazio, transformando assim em desamparo, onde pela compulsão à repetição o inconsciente e o recalque se realizariam ao mesmo tempo. Com isso, enfim, o desejo seria assim promovido na dimensão … da falta.
Resumo. Problematizações sobre o vazio. Física, Literatura, Filosofia e Psicanálise.
A intenção deste texto é a de problematizar as categorias do vazio e do horror do vazio , na Antiguidade e na modernidade, considerando o impacto epistemológico das revoluções científicas do século XVII nesta problematização.
Summary. Problematizations about emptiness. Physics, Literature, Philosophy and Psychoanalysis. The intention of this text is to problematize the categories of emptiness and the horror of emptiness, in Antiquity and in modernity, considering the epistemological impact of the scientific revolutions of the seventeenth century on this problematization.
** Psicanalista, Professor Titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Professor Adjunto do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Diretor de pesquisa em Letras e Ciências Humanas da Universidade de Paris.
[1] Foucault, M. Dits et écrits. Volume IV. Paris, Gallimard, 1994.
[2] Ibidem.
[3] Belaval, Y. L´horreur de vide. In: Nouvelle Recherche du Psychanalyse. Número 11.Pris, Gallimard, 1975
[4] Belaval, Y. Ibidem
[5] Anzieu, D. Naissance du concept du vide chez Pascal. Ibidem.
[6] Nietzsche, F. Génealogie de la morale. Paris, Gallimard, 1971.
[7] Ibidem.
[8] Weber, M. Économie .et Societé. Paris, Plon, 1964.
[9] Freud, S. L´interprétation des rêves (1900). Capítulo VII. Paris, PUF, 1976.
[10] Freud, S l’inibition, symptôme et angoisse ( 1926).. Paris, PUF, 1926
[11] Birman, J. O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2013.
[12] Freud, S. L´inquiétante étrangété (1918). Paris, Gallimard, 1983.
[13] Ibidem.
[14] Foucault, M. “Nietzsche, la généalogie, l´histoire ». (1970). In : Foucault, M. Dits et écrits. Volume I. Paris, Gallimard, 1994.
[15] Conrad, J.Au coeur des tenebres. Paris, Gallimard, 1948.
[16] Todorov, T. Connaissance du vide. In: Nouvelle Revue du Psychanalyse. Número 11. Op.cit.
[17] Todorov, T. Idem..
[18] Foucault, M. Les mots et les choses. Une archéologie des sciences humaines. Paris, Gallimard, 1966.
[19] Ibidem.
[20] Ibidem.
[21] Ibidem.
[22] Ibidem.
[23] Foucault, M. Dits et écrits. Volume IV. Paris, Gallimard, 1994.
[24] Foucault, M. Nietzsche, Freud e Marx. In: Dits et écrits. Volume I. op. cit.
[25] Saussure, R. Curso de Linguística Geral. São Paulo, Cultrix, 1979.
[26] Idem.
[27] Kant, E. Critique de La raison pratique. Paris, PUF, 1970
.
[28] Hegel, G.W.F.La phénoménologie de l’esprit. Paris, Aubier, 1941. Vol. I et II.
[29] Ibidem.
[30] Freud, S. Carta 52. In: Freud, S. Fliess, W. Correspondência Completa. Rio de Janeiro, Imago, 1986.
[31] Freud, S. L´interprétation des rêves (1900). Capítulo VII. Paris, PUF, 1976.
[32] Ibidem.
[33] Freud, S. “ Les psychonevroses de defense” In: Freud, S. Névrose, psychose et perversion. Paris, PUF, 1970.
[34] Freud, S. L´interprétation des rêves (1900). Op. cit.
[35] Freud, S. Psychopathologie de la vie quotidienne (1901). Paris, Payot, 1973.
[36] Ibidem.
[37] Freud, S. Le mot d´esprit et sa relation à l´inconscient (1905). Paris, Gallimard, 1969.
[38] Freud, S. La technique psychanalytique. Paris, PUF. 1973.
[39] Freud, S. Metapsychologie. Paris, Gallimard, 1968.
[40] Ibidem.
[41] Ibidem.
[42] Freud, S. “Le moi et le ça” (1923). Op. cit.
[43] Lacan, J. Écrits. Paris, Seuil, 1966.
[44] Freud, S. La negation. In: Freud, S. Résultats, Idées, Problèmes (1890-1920). Volume I. Paris, PUF, 1984.
[45] Lacan, J. Les écrits techniques de Freud. Paris, Seuil, 1975.
[46] Lacan, J. Écrits. Paris, Seuil, 1966.
[47] Belaval, Y. L´horreur de vide. In: Nouvelle Recherche du Psychanalyse. Número 11, op. cit.
[48] Anzieu, D. Naissance du concept du vide chez Pascal. In:
[49] Koyrés, A. Du monde clos à l´univer infini. Paris, Gallimard, 1966.
[50] Ibidem.
[51] Ibidem.
[52] Anzieu, D. Naissance du concept du vide chez Pascal. In Nouvelle Revue de Psychanalyse. Número 11. Op. cit.
[53] Ibidem.
[54] Ibidem.
[55] Lacan, J. Écrits. Op.cit..
[56] Freud, S. (1926). Inhibition, symptôme et angoisse. Paris, PUF, 1973.
[57] Ibidem.
[58] Ibidem.
[59] Ibidem.
60. Lacan, J. l ‘angoisse. Le Seminaire de Jacques Lacan. Paris, Seuil, 2010
61. Freud, S “Au dela du príncipe du plaisir “. In Freud, S. Essais de psdychanalyse. Op.cit.